quarta-feira, 7 de julho de 2021

Reunião com Davati foi encaixada por coronel bolsonarista em agenda de outro empresário

 Foi a esse coronel que o cabo Dominghetti se referiu quando disse que "um colega de turma" de Elcio Franco viabilizou o encontro. Segundo Dominghetti, Helcio Almeida tinha acesso ao 02 do ministério "por ele ser dos comandos". Em conversa ontem, por telefone e mensagens, Helcio (com H) confirmou que seu acesso ao coronel Elcio (com E) vem das Forças Especiais. "Serve como boa credencial", escreveu. 

O coronel da reserva Helcio Bruno Almeida (à esquerda), que organizou a reunião para a oferta de 400 milhões de doses de vacina ao número 2 do Ministério da Saúde, Elcio Franco

Desde que o cabo da PM Luiz Paulo Dominghetti afirmou na CPI da Covid ter recebido um pedido de propina de US$ 1 por dose de vacina oferecida ao Ministério da Saúde, a cada dia surgem mais detalhes da negociação que colocou, de um lado, o PM, um reverendo e um executivo de uma empresa obscura dos Estados Unidos – e de outro, funcionários indicados pelo Centrão do deputado Ricardo Barros (PP-PR) e coronéis subordinados a Eduardo Pazuello. Na última sexta-feira (01), na CPI, um novo personagem passou a fazer parte desse enredo. 

Trata-se do coronel da reserva Helcio Bruno de Almeida, presidente do Instituto Força Brasil, que defende causas bolsonaristas como o armamento da população, o voto impresso e o tratamento precoce. O vice-presidente da entidade é o empresário Otavio Fakhoury, investigado na CPI das fake news. Helcio também é egresso das Forças Especiais do Exército, assim como o secretário-executivo do ministério, Elcio Franco, Pazuello e vários ministros palacianos. 

Foi a esse coronel que o cabo Dominghetti se referiu quando disse que "um colega de turma" de Elcio Franco viabilizou o encontro. Segundo Dominghetti, Helcio Almeida tinha acesso ao 02 do ministério "por ele ser dos comandos". Em conversa ontem, por telefone e mensagens, Helcio (com H) confirmou que seu acesso ao coronel Elcio (com E) vem das Forças Especiais. "Serve como boa credencial", escreveu. 

O Instituto Força Brasil foi criado emsetembro do ano passado, já em meio à pandemia. O site oficial diz que a entidade sem fins lucrativos "se propõe a fazer frente à hegemonia da esquerda como participante do poder, bem assim ao crime organizado nas instituições" e "deste modo, oferecer subsídios para o fortalecimento dos movimentos ativistas conservadores". 

A reunião dos coronéis aconteceu na manhã do dia 12 de março e estava prevista na agenda oficial do ministério. Mas não era para falar com a Davati, e sim para tratar do  "Contrato Beep". Em tese, deveria servir para o dono de uma rede privada de vacinação do Rio de Janeiro, a Beep, dar sugestões para regulamentação da lei que permitia a compra de vacinas para o setor privado. 

Mas, no horário marcado, o coronel Helcio apareceu com Dominghetti, o executivo da Davati Cristiano Carvalho e o reverendo Amilton Gomes de Paula, da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), entidade religiosa com sede em Brasília.

Quando o secretário de Pazuello chegou, havia cerca de dez pessoas numa sala anexa ao seu gabinete, incluindo funcionários do Ministério e o presidente da Beep, Vander Corteze. 

Mas a pauta da Davati tomou a maior parte dos 15 a 20 minutos reservados para os visitantes. Segundo um executivo destacado pela Beep para dar informações a esta reportagem, o presidente da empresa ficou atrás do grupo, no fundo da sala, enquanto Dominghetti, Carvalho e o reverendo Amilton Gomes de Paula falavam da proposta das 400 milhões de doses de AstraZeneca – que havia começado a ser discutida a um preço de US$ 3,50, mas já  estava cotada a US$ 17,50 por dose. 

"Alguns dias antes da minha audiência eu tive um contato com a Davati e eles comentaram sobre uma proposta de vacinas que haviam feito à secretaria-executiva. E que o assunto estava lá. Como essas vacinas também poderiam ser oferecidas ao setor privado, eu entendi que eles também poderiam participar dessa audiência"

Àquela altura, Dominghetti já tinha feito a oferta ao diretor de logística do ministério, Roberto Dias, que segundo afirmou à CPI pediu propina de US$ 1 por vacina. O pedido teria sido feito no dia 25 de fevereiro, num shopping de Brasília. Dias nega. 

Depois disso, os representantes da Davati se encontraram com o secretário de Vigilância em Saúde, Laurício Monteiro, na tentativa de fazer a venda se concretizar. Mas o secretário disse que cabia ao 02 do ministério decidir sobre compra de vacinas. 

No dia 11 de março, o reverendo Amilton enviou email ao sócio da Davati nos Estados Unidos, Herman Cardenas, avisando da reunião.

Esses emails foram exibidos pelo Jornal Nacional, da TV Globo, no sábado (3). Neles, o reverendo diz que o encontro do dia 12 seria para "tratar de questões relacionadas à aquisição de vacinas da Astrazeneca via Davati, fortalecendo assim a confiabilidade dos laços para futuras aquisições”. Diz, ainda, que a reunião era importante para validar a proposta de preço.

À CPI, Dominghetti que, ao chegar ao ministério, percebeu que Elcio Franco não sabia nada da proposta. "O que nos espantou o Sr. Coronel Elcio Franco não ter conhecimento dessa proposta", afirmou. "Então, ela foi novamente validada."

Depois do encontro, os representantes da Davati, o da Beep e os membros do Instituto Brasil foram almoçar na casa de uma amiga do grupo. Não havia restaurantes abertos, porque a capital federal estava em lockdown. 

Os emails em poder da CPI informam ainda que o reverendo esperava assinar o contrato no próprioa dia 12, mas isso não aconteceu nem naquele dia, nem depois. A Davati afirma oficialmente que não recebeu mais nenhum contato do ministério. Tampouco há provas de que os representantes da Davati tivessem mesmo 400 milhões de doses de AstraZeneca para vender. A farmacêutica afirma que a Davati não tinha procuração para representá-la. 

O coronel Helcio Almeida – que, em seus perfis, se apresenta como especialista em geopolítica e segurança – diz que só levou os negociadores de vacina ao ministério porque checou "com os Estados Unidos" e confirmou que "eram idôneos". Perguntei com quem nos Estados Unidos ele conferiu a informação. Resposta: com interlocutores da própria Davati.  

"Meu assunto não tem nada a ver com vacina. Somos inclusive a favor do tratamento preventivo. Eu fiquei seguro porque a informação que eu recebi foi de uma pessoa idônea dos Estados Unidos, um consultor da Davati. Eu conferi as informações que eu tinha no momento. Estava absolutamente tranquilo de que não havia nenhum problema nessa relação", disse o coronel.  

Há divergências entre o relato feito pelo representante da Davati à CPI e as informações que o coronel Helcio deu à coluna. O coronel afirma que foi procurado pela Davati dois dias antes da reunião no ministério, e só então se ofereceu para levá-los ao encontro. 

Mas, a senadores da CPI, os representantes da Davati afirmaram ter recebido um contato de Helcio no final de janeiro, junto com o reverendo Amilton, se oferecendo para facilitar o acesso do grupo ao Ministério da Saúde.

O executivo indicado pela Beep para prestar informações também afirmou que Helcio foi indicado por pessoas do mercado de laboratórios que o descreveram como alguém que abria portas no governo. 

"As portas já estavam abertas, porque já tinha uma audiência marcada", diz Helcio Almeida. De fato, estavam. Mas a conversa não evoluiu.

Segundo Dominghetti, "houve uma troca de olhares, ele  (Elcio) abaixou a cabeça, simplesmente saiu e pediu para que dois estagiários pegassem os nossos nomes, que entrariam em contato, que ele ia validar a proposta da Davati."

Apesar de ter feito a intermediação da reunião, o coronel Helcio Almeida diz que não há relação comercial entre ele e a Davati. Segundo ele, o único objetivo era ajudar o ministério a conseguir vacinas.  "Eu fiz o que pude, por altruísmo, naquele momento."

Além do contato próximo com os militares, o coronel Helcio Almeida tinha como cartão de visitas o próprio Instituto Força Brasil.

Segundo o coronel, embora tenha sido formada só em setembro do ano passado, a  entidade vinha sendo planejada junto  com Otavio Fakhoury e outros sócios desde 2018, quando se juntaram para militar a favor de Jair Bolsonaro. 

Seu primeiro projeto era desenvolver um aplicativo "de teleconsulta e diagnóstico imediato pelo médico" para oferecer "tratamento preventivo" aos primeiros sintomas de Covid.

Algo semelhante ao TrateCov, que foi depois criado pelo Ministério da Saúde. Assim como no caso das vacinas, não foi adiante. 

Malu Gaspar para O GLOBO, em 07/07/2021 • 04:30

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