quinta-feira, 13 de maio de 2021

Concedam a volúpia aos humildes

Vocações comerciais perdulárias perambulam pela noite escura dos que sofrem, analisa Paulo Delgado neste artigo publicado hoje n'O Estado de São Paulo.

Quem neste mundo vai de livre e espontânea vontade para o hospício? Se a maternidade fosse assim, crianças não nasceriam. Quando o cheiro de guardado ameaça aniquilar a razão, melhor apelar para a bondade. Abismo atrai abismo.

O tratamento da pessoa com transtorno mental só deveria atrair para o seu meio profissionais que fossem relíquia, capazes de entender que o paciente não é um infrator que cede seu direito à medicina. Profissionais capazes de ajustar seu conhecimento à compreensão do sentimento do outro e à humanidade física e espiritual do enfermo. O cuidado tem o mesmo mecanismo da oração.

É muito desagradável experimentar o poder na área de saúde de alguém desumano, despreparado para conhecer pessoas. A medicina costuma ser instrumento inconsciente de valores institucionalizados que no nível consciente certamente rejeitaria. A principal consequência dessa alienação produz o encontro de dois estigmas mortais para o sofrimento mental: a encruzilhada que é ver seus sintomas assustadores para muitos se encontrarem com o aparato hospitalar fechado para onde continua a ser mandado.

O que se vê nessas comunidades terapêuticas não é mais tratamento, é desumanidade, perda de consciência do dever de saber que o sofrimento mental ultrapassa os interesses da saúde.

Todos os que não querem resolver problemas causados pelo transtorno mental estendem as mãos para pegar dos pacientes um pedaço. Os que podem, e encontram uma rede social de suporte e apoio, conseguem melhor dar conta de ser cuidados fora do modelo manicomial. Mas se capturados como mercadoria econômica, mesmo pagando caro para se tratar, são também discriminados. Os abandonados são outro tipo de mercadoria, política e econômica, negociados por partidos e igrejas em troca de poder parlamentar. Vocações comerciais perdulárias perambulam pela noite escura dos que sofrem.

Quanto diploma miserável na sua formação, mesquinho no seu poder. A base científica da reforma psiquiátrica costuma sofrer crítica de interessados na economia do paciente. Críticas de base moral que não se ajustam ao debate aberto e direito. Pois desde a origem da discussão do novo modelo de tratamento e a evolução das tecnologias do cuidado persiste oculto um incômodo para alguns técnicos, um desconforto diante da evolução dos direitos humanos. Uma psicoterapia de ferro que não convive bem com equipes multidisciplinares vendo a abordagem psicossocial do problema ameaça ao seu poder. Fecha os olhos para a violação de direitos, interage mais com o remédio do que a pessoa, tem dificuldade de aceitar a cidadania do doente.

Contradição que se escancara quando pacientes poderosos exigem dos profissionais de saúde um tratamento humano. Nesse caso admitem bem o tratamento aberto dos que podem pagar clínicas de repouso onde não há impiedade, intoxicação ou estigma. Uma classe de doentes influentes, que não corresponde ao padrão do paciente abandonado e desprotegido, mas serve de prova de que a reforma psiquiátrica funciona para quem exige a lei ao seu lado.

A posição estratégica de donos de hospitais e clínicas de saúde foi migrar do hospital psiquiátrico para comunidades terapêuticas, estendendo o estigma sobre a doença mental para os usuários de álcool e outras drogas. O AA, ainda que um tratamento moral, cuida por adesão voluntária e não isola quem recorre a ele. A reforma encontra exceções em Estados e municípios onde bons gestores mantêm o modelo multidisciplinar, descentralizado e universal de atenção por meio da rede de Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Iniciativa pioneira do governador Franco Montoro, que implantou o primeiro do Brasil em mansão na Rua Itapeva, no centro de São Paulo.

Não deveria haver mais espaço para agravar o surto em decisão fechada de consultório. Internando desprotegidos em sistema desterritorializado por tempo definido por interesses contábeis. Sem força para revogar a lei, decidiram sabotá-la com corte de verbas públicas e interesses econômicos devastadoramente imorais.

O desinteresse do governo pelos que sofrem é assustador. Leiam Schiller, ouçam Beethoven. Ó mercenários da dor e sua psico-história do poder! Concedam sua volúpia aos humildes. Se o rigor do costume separou, o iluminismo da ciência não o sustenta. Não se aceita mais olhar somente a metade das pessoas. Somos um, doentes ou não, somos nós.

Há 20 anos, por decisão do presidente Fernando Henrique e posterior regulamentação do presidente Lula, a Lei 10.2016/2001 determinou o tratamento aberto dos doentes mentais brasileiros. Não foi uma lei inventada por mim quando deputado, foi uma lei descoberta pioneiramente pela dra. Nise da Silveira.

Sem a gentileza amistosa de quem admira o paciente o remédio se torna insípido e o tratamento, imbecil. E quando prende o sofredor no entorpecimento é impossível livrar o cuidador do sofrimento. A regra de ouro de todas as religiões é também regra da boa medicina: “Tudo quanto quiserdes que vos faça alguém, assim fazei vós a ela”. A Lei 10.2016 continua uma súmula magnífica do louco cidadão.

Paulo Delgado, o autor deste artigo, é sociólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 13.05.2021 

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