quarta-feira, 17 de abril de 2024

A ministra oficiosa

Janja se apresenta como ‘articuladora’ de políticas públicas e diz que Lula lhe dá ‘total autonomia’

A julgar pelo que disse em recente entrevista à BBC, a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, decidiu autonomear-se, certamente com a anuência do marido, como “articuladora” do governo de Lula da Silva. “Meu papel é de articuladora, que fala sobre política pública”, informou Janja candidamente, numa reportagem sobre as funções exercidas por primeiras-damas na América Latina. Além de estar convicta de que precisa “ressignificar” o papel de primeira-dama, Janja disse mais: “(Lula) me dá total autonomia para eu fazer o que faço”, sem hierarquia entre ambos.

Pois fazer o que faz parece ser o grande problema da primeira-dama e seu esforço desmedido para exercer influência política e desempenhar papel prático no governo – tarefa para a qual não tem mandato concedido nem pelos eleitores nem pela legislação vigente. Pelo que Janja faz e da maneira como faz, o País corre o risco de ter uma espécie de poder paralelo nas mãos da primeira-dama, lastreado em sua condição singularíssima de cônjuge de Lula, borrando os limites entre o público e o privado.

Antes fosse, portanto, uma demonstração meramente retórica do ativismo político de Janja, ou antes se resumisse a uma tentativa de promover o debate sobre o papel de primeira-dama, historicamente associado a estereótipos. Não. O que Janja admitiu foi a tradução, em palavras, do que tem materializado em atos: imiscuir-se em assuntos do governo, interferir na ação de ministérios, direcionar escolhas de políticas públicas e demonstrar poder, pura e simplesmente.

Seus tentáculos políticos avançam inclusive em poder de veto em áreas como economia, defesa e comunicação. Ademais, Janja rapidamente aprendeu a cosmologia palaciana, segundo a qual a ocupação dos espaços físicos é também uma forma de exercício do poder: a primeira-dama é hoje um anteparo entre o gabinete presidencial e os visitantes, incluindo ministros que precisam despachar com o chefe.

Não se deseja aqui que Janja restrinja suas atividades à “organização de chás de caridade”, como sublinhou na entrevista. Nem se discute sua autonomia para exercer, na intimidade, o papel de primeira-conselheira do presidente ou a disposição de Lula para ouvi-la em assuntos para os quais deseja saber sua opinião. Tampouco a liberdade da primeira-dama para debater, publicamente, temas em que supostamente inspire conhecimento. Mas convém pedir bom senso.

Certamente há um caminho do meio entre o papel decorativo e o excessivo ativismo. Não à toa, recentes tentativas de definir cargos e protagonismos excessivos para primeiras-damas esbarraram em resistência e recuos em diferentes países. Foi o caso do Chile de Irina Karamanos, mulher do presidente Gabriel Boric, e da França de Brigitte Macron, mulher de Emmanuel Macron.

Acreditando ter prerrogativas para tanto, Janja já representou Lula numa visita ao BNDES para debater projetos do Fundo Amazônia e atropelou o rito de conversas da equipe econômica ao fazer um pedido expresso para redução dos juros do cartão de crédito. Como Janja é em tese indemissível, porque primeira-dama não é cargo, seria bom que ao menos não competisse com os ministros formalmente nomeados e remunerados para auxiliar o presidente.

 Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17.04.24

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