quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Por que meus generais não podem ser como os de Hitler?, disse Trump, segundo livro

Obra mostra bastidores de relação entre ex-presidente e chefes militares que ele via como desleais

O general Mark Milley conversa com o então presidente Donald Trump em dezembro de 2018 - (Jim Young - 8.dez.18/Reuters)

Donald Trump disse a seu assessor-chefe na Casa Branca que gostaria de ter generais como os que trabalharam para Adolf Hitler, afirmando que eles foram "totalmente leais" ao líder do regime nazista. A informação consta de um livro sobre o 45º presidente americano que está prestes a ser lançado.

"Por que vocês não podem ser como os generais alemães?", teria dito Trump a John Kelly, seu chefe de gabinete, antepondo um palavrão à pergunta, segundo um trecho de "The Divider: Trump in the White House" (o divisor: Trump na Casa Branca), de Peter Baker e Susan Glasser, publicado pela revista The New Yorker nesta segunda-feira (8).

Baker é correspondente-chefe do jornal The New York Times na Casa Branca e Glasser faz parte da equipe da New Yorker.

O trecho retrata Trump como profundamente frustrado com seus chefes militares, a quem considerava insuficientemente leais ou obedientes a ele. Os autores escrevem que na conversa com Kelly, anos antes do ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio, o chefe de gabinete disse a Trump que os generais alemães "fizeram três tentativas de matar Hitler e quase conseguiram".

Trump teria rejeitado a ideia, aparentemente ignorando a história da Segunda Guerra Mundial, que Kelly, general quatro estrelas da reserva, conhecia muito bem. "'Não, não, não, eles eram totalmente leais', respondeu o presidente", segundo os autores. "Em sua versão da história, os generais do Terceiro Reich haviam sido completamente subservientes a Hitler. Era esse o modelo que ele queria para seus militares. Kelly disse a Trump que não existiam generais americanos desse tipo, mas o presidente estava determinado a pôr a ideia à prova."

Boa parte do trecho enfoca o general Mark A. Milley, que foi chefe do Estado-Maior Conjunto —comandante militar chefe do país. Quando o presidente lhe ofereceu o cargo, Milley lhe disse: "Farei o que o senhor me pedir". Mas ele não demorou a enxergar o presidente sob uma ótica negativa.

A frustração chegou ao auge no dia 1º de junho de 2020, quando manifestantes do movimento Black Lives Matter lotaram a praça Lafayette, nas proximidades da Casa Branca. Trump exigiu que forças armadas fossem despachadas para tirá-los do local, mas Milley e outros assessores se negaram a fazê-lo. Trump, segundo o livro, teria reagido gritando: "Vocês são todos uns perdedores!".

"Voltando-se a Milley, Trump disse: 'Você não pode simplesmente atirar neles? Atirar nas pernas deles ou alguma coisa assim?’", escrevem os autores. Depois de a Guarda Nacional e a polícia terem expulsado os manifestantes, Milley acompanhou por pouco tempo o presidente e outros assessores, percorrendo a pé a praça esvaziada para que Trump pudesse ser fotografado diante de uma igreja do outro lado.

Os autores disseram que Milley mas tarde considerou sua decisão de juntar-se ao presidente "um erro de julgamento que o assombraria para sempre, um ‘momento como o [de Saulo] na estrada para Damasco’, como ele diria mais tarde".

Uma semana após esse episódio, Milley escreveu –mas não chegou a entregar— uma carta de renúncia em tom fortemente crítico, acusando o presidente a quem servia de politizar os militares, "arruinar a ordem internacional", deixar de valorizar a diversidade e abraçar a tirania, a ditadura e o extremismo que os membros das Forças Armadas juram combater

"Acredito que o senhor está fazendo um mal grave e irreparável ao meu país", escreveu o general na carta, que não havia sido revelada antes e foi publicada na íntegra pela New Yorker. Milley afirmou que Trump não honrava aqueles que lutaram contra o fascismo e os nazistas na Segunda Guerra Mundial.

"Está claro para mim agora que o senhor não entende essa ordem mundial", escreveu. "O senhor não entende o que motivou a guerra. Na verdade, o senhor subscreve muitos dos princípios contra os quais lutamos. E eu não posso compactuar com isso."

Porém, segundo os autores do livro, Milley acabou decidindo permanecer no cargo para poder assegurar que as Forças Armadas atuassem como baluarte contra um presidente cada vez mais fora de controle. "Vou combatê-lo, simplesmente", disse à sua equipe, segundo o trecho publicado na New Yorker. "O desafio, na visão dele, era impedir Trump de causar mais danos e ao mesmo tempo agir de maneira coerente com sua obrigação de cumprir as ordens de seu comandante em chefe. ‘Se quisessem me levar à corte marcial ou me colocar na prisão, que fossem adiante.’"

Os trechos trazem ainda novos detalhes sobre as interações de Trump com seus assessores militares e de segurança e documenta esforços drásticos feitos pelas autoridades mais seniores para prevenir uma crise doméstica ou internacional nas semanas depois de Trump ser derrotado na eleição.

O secretário de Estado Mike Pompeo nunca contestou publicamente as alegações desvairadas de Trump sobre o pleito e raramente o criticou desde então. Mas, falando reservadamente, descartou as alegações de fraude do republicano.

Na noite de 9 de novembro de 2020, depois de a mídia declarar a vitória de Joe Biden, Pompeo telefonou a Milley e pediu para vê-lo, segundo o livro. Numa conversa em volta da mesa da cozinha do general, o então secretário de Estado foi franco sobre o que pensava das pessoas que cercavam o presidente. "'Os malucos tomaram conta’", teria dito. Segundo os autores, longe dos holofotes Pompeo rapidamente aceitou que a eleição havia terminado e recusou-se a promover a derrubada de seu resultado.

" 'Ele foi totalmente contra isso’, recordou um funcionário sênior do Departamento de Estado. Pompeo justificou cinicamente o contraste chocante entre o que dizia em público e na esfera privada. ‘Perto do final, era importante também para ele não ser demitido, continuar ali até o amargo final’, disse o assessor sênior", segundo o livro.

Os autores detalham o que descrevem como "um arranjo extraordinário" de Pompeo e Milley nas semanas após a eleição para ter telefonemas matinais diários com Mark Meadows, chefe de gabinete da Casa Branca, num esforço para garantir que o presidente não tomasse iniciativas perigosas.

"Pompeo e Milley logo começaram a chamar essas ligações de telefonemas para ‘preparar o pouso do avião’", escrevem os autores. "'Nossa tarefa é fazer esse avião pousar em segurança e realizar a transferência pacífica de poder em 20 de janeiro’, Milley disse à sua equipe. 'Essa é a nossa obrigação para com esta nação.’ Mas havia um problema. ‘Os dois motores estão em pane e o trem de pouso está encalhado. Estamos em situação de emergência.’"

Milley não é o único alto funcionário que pensou em renunciar em resposta aos atos do presidente, escrevem os autores. O trecho detalha conversas reservadas entre membros da equipe de segurança nacional, discutindo o que fazer caso ele tentasse adotar ações que eles consideraram que não poderiam tolerar. Os autores relatam que Milley consultou Robert Gates, ex-secretário da Defesa e ex-diretor da CIA.

O conselho que ele ouviu de Gates teria sido curto e grosso: "Mantenha os chefes sintonizados com seu pensamento e deixe claro para a Casa Branca que, se você sair, sairão todos, para a Casa Branca saber que não se trataria apenas de demitir Mark Milley. Todo o Estado-Maior Conjunto renunciaria."

O trecho deixa claro que Trump nem sempre conseguiu os subordinados puxa-sacos que desejava. Em uma troca de palavras no Salão Oval, Trump perguntou ao general Paul Selva, oficial da Força Aérea e vice-presidente do Estado-Maior Conjunto, o que ele achava do desejo do presidente de que fosse realizado um desfile militar na capital nacional no dia 4 de Julho.

A resposta de Selva, não divulgada até agora, foi direta e, segundo os autores do livro, não foi o que o presidente queria ouvir.

"'Eu não cresci nos EUA, cresci em Portugal’, disse. 'Portugal era uma ditadura, e os desfiles militares eram feitos para mostrar ao povo quem tinha os canhões. Neste país não fazemos isso.' E acrescentou: ‘Não é quem somos'."

Michael D. Shear, de Washignton-DC para o New York Times. Tradução de Clara Allain. Publicado no Brasil pela Folha de S. Paulo, em 10.08.22.

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