Investigação da conspiração para manter Bolsonaro no poder deve prosseguir com o máximo rigor — e com serenidade
Polícia Federal recolhe malotes com documentos da Sede do PL, em Brasília — Foto: Brenno Carvalho/Agência O Globo
Uma investigação da Polícia Federal (PF), conduzida com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF), apresentou evidências convincentes de que Jair Bolsonaro, quando presidente, alguns de seus ministros, assessores próximos, funcionários do governo e militares tramaram contra a soberania do voto popular, preparando um golpe de Estado. São áudios, vídeos, mensagens de texto e documentos que dão muita consistência às acusações. Não existe acusação mais grave numa democracia. Por isso a investigação deve prosseguir com o maior rigor — mas também com a máxima serenidade.
A Operação Tempus Veritatis, deflagrada ontem pela PF com autorização do ministro Alexandre de Moraes, do STF, investiga um grupo acusado de tramar um golpe de Estado para manter Bolsonaro no poder desde quando era antevista a possível derrota para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022. Segundo a PF, caso a derrota se concretizasse, um plano previa a prisão de Moraes, do decano do STF, Gilmar Mendes, e de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado.
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A PF diz que mensagens apreendidas na investigação mostram que Bolsonaro recebeu a minuta do decreto da prisão e a editou para retirar da lista de presos Gilmar e Pacheco — é a primeira vez que se menciona uma ação direta do então presidente nas tramas golpistas. Também sustenta que Bolsonaro convocou os comandantes das Forças Armadas ao Palácio da Alvorada para “pressioná-los a aderir ao golpe de Estado”. Suspeito de ter desempenhado papel central na trama em novembro de 2022, Filipe Martins, ex-assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, foi um dos alvos da operação, e sua prisão preventiva foi decretada.
Outro suspeito cuja prisão foi decretada é o coronel da reserva do Exército Marcelo Câmara, ex-assessor especial da Presidência apontado como responsável pelo “núcleo de inteligência paralela” dos golpistas. Entre as atividades atribuídas ao grupo estava o monitoramento dos passos do próprio Moraes. Em determinado momento, diz a PF, o planejamento para a prisão de Moraes tinha local e data marcados: São Paulo, 18 de dezembro de 2022.
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A PF diz ter evidências que comprovam o que chama de “dinâmica golpista” antes mesmo do primeiro turno das eleições. A ideia dos conspiradores era contestar qualquer resultado desfavorável a Bolsonaro por meio das acusações sem fundamento contra o sistema eleitoral que circulavam havia meses. A conspiração envolveu até o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, que chegou a usar verbas do partido para financiar os ataques à urna eletrônica e pediu a anulação do resultado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ontem a polícia encontrou na sede do PL documentos para decretação de estado de sítio. Costa Neto, alvo de mandado de busca e apreensão, acabou preso por portar arma sem permissão legal.
Um vídeo apreendido no computador do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que firmou acordo de delação premiada depois de preso em maio passado, é uma das provas mais robustas apresentadas no inquérito. Ele registra uma reunião em julho de 2022 com a presença de Anderson Torres (então ministro da Justiça), Augusto Heleno (chefe do Gabinete de Segurança Institucional) e Walter Braga Netto (ministro da Casa Civil).
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De acordo com a descrição do vídeo feita pela PF, Bolsonaro, nervoso com a possibilidade de derrota nas urnas, exige que os ministros tomem providências contra o TSE. Na gravação, Torres promete reforçar os ataques ao sistema eleitoral, e Heleno opina que se “tiver que virar a mesa, é antes das eleições”. Torres, Heleno, Braga Netto e o general Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, estão entre os alvos de mandados de busca e apreensão. Pelo envolvimento na trama golpista, Bolsonaro foi proibido de deixar o país e de se comunicar com os demais investigados.
Os indícios revelam que Braga Netto, vice na chapa derrotada de Bolsonaro, concentrou esforços para pressionar e atacar militares em posição de comando contrários à ideia de golpe. Segundo a PF, as investidas partiram de múltiplos canais. Em conversas por mensagem rastreadas pelos investigadores, Braga Netto dá orientação para que o então comandante da Força Aérea, o tenente-brigadeiro Baptista Júnior, contrário ao golpe, seja atacado. E para que o almirante de esquadra Almir Garnier Santos, favorável ao golpe, seja elogiado. Braga Netto manda “oferecer a cabeça” do general Freire Gomes, então comandante do Exército, e se refere a ele com um palavrão quando confrontado com a informação de que ele não aderira ao golpe. Apesar dos esforços golpistas, é sempre fundamental lembrar que, ao fim, prevaleceram o bom senso e a postura legalista no Alto-Comando do Exército. O país se livrou da intentona e houve transferência de poder ao vencedor das eleições.
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Os desafios do inquérito não têm paralelo na História recente do Brasil. Ele confirma o que muitos denunciaram ao longo do mandato de Bolsonaro — a imprensa sempre vigilante. Diante de acusações tão graves, os eventuais indiciados deverão ter amplo direito de defesa, de modo a dirimir quaisquer dúvidas sobre o caráter republicano das investigações. Muitos tentarão posar de vítimas de arbítrio, usando o processo em benefício político próprio. Para evitar essa postura e desmenti-los, PF, Procuradoria-Geral da República e STF precisam manter atuação serena e responsável. Antes de qualquer julgamento, todos merecem a presunção de inocência, da mesma forma que os acusados de crimes no 8 de Janeiro.
A democracia é conquista inegociável, e tramar contra o resultado das urnas é atentado inadmissível. Por isso as investigações devem seguir com afinco e, comprovada a culpa nos tribunais, a punição aos condenados deve ser severa. É o mínimo a que o Brasil tem direito para preservar a democracia que tanto nos custou.
Editorial de O Globo, em 09.02.24
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