Em entrevista, ministro aposentado sustenta que Supremo Tribunal Federal ajudou enterrar a operação.
Professor Marco Aurélio Mello, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (Crédito da foto:Dida Sampaio / Estadão)
Em um de seus últimos julgamentos no Supremo Tribunal Federal (STF), concluído menos de um mês antes de sua aposentadoria, em junho de 2021, o ministro Marco Aurélio Mello votou contra a suspeição do exjuiz Sérgio Moro na ação do triplex do Guarujá (SP), que levou à prisão do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ficou vencido, como tantas vezes ao longo dos 31 anos que passou na Corte.
A decisão que declarou a parcialidade do ex-juiz da Operação Lava Jato foi um dos principais reveses impostos pelo STF à investigação, mas não o único. O tribunal ainda proibiu a execução da pena antes do esgotamento de todos os recursos, o que favoreceu Lula, e concluiu que a 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba manteve sob sua jurisdição inquéritos e processos da Lava Jato que, para os ministros, deveriam ter sido transferidos para outros Estados. A decisão esvaziou o berço da operação e levou à anulação das condenações do atual presidente.
“O que eu acho é que houve uma concepção equivocada por parte do Supremo. Só não houve a mesma concepção quanto ao mensalão porque foi o Supremo quem julgou, aí, evidentemente, o tribunal ficaria muito mal na fotografia se viesse a declarar vícios na investigação”, disse Marco Aurélio em entrevista ao Estadão.
Ele também afirmou não ver com bons olhos a decisão do ministro Dias Toffoli que suspendeu o pagamento de multas dos acordos de leniência da J&F e Odebrecht. “O grande problema é que nós passamos a ter, não pronunciamentos de órgão único, que seria o Supremo reunido em plenário, mas a visão individual de cada qual. Hoje a insegurança grassa.”
Como um ministro que acompanhou, no Supremo Tribunal Federal, o auge e o declínio da Lava Jato, acredita que a Corte ajudou a enterrar a operação? Sem dúvida alguma. Quando se concluiu, por exemplo, que o Juízo da 13.ª Vara Criminal do Paraná não seria competente, esmoreceu o combate à corrupção. Aí, talvez, a colocação daquele senador da República que disse que “precisamos estancar essa sangria” acaba se mostrando procedente (em 2016, Romero Jucá (MDB-RR) sugeriu em uma conversa gravada deter o avanço da Lava Jato).
Por que o STF mudou o posicionamento em relação à investigação?
Estivesse vivo o relator inicial, grande juiz, Teori Zavascki, se teria caminhado no sentido que se caminhou? A resposta, para mim, é negativa.
Mas foi simplesmente pela troca de relatoria?
O que acho é que houve uma concepção equivocada por parte do Supremo. Só não houve a mesma concepção quanto ao mensalão porque foi o Supremo quem julgou, aí, evidentemente, o tribunal ficaria muito mal na fotografia se viesse a declarar vícios na investigação e no próprio processo-crime.
Houve prejuízo ao direito de defesa na Lava Jato?
O direito de espernear, principalmente pelos que cometeram desvios de conduta, é latente. Eles vão, evidentemente, aproveitar a onda contrária à investigação para lograr proveitos.
Então o devido processo legal foi respeitado?
O nosso sistema é equilibrado. Quando há um pronunciamento, ele é passível de impugnação no órgão revisor. O Tribunal Regional Federal da 4.ª Região confirmou as decisões de primeira instância e andou, inclusive, aumentando penas.
A relação entre Sérgio Moro e procuradores da Lava Jato foi republicana? Fala-se em conluio entre a magistratura e o Ministério Público, julgador e acusador. Que conluio? O diálogo é saudável, sempre existiu. O juiz sempre esteve aberto a ouvir o Ministério Público, fazendo a ponderação cabível. Colocar cada qual em uma redoma, em um isolamento de não poder conversar, é passo demasiadamente largo e não é democrático. Na vida em sociedade, nós temos que presumir a postura digna, principalmente por aqueles que ocupam cargos públicos, e não que sejam salafrários até que provem o contrário.
Como vê o processo disciplinar aberto pelo Conselho Nacional de Justiça para investigar a conduta de Moro e a gestão das multas dos acordos de colaboração e leniência?
O CNJ e o CNMP (Conselho Nacional no Ministério Público) atuam no campo administrativo e devem fazê-lo observando o figurino legal.
Concorda com a cassação de Deltan Dallagnol?
A meu ver, ele foi caçado, com “ç” e não com “ss”. Simplesmente se presumiu que, quando ele pediu exoneração, o fez para fugir a um processo administrativo que poderia levar à declaração de inelegibilidade. É presumir o excepcional e não o corriqueiro, que é a postura digna por parte do cidadão.
Moro fez “um favor” para críticos da Lava Jato ao assumir o Ministério da Justiça no governo Bolsonaro? Quando eu integrava o Supremo, ele foi me visitar. E eu disse, com a franqueza própria dos cariocas, que ele tinha cometido um ato, a meu ver, insano. Abandonar cargo alcançado por concurso público, uma função que o tornou herói nacional, para ser auxiliar de um presidente da República demissível a qualquer momento. Eu disse: “Rapaz, como você abandona uma caneta dessa?” Aí ele disse: “A minha caneta ainda tem muita tinta”. Ainda bem que o Paraná o elegeu senador.
Uma decisão como a que suspendeu o pagamento das multas dos acordos de leniência da J&F e da Odebrecht poderia ter sido tomada monocraticamente? O grande problema é que nós passamos a ter, não pronunciamentos de órgão único, que seria o Supremo reunido em plenário, mas a visão individual de cada qual. Hoje a insegurança grassa, o que é péssimo. Mais do que isso: grassa o descrédito da instituição na qual eu estive durante 31 anos. Para mim, é uma tristeza enorme perceber isso. Avançamos assim? Como fica a sociedade? Fica decepcionada. Eu só ouço críticas quanto ao Supremo. Indago: hoje qualquer dos integrantes (do STF) sai à rua? Não creio que qualquer colega que tenha assento no Supremo saia sozinho hoje e frequente locais públicos sem estar com uma segurança maior.
Toffoli deveria ter se declarado impedido para julgar o pedido da J&F, já que a mulher do ministro presta assessoria jurídica para a empresa em um litígio?
Lá atrás, acho que foi no mensalão, ele disse que não tinha qualquer relação com a doutora Roberta. Quem sabe ele continua sem relação.
Deve haver uma ponderação dos órgãos públicos sobre a repactuação das multas de acordos de leniência? Acordo que resulta da manifestação de vontade só é passível de anulação se ficar comprovado vício. Para mim, esse vício fica excluído no caso. Agora, vivenciamos essa época de tempos estranhos e já se fala em repactuação do acordado, isso acaba colando a tudo uma insegurança muito grande. As defesas e os acusados sempre foram ouvidos. As empresas que fizeram acordo foram intimidadas? Tiraram as multas do capital de giro? Não. Foi dinheiro que entrou indevidamente na contabilidade. Imaginar que aqueles que formalizaram os acordos estiveram pressionados, intimidados e coagidos não se coaduna com a realidade.
O combate à corrupção avançou ou retrocedeu depois da Lava Jato?
Para mim, houve um grande retrocesso.
É possível ver novamente algo como a Lava Jato? Dar-se a Lava Jato como algo sepultado é ruim. A decepção é incrível. E repito que não avançamos dessa forma.
Para onde o Brasil precisa olhar para avançar no combate à corrupção?
Para a percepção, pelo homem público, de que o cargo é para servir aos semelhantes e não para o ocupante se servir do cargo em benefício dele e da família. Essa é a grande questão. Precisamos avançar em termos de compreensão, principalmente por aqueles que ocupam cargos públicos.
Rayssa Motta, de S. Paulo e Julia Affonso, de Brasília, para O Estado de S. Paulo, em 18.03.24
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