sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Militares, descansar!

‘A norma em qualquer democracia é que militar obedece a eleitos, bate continência, protege fronteiras e defende a Constituição’


Urnas eletrônicas armazenadas para serem distribuídas às zonas eleitorais. Foto: Alex Silva/Estadão

O que pensam os militares e como não lhes desagradar? Na ditadura, o enigma nos atormentava durante a lenta transição democrática. Tínhamos um olho nas urnas e outro nos quartéis. O Ministério da Defesa foi criado e entregue a um civil.

A norma em qualquer democracia é que militar obedece a eleitos, bate continência, protege fronteiras e defende a Constituição. Trump não conseguiu dar o golpe e anular as eleições americanas porque militares seguiram o rumo hierárquico de defender o Congresso. Está em Four Hours at the Capitol (HBO Max), documentário com a minutagem da tentativa de golpe durante a invasão do Capitólio.

Pode ocorrer por aqui? Conhecendo o humor da turba bolsonarista... O impeachment da Dilma desorganizou as instituições. Apelou-se a uma força adormecida, os militares.

Apareceu a ala de generais de pijama comprometidos com a linha-dura, tortura, intolerância contra indígenas, machismo, racismo, representada na figura bisonha do general Heleno, indisciplinado herdeiro do general Sylvio Frota, aquele dos atentados à bomba para boicotar a abertura democrática introduzida pelo general Geisel, desenhada pelo general Golbery, comandada pelo general Figueiredo, garantida pelo general Pires Gonçalves.

O ministro Barroso, por livre e espontânea vontade, instituiu via Portaria TSE n.º 578/2021 a Comissão de Transparência e convocou militares para participar. A tigrada sorriu de orelha a orelha. Falta hoje um líder com a coragem de Ulysses Guimarães e Brizola para peitá-la.

A intervenção nas eleições de 2022 é escandalosa. Se o ministro Edson Fachin inicialmente disse não se metam, o ministro Alexandre de Moraes abriu o zíper do TSE. A proposta nem estava mais na pauta do tribunal, mas ele aceitou a exigência dos militares no teste de biometria.

Eu não tenho impressão digital. Minha pele é lisa, como a de muitos. Tenho licença especial sem digital com uma carteira de motorista sem biometria, autorizada pelo DSV. No meu prédio, instalaram controle por biometria e se descobriu que 30% dos moradores não têm impressão digital. Desinstalaram.

Sessenta e quatro urnas serão auditadas por aliados armados do atual presidente, indicados por ele. Processo confiável? Barroso afirmou depois que as Forças Armadas “estão sendo orientadas para atacar o processo” eleitoral brasileiro e “tentar desacreditá-lo”, num universo de 557 mil urnas que contêm um vice general na chapa do capitão.

E se um militar, a mando do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, comandado por Bolsonaro, vier a público afirmar que encontrou incongruência numa das urnas? Pela amostragem, uma urna examinada representaria o espectro de 2.437.500 de eleitores. Tanto general nessa estória... Vai dar rolo.

Marcelo Rubens Paiva, o autor deste artigo, é escritor, dramaturgo e autor de 'Feliz Ano Velho', entre outros. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.09.22.

Nenhum comentário: