terça-feira, 19 de novembro de 2024

Ditos e feitos de Janja

Atitudes de quem não tem cargo público podem, por vínculos familiares, atrapalhar ações de um governo


Janja no Festival Aliança Global, do G20, no Rio de Janeiro - Luis Robayo/AFP

Rosângela Lula da Silva, a Janja, soltou um f**k you para Elon Musk, criando uma dor de cabeça para o Itamaraty. O próprio Lula, que tenta driblar vários touros ao mesmo tempo nas negociações para a declaração final do G20, teve de vir a público para pedir que ninguém xingue ninguém.

Estou terminando de ler "O Mundo", de Simon Sebag Montefiori, livro ao qual ainda dedicarei uma coluna. O autor mostra com muitos exemplos que um ponto fraco dos regimes hereditários é a variação geracional. O filho de um grande monarca pode ser e frequentemente é um completo imbecil (casamentos consanguíneos ampliam essa possibilidade).Mesmo quando o contraste não é tão gritante, um bom governante pode ter como herdeiro um sujeito sem gosto ou aptidão para o poder. Sistemas políticos em que o líder é escolhido por um seletorado estão menos sujeitos aos caprichos da loteria cósmica. E quanto mais amplos o seletorado e o rol dos candidatos, menores as chances de interesses individuais, familiares ou setoriais darem as cartas.

Nesse contexto, o presidencialismo surgiu como uma melhoria em relação às monarquias hereditárias em que o soberano exerce o poder de fato. Mas presidentes ainda são em muitos aspectos tratados como reis por prazo fixo. O próprio entorno presidencial (família, amigos, conselheiros) ganha ares de corte.

O parlamentarismo aprofunda o processo de despersonalização do poder. O premiê é muito mais o gerente provisório de uma coalizão vencedora do que um indivíduo investido de poder político e simbólico em caráter pessoal. É só ver que prestamos muito mais atenção ao que diz e faz uma primeira-dama do que aos ditos e ações de consortes de premiês, que muitas vezes mal saem do anonimato.

Janja tem, como cidadã, o direito de dizer o que pensa e pode, como qualquer humano, falar mais do que deveria. Mas é ruim que atitudes de uma pessoa que não exerce função pública possam, por vínculos familiares, contaminar estratégias e ações de um governo.

O poder, a exemplo da burocracia, deveria ser tão impessoal quanto possível.

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. E autor de "Pensando Bem…". Este artigo foi publicado originariamente na Folha de S. Paulo, em 18.11.24

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