segunda-feira, 25 de março de 2024

Avanço da dengue expõe ineficiência do governo

Descaso com a doença é histórico, mas fatores da epidemia atual eram notórios e poder público poderia ter se precavido

Nísia Trindade, ministra da Saúde, durante entrevista sobre distribuição de vacinas contra dengue, em Brasília (DF) - Lucio Tavora - 20.mar.24/Xinhua

O Brasil vive uma tragédia anunciada com a epidemia de dengue. Do começo do ano até 21 de março, o país ultrapassou a marca de 2 milhões de casos prováveis, alta de 19% em relação ao registrado ao longo de todo o ano de 2023. Em apenas 81 dias, foram 682 mortes em decorrência da doença e outras 1.042 são investigadas.

Sabe-se que a enfermidade é periódica e cíclica, com piora no verão e picos epidêmicos a cada quatro ou cinco anos. Mas o que se verifica em 2024 é ponto fora da curva e, pior, há sinais de que o governo poderia ter se antecipado.

Nísia Trindade, chefe da pasta da Saúde, disse no começo do mês que o elevado número de casos se deve à mudança climática, que aumenta temperaturas e chuvas, intensificada pelo fenômeno El Niño.

A ministra está certa. O problema é que essa correlação era notória desde janeiro do ano passado, quando a Organização Mundial da Saúde emitiu alerta global para a "ameaça pandêmica" da dengue, justamente devido à questão ambiental. Em julho, novamente, a entidade chamou a atenção para possível recorde de casos em 2023.

A alta do calor e das chuvas em regiões de clima mais temperado, como Sul e Sudeste, tende a multiplicar contaminações. As populações dessas regiões, que historicamente tiveram menos contato com alguns dos sorotipos do vírus, estão mais desprotegidas.

São quatro sorotipos e, como uma pessoa só adquire imunidade para o qual já contraiu, a interação com um novo pode agravar sintomas, levando até a mortes.

Assim, a crise era previsível —e cabia ao poder público se precaver com campanha de conscientização robusta sobre o perigo vindouro e alocação de verbas em estrutura ambulatorial, considerando diferenças regionais.

A morosidade para aprovar a distribuição de imunizantes pelo sistema de saúde foi particularmente temerária. A vacina japonesa Qdenga, que age contra os quatro sorotipos, havia sido aprovada para venda no país pela Anvisa em março de 2023, mas a oferta pelo SUS só foi autorizada em dezembro.

Até 21 de março, apenas 14,5% do público-alvo (crianças de 10 a 14 anos) e 0,2% da população brasileira haviam sido vacinados.

Por óbvio, há também um descaso histórico de diversos governos com fatores ligados à doença, como saneamento básico precário e crescimento urbano desordenado.

A presente epidemia, porém, recebeu impulsos recentes, conhecidos pela gestão de turno. Resta, agora, correr atrás do prejuízo para minimizar os efeitos da crise.

Ademais, já passou da hora de o Brasil aprender que o combate à dengue deve ser feito a partir de ações contínuas e no longo prazo.

Editorial da Folha e S.Paulo, edição impressa, em 24.03.24 (editoriais@grupofolhacom.br)

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