quarta-feira, 1 de março de 2023

Uma nação nasce, um império morre

É no coração dos russos que a destruição avança sem remédio, uma agonia sem outro termo senão o distante momento em que é liberdade e não submissão ao autocrata que habita o lugar onde pulsa o amor à pátria russa.

Vladimir Putin, durante um show no estádio Luzhniki em Moscou. (MAKSIM BLINOV (AFP)

Mais Ucrânia e menos Rússia. Este é o simples balanço de um ano de destruição, sangue e morte em abundância, o preço insuportável do tipo de catástrofe que os seres humanos perpetram regularmente, trancados na história para sempre com a ajuda da parteira sinistra, a guerra.

Hoje a nação ucraniana é mais forte. No coração dos cidadãos, a vontade dos seus jovens de morrer por ela e a admiração que merece e desperta na Europa e no mundo. E, sobretudo, no seu compromisso com a liberdade, a democracia, o Estado de direito e os direitos humanos, tudo o que caracteriza a sociedade europeia a que se quer associar, face à oferta que vem de Moscovo juntamente com as bombas para conformar-se com a autocracia.

Muito mais fraca é a sua economia, é verdade. Sua população diminuiu, refugiando-se em países vizinhos e dizimada por bombardeios e combates. A dor e os danos do parto são terríveis. Com sua infraestrutura destruída, numerosos hospitais, escolas e teatros destruídos, o estoque habitacional reduzido, este é o campo de escombros que Putin oferece. O efeito sobre a Rússia é revertido, preservado e intacto graças à assimetria de sua agressão abusiva sob o guarda-chuva nuclear. Mesmo as duras sanções não atrapalham a vida do gigante vitimado, ainda que prejudiquem seus abastecimentos, incomodem seus oligarcas e transformem seus diplomatas e políticos em pestes no Ocidente coletivo que designam como inimigo, depois de tê-lo escolhido por 30 anos como o paraíso dos seus investimentos, das suas férias,

É no coração dos russos que a destruição avança sem remédio, uma agonia sem outro termo senão o distante momento em que é liberdade e não submissão ao autocrata que habita o lugar onde pulsa o amor à pátria russa. Quando os russos, como os ucranianos, são cidadãos de mais uma nação européia e não servidores de um império avassalador disposto a impor sua ordem pela única lei da força.

Teve seu maior revés há 30 anos, quando o anterior avatar soviético ruiu, mas agora, querendo sobreviver e recuperar o império, perdeu definitivamente a Ucrânia, peça geopolítica central de seu domínio. Ele perdeu tantas coisas que parece não se importar com mais uma: seu exército falido, seus jovens exilados, suas prisões cheias de dissidentes, até mesmo seus aliados da Ásia Central incomodados por tanta brutalidade... e sua alma. Junto com o declínio do império, seus adversários, a Europa e a OTAN, crescem. Também à custa de aumentar o perigo. É justamente aí que pode surgir a salvação de quem sabe enfrentá-la e a condenação de quem a promove. Resta cruzar o difícil lintel, o fim do império, interromper o trabalho e a agonia para que a paz, a paz justa e verdadeira, chegue quanto antes.

Luís Bassets, o autor deste artigo, escreve colunas e análises sobre política, especialmente política internacional, para o EL PAÍS. Ele escreveu, entre outros, 'O ano da Revolução' (Taurus), sobre as revoltas árabes, 'A grande vergonha. Ascensão e queda do mito de Jordi Pujol' (Península) e um diário pandêmico e confinado com o título de 'Les ciutats interiors';Publicado originalmente em 23.02.23

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