segunda-feira, 1 de agosto de 2022

O medo da derrota de quem tem apego ao poder

Jair Bolsonaro dá a sensação de que nasceu no tempo errado da História; se dependesse de si, permaneceria no poder eternamente

Se as instituições democráticas estivessem funcionando perfeitamente mesmo, tendo Collor sofrido impeachment em 1992 pelo Fiat Elba e Dilma, em 2016, pelas pedaladas fiscais, Bolsonaro já deveria igualmente ter sido retirado do poder. Começando pelo negacionismo sanitário, que implicou milhares de mortes, que ele deveria ter evitado durante a pandemia.

Pela atitude de afirmar em público que não cumpriria decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), pela corrupção abundante. Manipula dados e espalha ao mundo desinformação envenenadora de mentes, para instabilizar nossa democracia, o que repetiu em reunião com embaixadores de diversos países.

Tem quase 150 pedidos de impeachment acumulados – nenhum avança, pois o aliado Lira, ícone do Centrão, com slogan de campanha “Arthur Lira é foda”, blinda o presidente. Mesmo que o povo vá às ruas, que Dalai Lama ou papa Francisco apelem ou até mesmo que Lira receba mensagem psicografada de Gandhi ou da Madre Tereza, será em vão! Quem manda é Lira e tudo está condenado a mofar na poderosa gaveta do presidente da Câmara.

O procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, reconduzido ao cargo pelo presidente, mesmo fora da lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República, é tido como omisso, descumpridor da missão de defesa da ordem jurídica e do regime democrático. É importante a lista tríplice constitucional em nível federal, como há nos Estados, para que o Ministério Público Federal credencie três nomes. Hoje o fiscalizado escolhe a dedo e nomeia o próprio fiscal (PGR).

Bolsonaro dá a sensação de que nasceu no tempo errado da História, pois, se dependesse de si, permaneceria no poder eternamente, como o rei francês Luís 14, o Rei Sol (“o Estado sou eu”). Desde o primeiro dia do mandato, dedica-se à reeleição. Apresenta-se como o salvador da Pátria e acaba de convocar o povo às ruas em tom apelativo messiânico, para 7 de setembro, destilando ódio contra o STF, tendo ao lado ex-presidiários por corrupção e um ex-presidente cassado.

Disse que só Deus poderia tirá-lo da Presidência, como se não existissem povo, democracia ou Constituição. Despreza a nova Carta aos Brasileiros, que, 45 anos depois, renasce bela pela democracia e será lida nas Arcadas do Largo de São Francisco em 11 de agosto. Assinada por pessoas de todos os segmentos, corre rápido para 1 milhão de assinaturas.

É preocupante lermos, a dois meses das eleições, a pesquisa do Poder Data que acaba de ser divulgada: para 41% dos brasileiros ouvidos, a democracia por aqui vai mal ou muito mal. Para 33%, vai mais ou menos. Muito bem, 21%. Feita entre 17 e 19 de julho, ouviu 3 mil pessoas em 309 municípios de todas as unidades da Federação.

Números oportunos para reflexão, após esta tosca reunião do presidente com os embaixadores em Brasília, na qual mais uma vez o presidente repetiu inverdades sem comprovação acerca do sistema de urnas eletrônicas utilizado no Brasil desde 1996 e apontado pela comunidade internacional como referência. Por temer a derrota, pode querer seguir o roteiro de Trump, que, conforme apurado em investigações oficiais, articulou a invasão do Capitólio, após ser derrotado nas urnas.

Afirmar, como tem feito, que desrespeitará as decisões do STF, além de hostilizar diariamente jornalistas e estimular seus seguidores a vir às ruas para gritar tiranicamente em defesa do fechamento do STF e do Congresso, contribui decisivamente para os números ruins detectados pelo Poder Data. Sem esquecer o homicídio de Foz do Iguaçu, fruto de sua disseminação permanente do ódio e do armamentismo.

Exatamente em razão de tal contexto, o cientista político de Harvard Steven Levitsky, um dos autores da obra Como as Democracias Morrem, em entrevista ao Estadão, externou preocupação com o risco de autogolpe por Bolsonaro, cuja atitude lembra a de Erdogan, Orbán, Putin e outros tiranos.

Com apresentação estruturada de forma amadora, que chamou a atenção pela quantidade gigante de erros grotescos de tradução para o inglês, Bolsonaro omitiu aos embaixadores que o uso das urnas eletrônicas foi deliberado pelo Congresso. Assim como sonegou a análise do Tribunal de Contas da União (TCU) da total confiabilidade do sistema, que é utilizado em mais de 40 nações e que deu a Bolsonaro seis mandatos de deputado federal e um de presidente, sem contestação.

Ficou claro para o mundo que, mesmo defendendo a tese esdrúxula e inconstitucional da apuração paralela pelas Forças Armadas, estas não quiseram comparecer à mal-intencionada reunião. A enxurrada de reações de instituições e entidades à atitude do presidente foi inversamente proporcional a seus bons propósitos.

Sem qualquer pudor em relação a limites de gastos públicos, especialmente em período eleitoral, em tempos de candidaturas legislativas sem qualquer exigência de afinidade com programas partidários e surreal elogio ao nepotismo como modelo de política pública, vivemos hoje uma orgia do vale-tudo do poder.

A Constituição é remendada via PEC PIX e as leis se liquefazem para acomodar os interesses de ocasião, sob a trilha sonora do orçamento secreto. Que se respeite, ao menos, a soberana vontade do povo nas urnas eletrônicas – fórmula brasileira designadora da nossa democracia legal eleitoral. E que as escolhas que serão feitas possam nos trazer alguma esperança.

Roberto Livianu, o autor deste artigo, é Procurador de Justiça, Doutor em Direito Pela USP, Escritor, Professor, Palestrante e idealizador e Presidente Do Instituto 'Não Aceito Corrupção'. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 01.08.22

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