Apesar do retrospecto negativo, marcado pelo mensalão, pelo petrolão e pelo orçamento secreto, nem tudo é uma “questão de preço” para os parlamentares
Plenário da Câmara dos Deputados: no atual governo, Congresso terá nova oportunidade de mostrar se 'agrados' oficiais passam por cima de convicções de parlamentares
No momento em que o Congresso se prepara para votar o novo arcabouço fiscal, em meio à instauração das CPIs dos atos de 8 de janeiro e do MST e à derrota sofrida pelo governo na Câmara dos Deputados, ao tentar alterar por decreto o novo marco legal do saneamento, a discussão sobre o fisiologismo dos parlamentares voltou a ganhar os holofotes.
Diante da fragilidade demonstrada no Legislativo pelo governo, que ainda teve de “agasalhar” o adiamento da votação do projeto das fake news e agora enfrenta a possibilidade de criação das CPIs das ONGs e do abuso de autoridade, articuladas pela oposição, prosperou por aí a ideia de que o Planalto terá de abrir ainda mais os cofres para adocicar os congressistas e conseguir ampliar sua base parlamentar – e não é para menos.
Visto pela população como uma das instituições de menor credibilidade no País, segundo as pesquisas de opinião, o Congresso fez do toma lá, dá cá um modo de vida. Do mensalão e do petrolão ao orçamento-secreto, que no governo Lula voltou a ser chamado de “emendas do relator”, seu nome de batismo, para suavizar a conotação negativa da farra promovida com o dinheiro dos pagadores de impostos, o Congresso tem estado no centro dos principais escândalos de corrupção e de mau uso do dinheiro público.
São Francisco de Assis
Ainda que existam as honrosas exceções que confirmam a regra, boa parte dos deputados e senadores, talvez a maioria, pauta suas ações de acordo com as benesses recebidas do Executivo. Como diz a oração atribuída a São Francisco de Assis, encampada pelos parlamentares na época da Constituinte, nos anos 1980, e ainda hoje uma síntese emblemática da relação incestuosa mantida entre o Legislativo e o Executivo, “é dando que se recebe”.
Em geral, os parlamentares de partidos reunidos no chamado Centrão acabam levando a fama sozinhos, mas o fisiologismo do Congresso não tem fronteiras ideológicas. Espalha-se pelas diferentes correntes de pensamento, como mostraram o mensalão e o petrolão, que envolveram o PT e outras siglas de esquerda que, desde sempre, procuram se apresentar como uma espécie de “reserva moral” da Nação.
Agora, mesmo levando isso em conta, será que, no Congresso, é tudo só uma questão de preço? Até onde vai o fisiologismo dos parlamentares e políticos do País? Até que ponto as “bondades” do governo são capazes de “comprar” os votos dos congressistas, fazendo-os passar por cima das ideias que dizem defender?
Considerando o retrospecto da turma, é provável que, para um número considerável de parlamentares, nada seja realmente inegociável. Para eles, qualquer convicção é passível de revisão, pelo devido valor. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado em três instâncias na Justiça pelo envolvimento direto no mensalão e no petrolão, antes de as ações serem anuladas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por “irregularidades processuais”, parece acreditar que todo mundo está disposto a aceitar um “agrado”, em troca da sustentação do governo no Congresso.
Mas, ao contrário do que se imagina, nem sempre os congressistas agem pensando apenas no próprio bolso e em seus interesses particulares. Por mais ingênuo e inverossímil que possa parecer, diante das práticas pouco republicanas que prosperam no Parlamento, parece haver um limite para o apetite do pessoal em questões cruciais para o País.
Foi assim, por exemplo, com a derrota recente do governo na questão do novo marco do saneamento, que favorece a participação da iniciativa privada no setor e foi aprovado pelo Congresso em 2020, com o objetivo de universalizar o serviço até 2033. O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), considerado como o grande gestor do orçamento secreto, posicionou-se neste sentido recentemente.
“A principal reforma que o Congresso brasileiro vai ter que brigar diariamente é a reforma de não deixar retroceder tudo que foi já aprovado no Brasil no sentido da amplitude do que é mais liberal”, afirmou Lira recentemente, ao participar de evento em Nova York com lideranças empresariais e investidores estrangeiros.
Voltando no tempo, foi assim também com a tentativa de Lula de prolongar a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras), em 2007, em seu segundo mandato, quando ele sofreu sua maior derrota até então no Congresso, depois de forte mobilização da sociedade contra a medida. Foi assim, ainda, com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, acusada de promover “pedaladas fiscais” para contornar as restrições orçamentárias. Apesar de muitos analistas atribuírem o impeachment à resistência de Dilma em ceder às pressões fisiológicas do Centrão, o Congresso mostrou novamente, com amparo na Justiça, que nem sempre se curva ao Executivo.
Fraudes financeiras
O mesmo aconteceu com o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992, acusado de corrupção e envolvimento em fraudes financeiras, e com a eleição de Tancredo Neves para a Presidência no Colégio Eleitoral, em 1985, ainda durante o regime militar, quando superou o ex-governador paulista Paulo Maluf, que não poupou esforços na época para “agradar” os parlamentares que decidiriam o pleito.
Muitas vezes, é certo, o Congresso age pressionado pela voz rouca das ruas, como na eleição de Tancredo Neves, na tentativa de prolongar a CPMF e nos impeachments de Dilma e de Collor. De um jeito ou de outro, porém, acaba mostrando que nem tudo está à venda e que é capaz de tomar decisões que estão à altura do que se espera dele.
Hoje, dominado pelas forças de centro-direita e de direita, o Congresso terá oportunidade de mostrar mais uma vez se a liberação de verbas bilionárias pelo governo fará os parlamentares deixarem de lado suas convicções para endossar o “revogaço” defendido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por muitos de seus aliados.
Está nas mãos do Congresso conter – ou não – o “retrocesso” de que fala Lira, com a rejeição de medidas como a liberação de despesas fora do Orçamento, prevista no novo arcabouço fiscal, a revisão da Lei das Estatais, da reforma trabalhista e da autonomia do Banco Central, a retomada do imposto sindical e a ampliação do poder da União na gestão da Eletrobrás, entre outras medidas do gênero.
As cartas estão dadas. Talvez, no fim, o Congresso confirme que o fisiologismo está acima de tudo e que qualquer expectativa em sentido contrário, mesmo em relação a medidas que podem selar o destino do País, condenando-o de vez ao atraso, é pura ingenuidade. Mas, como já mostrou em outras oportunidades, inclusive na rejeição recente do decreto presidencial que mudava o novo marco do saneamento, quem sabe o Congresso não mostre de novo que nem tudo é “uma questão de preço” para os parlamentares, como se tornou voz corrente na sociedade.
José Fucs, o autor deste artigo, é repórter especial do Estadão desde 2017. Jornalista desde 1983, passou por alguns dos principais veículos de comunicação do País. Foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da revista Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.05.23, às 13h16
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