terça-feira, 3 de maio de 2016

Uma recarga no sistema, o Artigo de Carlos Melo

Com o correr do tempo, a história fixará o enredo que melhor contará a saga desta quadra em que o Brasil vive. Foi golpe ou foi constitucional o impeachment que efetivamente a dinâmica política se encarregou de construir; qual narrativa sobreviverá ao natural olvido das gerações. A versão ainda é um campo de luta.

O certo é que o pano de fundo de toda a disputa é, naturalmente, o poder.

O poder tem sua lógica e canta sempre o seu canto de sereia. Numa democracia, a legitimidade eleitoral não é questão de menos, mas é de ponto de partida; somente isto não basta. Lidar com o poder é, sim, condição sine qua non: a eleição renova o poder, mas não o garante. Ao contrário, o poder minguante põe a perder o impulso e a renovação que viriam da eleição.

O poder é, portanto, animal indócil que, domesticado, garante o porvir, a capacidade do fazer, do transformar, do submeter todo um sistema à vontade do poderoso. Mas, pode ser também a besta-fera que escapa às rédeas de quem não soube cavalga-lo; de quem não teve astúcia e arte para se fazer príncipe; de quem acreditou, burocraticamente, que a eleição bastaria como garantia.

O fato é que Dilma vacilou, o PT vacilou, Lula vacilou. Acreditaram que a eleição bastaria e, por isso, deram toda a importância à eleição.

Descuidaram do poder a que, por diversos caminhos, um dia alçaram. Daí a importância exagerada ao marketing eleitoral, a equivocada crença de que num sistema democrático eleitoral o feio é perder a eleição. Collor também se elegeu. E daí? Votos, por si só, nunca bastam.

É necessário saber conduzir o processo: jogar o jogo ou, antes, modificá-lo, transformá-lo completamente, se possível fosse. Em Maio de 2002, com a Carta ao Povo Brasileiro, Lula começou a jogar o jogo: aparou as arestas de sua rejeição, surpreendeu a direita, indignou setores mais à esquerda, mas seguiu em frente; recarregou o sistema – “deu um reload”.

Em que pese alguns erros de início – o Mensalão — o fez com habilidade: assimilou um processo viciado e foi assimilado por ele. Não o transformou, conduziu o poder auxiliado pelo pragmatismo e pelas circunstâncias. É improvável que não compreendesse os limites e as implicações de longo prazo do jogo que jogava: o “reload” logo se esgota. O bom momento, no seu caso, foi mau conselheiro. É possível que tenha avaliado: “para que fazer reformas e subverter a lógica do sistema quando tudo está indo bem?“ Ora, simplesmente porque quando tudo for mal não haverá mais força para fazer o que quer que seja; será tarde.

O fato é que Lula deitou em berço esplêndido. Para o retirante que tanta dificuldade enfrentou na vida, em seu tempo, governar o Brasil foi um bálsamo, tudo deu relativamente certo. As coisas se encaixaram: uma boa conjuntura e uma boa leitura de curto prazo. O poder lhe pareceu permanente, imutável, constante, deveras para sempre. Isto o fez escolher, do bolso do colete, Dilma, como se fosse uma gerente às suas ordens e à disposição.

Dilma teve sua primeira eleição servida de presente numa bandeja. Tudo lhe era favorável: o país crescia 7,5% e, naquele momento, Lula era pouco menos que um deus. Entrementes, não seria não um brinquedinho do padrinho: tinha vontade própria, particular visão de mundo e inocência para acreditar que seus milhões de votos bastariam. Lula se equivocou com Dilma e Dilma se equivocou com o mundo que a cercava.

O sistema, afinal, se esgotaria; é claro que se esgotaria como quase tudo que é vivo se esgota. No caso, seria impossível satisfazer toda a voracidade por cargos, verbas e esquemas que o sistema consumia; impossível dar vazão ao crescimento sem reformas; impossível governar com as manhãs de ontem a sociedade que o presente atropelava.

Dilma, Lula e o PT tiveram seu aviso: o junho de 2013, incialmente, pela esquerda – sim, inicialmente pela esquerda – proclamava que o sistema deixara de representar; que a sociedade moderna estava órfã da política; que novas forças surgiriam, fragmentando o sistema até então polarizado – PT e PSDB afundariam juntos. Sim, também os tucanos não se deram e, ao que parece, não se dão conta de que um “reload” não basta.

Em paralelo, a economia se esgotava, exigia um novo modelo: olhar para frentes, aos saltos; mas o espelho retrovisor de Dilma só permitia olhar para trás. A visão ultrapassada de que o governo pode tudo – ao gosto do Brasil Grande, dos anos 1970 — deixou de considerar que o poder em si se transformava; que a nova sociedade se defrontaria com o esgotamento do sistema arcaico. O resto do processo é sabido.

Mais que a renovação circunstancial de alguns nomes e até de políticas, o sistema carece de mudança, transformação de métricas, métodos, sentido. Não há, no entanto, poder para isso – poder que Lula e Dilma um dia tiveram, mas desperdiçaram. A melhora básica da economia, do ambiente de negócios, o tal choque de expectativas será, evidentemente, limitado; um “reload” que deixará ouriçados os operadores de mercado, mas de tiro curto.

Mesmo na economia, as mudanças serão incrementais; podem dar certo, demonstrando algum resultado, apontando algum caminho parcial, mas o país continuará sob o signo da precariedade – sub judice da Lava Jato e da política – com todas as condições para um novo colapso.

O mais provável é que Michel Temer siga por esta mesma trilha que, no começo, omite erros somente mais tarde revelados. Ao que tudo indica, não conhece outro caminho. Suas primeiras ações mostram que tentará recompor o sistema como é: voraz de cargos, recursos e esquemas.

Oriundo de suas cinzas, como haveria de dissipá-las? Neste momento, seu poder é para fazer o mais do mesmo e, para isso, nem precisará dos votos que, com efeito, teve enquanto parceiro de chapa de Dilma.

Sua base de 367 votos no Congresso, ainda assim, é tão fiel e comprometida quanto a dona de um bordel; enquanto houver poder – e recursos – lhe jurará amor eterno. Mas, já se sabe, esse tipo de amor passa com o fim dos estalidos das moedas. Temer dará uma espécie de reloading no sistema. Mas, a página que retornará à tela é a mesma.

Durará algum tempo, como o amor pago, mas seus links parecem irremediavelmente comprometidos.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper. Artigo publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 02.05.16.

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