segunda-feira, 7 de junho de 2021

Denis Lerrer Rosenfield: A ema, o policial e o intendente

Eles simbolizam o governo Bolsonaro: a política anticientífica, o arbítrio e a anarquia

Jair Bolsonaro segura uma caixa de cloroquina do lado de fora do Palácio da Alvorada - REUTERS/Adriano Machado
Jair Bolsonaro segura uma caixa de cloroquina do lado de fora do Palácio da Alvorada
Imagem: REUTERS/Adriano Machado

A ema foi sábia. Ao ver o presidente com a caixinha de cloroquina, dele fugiu, mostrando ter melhor discernimento do que boa parte dos brasileiros, que aderem a poções mágicas. Deve ter ela pensado: será que perdeu o juízo? Perguntou-se, mesmo, pelo tipo de humano que ele representa ao negar a ciência, pregar a morte e impor a desordem sanitária. No reino dito animal, isso não seria possível, quanto mais não seja, porque sempre procuram instintivamente a própria sobrevivência. Ora, se os humanos foram agraciados com a razão, eles obtiveram o uso da liberdade de escolha para, em princípio, melhor organizarem suas relações, progredindo no conhecimento. Vacinas seriam um dos melhores exemplos disso.

Contudo uma porção dos humanos, continuava ela a pensar, prefere empregar a liberdade de escolha para o mal e o ódio ao próximo. Em vez da escolha pela vida, optam pela morte. A ema, em seu bom senso, preferiu afastar-se, correndo, para ter maior segurança. Será que os humanos brasileiros não deveriam fazer a mesma coisa? Em todo caso, impeachment e eleições foram instrumentos criados constitucionalmente por eles para darem conta de tais anormalidades.

O policial que ameaçou prender um cidadão por se negar a tirar de seu carro um adesivo antibolsonarista expôs o arbítrio da extrema direita em ação. Um indivíduo fardado se acredita dotado da missão de aplicar por ele mesmo a Lei de Segurança Nacional, como se fosse a encarnação de um tribunal, do Poder Judiciário e do Ministério Público. Quando isso chega a acontecer, é porque todos os limites estão sendo ultrapassados, o que significa dizer que doravante reinarão a desordem e políticas liberticidas. Qualquer pessoa passará a ficar temerosa de expor suas opiniões, expressar seus pensamentos e criticar o presidente e suas políticas. É o medo pairando sobre todos. Eis por que a ideologia bolsonarista tem como norte de suas ações o domínio das Polícias Militares, Civis e Federal. Elas passariam a ser uma força auxiliar do grupo encastelado no poder, aplicando seus próprios objetivos, na mais completa violação da lei e da Constituição.

A ema deve ainda ter se perguntado: será que os outros humanos vão contemporizar com isso? Se o fizerem, serão insensatos, correndo para o abismo.

Entretanto, a sábia ema ainda não tinha visto tudo, o que a deixa ainda mais espantada, perplexa. O presidente escolheu para ministro da Saúde um general com a missão de aplicar a cloroquina e outras drogas inúteis, embaladas num tal de “tratamento precoce”. Pensou em seus antecessores medievais que acreditavam em toda espécie de barbaridade médica.

Felizmente, naquele então, e mesmo hoje, os animais não humanos não compartilhavam de tais superstições e fórmulas absurdas. Isso se tornou ainda mais ininteligível pelo fato de os humanos terem entrado na rota do progresso no que diz respeito à ciência e ao conhecimento, com descobertas incríveis a partir de experiências criteriosas em empresas, centros de pesquisa e universidades. Surgem, porém, agora os representantes do atraso de antanho, lutando com todas suas forças contra a ciência e seus avanços. Uma coisa é a superstição anterior à ciência, outra a posterior, que pretende combatê-la. Até onde os brasileiros humanos suportarão tal forma de inumanidade?

E como o horrível parece não ter fim, o intendente nomeado para o Ministério da Saúde, ao contrário de seus antecessores, que agiram dignamente, mostrou-se totalmente servil ao presidente, acompanhando-o na política da morte e desonrando a farda que ainda usa por ser general da ativa. Numa mostra típica de ausência de pensamento, subordinando-se, proferiu uma frase memorável: “Um manda, outro obedece”. Escaparam-lhe pensamentos básicos, como o da desobediência devida quando a ordem se afasta de valores e princípios. Ordens arbitrárias não são, nem devem, ser seguidas. Trata-se de uma conquista civilizatória, válida para a vida civil e a militar. Oxigênio faltando em hospitais, pessoas morrendo sufocadas, e ainda lhes era recomendado o uso da cloroquina! A ema achou melhor esconder sua cabeça.

Coroando todo o processo, o general seguiu orientação presidencial para desrespeitar o regulamento militar ao comparecer a uma manifestação política, o que é vedado. A consequência não poderia ser outra senão a punição. Ora, sob pressão do presidente, o comandante do Exército optou por nenhuma punição, apagando o corrido, fazendo do feito uma desfeita para sua própria instituição. Escancarou a porta para a anarquia militar.

Os fundadores da República inscreveram na Bandeira o lema positivista “ordem e progresso”. Comte entendia que nenhum progresso, fruto da ciência, poderia realizar-se sem mudanças ordenadas, na ausência do que prevaleceriam a desordem, a ruptura e a violência. No que devem estar pensando os fundadores militares da República?

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 07.06.2021.

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