terça-feira, 21 de abril de 2020

Gabeira, sobre os impulsos de Bolsonaro: “eu não me abalo muito não”

“Quando realmente parece um clima de ditadura, quando na porta do Exército eu vejo o presidente falando de fechar o Congresso, eu não me abalo muito não, porque na verdade, eu vi o curso do tempo, eu vi as transformações que o Brasil viveu, que o mundo viveu e não tenho medo da história se repetir”.

“Evidentemente, se Bolsonaro pudesse fechar o Congresso e fechar o Supremo, ele fecharia. Mas eu sinto que o espírito atual dentro do Exército é de manter a democracia, de se afastar desse debate político e de servir ao Estado e não ao governo, na linha do general Santos Cruz. À parte, se as Forças Armadas fossem entrar em um golpe, elas entrariam de cima para baixo, e não comandadas por um capitão”.

“O impeachment coloca pra gente aquela questão do Garrincha: será que combinamos com os russos? Será que o Parlamento existe? Será que temos força política no Parlamento para isso? Tudo indica que não, se não já estaria acontecendo algo”.

“O que é necessário é acentuar o isolamento institucional do Bolsonaro. Porque ele ainda continua com o apoio dos caminhoneiros, da polícia, dos evangélicos. Ele continua com uma base bem sólida dele”.

”Mandetta percebeu na oposição do Bolsonaro uma oportunidade de crescer, então acho que ele utilizou um pouco o Bolsonaro para chegar em um patamar de importância política no país, que a simples luta anônima do combate à pandemia no Brasil, não o levaria”.

“Há vários métodos para usar a imprensa a seu favor, um deles é seduzindo-a e o outro é chocar. E Bolsonaro percebeu que esse método de chocar a imprensa poderia fazer ele avançar em termos eleitorais”.

Seja como guerrilheiro, exilado, militante dos direitos humanos, ambientalista, deputado, jornalista ou escritor, Fernando Gabeira se dedica à vida política brasileira há praticamente meio século.

Gabeira foi filiado ao PT até 2003, quando se deu um rompimento rumoroso com Lula e seus partidários. Foi também colega de Jair Bolsonaro por 16 anos, na Câmara dos Deputados.

Ele, autor do clássico “O que é isso, companheiro?”, que entre tantas revolucionou os costumes com a icônica tanga de crochê rosa, no começo dos 80, e que já recebeu um ‘abraço hetero’ de Bolsonaro, com o ex-capitão dizendo-se apaixonado, na TV.

A hora que eu vi o vídeo do Bolsonaro eu logo pensei em falar com você… sei lá, por um momento senti um arrepio de pavor golpista, e em um tempo cada vez mais agudo da pandemia…

O Bolsonaro fez o que fez e começou a dar alguns passos atrás ontem.

Era uma manifestação pedindo a intervenção militar, o fechamento do Congresso e o fechamento do Supremo. E ele foi.

E ontem apareceu dizendo que a Constituição “sou eu”.  Para cada plateia, um discurso.

Eu sou muito acostumado com líderes populistas, tanto de direita quanto de esquerda, e eles têm muita capacidade de dizer uma coisa agora e outra depois. Eles não têm nenhum compromisso necessariamente com a coerência.

Eu me lembro que na época do Lula, quando eu era muito crítico ao Lula, pensei em dar um “habeas língua” ao Lula porque não dá, ele vai dizer uma coisa e depois outra.

E o Bolsonaro tem muito disso. É natural.

Mas Bolsonaro e Lula são parecidos, em termos de populismo?

As características do populismo de um modo geral são parecidas. Estilos e personalidades são diferentes. O populismo de direita tem de cultivar o extremo e se distanciar dele no discurso mais amplo. Da mesma forma o de esquerda convive com teses de luta armada ou mesmo ações ilegais mas tem que se distanciar disso quando fala para todos. Outra característica mais comum aos populistas e dizer para cada auditório exatamente o que ele quer ouvir.

Essa fala do Bolsonaro foi uma provocação, não?

No caso foi uma provocação. Ele sabe que ali é Comando do Exército, todo mundo sabe. É um símbolo, e ele foi diante daquele símbolo do poder militar para confraternizar com pessoas que pediam a intervenção militar. Eu acho que isso é uma transgressão à lei. Essa transgressão à lei tem que ser punida ou avaliada de uma forma sensata, tranquila, porque o Bolsonaro em uma provocação, ele quer que você tenha uma reação emocional.

Aliás na política toda vez que te provocam com muita intensidade a coisa mais inteligente a se fazer é parar e pensar, “por que estão me provocando tão intensamente? O que será que estão tentando provocar em mim de reação?”.

E impeachment?

Há muita gente falando de impeachment, que isso é necessário. Mas o impeachment coloca pra gente aquela questão do Garrincha: será que combinamos com os russos? Será que o Parlamento existe? Será que temos força política no Parlamento para isso? Tudo indica que não, se não já estaria acontecendo algo.

O que eu acho que é necessário, talvez, é acentuar mais ainda o isolamento dele, o isolamento institucional.

Engraçado falares em isolamento, justamente do Bolsonaro.

Porque ele ainda continua com o apoio dos caminhoneiros, da polícia, dos evangélicos, ele continua com uma base bem sólida dele. Agora, no campo da política ele está bastante isolado.

O vídeo pode ser sinal de alguma coisa? Você acha que ele gostaria de dar um golpe?

Evidentemente, se ele pudesse fechar o Congresso e fechar o Supremo, ele fecharia. Todo esse discurso pseudodemocrático que ele faz é na verdade uma influência dos militares, que ainda estão em torno dele, e falam para ele que não dá para romper com todas as pontes.

Onde estão os militares nessa história?

Eu acho que existem os militares que estão com ele e de certa maneira estão tentando apaziguar, e existe os militares que estão em atividade, nos quartéis, que parecem não querer nenhum tipo de intervenção militar nesse momento.

Não tem militar que apoiaria um golpe?

Pelo que eu conheço dos militares hoje… eu trabalhei cobrindo a distribuição de água no Nordeste, a fronteira da Venezuela na operação “Acolhida”, na Amazônia também, e vi a maneira como eles se organizam. Eu sinto que o espírito atual dentro do Exército é de manter a democracia, de se afastar desse debate político e de servir ao Estado e não ao governo, na linha do general Santos Cruz.

É o predominante?

É. Agora, existe o núcleo que está em torno do Bolsonaro, e desse núcleo eu conheci dois. O Augusto Heleno, que conheci no Haiti e  depois em uma viagem na Amazônia para conhecer os Yanomamis. E o outro é o General Walter Braga, que hoje é Chefe da Casa Civil, que eu conheci na época em que dei apoio à intervenção militar no Rio.

No final fiz uma longa entrevista com ele, sobre seu trabalho e percebi que é um homem com pelo menos uma grande capacidade de organização. Ele organizou muito o trabalho da polícia no Rio, o problema de compras governamentais – aparentemente é um cara voltado para a eficácia da Nação.

E o Heleno?

O Heleno é mais flexível às posições do Bolsonaro, tem se mostrado mais próximo do Bolsonaro. Ele me pareceu uma pessoa muito eficaz, poliglota, estudiosa e capaz.

Eu senti que ele tinha sobre os índios uma visão mais integracionista. Com o tempo ele foi tomando posições que ele não tinha antes, mais alinhadas ao radicalismo bolsonarista. Então a expectativa que se tinha de o Heleno ser uma influência moderadora não se concretizou porque ele foi absorvido pela influência bolsonarista.

Então não tem gente no Exército que pensa na retomada do poder. É um movimento que o Bolsonaro está criando sem existir?

A impressão que eu tenho é essa. Na história militar, vai ser muito difícil para um capitão determinar o rumo dos generais. O contrário é muito mais possível. É uma instituição muito hierárquica, e alguns generais já se manifestaram de maneira pejorativa sobre o Bolsonaro, ele é visto como um mal militar.

Você não tem receio de que o Bolsonaro tente fazer o que o Órban fez na Hungria? Ele não tem condições?

Ele não tem condições. Primeiro porque ele não conseguiria o Congresso para isso e em segundo lugar, que se as Forças Armadas fossem entrar em um golpe, elas entrariam de cima para baixo, e não comandadas por um capitão. Como aconteceu na Venezuela. Para isso Bolsonaro teria que cooptar muitos generais.

Fora isso, tem muita gente no Exército que sabe a condição do mundo. Uma retomada de poder militar no mundo como ele se encontra hoje, é bastante difícil.

Quando você era colega dele no Congresso, você tinha ideia de que de ia ser, entre aspas, essa bagaceira?

Olha, as pessoas pioram também.

Na verdade, o Bolsonaro tinha algumas posições muito ruins, mas as essas posições ruins não chegavam a afetar o curso dos acontecimentos. Ele era aliado do Severino Cavalcante, apresentava resistência em algumas propostas na Comissão de Direitos Humanos e na Comissão de Relações Exteriores.

Mas ele a partir de um determinado momento aprendeu um método de usar a imprensa a seu favor. Há vários métodos para usar a imprensa a seu favor, um deles é seduzindo-a e o outro é chocar. E ele percebeu que esse método de chocar a imprensa poderia fazer ele avançar em termos eleitorais.

Estamos em uma crise de pandemia gigantesca e viver isso à parte é muito ruim.

Sim, chega a ser desanimador, porque a situação é muito difícil, independente do Bolsonaro. Mesmo se o presidente fosse uma pessoa excelente a situação já seria dificilíssima. Como sairemos dessa crise, que foi determinada pelo vírus. E vai ser essa relação com o vírus que vai determinar a saída dela; se nós vamos ter um remédio, se nós vamos ter uma vacina, se nós não vamos ter nem remédio nem vacina, se nós vamos levar outros golpes, se vamos ter isolamento intermitentes, se vamos muitas ter muitas vidas abreviadas com isso.

A troca do ministro da Saúde, o que você achou?

Eu acho que o Mandetta começou a trabalhar de uma forma correta, primeiro porque ele afirmou que ia seguir os preceitos científicos e ao seguir esses preceitos ele tomou a posição correta, começou a ouvir infectologistas, a Organização Mundial de Saúde, e isso era o esperado no Brasil, que você tivesse uma posição que fosse semelhante à posição mundial.

Outro papel importante do Mandetta foi que ao perceber a a crise e a importância da função do Estado nela, ele se voltou à estrutura do SUS. E ele não era entusiasta do SUS.

Agora, o Mandetta é também um quadro político, ao longo do tempo em que ele trabalhava e errava e acertava, ele estava tentando capitalizar o trabalho dele. Mandetta percebeu na oposição do Bolsonaro uma oportunidade de crescer, então acho que ele utilizou um pouco o Bolsonaro para chegar em um patamar de importância política no país, que a simples luta anônima do combate à pandemia no Brasil, não o levaria.

O teu passado, como ele te toca com tudo isso?

Quando realmente parece um clima de ditadura, quando na porta do Exército eu vejo o presidente falando de fechar o Congresso, eu não me abalo muito não, porque na verdade, eu vi o curso do tempo, eu vi as transformações que o Brasil viveu, que o mundo viveu e não tenho medo da história se repetir. Para mim a história não se repete, é um contrassenso.

Evidentemente um presidente falando isso, enfraquece a democracia e coloca o Brasil em uma situação ruim, mas eu não tenho medo de surgir uma ditadura no Brasil, porque eu não só faço uma análise do que acontece no país como também faço uma análise da situação internacional. E eu acho que as condições internacionais são muito difíceis para uma ditadura nesse momento. Nenhum país vai querer se isolar nesse momento tão frágil.

Morris Kachani
Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 21.04.20

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