quinta-feira, 24 de julho de 2025

O ‘fascio’ do Tio Sam

Não, isso não é democracia. Isso é convulsão institucional prestes a se assumir como ditadura escancarada

Agora, quem usa a palavra “fascismo” para se referir ao governo de Donald Trump é Robert B. Reich, um intelectual sem nenhum histórico de surtos esquerdistas. Longe disso, Reich tem uma trajetória de ponderada coerência. Advogado, foi secretário do Trabalho (cargo equivalente ao de ministro no Brasil) durante o governo de Bill Clinton, de 1993 a 1997. Era cordial e atencioso no trato com jornalistas – brasileiros, inclusive. Reich foi também professor de Políticas Públicas em Berkeley. Hoje, aposentado, segue em destaque como autor de livros, alguns deles best-sellers e como articulista frequente em jornais e revistas como The New York Times, The New Yorker, The Washington Post, The Wall Street Journal, e The Atlantic. Sua voz não costuma ceder a radicalismos e destemperos.

Pois esse sujeito, lúcido e sensato, publicou no início do mês, em sua newsletter com mais de um milhão de assinantes, uma crítica ácida à lei orçamentária que o presidente dos Estados Unidos conseguiu aprovar no Congresso. Reich diz que o pacote vai tornar “os Estados Unidos mais cruéis” do que já são. Não é para menos. A peça orçamentária retira mais de US$ 1 trilhão do Medicaid (assistência médica pública). Até 2034, vai condenar ao abandono um contingente de 12 milhões de americanos. Além disso, providencia uma substanciosa redução de impostos para os mais ricos e turbina o caixa das ações militares de combate à imigração.

O sadismo é tanto que Robert Reich compara Donald Trump com os chamados “homens fortes da década de 1930 – Hitler, Stalin, Mussolini e Franco”, e conclui: “O fato de uma legislação tão regressiva, perigosa, gigantesca e impopular ter sido aprovada no Congresso demonstra o quanto Trump arrastou os Estados Unidos para o fascismo moderno.” O parlamento abaixa a cabeça à prepotência do Executivo. A Suprema Corte, pelo que se vê, tomará caminho parecido. Fascismo é a palavra.

Não foi por falta de aviso. Há cinco anos, num longo artigo publicado no New York Review of Books, Sarah Churchwell, professora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Londres, definiu, logo no título, o resumo do primeiro governo Trump: “Fascismo americano: aconteceu aqui”.

Depois de registrar que o presidente andara posando com uma Bíblia na mão, Bíblia que nunca leu, a autora lembrou um velho ditado: “Quando o fascismo chegar à América, estará envolto na bandeira e carregando uma cruz”. Ela alertou que a frase, comumente atribuída a Sinclair Lewis, tem sua origem mais provável nos discursos de James Waterman Wise, filho do rabino Stephen Wise. Há quase um século, James Wise avistou o perigo e antecipou: o fascismo chegaria às terras do Tio Sam “embrulhado na bandeira americana ou em um jornal de Hearst”.

William Randolph Hearst, ganancioso e narcisista, foi o magnata da imprensa retratado com genial mordacidade no filme Cidadão Kane, de Orson Welles, lançado em 1941. Aos olhos de Wise, a América de Hearst desejava o fascismo, mas de um tipo diferente. Bingo: no paraíso das celebridades, do consumismo pantagruélico, do entretenimento fútil e do glamour aloirado, a tintura capilar de Marilyn Monroe ganhou uma estranha ressurreição sobre o cocuruto de Donald Trump e as piores vocações autocráticas encontraram seu ponto de equilíbrio – um equilíbrio meio desequilibrado, por definição.

Há algo de imperialista na fórmula, como comprovam as ordens do inquilino da Casa Branca para que fossem revogados os vistos de ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Os Estados Unidos, hoje, assumem a forma de um regime arrogante que confere ou retira autorizações de viagem não mais segundo normas impessoais, como recomenda o melhor Direito Internacional, mas segundo as manias irracionais do chefe. Absolutismo é pouco. O que estamos vendo lá é um fascismo tipo exportação.

Muitas outras características trumpeteiras ecoam os “homens fortes da década de 1930 – Hitler, Stalin, Mussolini e Franco”. O imperador blonde faz uso do aparato policial público para perseguir desafetos privados, copiando práticas adotadas do nazismo e do fascismo históricos. Em seu livro clássico Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt apontou esse traço distintivo quando descreveu as ditaduras do Duce, na Itália, e do Führer, na Alemanha. Trump, hoje em feitio desarvorado, replica o mesmo traço: mobiliza tropas estatais para reprimir e prender estudantes desarmados, ameaça escritórios de advocacia que abracem causas incômodas aos seus interesses e veta a presença dos jornais de que não gosta na cobertura dos atos de governo.

Não, isso não é democracia. Isso não é nem mesmo um autoritarismo que procura se disfarçar de democracia. Isso é convulsão institucional prestes a se assumir como ditadura escancarada. Isso é um poder que, de forma consciente, deliberada e ostensiva, dispara ataques sucessivos contra as democracias organizadas do mundo. O Tio Sam empunha o fascio e o Brasil é só mais uma de suas vítimas. O estrago político será maior do que o descalabro econômico.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista e Professor na Universidade de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 24.07.25

Eu posso, eu prendo e arrebento

O mundo mudou e Trump vai decretando um fim melancólico da posição americana como centro hegemônico da economia mundial

Temos de admitir que Donald Trump tem uma capacidade de mobilização sem par na história recente. Infelizmente, seus atos colocam em movimento uma dinâmica econômica e social perversa para o mundo, para o Brasil e para os Estados Unidos da América.

Os últimos dias, no entanto, mostraram que ele consegue sempre fazer mais. O tarifaço que está na boca do povo logrou o inimaginável: resgatou o governo Lula de suas piores avaliações, colocou o governador Tarcísio no fio da navalha e transformou o autoproclamado maior patriota em traidor da Pátria. Isso para não lembrar a opera buffa da tentativa de recuperar o passaporte para o ex-presidente ir falar com Trump.

Ignorando por um momento os episódios mais surrealistas, quero me concentrar na impressionante eficácia com que o governo Trump tem desmantelado pilares do mundo civilizado – um mundo que, até pouco tempo, eu considerava bem mais robusto do que agora aparenta ser. Ironias do sistema: ninguém esperava que o agente corrosivo do capitalismo emergisse justamente de suas entranhas. Três aspectos, em particular, simbolizam com clareza essa derrocada.

O primeiro é o comercial, em que o tarifaço contra o Brasil é apenas a ponta do iceberg. Não há dúvida de que Trump quer muito mais do que restabelecer condições tarifárias favoráveis aos Estados Unidos. Ele quer mesmo mexer com a distribuição espacial da produção em favor da indústria e dos serviços americanos e de empresas americanas. Mas isso tem seu preço.

Ao adotar esta atitude, Trump joga no lixo séculos de discussão econômica sobre como dar fluidez às decisões de alocação da produção para que a economia consiga graus melhores de eficiência, que resultam em níveis superiores de bem-estar, na forma de bens e serviços mais baratos para todos. Cada local constrói condições mais propícias a determinadas produções de bens e serviços que se traduzem em menores custos de produção. Por isso, um comércio sem grandes amarras conduz ao melhor bem-estar de todos os povos.

Num exemplo singelo, é óbvio que produzir carne no Brasil é mais barato do que nos Estados Unidos. Com o tarifaço, o consumidor americano irá comer carne produzida nos Estados Unidos num valor maior ou continuará a comer carne brasileira com uma “gordurinha” de 50% de tarifas.

O segundo aspecto é institucional. É voz corrente que a Organização Mundial do Comércio (OMC) já não representa mais nada, assim como Trump ainda nos primeiros dias de governo, jogou pelos ares a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os esforços climáticos. No caso da OMC, décadas de negociações para construir um aparato de solução de conflitos comerciais foram carbonizadas. Não que a OMC fosse um órgão perfeito, longe disso, mas era o melhor que se conseguiu criar para dar ordem aos conflitos comerciais entre as nações.

Vale observar que nem o mais empedernido dos comunistas poderia imaginar que a maior destruição das instituições do capitalismo moderno seria conduzida justamente por um dos maiores ícones do livre mercado. Mas Trump vem operando o sepultamento da civilização com maestria.

O terceiro movimento da catástrofe é a atuação de Trump para enfraquecer a justiça ao desacreditar instituições judiciais e questionar publicamente decisões que lhe são desfavoráveis. Essa atitude incentiva seus apoiadores a desconfiar do sistema jurídico e trata investigações como se fossem perseguição política, promovendo um clima de desconfiança e hostilidade contra o Judiciário.

Além disso, ao tentar politizar o sistema judicial nomeando aliados para cargos estratégicos, Trump compromete a imparcialidade essencial ao funcionamento da justiça. Suas ações colocam em risco a confiança pública nas leis e na democracia, pois estimulam uma sociedade em que decisões judiciais podem ser manipuladas por interesses políticos momentâneos.

Causa realmente espanto a forma como as instituições americanas têm sido frágeis diante do presidente Trump. Já são inúmeras violações aos aspectos mais essenciais da democracia e da institucionalidade americanas, e o Poder Judiciário revela-se paralisado e dócil ao afrontamento de valores americanos. Infelizmente, tanto se falou em república de bananas e hoje presenciamos um quadro que só podemos caracterizar como desolador no cenário institucional dos Estados Unidos.

E tudo isso vem emaranhado em questões dos grandes negócios da economia americana. Na carta ao presidente Lula, ao lado da pressão contra a tentativa de uma moeda comercial alternativa ao dólar, a questão das big techs aparece como interesse mais imediato. O governo americano sempre defendeu suas empresas, em todas as partes do mundo, mas a intensidade da pressão contra o Judiciário brasileiro para impedir medidas regulatórias no campo das grandes mídias é algo nunca visto.

O mundo mudou e Trump vai decretando um fim melancólico da posição americana como centro hegemônico da economia mundial. É necessário compreender que não precisamos de menos governo. Precisamos de muito mais governo e políticas que possam garantir uma mínima estabilidade durante as próximas tempestades.

José Serra, o autor deste artigo, é Economista. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 24.07.25

Os hunos do Congresso

A título de salvar seu encalacrado líder, parlamentares bolsonaristas não se importam em tumultuar o País com ameaças de impeachment de ministro do STF e a defesa de uma inaceitável anistia

A horda bolsonarista instalada no Congresso reagiu às medidas cautelares impostas ao ex-presidente Jair Bolsonaro para gritar a quem quis ouvir: a partir de agosto, com o fim do recesso parlamentar, a prioridade dessa turma será trabalhar pelo impeachment do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), reavivar o projeto de anistia aos golpistas envolvidos no 8 de Janeiro, definidos por eles como “presos políticos”, e desengavetar um projeto de emenda constitucional que acaba com o foro especial por prerrogativa de função para crimes comuns, mantendo-o apenas para a cúpula dos Três Poderes e o vice-presidente da República – engenharia nada sutil para tirar do Supremo processos como o que está em curso contra Bolsonaro. O grupo de parlamentares, liderado pelo PL, partido do ex-presidente, também planeja organizar um discurso “unificado” e organizar atos pelo Brasil em apoio a Bolsonaro e contra as decisões do STF.

Nenhuma dessas iniciativas tem grandes chances de prosperar na Câmara e no Senado, mas esses liberticidas estão mais interessados em outra coisa. Apostam, antes de tudo, em sua capacidade de espalhar brasas onde já há fogo e levar adiante pautas que funcionam como bandeiras simbólicas para mobilizar a militância, difundir a falsa ideia de que o País está sob uma ditadura do Judiciário, servir de arma para o discurso vitimista de Bolsonaro e, sobretudo, produzir inimigos e criar um ambiente de convulsão social. Para essa tropa, como resumiu a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), só há dois inimigos a enfrentar: Lula da Silva e Alexandre de Moraes, como se culpados fossem pelas sanções impostas ao Brasil por Donald Trump.

Nada surpreendente para um grupo que representa um ideário que se fez no caos, na mentira e na distorção da realidade – e disso se alimenta. Não se deve tirar-lhes o direito de espernear e produzir factoides para satisfazer os próprios delírios, pois afinal vivemos numa democracia. Mas não nos deixemos enganar pela natureza da coisa. Assim como ocorreu com os vândalos golpistas que, entre o fim de 2022 e o início de 2023, ultrapassaram a fronteira da liberdade de expressão e de mobilização, está-se diante de mais um capítulo do longo enredo de desprezo do bolsonarismo pelas instituições.

Fiel à violência política congênita do seu principal líder, o bolsonarismo sempre se mostrou como um ideário retrógrado, personalista e antinacional, mas hoje seus sabujos só se prestam a uma causa: proteger o encalacrado padrinho. Para tanto, vale tudo, especialmente a retórica destrutiva que afronta instituições, intimida adversários e despreza a paz social e política desejada pela maioria dos brasileiros. Pugnar pelo impeachment de ministros do STF, demonizar o Judiciário, pregar uma anistia “ampla, geral e irrestrita” ou alinhar-se vexatoriamente a Trump em sua ofensiva para prejudicar o Brasil hoje equivale àquilo que, no passado recente, destinou-se a desacreditar as urnas eletrônicas, instilar dúvidas sobre o processo eleitoral e criar o clima para a ruptura.

Vale tudo, desde que seja a serviço de uma causa que nada tem a ver com as reais necessidades do País nem com o suposto vezo autoritário do STF. É tudo apenas para salvar Bolsonaro da cadeia – algo que, na sintaxe bolsonarista, equivale a salvar a democracia. Mas é pura malandragem, pois, como se sabe, o mito fundador do bolsonarismo jamais pensou em outra coisa senão nele mesmo e na sua família.

Esse método está no manual do guerrilheiro bolsonarista, que ensina a tumultuar para triunfar. Bolsonaro passou a vida destilando ódio em seus atos e falas – seja como mau militar, quando manchou a farda com sua indisciplina, seja como deputado, quando defendeu o fechamento do Congresso e o fuzilamento de adversários, seja como presidente, quando ameaçou jornalistas, desacreditou o sistema de votação e sabotou a vacina contra a covid-19 só porque foi produzida por um adversário político. Como toda força reacionária e destrutiva, os bolsonaristas atuam como os hunos: por onde passam, nem grama nasce.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 24.07.25

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Tempo de Trump vai custar a passar

Americanos começam a sentir o peso destrutivo do Estado policial que elegeram e prefeririam não ver

‘O tempo envelhece depressa’, ensinou o escritor italiano Antonio Tabucchi em belíssimo livro de contos publicado há anos. Quase já não conseguimos mais habitá-lo (o tempo), tamanho é nosso desassossego contemporâneo. Estamos cada vez mais aprisionados ao turbilhão do momento, à sensação de aceleração e fragilidade do mundo. Esquecemos quanto a História é apenas um rosário de momentos que o futuro se encarrega de trançar. A política, de modo geral, e os políticos medíocres, em particular, gostam pouco de elucubrações sobre o tempo — e ainda menos de ensinamentos da História. Vão atropelando para não ser atropelados por suas próprias fraquezas. Tome-se como exemplo o 45º presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Cinquenta anos atrás, o 37º ocupante da Casa Branca fora obrigado a renunciar, enrolado até o pescoço no escândalo Watergate. Para Richard Nixon, a hecatombe teve amargor pessoal. Para o resto do país, o trauma foi nacional. Ao longo dos anos seguintes, o Congresso americano empenhou-se em promulgar uma série de reformas visando a proteger as instituições democráticas e a restaurar a confiança dos americanos no governo. Foram reformas que fortaleceram a transparência e a ética públicas, aprimoraram a supervisão do Congresso, impuseram limites significativos aos poderes presidenciais. Resistiram bastante bem ao teste do tempo, até a irrupção de Trump na cena mundial. No primeiro mandato, ele escapou de dois pedidos de impeachment encaminhados pela Câmara, fatalidade histórica que poderia ter evitado seu segundo mandato. Saiu da Casa Branca literalmente pela porta dos fundos em 2020, depois de derrotado pelo democrata Joe Biden, mas renasceu legitimado nas urnas em 2024.

É desde sua segunda posse, em janeiro, que Trump passou a agir como “imperador do mundo”, expressão cunhada pelo presidente Lula em entrevista a Christiane Amanpour, da CNN Internacional. Um presidente desprovido de respeito às leis, que age como se regras fossem para tolos e normas, para perdedores. Talvez até acredite ser mesmo imperador. Já no seu primeiríssimo livro, intitulado “A arte da negociação”, de 1987, ele exaltava a arte da bravata.

— Jogo com as fantasias das pessoas — escreveu pelas mãos do ghostwriter Tony Schwartz. — As pessoas nem sempre sabem pensar grande por conta própria, mas ficam hiperfascinadas com quem é capaz disso. Querem acreditar que algo é a maior coisa do mundo, a mais espetacular e mais grandiosa. Chamo a isso de “hipérbole verdadeira”. Outros chamariam esse jogo de fraude moral.

Trump acabou revelando, na semana passada, a dimensão doentia de sua própria fantasia. Depois de anunciar a taxação dos produtos brasileiros vendidos nos Estados Unidos em 50%, deu uma explicação lapidar para os tarifaços que anda espalhando mundo afora:

— Faço porque eu posso.

Como gosta de dizer o brasileiro Frei Betto, pessoas não mudam, apenas se revelam.

Fazer, como sabemos, exige visão de longo prazo, disciplina, planejamento, compreensão de complexidades — tudo que Donald Trump desdenha por carecer desses atributos. Segundo citação frequentemente atribuída a Albert Einstein (por soar inteligente), nenhum problema pode ser resolvido a partir do mesmo grau de consciência que o criou. Pois bem, passados seis meses de governo Trump 2, nada do que ele anunciou de forma espetaculosa tem dado os resultados prometidos. A revolução tarifária destinada a “tornar a América grande novamente” corre o risco de fazer o resto do mundo conhecer-se melhor. Ucrânia e Gaza continuam com a vida civil em carne viva, com o russo Vladimir Putin e o israelense Benjamin Netanyahu dando um baile nas fantasias do americano de acabar com guerras em 24 horas. Ainda na semana passada, Netanyahu avançou mais um degrau no seu ímpeto expansionista, arrogando-se o direito de bombardear também a Síria. Putin, enquanto isso, multiplica a derrama de bombas sobre Kiev ganhando tempo e terreno

Também a política anti-imigração de Trump — extremada, perversa, aplicada com crueldade estratégica e indiferença tática — tem obtido resultados tortos. A maré humana que conseguia atravessar a fronteira pelo México praticamente secou, tornando concreta sua principal promessa de campanha. Ao mesmo tempo, o número de americanos — inclusive republicanos — que se declaram contrários à deportação em massa de imigrantes capturados nas ruas, no trabalho, em igrejas, fábricas, plantações, escolas ou hospitais já beira os 60%. Começam a sentir o peso destrutivo do Estado policial que elegeram e prefeririam não ver.

Faltam três anos e meio para Trump terminar o mandato. Esse tempo certamente não envelhecerá depressa.

Dorrit Harazim, a autora, deste artigo, é Jornalista e documentarista. Publicado originalmente n'O Globo, em 20.07.25

Exercícios de futurologia

Aos 100 anos, Lula toma posse pela oitava vez em 2046. A oposição insistirá na candidatura de Laurinha Bolsonaro

O presidente Lula — Foto: Kazuhiro NOGI/AFP/27-3-2025

Salvo pela cavalaria americana (e sua taxação de 50%), Lula é reeleito em 2026. Por mínima margem de votos, conquista o quarto mandado, quebrando o próprio recorde de presidente mais idoso (80 anos, com energia de 70 e tesão de 68). O centro democrático (esquerda ponderada, liberais e direita racional) não tinha mesmo como votar no candidato da oposição, Eduardo Bolsonaro. Lula regula as redes, aumenta a contribuição sindical, impõe sigilo de 200 anos aos gastos do governo, investe no slogan “Milionários contra paupérrimos” e consegue no STF reeleições infinitas. Apoia a China na retomada de Taiwan e condena Israel pela guerra ao narcotráfico.

Em 2030, aos 84 anos (saúde de 82), Lula é novamente eleito, por exígua maioria — graças à esquerda decente, aos liberais e à direita digna, que o preferiam a Michelle Bolsonaro. Nomeia a primeira-dama para o STF, aumenta o Imposto de Renda, controla a imprensa. Se alinha à Coreia do Norte na invasão da Coreia do Sul e critica Israel pela guerra ao tabagismo. Cuba e Nicarágua entram para o Brics. O setor mais produtivo do país é o dos sindicatos.

Chega 2034. Liberais, esquerda sensata e direita ética se recusam a respaldar Flávio Bolsonaro e, aos 88 anos, na flor da idade, Lula se reelege, por ínfima diferença. Fica do lado da Rússia (agora de novo URSS) no bombardeio das antigas repúblicas soviéticas e denuncia Israel pela luta contra a especulação imobiliária. Recria a CPMF.

Como o STF ampliou a duração do mandato para seis anos, a próxima eleição é em 2040. Tendo Carluxo como opositor (e nele a direita lúcida, os liberais e a esquerda responsável não votariam), Lula é eleito de novo, por margem minúscula. Aos 94 — com agilidade mental de 93 e meio —, aumenta os impostos para quem é alfabetizado, é a favor da anexação da Mongólia pela China e protesta contra os ataques israelenses aos alimentos ultraprocessados. Brasileiros fogem para a Venezuela, em busca de melhores condições de vida.

Aos 100 anos, Lula toma posse pela oitava vez em 2046. A oposição insistira na candidatura de Laurinha Bolsonaro, a quem a esquerda moderada, a direita íntegra e os liberais não tinham como apoiar. No auge do vigor físico e intelectual, Lula defende a ocupação soviética da Europa e vai à ONU contra a guerra à pedofilia, conduzida por Israel. Duplica a carga tributária. Afeganistão e Coreia (agora só tem uma) entram para o Brics.

Com o mandato esticado de novo pelo STF, Lula se reelege aos 108 anos em 2054 — por margem infinitesimal. Liberais, direita equilibrada e esquerda razoável mandaram às favas os escrúpulos, mas não votariam em Jair Renan nem a pau. Sob os aplausos do Itamaraty, a Coreia invade o Japão, a China ocupa a África, a URSS toma a América do Norte e o Caribe. IRA, Farc, PCC e Alerj entram para o Brics. Pessoas em situação de rua passam a ter de recolher imposto. O PIB da Bolívia ultrapassa o do Brasil.

Em 2062, Lula (116 anos, fora da vista do público há pelo menos duas décadas) talvez seja eleito de novo — mantendo o apoio à incorporação da Lua à URSS e as críticas a Israel pelo combate à caspa. Pode ser que a esquerda esclarecida, os liberais e a direita pensante resolvam ter um candidato. Até porque o Haiti começou a deportar imigrantes brasileiros ilegais — e a candidata da oposição é a Val do Açaí.

Eduardo Affonso, o autor, é Arquiteto e Cronista. Publicado originalmente n'O Globo, em 19.07.25

Um veto à irresponsabilidade

Lula fez muito bem em vetar o infame projeto que aumenta o número de deputados, mas o Congresso promete derrubar o veto, em afronta à vontade da maioria dos brasileiros

O presidente Lula da Silva fez o certo e vetou o projeto de lei que aumenta dos atuais 513 para 531 o número de deputados federais, aprovado no fim de junho pelo Congresso. Foi o imperativo da sensatez: não havia nem há razão conceitual, política ou técnica que justifique o jeitinho que a Câmara tentou dar à exigência de redistribuição de suas cadeiras conforme a mudança populacional dos Estados.

Pelo que foi publicado na imprensa, integrantes do governo, especialmente os articuladores políticos do Palácio do Planalto, chegaram a tentar convencer o presidente a não vetar nem sancionar o projeto, deixando que o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), promulgasse a nova lei – o que, nos meandros legislativos, configura-se uma “sanção tácita”, já que Alcolumbre disse antecipadamente que o faria. Mas Lula, enfim, optou pelo veto, para marcar posição e, pelo menos, sustar provisoriamente a irresponsabilidade do Legislativo.

A consequência imediata, contudo, tem pouco a ver com a medida. Ao fazêlo, o petista comprou uma nova briga com o Legislativo, num longuíssimo enredo de fissuras, derrotas e retaliações mútuas. Desta vez, porém, foi pelos motivos adequados. Não à toa, ato contínuo, a Câmara – queixosa do anúncio do veto presidencial e da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de validar o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) contra a decisão anterior do Congresso – aprovou um crédito subsidiado de até R$ 30 bilhões para o agronegócio com verbas de petróleo do pré-sal. O cheiro de retaliação era evidente no plenário. No meio desse jogo de empurra, que tem cara menos de negociação política e muito mais de rinha entre adversários que buscam golpes abaixo da cintura, o fato é que o aumento do número de deputados já constituía um dos episódios mais lamentáveis da atual legislatura.

Embora esteja claro o destino final do projeto (a derrubada do veto e a conversão em lei), trata-se de uma medida injustificável, sob qualquer ótica. Primeiro, pelo não cumprimento da previsibilidade orçamentária e por ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal, dado o impacto anual estimado de cerca de R$ 65 milhões somente com os custos da criação das novas vagas, incluindo salários, benefícios e estrutura para novos congressistas, fora o inevitável aumento também nas cadeiras das Assembleias Legislativas, pelo efeito cascata. O segundo argumento é mais grave: tratase de um flagrante desrespeito à jurisprudência do STF e à própria lógica da representação política proporcional, prevista na Constituição e na Lei Complementar 78/1993. A primeira, em seu artigo 45, estabelece que a representação dos Estados deve ser proporcional à sua população; a segunda, que o regulamentou, fixou o mínimo de 8 e o máximo de 70 deputados por unidade da Federação.

Para que a lei fosse respeitada, a partir de 2027 alguns Estados deveriam perder assentos (Alagoas, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) e outros deveriam ganhar (Amazonas, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará e Santa Catarina). Uma premissa cristalina. Para completar, em 2023, o STF foi igualmente claro: cabia ao Congresso redistribuir as cadeiras na Câmara, até 30 de junho de 2025, com base nos dados do Censo de 2022, de modo a refletir a nova realidade populacional do Brasil. A palavra-chave era “redistribuir”, mas o Congresso, vocacionado a legislar em causa própria, optou pelo aumento. Em vez de corrigir a sub-representação e a sobrerrepresentação de certos Estados, deu à Câmara mais 18 cadeiras para que, como este jornal já sublinhou, ninguém perdesse o injustificável privilégio de ter uma representação acima da que deveria. Em outras palavras, quem deveria perder, não perdeu; quem deveria ganhar, ganhou.

E assim certos votos seguem valendo mais do que outros. Estado mais populoso da Federação, com cerca de 46 milhões de habitantes, São Paulo tem quase 22% da população brasileira, mas elege apenas 13,6% dos deputados federais. Embora atinja o teto constitucional de 70 deputados, o Estado já estava severamente sub-representado. A Câmara quer tirar mais um naco dessa representação. •

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 19.07.25

Bolsonaro fez por onde

O ex-presidente enfrenta medidas cautelares juridicamente fundamentadas, pois está claro que ele incitou o governo dos EUA a coagir o STF a desistir do processo em que é acusado de golpe

Adecisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes de impor uma série de medidas cautelares a Jair Bolsonaro, entre as quais o uso de tornozeleira eletrônica, o recolhimento domiciliar e a proibição de usar redes sociais, está bem fundamentada factual e juridicamente. Abundam evidências de que o ex-presidente incitou o governo dos EUA a coagir o Brasil, por meio de ameaça de sanções e tarifas, a suspender o processo que corre no STF contra ele e seus acólitos sob a acusação de tramarem um golpe de Estado – a Ação Penal (AP) 2.668.

Bolsonaro fez por merecer as severas restrições que lhe foram impostas. Para começar, confessou ter transferido R$ 2 milhões ao filho Eduardo para mantê-lo nos EUA, desde onde o deputado licenciado articula abertamente com autoridades daquele país a imposição de sanções a Moraes e a outras autoridades com claro intuito coator. As sanções individuais ainda não vieram – se é que virão –, mas nem por isso as investidas do clã foram em vão: como se sabe, o presidente Donald Trump ameaçou punir todo o País com a imposição de sobretaxa às exportações brasileiras caso o processo contra Bolsonaro não cesse “imediatamente”.

Ademais, Bolsonaro e seus filhos Eduardo e Flávio fizeram questão de enfatizar, por meio de vídeos e postagens nas redes sociais, que os ataques de Trump cessariam no exato momento em que fosse concedida anistia ao ex-presidente. O nexo causal é patente. Bolsonaro em pessoa, convém lembrar, publicou um texto em tom delinquente reafirmando a extorsão. Resta comprovado, portanto, que a movimentação do clã Bolsonaro, inclusive recorrendo à intervenção de governo estrangeiro, visa a obstruir o curso da AP 2.668 no STF – o que é crime à luz da legislação penal brasileira.

Não foi por outra razão que a Procuradoria-Geral da República (PGR), ao dar parecer favorável à imposição das medidas cautelares, citou a “concreta possibilidade de fuga” de Bolsonaro e a premente necessidade de fazer cessar a continuidade das “ações para obstruir o curso da ação penal”. É disso que se trata.

A aplicação das medidas cautelares a Bolsonaro foi uma resposta proporcional à sua clara tentativa de evitar a aplicação da lei penal caso o ex-presidente e seus corréus venham a ser condenados. A decisão de Moraes, tomada a pedido da Polícia Federal e respaldada pela PGR e pela Primeira Turma do STF, presta-se, portanto, à garantia da integridade do processo penal.

A prudência e a presunção de inocência permanecem asseguradas, como prova o fato de que Bolsonaro não foi preso preventivamente, embora os indícios de uma eventual fuga sejam tão contundentes, como enfatizou o parquet, que seria difícil enxergar abuso caso a medida extrema fosse decretada. Ainda assim, as restrições impostas já servem como recados claros: o Brasil é um país soberano e aqui ninguém está acima da lei.

Em sua mais recente manifestação epistolar sobre o assunto, Trump voltou a tratar Bolsonaro como um “perseguido” e exigiu que o processo contra ele cessasse “imediatamente”. Tratase de uma inaceitável ingerência externa em assuntos domésticos do Brasil. Ao endossar publicamente um movimento que visa a obstruir o curso normal da Justiça brasileira, Trump agrediu não só a soberania nacional, mas também o princípio fundamental da separação entre os Poderes, além de macular, como se nada disso bastasse, a história das relações diplomáticas entre as duas maiores democracias das Américas.

É nesse sentido que se torna inescapável notar a dimensão política da decisão de Moraes. Além de seus fundamentos jurídicos, à imposição das medidas cautelares a Bolsonaro subjaz um manifesto em defesa da independência do STF para julgar Bolsonaro pelos crimes de que ele é acusado. O que Eduardo chamou de “dobrar a aposta” contra Trump, ao se insurgir contra a decisão do ministro, a bem da verdade é uma clara mensagem emitida pela mais alta instância do Judiciário do País de que não cederá a pressões de quaisquer naturezas, muito menos externas, no curso da AP 2.668. •

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 19.07.25

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Relatora Especial da ONU, Francesca Albanese: “As técnicas de intimidação dos EUA são do estilo da máfia”

A advogada italiana, alvo de sanções do governo Trump por defender a população palestina em Gaza, descarta renunciar e propõe a suspensão completa das relações com o "regime de apartheid" de Israel.

Francesca Albanese, em Bogotá, em 17 de julho de 2025. (Crédito: Andrés Galeano)

Os olhos da diplomacia internacional se voltaram esta semana para a Colômbia, onde foi realizada a primeira cúpula do Grupo de Haia . Trata-se de um bloco de oito países, todos do chamado Sul Global, que concordou com medidas diplomáticas e econômicas para pressionar Israel a aceitar um cessar-fogo e pôr fim à guerra em Gaza. Embora delegações de cerca de trinta países, incluindo México e Espanha, estivessem presentes, a convidada que roubou a cena foi Francesca Albanese, relatora especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados. A advogada italiana, que não tem medo de chamar o que está acontecendo na Palestina de " apartheid", foi sancionada na semana passada pelos Estados Unidos, que a acusam de "apoiar o terrorismo" e promover "antissemitismo flagrante".

Albanese (Ariano Irpino, Itália, 48) afirma que as medidas do governo Donald Trump estabelecem um "precedente terrível ". "As sanções abrem caminho para que outros Estados façam o mesmo com outros relatores especiais, paralisando assim seu trabalho. Sei que não sou imune a críticas, mas se os Estados Unidos têm um argumento substancial, por que não nos sentamos e discutimos?", pergunta ele durante entrevista a este jornal em seu hotel no centro de Bogotá.

As represálias impostas pelo Departamento de Estado , liderado por Marco Rubio, vão desde a proibição de entrada nos Estados Unidos até o congelamento de quaisquer bens que ele possa ter naquele país. “Isso vai afetar minha vida, é claro. Não poderei, por exemplo, ter uma conta bancária em nenhum circuito conectado aos Estados Unidos. Encontrarei uma, é claro, mas isso criará um efeito intimidador ao meu redor, o que pode ter consequências para qualquer pessoa com cidadania americana que interaja comigo.” Sua vida, ele diz, está em perigo: “Comecei a receber ameaças de morte mais sérias e ameaças contra minha família após a publicação do relatório Anatomia de um Genocídio [em julho de 2024]. Mas agora a pressão mudou. As técnicas de intimidação dos EUA são do tipo mafioso.”

Estados que mantêm vínculos com outros acusados de crimes de guerra violam seus deveres perante o direito internacional.

Os Estados Unidos estão pressionando-a a renunciar? "Claro!", ela responde veementemente. E será que ela considerou a possibilidade? "Não vou renunciar. Por que renunciaria? Enquanto eu tiver o mandato, continuarei. Não cederei à pressão dos Estados Unidos, de forma alguma. E não estou fazendo isso porque estou apegada aos supostos ganhos de estar neste cargo. É porque, como eu, muitos outros estão colocando suas vidas em perigo. Há muitos funcionários públicos que foram demitidos e tantos acadêmicos que foram punidos. Há muitos que estão resistindo a essa barbárie, e eu me sentiria péssima se não usasse minha posição para apoiá-los", observa ela.

Em seu relatório mais recente , a relatora denuncia mais de 60 empresas de todo o mundo por serem "cúmplices" da "máquina corporativa que sustenta o projeto colonial israelense". "Eu poderia ter escrito este relatório anos atrás: essas empresas sabiam há décadas que Israel estava violando os direitos palestinos. Mas agora, muitas se beneficiaram do genocídio", afirma. Entre as empresas mencionadas estão as americanas Blackrock e Vanguard (investimentos); as colombianas Drummond e Glencore (carvão); e a espanhola Construcciones y Auxiliar de Ferrocarriles (transporte).

Para Albanese, as responsabilidades não devem se limitar às empresas, mas também aos Estados. É por isso que ele propõe que todos os países rompam relações diplomáticas e econômicas com Israel. Aqueles que não o fizerem, argumenta ele, "estarão violando o direito internacional". "Qualquer pessoa que mantenha laços com outro Estado acusado de crimes de guerra, e agora de genocídio, é responsável e está violando suas obrigações perante o direito internacional."

Sua demanda encontrou diversos obstáculos, especialmente por parte dos mais poderosos. Embora Trump tenha demonstrado apoio quase inabalável ao governo do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, a União Europeia não concordou esta semana em impor sanções a Israel, apesar de ter constatado violações de suas obrigações humanitárias em Gaza.

O que está acontecendo na Palestina está criando um sentimento de desconfiança e impotência.

Outros atores menores tentaram agir. Uma dúzia de países, incluindo Colômbia, Bolívia, Indonésia, Iraque, Líbia e Malásia, concordaram em Bogotá com medidas como bloquear o fornecimento de armas a Israel e impedir que navios ligados à indústria militar israelense atracem em seus portos. Segundo Albanese, essas ações estão na direção certa, mas continuam sendo insuficientes: "Nunca estarei satisfeito, porque [os governos] sempre podem ser mais ousados e ousados. Mas isso é o mínimo, e temos que começar de algum lugar."

As declarações mais recentes do relator transmitem um certo senso de urgência para agir agora por Gaza. Desde o início da guerra, em outubro de 2023, mais de 58.000 palestinos morreram na Faixa de Gaza . Estamos em um ponto de ruptura? "Já passamos por isso há muito tempo; é como dirigir com o nível de combustível baixo e uma luz vermelha acender", enfatiza o especialista, alertando também para o momento decisivo que a humanidade vive: "Minha geração cresceu pensando que a lei deve ser respeitada e que existem instituições que aplicam o direito internacional. Agora, a lei não vale nada e a vontade política está alinhada com os interesses financeiros. O que está acontecendo na Palestina está criando um sentimento de desconfiança e impotência."

Sua postura lhe rendeu duras críticas. Uma das mais graves foi a recente do governo Trump, que alegou que Albanese defende "antissemitismo flagrante". Isso não o impede de lançar ataques contra a liderança do governo israelense. "O regime do apartheid cairá, e isso não significará o fim de Israel. As pessoas estão com medo, e eu pergunto: a única maneira de Israel existir é no apartheid ? Não pode ser. Israel deve existir como um Estado que respeita os direitos e as liberdades, não como um Estado que prega a supremacia de um grupo sobre os outros", ressalta.

Em contraste, é essa mesma postura que lhe rendeu crescente reconhecimento internacional. Uma campanha global, apoiada por dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo, pede que a relatora receba o Prêmio Nobel da Paz , um prêmio que Trump está determinado a conquistar. Albanese enfatiza: "Estou emocionada em saber quantas pessoas expressam seu apoio a mim, mas digo a elas que não preciso de um Prêmio Nobel. O que eu preciso é ver o fim do genocídio."

Diego Stacey, o autor desta reportagem, é Jornalista da seção Internacional do EL PAÍS, diário global editado na Espanha. Anteriormente, trabalhou no jornal El Tiempo, na Colômbia. É formado em Comunicação Social pela Universidade Javeriana de Bogotá e possui mestrado em Jornalismo pela UAM-EL PAÍS. Publicado originalmente em 18.07.25

As razões de Moraes para o cerco a Bolsonaro

O ex-presidente também será monitorado por tornozeleira eletrônica; não poderá manter contato com embaixadores, autoridades estrangeiras e nem se aproximar de sedes de embaixadas e consulados.

Alexandre de MoraesCrédito (Getty Images)

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou nesta sexta-feira (18/7) medidas cautelares contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Pela decisão de Moraes, Bolsonaro deverá cumprir recolhimento domiciliar entre 19h e 6h de segunda a sexta-feira e em tempo integral nos fins de semana e feriados.


As medidas foram pedidas pela Polícia Federal (PF), com parecer favorável da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Ao justificar o pedido, a Polícia Federal afirmou que Bolsonaro e o filho dele - e deputado licenciado - Eduardo Bolsonaro (PL-SP) "vêm atuando, ao longo dos últimos meses, junto a autoridades governamentais dos Estados Unidos da América, com o intuito de obter a imposição de sanções contra agentes públicos do Estado Brasileiro".

As iniciativas, segundo a PF, estariam associadas a uma suposta perseguição que Bolsonaro diz sofrer no processo criminal que enfrenta no Supremo, acusado de liderar uma tentativa de golpe de Estado.

Ao analisar o caso, Moraes considerou que há indícios de que Jair Bolsonaro e Eduardo teriam praticado atos ilícitos que podem configurar os crimes de:

coação no curso do processo;

obstrução de investigação de infração penal que envolva organização criminosa;

e atentado à soberania nacional.

Segundo o ministro, as precauções tomadas seriam necessárias para evitar uma possível fuga de Bolsonaro e assegurar a aplicação da lei penal.

Em nota publicada no X em inglês, Eduardo Bolsonaro criticou a decisão de Moraes.

"Desta vez, não se trata apenas de censura ou de medidas coercitivas contra o líder político mais proeminente do Brasil — um homem que jamais se recusou a cumprir decisões judiciais ou a participar de processos legais. O que torna essa decisão ainda mais absurda é o fato de se basear em ações tomadas pelo governo dos Estados Unidos, após o anúncio de tarifas contra o Brasil feito pelo presidente Donald Trump — como se isso, de alguma forma, configurasse um crime."

Eduardo disse ainda que, para ele, Moraes está tentando criminalizar o presidente Trump e o governo americano.

"Como não tem poder contra eles, escolheu fazer do meu pai um refém. E, ao fazer isso, não ataca apenas a democracia brasileira — ele prejudica, de forma irresponsável, a relação do Brasil com seu mais importante aliado. Isso é sabotagem institucional, pura e simples."

Jair Bolsonaro, por sua vez, afirmou que se sente "humilhado" pela decisão de Moraes e que "nunca pensou" em sair do Brasil.

Em nota oficial, os advogados do ex-presidente afirmaram:

"A defesa do ex-Presidente Jair Bolsonaro recebeu com surpresa e indignação a imposição de medidas cautelares severas contra ele, que até o presente momento sempre cumpriu com todas as determinações do Poder Judiciário. A defesa irá se manifestar oportunamente, após conhecer a decisão judicial."

Confira os indícios apontados por Alexandre de Moraes nas ações de Bolsonaro e Eduardo que configurariam cada um desses crimes, listados na íntegra do processo disponibilizada pelo STF.

O ex-presidente Jair Bolsonaro chega à sede da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária, em Brasília, em 18 de julho de 2025 (Crédito,Reuters)

Coação no curso do processo

A decisão de Alexandre de Moraes enxerga "indícios suficientes e razoáveis" do crime previsto no artigo 344 do Código Penal, que criminaliza a tentativa de influenciar o resultado de um processo por meio de violência ou grave ameaça.

O magistrado cita o alinhamento de Bolsonaro com seu filho, o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro, para intimidar autoridades com a busca de sanções do governo dos Estados Unidos contra integrantes do STF, PGR e da PF que atuam na investigação e julgamento da tentativa de golpe de Estado em 2022.

Moares cita publicações em redes sociais e entrevistas que incluem ameaças de punições pelos EUA, como a cassação de visto, bloqueio de bens e proibição de relações comerciai.

Segundo ele, essas manifestações visam intimidar os agentes públicos, sob a alegação de perseguição política.

As publicações se dão, sobretudo, em postagens em redes sociais, que reverberam em outros canais de mídia, bem como em entrevistas diretas a veículos de imprensa, diz o magistrado, que inseriu um print de entrevista de Eduardo na CNN em que o deputado diz esperar sanções ao Brasil.

"Há um manifesto tom intimidatório para os que atuam como agentes públicos, de investigação e de acusação, bem como para os julgadores na Ação Penal, percebendo-se o propósito de providência imprópria contra o que o sr. Eduardo Bolsonaro parece crer ser uma provável condenação."

O objetivo, diz Moraes, é "embaraçar o andamento do julgamento técnico" da investigação da tentativa de golpe de Estado e perturbar os trabalhos do inquérito das fake news, que apura a disseminação de notícias falsas, ameaças, calúnias e outros crimes contra a corte e seus membros.

Postagem de Eduardo Bolsonaro no X falando sobre sanções contra Moraes e projeto de lei do Congresso dos EUA que pode tirar visto de Moraes, citada na decisão de Alexandre de MoraesCrédito,Reprodução/X

Legenda da foto,Postagem de Eduardo Bolsonaro no X falando sobre sanções contra Moraes e projeto de lei do Congresso dos EUA que pode tirar visto de Moraes, citada na decisão de Alexandre de Moraes

Obstrução de investigação

Em sua argumentação, Moraes também cita a obstrução de investigação de infração penal que envolva organização criminosa, crime previsto na Lei 12.850/13.

Segundo o ministro, Bolsonaro e Eduardo têm buscado criar entraves econômicos nas relações comerciais entre os Estados Unidos e o Brasil para "obstar o prosseguimento da AP 2668", que apura a tentativa de golpe de Estado após as eleições presidenciais de 2022.

Moraes cita o Pix de R$ 2 milhões que Bolsonaro confessou ter enviado a Eduardo, no dia 13 de maio. O auxílio financeiro ocorreu quando Eduardo já estava no exterior, "em plena ação das atividades ilícitas" relacionadas à busca de sanções e pressões sobre o Brasil.

A "vultosa contribuição financeira" encaminhada a Eduardo é, segundo o magistrado, forte indício do alinhamento do réu com o seu filho, "com o claro objetivo de interferir na atividade judiciária e na função jurisdicional" do STF e "abalar a economia do país".

Eduardo Bolsonaro (Crédito,Getty Images)

Atentado à soberania nacional

O artigo 359-I do Código Penal criminaliza "a negociação com governo estrangeiro para que este pratique atos hostis contra o país".

Segundo Moraes, Bolsonaro, com seu filho Eduardo, está "atuando dolosa e conscientemente de forma ilícita" para tentar submeter o funcionamento do STF "ao crivo de outro Estado estrangeiro", com graves impactos à soberania nacional e com objetivo de "gerar instabilidade política e econômica" no Brasil.

Moraes afirma que, em publicação no Instagram, Bolsonaro demonstrou ter interferência no tarifaço anunciado pelo governo Trump contra produtos brasileiros.

O ex-presidente e seu filho também comemoraram a "gravíssima agressão estrangeira ao Brasil", manifestando-se favoravelmente às sanções e taxações, instigando os Estados Unidos a tomar novas medidas hostis contra o Brasil.

Moraes também cita a reunião de Bolsonaro com Ricardo Pita, conselheiro sênior do Departamento de Estado dos Estados Unidos para o Hemisfério Ocidental, em maio.

Após a reunião, o ex-presidente declarou nas redes sociais que "o alerta foi dado, e não há mais espaço para omissões", e complementou com pedido "aos Poderes que ajam com urgência apresentando medidas para resgatar a normalidade institucional".

Já Eduardo agradeceu expressamente Trump pela carta em que anuncia o tarifaço, pleiteando a aplicação da Lei Magnitsky – lei americana que prevê a possibilidade de sanções contra autoridades estrangeiras.

"A ousadia criminosa parece não ter limites, com as diversas postagens em redes sociais e declarações na imprensa atentatórias à Soberania Nacional e à independência do Poder Judiciário", disse o magistrado.

Rute Pina e Thais Carrança, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 18.07.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Maioria defende nem Lula nem Bolsonaro em 2026, mas renovação só deve vir em 2030

Especialistas analisam a rejeição a Lula e Bolsonaro em 2026 e debatem quando o Brasil poderá romper a polarização e renovar suas lideranças políticas.

No Dois Pontos, especialistas analisam o desejo por novas lideranças e discutem quando o Brasil deve superar a polarização entre Lula e Bolsonaro.

Uma pesquisa recente da Genial/Quaest mostra que dois em cada três brasileiros defendem que o presidente Lula não dispute a reeleição em 2026. 

O levantamento também indica que a maioria espera que o ex-presidente Jair Bolsonaro, atualmente inelegível, abandone o discurso de que será candidato para apoiar outro nome. Os dados revelam uma demanda por renovação política, ainda sem alternativas viáveis no cenário eleitoral atual.

Parte da elite política e analistas avaliam que só a partir das eleições de 2030, quando Lula e Bolsonaro provavelmente estarão fora da disputa, o País começará a vislumbrar novas lideranças nacionais. Isso, no entanto, não significa que ambos deixarão de influenciar o processo eleitoral.

Para 61%, Lula representa melhor o Brasil do que Bolsonaro, diz pesquisa

Tanto o lulismo quanto o bolsonarismo devem continuar a repercutir mesmo após a saída de cena de seus principais líderes. Fenômeno semelhante ao observado após a morte de Getúlio Vargas, quando a política brasileira permaneceu dividida entre getulistas e antigetulistas.

Para discutir o tema, o Dois Pontos desta semana recebe Sergio Fausto, diretor-geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso, e Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).

O episódio tem apresentação da colunista do Estadão, Roseann Kennedy, e participação do repórter de Política Zeca Ferreira.

Publicado originalmente pelo O Estado de S. Paulo, em 16.07.25.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Truculência de Trump faz renascer o nacionalismo brasileiro

Nessa loucura tarifária do governo Trump, o Brasil foi o único caso em que se alegou questão política. Na prática, igualam o Brasil às sanções impostas ao Irã, Venezuela e Cuba.


Charge do cartunista Latuff foi censurada pela Justiça durante uma exposição em Porto Alegre, em 2019

Estão em jogo dois pontos essenciais para o projeto Trump. O primeiro, a tentativa de substituir os poderes nacionais pelo poder das big techs. E o Brasil, graças ao Supremo Tribunal Federal e ao Ministro Alexandre Moraes, transformou-se na principal cidadela global contra o poder absoluto das grandes plataformas. O segundo motivo são os Brics e o papel central do Brasil nas articulações geopolíticas.

A truculência de Trump vai provocar problemas imediatos. Mas, a médio prazo, levará cada vez mais os países a saírem da órbita de uma potência errática — os Estados Unidos — em direção a outra potência, que defende o multilateralismo e a colaboração entre nações.

Internamente, ficam caracterizados os crimes de lesa-pátria da família Bolsonaro e exposta a submissão vergonhosa do governador Tarcísio de Freitas ao Make America Great Again.

Indignação

Politicamente, a truculência de Trump conseguiu o feito inédito da montagem da grande feita midiática em favor do Brasil. O nacionalismo poderá se converter em uma grande bandeira, a ser empunhada por Lula.

O Estadão antecipou seu editorial para, com o título “Coisa de mafiosos”, proclamar que “o Brasil não se vergue diante dos arreganhos de Trump. E que aqueles que são verdadeiramente brasileiros não se permitam ser sabujos de um presidente americano que envergonha a democracia”. O Jornal Nacional se redimiu de edições recentes com reportagens expressando a indignação ante a truculência de Trump.

Haverá desafios pela frente. Um deles é a definição de estratégias para os produtos brasileiros a serem taxados pelos Estados Unidos.

As principais exportações brasileiras são de insumos industriais elaborados, categoria que engloba aço laminado, alumínio refinado, polietileno, solventes industriais, resinas plásticas, PVC, placas de circuito impresso etc.

É o único setor em que o mercado norte-americano é dominante para o Brasil.

Em 2024, o Brasil exportou aproximadamente 4,08 milhões de toneladas de produtos siderúrgicos para os Estados Unidos, representando cerca de 42,6% do total das exportações brasileiras desse setor. Em valor, essas exportações corresponderam a cerca de US$ 2,99 bilhões, dos quais US$ 2,3 bilhões foram referentes a produtos semielaborados (como placas de aço).

Dados oficiais do governo brasileiro (ministério e Aço Brasil) indicam que, entre janeiro e março de 2025, o volume exportado para os EUA cresceu 40% em relação ao mesmo período do ano anterior, atingindo 661,1 mil toneladas em março, e acumulando um aumento de 34% no trimestre.

O volume de carne bovina exportada pelo Brasil para os Estados Unidos em 2024 foi de aproximadamente 229 000 toneladas, gerando uma receita de cerca de US$ 1,35 bilhão.

Esse volume dos EUA representou cerca de 7,9% do total das exportações brasileiras de carne bovina em 2024, considerando que o volume total foi de 2,89 milhões de toneladas .

Com a ajuda da inteligência artificial, há as seguintes alternativas de mercado:

1. Produtos siderúrgicos

Mercado atual (EUA): ~42% das exportações brasileiras.

Alternativas principais:

México – já é comprador relevante, tem acordo com Mercosul.

União Europeia – demanda por aço verde pode favorecer o Brasil, mas barreiras ambientais são crescentes.

Turquia – importante polo de reexportação e transformação.

Sudeste Asiático (Vietnã, Indonésia, Tailândia) – em expansão industrial.

China – mais difícil, pois é autossuficiente, mas pode importar semiacabados.

2. Carnes (bovina, suína e de frango)

Mercado atual (EUA): ~8% da carne bovina brasileira.

Alternativas principais:

China e Hong Kong – principais compradores (carne bovina e frango).

Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita – carnes halal, crescente demanda.

Egito e Irã – forte demanda por carne bovina congelada.

Indonésia, Filipinas e Malásia – mercado em expansão.

Chile e Egito – para carne suína.

Mas há uma alternativa melhor. O governo poderia conceder isenção aos produtores, mais financiamento do BNDES, para direcionarem a carne para o Bolsa Família.

3. Petróleo bruto e derivados

Mercado atual (EUA): relevante para petróleo leve brasileiro.

Alternativas principais:

China e Índia – principais compradores.

Países europeus – após sanções à Rússia, buscam diversificar fontes.

Chile e Argentina – para derivados.

4. Celulose e papel

Mercado atual (EUA): importante, mas não dominante.

Alternativas principais:

China e União Europeia – principais destinos.

Índia e Indonésia – setor industrial em crescimento.

5. Produtos químicos e fertilizantes (quando aplicável)

Mercado atual (EUA): importante para químicos finos.

Alternativas principais:

América Latina – crescente demanda por químicos industriais.

África Subsaariana – emergente para fertilizantes.

Ásia (Índia, Vietnã) – uso agrícola e industrial crescente.

Já as importações dos Estados Unidos concentram-se mais em motores e máquinas, aeronaves e demais produtos da indústria de transformação.

Luís Nassif, o autor deste artigo, é jornalista. Foi colunista e membro do conselho editorial da Folha de S. Paulo. Desde 2013 mantém o Jornal GGN e faz parte do ICL Notícias. Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 11.07.25

Bolsonaristas 'traidores' x 'vexame' de Lula: as reações à nova tarifa de Trump contra Brasil

Além de impacto na economia, a nova taxa de 50% sobre produtos brasileiros anunciada pelo presidente americano, Donald Trump, também repercutiu imediatamente no mundo político e institucional brasileiro.

Eduardo Bolsonaro (com bandeira americano no fundo) se  mudou para EUA para pressionar governo americano por medidas envolvendo o Brasil.

Em tom duro, a carta de Trump diz que a decisão é uma resposta à perseguição que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estaria sofrendo no Brasil, devido ao processo criminal que enfrenta no Supremo Tribunal Federal (STF), acusado de liderar uma tentativa de golpe de Estado.

Deputados e senadores alinhados ao governo e à oposição repercutiram a decisão de Trump. Do lado dos bolsonaristas, o tom geral foi o de culpar a suposta perseguição a Bolsonaro e o governo Lula pela nova taxa de Trump. Já os governistas argumentam que os bolsonaristas agem para prejudicar o Brasil.

Diante da decisão de Trump, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) convocou uma reunião de emergência com sua equipe de ministros.

Nas redes sociais, Lula declarou que "o processo judicial contra aqueles que planejaram o golpe de estado é de competência apenas da Justiça Brasileira e, portanto, não está sujeito a nenhum tipo de ingerência ou ameaça que fira a independência das instituições nacionais".

No texto, Lula também refutou que a relação comercial seja desfavorável aos EUA e defendeu que a liberdade de expressão no Brasil "não se confunde com agressão ou práticas violentas".

"Qualquer medida de elevação de tarifas de forma unilateral será respondida à luz da Lei brasileira de Reciprocidade Econômica. A soberania, o respeito e a defesa intransigente dos interesses do povo brasileiro são os valores que orientam a nossa relação com o mundo", finalizou o presidente brasileiro.

No X, Bolsonaro publicou uma indireta com um versículo bíblico: "Quando os justos governam, o povo se alegra. Mas quando os perversos estão no poder, o povo geme", escreveu citando Provérbios.

Confira a seguir o que disseram autoridades e analistas sobre a medida de Trump.

Flávio Bolsonaro (PL-RJ), senador

Primeiro da família Bolsonaro a se manifestar, o senador escreveu no X que Lula "conseguiu ferrar o Brasil".

"Depois de tantas ações provocando a maior democracia do mundo, tá aí o resultado do vexame da sua política internacional ideologizada", escreveu Flávio.

Para o senador, a taxa de 50% de Trump "é a mesma coisa" que Lula tem feito com os brasileiros, "que não aguentam mais pagar tantos impostos".

Flávio, porém, não creditou o anúncio de Trump à atuação de seu irmão, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que se licenciou do cargo e se mudou para os EUA dizendo que se dedicaria a convencer o governo Trump a atuar pela anistia aos envolvidos nos ataques do 8 de janeiro no Brasil e para obter sanções ao ministro do STF Alexandre de Moraes.

Eduardo Bolsonaro é atualmente alvo de um inquérito no STF pelos crimes de coação, obstrução de investigação e abolição violenta do Estado Democrático de Direito por sua atuação nos EUA, acusações que ele rejeita.

Eduardo Bolsonaro (PL-SP), deputado federal licenciado

Em nota assinada junto com o jornalista Paulo Figueiredo, o filho de Bolsonaro disse que "nos últimos meses, temos mantido intenso diálogo com autoridades do governo do presidente Trump — sempre com o objetivo de apresentar, com precisão, a realidade que o Brasil vive hoje".

"A carta do presidente dos Estados Unidos apenas confirma o sucesso na transmissão daquilo que viemos apresentando com seriedade e responsabilidade."

Os dois dizem que o STF e Alexandre de Moraes colecionaram "violações de direitos humanos contra jornalistas, contra cidadãos e residentes dos Estados Unidos" e também avançaram "sobre líder maior da oposição, o ex-presidente Jair Bolsonaro, negando-lhe garantias mínimas de legalidade, defesa e presunção de inocência na forma da farsa de um julgamento quase sumário em um tribunal de exceção".

A carta segue dizendo que a dupla agiu "buscando evitar o pior", com foco em aplicar sanções a Moraes.

"No entanto, recentemente, o presidente Trump, corretamente, entendeu que Alexandre de Moraes só pode agir com o respaldo de um establishment político, empresarial e institucional que compactua com sua escalada autoritária. O presidente americano entendeu que esse establishment também precisa arcar com o custo desta aventura."

Flávio Dino, ministro do STF

Sem citar diretamente o anúncio de Trump, o ministro do STF Flávio Dino fez um post logo após a publicação da carta do presidente americano a Lula.

"Uma honra integrar o Supremo Tribunal Federal, que exerce com seriedade a função de proteger a soberania nacional, a democracia, os direitos e as liberdades, tudo nos termos da Constituição do Brasil e das nossas leis", escreveu Dino, ao lado de uma foto do prédio do STF iluminado com as cores do Brasil.

Fernando Haddad, ministro da Fazenda

Em entrevista coletiva a veículos de imprensa de esquerda, Haddad disse que a decisão de Trump é "eminentemente política", em que não há "racionalidade econômica", citando dados da balança comercial positiva dos EUA em relação ao Brasil.

O ministro também fez críticas à atuação da família Bolsonaro junto ao governo americano pelas medidas e disse que o ex-presidente e seu filho, Eduardo, atuam para prejudicar o país, visando benefício próprio.

"É uma agressão que vai ficar marcada como uma coisa inaceitável e inexplicável. Um governo entrar na onda de um político extremista local para atacar um país, 215 milhões de habitantes", disse Haddad, acusando Bolsonaro de conspirar contra o Brasil.

Haddad avaliou a nova tarifa como "insustentável", do ponto de vista político e econômico, e disse acreditar que a diplomacia brasileira reverterá a situação. "Acredito que o tiro sairá pela culatra", declarou.

Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), governador de São Paulo

O governador de São Paulo afirmou, nas redes sociais, que Lula colocou sua "ideologia acima da economia".

"Tiveram tempo para prestigiar ditaduras, defender a censura e agredir o maior investidor direto no Brasil. Outros países buscaram a negociação. Não adianta se esconder atrás do Bolsonaro. A responsabilidade é de quem governa. Narrativas não resolverão o problema", escreveu no X.

Ronaldo Caiado (União Brasil-GO), governador de Goiás

Também cotado para a disputa presidencial, Caiado disse que Lula atacou o presidente dos Estados Unidos, "país que sempre foi nosso aliado".

"Com as medidas tomadas pelo governo americano, Lula e sua entourage tentam vender a tese da invasão da soberania do Brasil. Mas Lula não representa o sentimento patriótico do nosso povo, e muito menos tem credenciais para defender a soberania brasileira", publicou o governador de Goiás.

Romeu Zema (Novo-MG), governador de Minas Gerais

Zema foi outro governador presidenciável que se pronunciou. "As empresas e os trabalhadores brasileiros vão pagar, mais uma vez, a conta do Lula, da Janja e do STF", afirmou no X.

"Ignorar a boa diplomacia, promover perseguições, censura e ainda fazer provocações baratas vai custar caro para Minas e para o Brasil."

Jerônimo Rodrigues (PT), governador da Bahia

Em tom duro, o governador petista disse que o "o Brasil não é quintal de ninguém" e que o país não aceitará "chantagem nem tutela de lugar nenhum".

"O presidente dos EUA, com essa decisão, taxa e castiga o setor produtivo brasileiro, que gera empregos e já tinha contratos fechados. Enquanto Lula trabalha para taxar as grandes fortunas, há quem jogue contra e prefira taxar o Brasil", escreveu Rodrigues no X, ressoando uma mensagem que tem sido propagada pela base de Lula.



Ian Bremmer, cientista político

O cientista político americano e fundador da consultoria de risco Eurasia analisou em um post que os "Estados Unidos intervêm na política interna do Brasil, à medida que o presidente Trump anuncia tarifas de 50%, 'em parte devido aos ataques insidiosos do Brasil' contra Jair Bolsonaro".

Em seu texto, Bremmer avalia que "seria intolerável para os líderes políticos americanos (republicanos e democratas) se outro país tentasse fazer o mesmo com os Estados Unidos".

Paul Krugman, Nobel de Economia

Para o Nobel de Economia Paul Krugman, tarifas de Trump são um 'programa de proteção a ditadores' (Crédito,Getty Images)

O economista americano destacou em texto intitulado "O programa de proteção de ditador de Trump" que o presidente americano "nem finge que há uma justificativa econômica". "É tudo sobre punir o Brasil por julgar Bolsonaro."

Esta não é a primeira vez que os Estados Unidos usam tarifas para fins políticos, destaca Krugman, mas, "agora, Trump tenta usar tarifas para ajudar um candidato a ditador", em referência à acusação de tentativa de golpe contra Bolsonaro.

O economista ressalta que o gesto de Trump é "maligno" e "megalomaníaco" e mais um passo dos EUA na "espiral descendente" do país.

Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA)

O grupo, que reúne deputados e senadores ligados às questões do agronegócio, manifestou "preocupação" e defendeu "cautela e diplomacia".

Segundo eles, a medida anunciada por Trump "representa um alerta ao equilíbrio das relações comerciais e políticas entre os dois países".

"A nova alíquota produz reflexos diretos e atinge o agronegócio nacional, com impactos no câmbio, no consequente aumento do custo de insumos importados e na competitividade das exportações brasileiras", diz uma nota publicada no site da FPA.

A frente defende "uma resposta firme e estratégica"

"A FPA reitera a importância de fortalecer as tratativas bilaterais, sem isolar o Brasil perante as negociações. A diplomacia é o caminho mais estratégico para a retomada das tratativas."

Confederação Nacional da Indústria (CNI)

Para a entidade, não existe um "fato econômico que justifique a medida anunciada pelos EUA" e há necessidade de intensificar negociações para preservar a relação com "um dos maiores parceiros comerciais do Brasil".

"Os impactos dessas tarifas podem ser graves para a nossa indústria, que é muito interligada ao sistema produtivo americano. Uma quebra nessa relação traria muitos prejuízos à nossa economia. Por isso, para o setor produtivo, o mais importante agora é intensificar as negociações e o diálogo para reverter essa decisão", destacou Ricardo Alban, presidente do CNI, em comunicado divulgado à imprensa.

"Sempre defendemos o diálogo como o caminho mais eficaz para resolver divergências e buscar soluções que favoreçam ambos os países. É por meio da cooperação que construiremos uma relação comercial mais equilibrada, complementar e benéfica entre o Brasil e os Estados Unidos", acrescentou ele.

Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec)

A entidade defendeu que "questões geopolíticas não se transformem em barreiras ao abastecimento global e à garantia da segurança alimentar, especialmente em um cenário que exige cooperação e estabilidade entre os países".

A Abiec ainda sugeriu a "retomada das negociações".

"Estamos dispostos ao diálogo, de modo que medidas dessa natureza não gerem impactos para os setores produtivos brasileiros nem para os consumidores americanos, que recebem nossos produtos com qualidade, regularidade e preços acessíveis", declarou a associação.

Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB)

A entidade diz ter recebido as notícias da tarifa "com surpresa e indignação".

"É, certamente, uma das maiores taxações a que um país já foi submetido na história do comércio internacional, só aplicada aos piores inimigos, o que nunca foi o caso do Brasil", observou José Augusto de Castro, presidente da AEB..

"Além das dificuldades de comércio com os Estados Unidos, o anúncio da Casa Branca pode criar uma imagem negativa do Brasil e gerar medo em importadores de outros países de fechar negócios com as nossas empresas, afinal, quem vai querer se indispor com o presidente Trump?", questionou ele.

Davi Alcolumbre (presidente do Senado) e Hugo Motta (presidente da Câmara)

Em nota conjunta, os presidentes das casas legislativas defenderam a soberania brasileira, mas também o diálogo com os EUA nos campos diplomático e comercial.

"A decisão dos Estados Unidos de impor novas taxações sobre setores estratégicos da economia brasileira deve ser respondida com diálogo nos campos diplomático e comercial.

O Congresso Nacional acompanhará de perto os desdobramentos. Com muita responsabilidade, este Parlamento aprovou a Lei da Reciprocidade Econômica. Um mecanismo que dá condições ao nosso país, ao nosso povo, de proteger a nossa soberania.

Estaremos prontos para agir com equilíbrio e firmeza em defesa da nossa economia, do nosso setor produtivo e da proteção dos empregos dos brasileiros."

Lindbergh Farias (PT-RJ), líder do PT na Câmara

O deputado federal petista disse que a taxa é algo "gravíssimo".

"Os vira-latas bolsonaristas conseguiram. Penso que Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e Tarcísio [governador de São Paulo] devem estar muito felizes em prejudicar o Brasil, nossa economia e nossos empregos. Nós defendemos o Brasil e nossa soberania. Eles são uns traidores!", declarou Farias.

Humberto Costa (PT-PE), senador

O petista escreveu que Bolsonaro "bate continência para a bandeira dos EUA e, junto com a sua turma, veste o boné de Trump, o cara que prejudica o Brasil com sobretaxas exorbitantes."

"Isso é o bolsonarismo: jogar e torcer contra o Brasil", disse Costa.

Jaques Wagner (PT-BA), senador

O senador pediu "respeito ao Brasil"e disse que a taxa ocorre após "pedido da família Bolsonaro".

"O presidente norte-americano está confundindo a quem está se dirigindo. O Brasil não será quintal do país de ninguém. Quem decide a nossa vida somos nós. Que fique claro: o Brasil é dos brasileiros e não de capachos", escreveu Wagner.

Nikolas Ferreira (PL-MG), deputado federal

O deputado federal focou em dizer que "a culpa é do Lula" diante da nova taxa.

"Basta Lula ter diplomacia, parar de perseguir e o STF ficar no seu lugar, que a taxa não incidirá mais no Brasil", escreveu Ferreira.

Fábio Wajngarten, advogado de Bolsonaro

O advogado e ex-secretário de comunicação de Bolsonaro atribuiu o anúncio de Trump ao fato de que o governo americano teria "visto com maus olhos" o encontro dos Brics no Brasil, em que a declaração final do bloco criticou políticas americanas, embora tenha evitado falar diretamente contra o presidente americano.

"O governo brasileiro por conta de sua patética e risível chancelaria teima em alinhar-se a países que tradicionalmente são inimigos ou no mínimo distantes dos EUA", disse Wajngarten.


"Por fim, o alinhamento com grupos terroristas, que deveriam ser absolutamente combatidos e banidos por parte do governo brasileiro também contribui para referida decisão. Utilizar os Brics como teto também para a Venezuela em nada ajuda a melhorar a relação com os EUA. Não criem fantasmas e nem busquem terceirizar culpas."

Filipe Barros (PL-PR), deputado federal

Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Barros escreveu que a "culpa" pela sanção de Trump é de "todos os que perseguiram a direita".

"Eles traíram a nossa nação, entregaram nosso destino a interesses estrangeiros, venderam a soberania nacional e nos colocaram na lista das nações menos democráticas do mundo", declarou Barros.

Gleisi Hoffmann, ministra das Relações Institucionais

A petista fez crítica direta ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e apoiadores de Bolsonaro por "aplaudirem o tarifaço de Trump contra o Brasil";

"Pensam apenas no proveito político que esperam tirar da chantagem do presidente dos EUA, porque nunca se importaram de verdade com o país e o povo. Estamos diante do maior ataque já feito ao Brasil em tempos de paz, visando a atingir não apenas nossa economia, mas a soberania nacional e a própria democracia", escreveu Gleisi no X.

"É a continuação do golpe pelo qual Bolsonaro responde no STF, agora usando tarifas de um país estrangeiro para impor seu projeto ditatorial."

Publicado originalmente pela BBC News Brasil, em 09.07.25 (Atualizado 10.07.25)

'Trump se identifica com Bolsonaro, ambos se veem como vítimas de progressistas'

Nos últimos dias, Donald Trump havia dado uma série de declarações de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e sinalizava o anúncio de uma taxa contra produtos exportados pelo Brasil.

Trump anunciou tarifas sobre o Brasil que surpreenderam analistas e pesquisadores

Embora especialistas nas relações Brasil-Estados Unidos já esperassem que as tarifas prometidas de fato viriam, muitos deles não imaginavam que a medida anunciada pelo presidente dos Estados Unidos na quarta-feira (9/7), que estipulou uma taxação de 50% sobre bens de nosso país, tivesse essa magnitude.

O valor definido por Trump contra o Brasil é o maior entre todas as taxas anunciadas nesta segunda leva do "tarifaço".

Desde a segunda-feira (7/7), o presidente americano tem enviado cartas a países anunciando as novas tarifas que entram em vigor em agosto. Tirando a taxa aplicada ao Brasil, os valores variam de 20% (para as Filipinas) a 40% (Laos e Mianmar).

Um dos analistas que se surpreendeu foi Christopher Garman, diretor-geral de Américas do Eurasia Group, uma consultoria e empresa de risco político.

"A intensidade da tarifa causou surpresa", admite ele, em entrevista à BBC News Brasil.

"Embora o presidente Trump já estivesse ameaçando os membros do Brics com tarifas adicionais, o Brasil inicialmente estava na lista das nações que tiveram a taxa mínima, de 10%, e é um país que tem déficit na balança comercial com os Estados Unidos", lembra o pesquisador, que é um dos principais especialistas sobre os impactos políticos das decisões macroeconômicas.

O Brics é o bloco inicialmente formado pelas economias emergentes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e que foi ampliado a partir de 2024, com a entrada de seis países — Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã — e que acaba de realizar uma cúpula no Rio de Janeiro.

Mas o que explica este anúncio de Trump?

Para Garman, a grande motivação do presidente americano é política e ideológica.

"A política brasileira é um espelho da política americana. Me parece que Trump se identifica com os desafios que Bolsonaro enfrenta no Brasil", avalia ele.

"Ambos se veem como vítimas de um establishment progressista, que supostamente caminharia para um regime de censura por meio de ataques aos seus oponentes pelas vias judiciais."

Seguindo esse raciocínio, Trump avaliaria que Bolsonaro passa por algo similar ao que ele próprio viveu após perder as eleições de 2020, em que a Presidência dos EUA foi conquistada por Joe Biden.

"Trump parece querer dar um sinal claro contra países que ele acredita não respeitarem a ordem democrática", avalia Garman.

Para o analista, as taxas de 50% sobre o Brasil não têm qualquer justificativa comercial ou econômica.

"Não se trata de um mecanismo para ajustar a relação bilateral, para barrar a entrada de produtos chineses ou para controlar a entrada de imigrantes nos EUA. É um instrumento político e ideológico."

O que os EUA e o Brasil podem ganhar (e perder)

Do ponto de vista de Garman, o anúncio de Trump "enfraquece um governo que está no espectro ideológico oposto".

"Essa também é uma maneira de tentar enfraquecer o próprio Brics, que o presidente dos EUA acredita ser um grupo que se opõe aos interesses americanos", diz ele.

Do ponto de vista econômico, o diretor do Eurasia Group não vê ganhos claros para os Estados Unidos.

"Existem alguns setores no qual a economia americana depende mais de produtos brasileiros. Mas o Brasil representa uma porcentagem pequena do total das importações americanas", pondera ele.

Já para o Brasil, Garman entende que "vários setores serão negativamente impactados".

"É o caso da mineração, da produção de aeronaves e do agro, especialmente os produtores de suco de laranja, café, madeira e celulose", lista ele.

Mas o especialista entende que parte dessas exportações brasileiras que tinham os EUA como destino podem ser vendidas para outros mercados.

"A tendência é que a taxação tenha um impacto modesto no crescimento do Brasil, mas, ainda assim, haverá um impacto", projeta ele.

Christopher Garman (à direita), do Eurasia Group, entende que decisão de Trump ao Taxar o Brasil foi puramente política e ideológica. (Crédito,Getty Images)

Desdobramentos para Lula e Bolsonaro

Na avaliação de Garman, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode enxergar na taxação "uma grande oportunidade para as eleições de 2026".

"O Palácio do Planalto pode entrar num embate com Trump, e passar a mensagem de que a família Bolsonaro faz alianças com um governo estrangeiro, que tira empregos dos brasileiros", antevê o especialista.

"O presidente Lula pode se beneficiar de uma onda nacionalista, criada a partir de uma espécie de bullying internacional feito pelos Estados Unidos."

Diante desse cenário, Garman entende que o presidente Lula tende a "inflar a retórica" contra a taxação — o que dificulta um caminho de negociação e acomodação dos interesses.

"Pode até haver uma negociação específica entre algumas empresas e setores, com trocas e exceções às tarifas", acredita ele.

Já para o ex-presidente Jair Bolsonaro, Garman avalia que será necessário observar se a taxação de Trump representa um fortalecimento do nome de Lula nas urnas.

"Se isso se concretizar, ele pode tentar de alguma maneira pedir uma redução das tarifas americanas diretamente a Trump, para fazer um papel de intermediação", diz ele.

Para Garman, a situação brasileira se difere um pouco do que aconteceu com Canadá, México e outros países, nos quais houve uma acomodação de interesses após o anúncio de tarifas por Trump.

"O Brasil não tem uma economia tão integrada com os EUA, como Canadá e México. Além disso, não há um compartilhamento de raízes ou tradições, como acontece entre esses países", observa ele.

"Embora o Brasil seja um país dividido e polarizado, acho razoável pressupor que Lula pode se beneficiar parcialmente dessa taxação", acredita o analista.

Por fim, o diretor do Eurasia Group projeta que as tarifas de Trump podem enfraquecer os laços de Brasil e EUA, mas fortalecer a relação com outros atores internacionais.

"Pode haver um fortalecimento da relação do Brasil com China, União Europeia e Oriente Médio", cita ele.

"O Brasil vai buscar outros mercados e a tendência é que os laços institucionais com os Estados Unidos fiquem enfraquecidos."

"Mesmo que um acordo parcial seja feito, ainda assim esse relacionamento vai sair arranhado", conclui ele.

André Biernath da BBC News Brasil em Londres, em 10.07.25

quarta-feira, 11 de junho de 2025

“Tenho vergonha do meu país e peço desculpas.”

Michael Douglas, o ator americano pede desculpas pelo "caos global" atribuído ao governo Donald Trump em uma masterclass no Festival de Cinema de Taormina.

Michael Douglas, nesta terça-feira em Taormina. 

Durante a abertura de sua masterclass no Festival de Cinema de Taormina, na Itália, Michael Douglas disse na terça-feira que sente "vergonha" dos Estados Unidos e pediu desculpas pelo "caos global" criado sob a presidência de Donald Trump . "Entendo que grande parte da responsabilidade pelo caos global vem do meu país. Tenho vergonha do meu país e peço desculpas. Peço desculpas aos meus vizinhos no Canadá e no México, e também aos países da União Europeia e da OTAN ", declarou o ator de 80 anos diante de estudantes e profissionais de cinema.

Douglas, vencedor de dois Oscars e quatro Globos de Ouro , recebeu o prêmio pelo conjunto da obra em Taormina, no antigo teatro romano da cidade. Ao longo de sua carreira, combinou seu lado artístico com o compromisso público: desde 1998, serviu como Mensageiro da Paz das Nações Unidas e colaborou com a Iniciativa contra a Ameaça Nuclear , promovendo campanhas internacionais pela abolição das armas nucleares.

Em sua masterclass, o ator criticou o aumento constante dos orçamentos militares , especialmente nos Estados Unidos, e expressou seu espanto com a persistência dos conflitos armados na era da inteligência artificial : "É ridículo que, com toda a tecnologia à nossa disposição, ainda vejamos tantas guerras".

Aos 80 anos — nascido no final da Segunda Guerra Mundial —, Douglas afirmou nunca ter presenciado um período tão turbulento quanto o atual. Ele defendeu a substituição dos investimentos militares por iniciativas de diálogo e cooperação internacional e apelou à diplomacia como única forma de evitar a repetição dos erros do passado.

Publicado originalmente no EL PAÍS, em 10.06.25