sábado, 19 de junho de 2021

Com 500 mil mortes pela covid, Brasil deve ir além da vacinação em massa para frear vírus

Isolamento social, testagem massiva e campanhas de conscientização são outras formas de combater a pandemia que vêm sido defendidas por especialistas há mais de um ano      

Sepultamento no cemitério da Vila Formosa, em São Paulo.WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Sobreviventes da pandemia

Com vacinação lenta, baixa adesão às medidas de isolamento social e sem políticas nacionais de testagem em massa, o Brasil atinge neste sábado, 19, a marca de 500.022 mortes pela covid-19. O País viu a pandemia crescer exponencialmente e, apenas neste ano, registrou o maior número de mortes por covid entre todas as nações do mundo. Apesar de alguns governadores projetarem vacinar toda a população com pelo menos uma dose até outubro, a incerteza na entrega de vacinas e o surgimento de novas variantes tornam o futuro da epidemia incerto no País.

O epidemiologista e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, afirma que pelo menos 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas se o governo federal tivesse adotado medidas para controlar a pandemia. Para Hallal, a gestão Jair Bolsonaro errou ao atrasar a compra de vacinas, desestimular o uso de máscaras e vacinação, não implementar uma política rigorosa de isolamento social e distribuir remédios ineficazes para a covid-19, como a cloroquina, que geraram uma falsa sensação de segurança em muitos brasileiros.


O distanciamento entre as pessoas é um dos pilares do controle do coronavírus, mas o Brasil nunca conseguiu, de fato, implementar essa medida. A maioria dos governadores e prefeitos determinou algumas restrições nos momentos mais críticos da pandemia — especialmente no início da emergência sanitária —, mas o índice de isolamento social nunca ficou no patamar ideal por tempo suficiente.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), porém, vem criticando o isolamento social repetidamente desde o início da pandemia. Um levantamento feito pelo Estadão mostra que, entre março de 2020 e março deste ano, Bolsonaro promoveu pelo menos 41 eventos com aglomerações. Em maio deste ano, quando o País já acumulava mais de 430 mil vítimas da covid, o presidente chamou de “idiotas” as pessoas que ainda seguiam as recomendações dos especialistas e mantinham o isolamento.

Para Marcel Ribeiro-Dantas, pesquisador em bioinformática no Instituto Currie (França) e integrante da isola.ai, iniciativa que conduz estudos relacionados ao distanciamento social na América Latina durante a pandemia, as medidas fracassaram por falta de fiscalização e de alinhamento no discurso. “Não adianta o prefeito falar uma coisa e a oposição dizer outra. Falta uma voz uníssona", defende.

“O Brasil precisa de três semanas de um lockdown rigoroso. Isso é muito necessário, mas sabemos que também é muito difícil"

Joziana Barçante, coordenadora do Núcleo de Pesquisa Biomédica e professora do Departamento de Medicina da Universidade Federal de Lavras (UFLA), aponta que as medidas de isolamento implementadas no Brasil são muito frágeis. “Se você faz um lockdown com menos de 15 dias, você está desgastando a população e não tem um efeito prático”, diz.

Dados do Google sobre mobilidade mostram que o pico de isolamento no Brasil aconteceu no início da pandemia. Entre o fim de março e o fim de maio de 2020, a porcentagem de pessoas que deixaram de se deslocar para o trabalho variou, na média, entre 42% e 25%.

Quando a segunda onda começou, em março deste ano, o deslocamento de brasileiros para o local de trabalho estava, em média, apenas 4% abaixo do esperado. Com o aumento de mortes, o isolamento aumentou um pouco, chegando a cerca de 20% no início de abril, impulsionado pelos feriados de Sexta-Feira Santa e Páscoa. Os números voltaram ao patamar anterior na metade daquele mês.

Para obter a taxa de isolamento, o Google usa como base o movimento registrado entre janeiro e fevereiro de 2020, período anterior à pandemia. A porcentagem de pessoas que deixaram de se deslocar varia em relação a esse valor-base. O Estadão compilou esses números e calculou a média móvel.

Em relação ao transporte público, o isolamento foi um pouco maior. No fim de março de 2020, 61% das pessoas deixaram de se movimentar por estações de trem, metrô e pontos de ônibus. Com o passar dos meses, o movimento foi voltando. No início de agosto, o movimento estava 30% abaixo do normal e em novembro, quase no mesmo patamar pré-pandemia.

Durante a segunda onda, a circulação de pessoas no transporte público caiu um pouco, mas se manteve mais intensa do que na primeira onda. Entre março e abril deste ano, a queda no movimento variou entre 25% e 40%. O ponto mais baixo coincide com os feriados de Sexta-Feira Santa e Páscoa.

O médico José Cherem, integrante do Núcleo de Pesquisa Biomédica da Universidade Federal de Lavras (UFLA), diz que a falta de apoio governamental é um dos principais entraves ao isolamento. “Falta um subsídio financeiro. As pessoas também estão enfrentando dificuldades econômicas, insegurança alimentar e desemprego”, aponta.

Embora em abril de 2020 o governo federal tenha criado um auxílio emergencial a trabalhadores informais, autônomos, desempregados e microempreendedores individuais, extinto em dezembro do ano passado, e adotado outras medidas, como a aprovação da redução de jornada e programas para auxiliar empresas na pandemia, as ações foram consideradas insuficientes por muitos especialistas para conter a crise.

Os especialistas ressaltam ainda que o Brasil deveria ter apostado em uma política de testagem em massa. “O be-a-bá de uma doença infecciosa como a covid-19 é a testagem, e o Brasil não testou a população”, diz Pedro Hallal.

Em geral, o Sistema Único de Saúde (SUS) só oferece teste de coronavírus a quem manifesta sintomas claros da doença. Ainda assim, o resultado costuma demorar bastante para sair. Países como Reino Unido e Alemanha oferecem testes gratuitos semanais a todos os seus habitantes, com sintomas ou não.

Joziana fala que os governos locais podem fazer parcerias com universidades para ampliar a capacidade de testagem. Outra estratégia que deve ajudar no curto prazo é a testagem ambiental, que consiste em verificar a presença do coronavírus em locais como maçaneta e corrimão. Se der positivo, não significa que o objeto é fonte de contaminação, mas que pessoas infectadas pela covid circulam naquele ambiente e que o uso de máscaras e o distanciamento são ainda mais necessários.

A testagem ambiental será muito importante no retorno às aulas. O aluno vai tirar a máscara para comer, por exemplo, e precisa saber se aquele ambiente está contaminado

O uso de máscaras com maior capacidade de filtragem, como as PFF2, também é recomendado. Apesar de ser uma das formas mais fáceis e acessíveis de se proteger do coronavírus, a medida é constantemente ignorada pelo presidente. Um levantamento feito pelo Estadão no início do mês mostrou que Bolsonaro não usou o equipamento de proteção em 73% dos eventos que participou desde o começo da pandemia.

Além disso, o Brasil falha na vigilância genômica. O sequenciamento de amostras do coronavírus colhidas no País é importante para se ter controle sobre quais variantes do vírus estão em circulação.

“O Brasil precisa começar a fazer o sequenciamento para enfrentar a pandemia com informações mais criteriosas”, defende José Cherem. O médico fala que, quando o país sabe com quais cepas está lidando, consegue calcular o impacto que o vírus terá sobre o sistema de saúde e tem tempo de prepará-lo com mais leitos e mais remédios, por exemplo.

VACINAÇÃO EM MASSA É A SOLUÇÃO A MÉDIO E LONGO PRAZO

Os especialistas são reticentes em cravar o futuro da epidemia de covid-19 no Brasil, mas concordam que dificilmente o País adotará uma política de isolamento social ou de testagem eficientes a ponto de controlar a disseminação do coronavírus. Sobra, portanto, a vacinação.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou cinco vacinas contra a covid-19. O imunizante da AstraZeneca e o da Pfizer têm registro definitivo, enquanto as vacinas Coronavac, Covishield e da Janssen foram aprovadas para uso emergencial. A Covaxin e a Sputnik V têm autorização para importação sob condições controladas.

O País comprou, ao todo, 559,6 milhões de doses das cinco vacinas aprovadas pela Anvisa. O cálculo é da plataforma apolinar.io/vacinas, mantida pelo desenvolvedor Apolinário Passos com base em informações do Ministério da Saúde. Os imunizantes começaram a chegar ao Brasil em janeiro deste ano e a previsão é de que todas as doses sejam entregues até dezembro.

Até fechar os primeiros contratos para aquisição das vacinas, contudo, o governo federal negou ou postergou propostas de fabricantes diversas vezes. O vice-presidente da CPI da Covid no Senado, Randolfe Rodrigues, afirmou que o governo federal ignorou 53 e-mails enviados pela Pfizer referentes à compra de vacinas.

Bolsonaro também divulgou uma série de desinformações sobre os imunizantes. Em dezembro do ano passado, por exemplo, o presidente disse que a vacina da Pfizer poderia transformar uma pessoa em “jacaré”. A Coronavac também foi alvo de críticas. No dia 16 de junho, Bolsonaro mentiu ao dizer que a vacina fabricada pelo Instituto Butantan não tem comprovação científica.

17/03/2020 – Primeira morte.

30/07/2020 – Instituto Butantan envia ao governo federal um ofício oferecendo 60 milhões de doses da vacina Coronavac com previsão de entrega para o quarto trimestre de 2020.

14/08/2020 – A farmacêutica Pfizer faz as primeiras ofertas ao Brasil de sua vacina em desenvolvimento. A proposta contempla a entrega de 500 mil doses ainda em 2020.

18/08/2020 – Em novo ofício ao governo federal, o Butantan propõe a entrega de 45 milhões de doses em dezembro de 2020 e mais 15 milhões no primeiro trimestre de 2021.

No mesmo dia, a Pfizer manda uma nova proposta ao Brasil e se compromete a entregar 1,5 milhão de doses ainda em 2020.

26/08/2020 – A Pfizer reitera as ofertas ao Brasil e antecipa o cronograma de entregas. Na nova proposta, o País receberia 4,5 milhões de doses entre dezembro e março.

07/10/2020 – O Butantan faz a terceira oferta de doses da Coronavac. Desta vez, propõe a entrega de 15 milhões de doses em dezembro de 2020 e outras 85 milhões até maio de 2021.

11/11/2020 – A Pfizer envia sua sétima proposta ao governo federal, que também não foi aceita. Oferece as mesmas 70 milhões de doses a serem entregues ao longo de 2021.

24/11/2020 – O Brasil recebe mais uma oferta da Pfizer. O número de doses e o cronograma de entrega são os mesmos da proposta anterior, mas há algumas alterações no contrato.

07/01/2021 – O governo federal assina o primeiro contrato com o Butantan para o fornecimento da Coronavac. O cronograma prevê a entrega de 46 milhões de doses até 30 de abril.

17/01/2021 – Anvisa aprova a Coronavac e o Brasil recebe 8,7 milhões de doses em janeiro. Se o País tivesse aceitado a oferta inicial do Butantan, teria 60 milhões de doses.

15/02/2021 – A Pfizer envia sua nona proposta ao Brasil. A oferta contempla a entrega de 100 milhões de doses da vacina ao longo de 2021.

15/02/2021– Um novo contrato para a compra de 56 milhões de doses da Coronavac é firmado entre o governo federal e o Butantan, totalizando 100 milhões de doses da vacina.

23/02/2021 – Anvisa aprova a vacina da Pfizer. Se o País tivesse aceitado as ofertas anteriores, poderia contar com 4,5 milhões de doses da vacina ainda no 1º trimestre do ano.

08/03/2021 – Depois de recusar nove propostas, o Brasil aceita a 10ª oferta feita pela Pfizer. As primeiras remessas de um contrato de 100 milhões de doses chegam em abril.

19/06/2021 – 500.022 mortes

Para conseguir frear o vírus por meio da vacina o mais breve possível, o Brasil precisa aplicar 1,5 milhão de doses todos os dias. A estimativa é de Pedro Hallal. “É preciso vacinar 70% da população total com as duas doses para que o vírus perca sua força”, projeta.

Isso significa imunizar cerca de 150 milhões de brasileiros, o equivalente a toda a população acima de 20 anos. Para alcançar a meta, é preciso aplicar 300 milhões de doses, levando em conta o esquema de duas doses. O Ministério da Saúde considera que 5% das doses são perdidas no processo logístico. Portanto, 315 milhões de doses são necessárias.

Até o momento, foram aplicadas 80,2 milhões de doses. Segundo a pasta da Saúde, 56,5 milhões de pessoas receberam a primeira dose e, destas, 23,8 milhões tomaram a segunda.

Para aplicar as 220 milhões de doses restantes a um ritmo de 1,5 milhão de doses por dia, incluindo feriados e finais de semana, é preciso de aproximadamente cinco meses. O Brasil tem as doses necessárias contratadas, mas precisa torcer para que as entregas não atrasem. Desde o início da campanha de vacinação, o Ministério da Saúde já reduziu diversas vezes a previsão de entrega de doses. Assim, no melhor dos cenários, o Brasil conseguiria controlar o vírus através da vacinação na metade de novembro.

Até o início do mês, o Brasil estava aplicando cerca de 750 mil vacinas por dia. Nos últimos dias, a distribuição do insumo pelo governo federal ficou mais estável e o volume de doses aplicadas diariamente está entre 900 mil e um milhão. As informações são do consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL em parceria com 27 secretarias estaduais de Saúde.

Agora, o desafio é ampliar a capacidade de vacinação para alcançar a meta de 1,5 milhão de doses diárias. “Precisamos ampliar os locais de vacinação e usar farmácias, por exemplo, para atingir pessoas de qualquer região. Também temos que aumentar o horário para ter vacinação até as 21h”, diz Cherem. A maioria das cidades vacina em horário comercial e poucas oferecem vacinação noturna.

“A gente consegue aumentar o ritmo de vacinação. Nosso sistema de imunização é fantástico, temos uma cobertura vacinal muito boa. O Brasil é referência nisso. Os municípios têm estrutura. O que falta é a vacina”, complementa Joziana.

Mantendo o ritmo atual de um milhão de doses aplicadas diariamente, o País vai levar sete meses para concluir a imunização de 70% da população. Até lá, o Brasil estará sujeito a novas ondas da covid-19 e a novas variantes, que podem transformar o cenário e exigir adaptação de vacinas.

Texto: Mariana Hallal, O Estado de S. Paulo, em 19 de junho de 2021 | 14h15

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