terça-feira, 4 de outubro de 2022

Putin está tentando enlouquecer o Ocidente

Objetivo de Putin é dividir a aliança ocidental e sair com uma ‘vitória’ que possa preservá-lo


Na Praça Vermelha, nacionalistas russos assistem ao discurso de Vladimir Putin sobre anexação de regiões da Ucrânia na sexta-feira, 30. Foto: Alexander Nemenov/ AFP

Com a anexação de partes da Ucrânia na sexta-feira, Vladimir Putin colocou em movimento forças que estão transformando a Rússia em uma gigante Coreia do Norte. Será um estado paranoico, raivoso e isolado, mas, ao contrário da Coreia do Norte, a versão russa estará espalhada por 11 fusos horários – do Oceano Ártico ao Mar Negro e da extremidade da Europa livre à extremidade do Alasca – com milhares de ogivas nucleares.

Conheci uma Rússia que era forte, ameaçadora, mas estável – chamada União Soviética. Conheci uma Rússia que era esperançosa, potencialmente em transição para a democracia com Mikhail Gorbachev, Boris Yeltsin e até com o jovem Putin. Conheci uma Rússia que era um “bad boy” com um Putin mais velho, hackeando a América, envenenando figuras da oposição, mas ainda um exportador de petróleo estável e confiável e parceiro de segurança ocasional dos EUA quando precisávamos da ajuda de Moscou em caso de aperto.

Mas nenhum de nós jamais conheceu a Rússia que um Putin agora desesperado e contra a parede parece decidido a mostrar – uma Rússia pária; uma grande e humilhada Rússia; uma Rússia que fez com que muitos de seus engenheiros, programadores e cientistas mais talentosos fugissem por qualquer saída que pudessem encontrar. Esta seria uma Rússia que já perdeu tantos parceiros comerciais que só pode sobreviver como uma colônia de petróleo e gás natural da China, uma Rússia que é um estado falido, expelindo instabilidade por todos os poros.

Tal Rússia não seria apenas uma ameaça geopolítica. Seria uma tragédia humana de proporções gigantescas. A transformação da Rússia em uma Coreia do Norte por Putin está convertendo um país que uma vez deu ao mundo alguns de seus escritores, compositores, músicos e cientistas mais renomados em uma nação mais hábil em fazer batatas fritas do que microchips, mais famosa por suas roupas íntimas envenenadas do que por sua alta costura e mais focada em desbloquear seus reservatórios subterrâneos de gás e petróleo do que em seus reservatórios acima do solo de gênios e criatividade humanos. O mundo inteiro está diminuído pela diminuição da Rússia por Putin.

Mas com a anexação de sexta-feira, é difícil ver qualquer outro resultado enquanto Putin estiver no poder. Por quê? O teórico de jogos Thomas Schelling sugeriu que, se você estiver no chamado jogo da galinha com outro motorista, a melhor maneira de ganhar - a melhor forma de fazer o outro motorista desviar primeiro - é se antes do jogo você visivelmente desparafusar seu volante e então jogá-lo pela janela. Mensagem para o outro motorista: adoraria sair do caminho, mas não consigo mais controlar meu carro. É melhor você desviar!

Ficar tentando enlouquecer seu oponente é uma especialidade norte-coreana. Agora, Putin a adotou, anunciando com grande alarde que a Rússia está anexando quatro regiões ucranianas: Luhansk e Donetsk, as duas regiões apoiadas pela Rússia onde as forças pró-Putin lutam contra Kiev desde 2014, e Kherson e Zaporizhzhia, que foram ocupadas logo após a invasão de Putin em fevereiro. Em um grande salão do Kremlin, Putin declarou na sexta-feira que os moradores dessas quatro regiões se tornariam cidadãos da Rússia para sempre.

O que Putin está tramando? Só se pode especular. Comece com sua política doméstica. A base de Putin não são os estudantes da Universidade Estatal de Moscovo. Sua base são os nacionalistas de direita, que estão cada vez mais irritados com a humilhação militar da Rússia na Ucrânia. Para manter seu apoio, Putin pode ter sentido a necessidade de mostrar que, com sua convocação da reserva e anexação, ele está travando uma guerra real pela Mãe Rússia, não apenas uma vaga operação militar especial.

(A Rússia pode anexar um pedaço da Ucrânia? Como funciona uma anexação de território?)

(Carta da ONU proíbe anexação e conquista territorial, considerando invasão da Ucrânia por tropas russas como uma ação ilegítima)

No entanto, isso também pode ser Putin tentando manobrar um acordo favorável. Eu não ficaria surpreso se ele logo anunciasse sua disposição de um cessar-fogo – e a disposição de consertar gasodutos e retomar os carregamentos de gás para qualquer país pronto para reconhecer a anexação da Rússia.

Putin poderia então alegar à sua base nacionalista que ele conseguiu algo para sua guerra, mesmo que tenha sido extremamente caro, e que agora ele está pronto para parar. Há apenas um problema: Putin na verdade não controla todo o território que está anexando.

Isso significa que ele não pode se contentar com nenhum acordo, a menos e até que expulse os ucranianos de todo o território que agora reivindica; caso contrário, estaria entregando o que acabou de transformar em território soberano russo. Este poderia ser um desenvolvimento muito sinistro. O maltratado exército de Putin não parece capaz de conquistar mais território e, de fato, parece estar perdendo mais a cada dia.

Ao reivindicar um território que ele não controla totalmente, temo que Putin esteja se encurralando em um canto do qual um dia possa sentir que só pode escapar com uma arma nuclear.

De qualquer forma, Putin parece estar desafiando Kiev e seus aliados ocidentais a continuar a guerra no inverno - quando o fornecimento de gás natural na Europa será restrito e os preços poderão ser astronômicos - para recuperar territórios, alguns dos quais seus representantes ucranianos têm mantido sob a influência da Rússia desde 2014.

A Ucrânia e o Ocidente vão desviar? Eles taparão os narizes e farão um acordo sujo com Putin para parar sua guerra imunda? Ou a Ucrânia e o Ocidente vão enfrentá-lo, insistindo que Putin não obtenha conquistas territoriais com esta guerra, para então defendermos o princípio da inadmissibilidade de tomar territórios pela força?

Não se deixe enganar: haverá pressão dentro da Europa para desviar e aceitar tal oferta de Putin. Esse é certamente o objetivo de Putin – dividir a aliança ocidental e sair com uma “vitória” que possa preservá-lo.

Mas há outro risco de curto prazo para Putin. Se o Ocidente não desviar, não optar por um acordo com ele, mas em vez disso apostar em mais armas e ajuda financeira para a Ucrânia, há uma chance de que o exército de Putin entre em colapso.

Isso é imprevisível. Mas aqui está o que é totalmente previsível: está agora em vigor uma dinâmica que empurrará a Rússia de Putin ainda mais para o modelo da Coreia do Norte. Isso começa com a decisão de Putin de cortar a maior parte do fornecimento de gás natural para a Europa Ocidental.

Há apenas um pecado capital no negócio de energia: nunca, jamais, torne-se um fornecedor não confiável. Ninguém nunca mais vai confiar em você. Putin tornou-se um fornecedor não confiável para alguns de seus clientes mais antigos e melhores, começando pela Alemanha e grande parte da União Europeia. Todos eles agora estão procurando por suprimentos alternativos de longo prazo de gás natural e construindo mais energia renovável.

Levará de dois a três anos para que as novas redes de gasodutos provenientes do Mediterrâneo Oriental e gás natural liquefeito proveniente dos Estados Unidos e do norte da África comecem a substituir de forma sustentável o gás russo em escala. Mas quando isso acontecer, e quando a oferta mundial de gás natural aumentar para compensar a perda de gás da Rússia – e à medida que mais energias renováveis entrarem em operação – Putin poderá enfrentar um verdadeiro desafio econômico. Seus antigos clientes ainda podem comprar alguma energia da Rússia, mas nunca mais confiarão tão totalmente na Rússia. E a China irá pressioná-lo por grandes descontos.

Em suma, Putin está corroendo a maior fonte – talvez sua única fonte – de renda sustentável de longo prazo. Ao mesmo tempo, sua anexação ilegal de regiões da Ucrânia garante que as sanções ocidentais contra a Rússia permanecerão em vigor, ou podem até acelerar, o que apenas acelerará a migração da Rússia para o status de estado falido, já que mais e mais russos com habilidades globalmente comercializáveis certamente irão embora.

Eu não comemoro nada disso. Este é um momento para os líderes ocidentais serem duros e inteligentes. Eles precisam saber quando desviar e quando fazer o outro desviar, e quando deixar alguma dignidade para o outro motorista, mesmo que ele esteja se comportando com total desrespeito por qualquer outra pessoa. Pode ser que Putin não nos tenha deixado escolha a não ser aprender a viver com uma Coreia do Norte russa – pelo menos enquanto ele estiver no comando. Se esse for o caso, teremos que fazer o melhor com isso, mas o melhor será um mundo muito mais instável. 

Thomas L. Friedman é colunista do The New York Times. Publicado originalente no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 03.10.22 às 10h00. Tradução de Lívia Bueloni Gonçalves.

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