terça-feira, 30 de julho de 2019

Talvez sem querer, Bolsonaro conseguiu!

Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, o Presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL) pode ter incorrido em crime ao comentar o desaparecimento de seu pai, o estudante e militante Fernando Santa Cruz (1948-1974), durante o período da ditadura militar. Em entrevista à BBC News Brasil, Felipe diz que há algumas hipóteses nas quais Bolsonaro poderá ter cometido crime, especialmente se tiver dado uma declaração falsa sobre o assunto.

No Brasil, é crime fazer a apologia (defesa) da tortura, conforme o artigo 287 do Código Penal.

"Aí há uma lista de possíveis crimes que ele pode estar incorrendo sim. (A começar pela) falsidade, a dar declaração falsa, provavelmente num arroubo verbal", diz Felipe Santa Cruz.

Bolsonaro estava comentando um processo relacionado a Adélio Bispo dos Santos, que desferiu uma facada no abdômen do presidente da República durante um evento em Juiz de Fora (MG), durante a campanha eleitoral de 2018. A crítica à OAB se refere a um pedido feito à Justiça contra a autorização que um juiz havia dado para quebra do sigilo telefônico do advogado de Adélio - pedido que foi acatado por um tribunal federal, que suspendeu a medida.

"Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o... presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele. Não é a minha versão, é a que… a minha vivência me fez chegar a essas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, tá ok? E veio a desaparecer no Rio de Janeiro", disse Jair Bolsonaro.

Mais tarde num vídeo ao vivo no Facebook, Bolsonaro disse - sem apresentar qualquer prova - que Fernando Santa Cruz foi morto pelos militantes da Ação Popular, à qual integrava. Em vídeo gravado enquanto cortava o cabelo, o presidente disse que membros da Ação Popular do Rio de Janeiro teriam estranhado a decisão de Fernando de vir do Recife para se encontrar com a cúpula do grupo, já que ele era um afiliado menor, e, por isso, resolveram sumir com o jovem. Ele negou que Fernando teria sido morto pelo Exército brasileiro.

Segundo a Comissão da Verdade, Fernando Santa Cruz foi preso em Copacabana no Rio de Janeiro por um grupo do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), órgão subordinado ao Exército.

Por telefone, o presidente da OAB disse à BBC News Brasil que Bolsonaro age de forma "tortuosa", e que ele já fez "ataques à memória" de seu pai antes. Com as declarações de hoje, Bolsonaro "reabre velhas feridas" da história do país, segundo o presidente da OAB.

Ele disse ainda que irá interpelar Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) para que o presidente apresente as informações que eventualmente tenha sobre o assunto. Para o presidente da OAB, porém, Bolsonaro não têm qualquer informação verdadeira sobre o caso. A fala sobre Fernando foi só mais um "gesto de irresponsabilidade" do presidente.

Felipe Santa Cruz conta ainda que seu pai, apesar de militante, não era um grande líder da resistência à ditadura militar. Esta era um regime disposto a matar "qualquer defensor da ideia de liberdade", segundo o presidente da OAB.

"Meu pai era um militante católico. Era extremamente católico. E eu estranho que um presidente da República que baseia toda a fala dele em preceitos cristãos, em Deus, que tem Deus no seu slogan de campanha, tenha condutas que são tão contra o que prega o pensamento cristão. Tão de ódio, raiva, rancor", disse ele.

BBC News Brasil - Bolsonaro mencionou ou desaparecimento de seu pai subitamente quando falava sobre a atuação da OAB no caso Adélio Bispo. Qual foi, no seu entender, a motivação do presidente da República para esse ataque?

Felipe Santa Cruz - Essa parte eu te confesso que eu não consigo chegar a uma conclusão, porque o presidente da República age de formas muito tortuosas. As estratégias dele não são claras para mim.

Ele tem um grave problema com a memória do meu pai, já fez ataques à memória do meu pai anteriormente, mas nada nessa escala que ele imprimiu hoje (na segunda-feira), introduzindo fatos novos, que ele diz conhecer e que eu estranho muito, porque são fatos que escapam a toda a historiografia do país. Então assim, ele teria que ter tido acesso direto à tortura ou a pessoas que torturaram, na época da ditadura.

Então é muito grave o que ele afirmou, e eu não sei qual é a finalidade disso. Só estou realmente impactado porque (a fala) abre ainda mais ódio, reabre feridas do país, que foram feridas difíceis de serem curadas, de serem superadas.

A própria OAB teve parte nisso, com a Lei de Anistia. O país há muitos anos tenta superar essas feridas. O governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) reconheceu essas mortes… todo o processo de redemocratização foi em cima dessa pacificação. O presidente hoje parece ter tomado a decisão de reabrir velhas feridas.

BBC News Brasil - O desaparecimento do seu pai é um crime imprescritível. Se o presidente admite ter informações sobre este assunto, isso faz dele uma testemunha.

Felipe Santa Cruz - Sim, ele é presidente da República e fez um juramento de contar a verdade. Tanto que eu vou ao Supremo interpelá-lo. Estamos discutindo qual o melhor instrumento. Vamos interpelá-lo para que ele esclareça se ele soube (sobre o desaparecimento), quem contou, quando, detalhes. Não só do meu caso, mas de outros desaparecidos.

(Se) ele, como mandatário da República, tem informações que interessam a centenas de famílias, é muito importante que ele venha a público esclarecer de forma séria. De forma que seja compatível com o cargo que ele exerce, que é o de supremo mandatário da República.

BBC News Brasil - Do ponto de vista da democracia, não é grave que um presidente da República parta para um ataque tão pessoal e dolorido?

Felipe Santa Cruz - Eu não acho que seja um ataque a mim. Claro que me dói pela violência, pela crueldade, pela falta de empatia. Mas acho que é muito mais grave, é um ataque à memória dos que lutaram pela democracia, pela construção democrática do país, que passa pela Constituição de 1988. É um gesto de rancor com a democracia.

BBC News Brasil - O sr. era pequeno quando o seu pai desapareceu. O sr. pode contar um pouco sobre a figura do seu pai?

Felipe Santa Cruz - Eu tinha menos de dois anos (quando do desaparecimento). Meu pai é um desaparecido paradigmático. Ele dá nome a um diretório acadêmico (o diretório do curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco, em Recife).

Ao contrário do que disse Bolsonaro, o Estado brasileiro hoje reconhece responsabilidade pela morte de Fernando Santa Cruz. Eu digo que é isso por conta de ele ser quase uma vítima civil da ditadura. Ele era estudante, servidor público, com endereço conhecido. Um líder estudantil, mas que não era uma grande liderança. Ele tinha irmãos que foram para o exílio, então ele tinha um grande compromisso com a democracia, e mantinha relações com pessoas que lutavam contra a ditadura.

Então ele é essa vítima, digamos assim, estudante, jovem. Que mostra que os processos autoritários matam qualquer defensor da ideia de liberdade. Mesmo que ele não seja uma grande liderança. Meu pai não era essa grande liderança da resistência democrática. Era um menino, estudante.

BBC News Brasil - O presidente pode ter incorrido em crime quando faz a defesa da tortura?

Felipe Santa Cruz - Pode. Pode (...).

Aí há uma lista de possíveis crimes que ele pode estar incorrendo sim. (A começar pela) falsidade, a dar declaração falsa, provavelmente num arroubo verbal. É uma tentativa permanente de dividir a sociedade.

Ele tem um claro (problema para) dividir o que é público do que é privado, e isso se dá na forma de comunicação dele. É um presidente que apresenta grandes desafios para a democracia brasileira.

BBC News Brasil - Então o sr. duvida que Bolsonaro tenha de fato alguma informação sobre o caso.

Felipe Santa Cruz - Eu acho que essas informações não teriam sido guardadas por ele por tanto tempo. Se ele tiver, que ele venha a público e esclareça. Acho que é mais um gesto de irresponsabilidade, como vários outros que ele fez.

BBC News Brasil - O sr. acha que mereceria algum tipo de reparação nesse caso?

Felipe Santa Cruz - Eu já tive. O poder público reconheceu o desaparecimento do meu pai. O Poder Judiciário, numa decisão transitada em julgado, reconheceu o desaparecimento.Arquivos do regime militar mostram como o Estado monitorava todas as atividades dos estudantes - entre eles Fernando. Veja, a redemocratização (do país) já é uma reparação. Óbvio que nós gostaríamos de saber os detalhes do desaparecimento, e a minha avó morreu sem saber onde estava o corpo do filho dela. Mas isso é parte desse dramático processo histórico.

Agora, é terrível o presidente reabrir. Reabrir velhas feridas, e ultrapassou hoje, acho, limites… Todas as correntes políticas do Brasil se solidarizaram, inclusive pessoas do partido do presidente (da República, o PSL). O presidente da Câmara (Rodrigo Maia, DEM-RJ), o governador de São Paulo (João Doria, PSDB), os governadores do Nordeste.

O presidente da República mexeu hoje, digamos assim, com todos os democratas do Brasil. Ele conseguiu ultrapassar as questões ideológicas do dia a dia, da conjuntura, e ofendeu todos aqueles que são democratas no Brasil.

BBC News Brasil - Alguma colocação final?

Felipe Santa Cruz - É estranho que um presidente da República que baseia toda a sua… Meu pai era um militante católico. Era extremamente católico. E eu estranho que um presidente da República que baseia toda a fala dele em preceitos cristãos, em Deus, que tem Deus no seu slogan de campanha, tenha condutas que são tão contra o que prega o pensamento cristão. Tão de ódio, raiva, rancor. E não de amor e solidariedade. Ele deveria se preocupar em governar para todos os brasileiros e não em reabrir feridas terríveis da sociedade brasileira.

Aí há uma lista de possíveis crimes que ele pode estar incorrendo sim. (A começar pela) falsidade, a dar declaração falsa, provavelmente num arroubo verbal. É uma tentativa permanente de dividir a sociedade.

Ele tem um claro (problema para) dividir o que é público do que é privado, e isso se dá na forma de comunicação dele. É um presidente que apresenta grandes desafios para a democracia brasileira.

( André Shalders - @andreshalders
Da BBC News Brasil em São Paulo)

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DO EDITOR DO BLOG - Oportuno lembrar que tenho muitas restrições à atuação dos dirigentes da OAB, tanto a nacional quanto as seccionais nas ultimas décadas, especialmente quanto à defesa das prerrogativas constitucionais e infraconstitucionais dos advogados.

O exercício profissional da advocacia vem se tornando cada vez mais quase impossível não só, em grande parte, pela concorrência desleal incrustada nas cercanias dos fóruns e tribunais como também pela burocracia judiciária aboletada nos gabinetes dos Juízes, notadamente Desembargadores e Ministros.

Servidores, na maioria desqualificados para as funções de Gabinetes, impedem audiências,  bloqueiam o acesso dos advogados em ostensivas ofensas à Lei Orgânica da Magistratura e até mesmo com grosseiras reações pessoais aos causídicos que apenas intentando invocar seus direitos e prerrogativas tem sido barrados no seu livre e legitimo exercício profissional.

A OAB, por seus dirigentes, salvo raras exceções que a prudência e a boa educação recomendam sempre que se faça, parece não ver o que se passa ou, no minimo, só olha de lado. Se aconluia com os manda chuvas dos fóruns e tribunais pelo País afora.

Quero dizer que o atual Presidente nacional da OAB, eleito como todos por votação indireta, portanto sem o meu voto pessoal, não tem feito diferente, aliás, mais se ocupando com posicionamentos estritamente políticos e de viés ideológicos.

Nada disso, porém, me faz ser omisso na reação aos ataques sofridos pelo filho de um perseguido politico, desaparecido aos 26 anos de idade, cuja morte por motivos políticos veio a ser confirmada oficialmente pelo Estado brasileiro décadas depois do fim das longas trevas do autoritarismo que, enfim, serviu para unir a Nação na busca da construção de um Estado Democrático de Direito.

Essa construção de fato e de direito, infelizmente, ainda parece distante.

Apesar da Constituição da República, aliás, farta em declarações de direitos sociais e de cidadania, o Estado Democrático de Direito não se realizará verdadeiramente enquanto a legitimidade dos mandatos não se impuser como pressuposto dos resultados das urnas em todas as eleições para os cargos públicos e também nas corporações de direito privado.

Como, por exemplo, os sindicatos e federações patronais e de trabalhadores, os partidos políticos, todos eles, e, por que não, também a OAB?

Um comentário:

Itapecuruense de São Luís disse...

Este é mais um caso de torcida disfarçada de análise publicado por nossa imprensa grande porém
sem audiência. A despeito da justiça brasileira ter se tornado uma piada, que adota a insegurança jurídica como método permeada de uma incapacidade de constatar obviedades seja por deficiência intelectual ou moral, a pressão popular não encamparia uma aventura judicial que queira dar area de legitimidade para um golpe. Não sei se seria tão fácil reeditar o golpe judicial ocorrido contra Jackson no Maranhão agora com a figura de Bolsonaro na presidência. Primeiro que atualmente o STF goza de tanta estima quanto o Congresso, nenhuma, e segundo que no caso do governador Maranhense o presidente Lula apoiou a rasteira no Maranhão. Dois poderes fracos e desmoralizados contra um que ainda goza de popularidade para arrastar multidões e blindar de ataques de toda a mídia? O presidente da OAB deveria se preocupar em não perder o nicho de poder que alcançou, ele está dando passos muito largos com pernas muito curtas.