segunda-feira, 10 de março de 2025

STF não tem menor condição de reorganizar sistema político, diz Fernando Limongi

Ao lado de historiador, professor lança livro sobre Nova República, critica atuação do Supremo e diz que intelectuais deveriam respeitar o Congresso


O professor e cientista político Fernando Limongi, que lança livro sobre a Nova República, ao lado do historiador Leonardo Weller - Karime Xavier - 16.mai.23/Folhapress

A Nova República foi fundada na construção de consensos entre elites políticas. Esse traço pode ser visto como negativo ou positivo. Por um lado, tais negociações impediram soluções definitivas para desigualdades que marcam a sociedade brasileira; por outro, também evitaram que os conflitos descambassem em violência, produzindo estabilidade.

Esse é um dos eixos de "Democracia Negociada - Política Partidária no Brasil da Nova República", do historiador Leonardo Weller e do cientista político Fernando Limongi, ambos professores da FGV-SP.

Um homem está sentado em uma cadeira de balanço no jardim. Ele está inclinado para trás, com uma expressão relaxada. O fundo é composto por plantas verdes e flores, criando um ambiente natural e tranquilo.

No livro, os dois retornam à lenta transição iniciada no governo de Ernesto Geisel para mostrar como a ditadura se empenhou para que a direita continuasse a ter seu quinhão de poder na democracia —e, de fato, vários aliados do regime conseguiram se perpetuar. Os autores passam pelos embates na Constituinte e avançam por diversos governos, até chegar ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016.

O resultado é uma síntese informativa sobre a história recente do país. A dupla defende que a democracia brasileira viveu seu auge entre o governo Itamar Franco e a gestão da petista —quando, à direita ou à esquerda, havia um consenso em defesa de avanços sociais.

Agora, bem, agora é tudo mais complicado, diz Limongi à Folha. Ele defende que não adianta espernear contra o conservadorismo da sociedade brasileira, diz que os intelectuais do país deveriam respeitar o Congresso como voz da sociedade e sustenta que o Supremo Tribunal Federal não tem capacidade para tutelar o sistema político.

Uma grande preocupação da ditadura é que, após a transição, a direita pudesse continuar no poder. E várias lideranças desse campo, de fato, conseguiram continuar na política. O sistema que nasce na Nova República tende ao conservadorismo ou esse traço é uma vocação do eleitor brasileiro?

Difícil dizer. Mas não há um viés institucional que provoque maior ou menor conservadorismo. Não há nenhum preceito, é o funcionamento da democracia. A democracia é intrinsecamente conservadora, o jogo democrático tende para o centro.

Você precisa negociar, você não consegue impor a sua vontade. Aqui, a pressão por reformas e mudança bate no Executivo —e a pressão por conservação também.

Há coisas que a maioria da população não quer. Ela pode ser mais conservadora em questões morais, culturais, e isso é uma coisa com a qual você tem que viver. Se você é um pouco mais moderninho, mas a maioria é conservadora, viva com isso. Você não pode impor sua visão, mas isso não quer dizer que a culpa seja das instituições.

Não podemos chegar a um acordo, por exemplo, sobre permitir ou não o aborto. Não há um meio termo. Ou pode ou não pode. Nosso sistema é majoritário e permite, pelo Congresso, que a sociedade seja ouvida. Há uma tendência nas análises no Brasil de desrespeitar o Legislativo como uma expressão da sociedade

Em que sentido?

Para fazer uma referência, por exemplo, ao presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que falou que cabe ao Supremo empurrar uma agenda modernizadora… Quando a corte tentou avançar na questão do aborto, criou-se um problema. Tanto FHC quanto Lula queriam ter ido mais à frente nesse ponto, mas sentiram que a sociedade não queria porque o Congresso expressou isso, e precisaram moderar posições.

Aí vem o Supremo e dá a reação que deu. Parte dessa reação é: "Vocês não estão me ouvindo? Estamos dizendo que não é para fazer isso!". A sensibilidade dos políticos e a negociação deles precisa ser valorizada. Os intelectuais brasileiros menosprezam o Congresso o tempo inteiro.

A visão negativa do Legislativo e a identificação dele com o centrão, acho que isso é uma reação ideológica e desrespeitosa com as instituições representativas. É como se o Congresso não fosse legítimo. Respeite o resultado da eleição. Se não gostou, trabalhe para inverter. O Brasil é isso aí, um país mais conservador em valores.

Um dos seus pontos centrais é como a Nova República não foi capaz de romper com a herança da ditadura. As investigações sobre os atos golpistas —e, agora, a denúncia contra os envolvidos— sinaliza um rompimento dessa cultura de conciliação?

Um ponto ausente do livro é uma análise de como a Constituinte reforçou demais o poder tanto do Executivo quanto do Judiciário, representado no Supremo. Esse fortalecimento vem de uma desconfiança do Legislativo porque você acha que o Congresso vai ser necessariamente conservador. Essa ideia é vista como fato, vem desde os anos 1970, ou até antes.

No começo do sistema, como esses juízes do Supremo ainda vêm do regime militar, eles têm outra cabeça e não intervêm tanto. A partir da crise do mensalão e da derrubada da cláusula de barreira pelo Supremo, é o sinal de que o STF resolveu que vai tutelar o sistema político —e que a desconfiança não deve ser só quanto ao Legislativo, mas também quanto ao Executivo. Partindo de uma interpretação equivocada do que seria o tal presidencialismo de coalizão.

O Supremo não tem a menor condição de reorganizar o sistema político porque não sabe como o sistema funciona, tem ideias mirabolantes. Aí você tem uma expansão da ação do Supremo —e a ação contra o Bolsonaro é parte desse processo.

Não começa com o ex-presidente. Houve o momento em que o Supremo impediu Lula de ser candidato, sob a mesma racionalidade, de que o petista seria um perigo para a democracia. A Lava Jato é parte desse processo. Posso ser contra o Lula ou contra o Bolsonaro… Mas há uma intervenção deliberada, sequencial, do Judiciário para controlar o sistema político. E eu preferia que isso não acontecesse porque esses caras não são eleitos.

Vê um recuo do Judiciário como algo possível?

Não. Depois que saiu da garrafa, o gênio não volta. Precisaria de uma consciência de que esse poder é excessivo e milita contra a própria instituição, para que a própria instituição se contivesse. Mas pensar nisso é acreditar em fadas, em varinha mágica. Pode se restringir mais, diminuir essa expansão…

Mas há também um aumento do poder do Congresso, sobretudo desde o governo Michel Temer e em especial sobre o Orçamento, por meio das emendas. Esse é também um gênio já fora da garrafa?

Não acho que esse seja um gênio fora da garrafa, nem que a gente saiba quanto esse poder do Legislativo realmente aumentou, quanto ele pode ser reconfigurado etc. Não há nenhuma análise empírica sobre o poder dessas emendas, quem de fato as controla… Mas é um exagero pensar que todo o Congresso se beneficia delas. Quem se beneficia é um pequeno grupo.

Estão colocando limites, é mais difícil de voltar ao status quo, mas não quer dizer que o Executivo perdeu controle sobre o Orçamento. Perdeu sobre uma parcela pequena. Para um grupo de deputados? Sim. O que esse grupo está fazendo e quais as consequências para o sistema político? Ainda é uma incógnita.

O que sabemos de estudos do passado, antes deste momento de agora, é que emenda não dava tanta vantagem eleitoral quanto se achava. Emenda é parte desse folclore, dessa desconfiança de que o Congresso vai ser sempre uma baixaria.

Boa parte desse argumento anti-Legislativo se baseia numa suposição de que alguém sabe qual seria a distribuição ótima dos recursos das emendas. Quem tem essa informação? O planejador central? Os economistas neoliberais, que não pensam no sistema de informação necessário para ver quais localidades pedem recursos? Ou o editorialista da Folha? Parece que o editorialista sabe qual cidade precisa de mais dinheiro para o SUS.

O sistema representativo produz parte dessa informação. É preciso ouvir os deputados, não o burocrata dos ministérios da Saúde, da Educação. Há distorções que vêm disso, não é o melhor sistema? Ok, mas não é o pior. Há uma gritaria sobre isso que é demasiada.

Depois de 21 anos de ditadura militar, Tancredo Neves (PMDB) venceu Paulo Maluf (PDS) na disputa para a Presidência da República em votação no Colégio Eleitoral. A histórica vitória do político mineiro em 15 de janeiro de 1985 passou a ser considerada o ponto inicial da chamada Nova República, que agora completa quatro décadas. Não faltaram, porém, obstáculos nessa transição da ditadura para a democracia, a começar pela morte de Tancredo em 21 de abril daquele ano.

O cenário para 2026 aponta para mais uma disputa bipartidária, como tem sido a regra na Nova República?

Tem muito imponderável aí para fazer qualquer chute. Eleição majoritária, mesmo com dois turnos, tende a ter poucos candidatos. Mesmo que nominalmente haja muitos, os viáveis tendem a ser dois e meio —esse meio sendo a tal da terceira via. Se não chover canivete, vai dar isso. Ainda mais quando o presidente é candidato à reeleição, muito provavelmente ele está no segundo turno.

Temos muitos governadores em estados centrais completando seu segundo mandato. Para quem é ambicioso, em vez de ir para presidente, pode ir para governador. A incógnita é o Tarcísio de Freitas [Republicanos], governador de São Paulo. Depende da organização da direita, se Bolsonaro é candidato, se apoia o governador paulista… A outra é a saúde do Lula, dado o efeito Joe Biden.

Quando vocês dizem que a Nova República viveu um auge entre Itamar e Dilma, isso significa que estamos vivendo um declínio agora?

Antes havia maior moderação, uma agenda comum. Avanços em saúde, educação e proteção social eram consensos. Bolsonaro chacoalha esse consenso e diz que vai desfazer tudo o que foi feito depois da redemocratização. E Paulo Guedes diz que tudo o que cheira a Estado tem que sair.

Não fizeram nada disso. Fizeram muita bobagem, destruíram muita coisa, mas não reverteram. Quando se viram na necessidade de fazer campanha para a reeleição, o fizeram da forma mais irresponsável fiscalmente e politicamente possível. Fizeram o receituário do fiscal irresponsável e ampliação de gastos sociais.

Isso diz algo. Qualquer tentativa de reverter esse processo de maior atenção social não tem suporte político - eleitoral. E isso é bom.

Então, de um lado, talvez estejamos exagerando demais o conflito no plano cultural, moral, prestando muita atenção ao simbólico, sem perceber o que está na base. Por exemplo, no pacote fiscal que o ministro Fernando Haddad estava armando, todo o problema sempre foi onde cortar. E onde tem para cortar? Só gasto social. Aí é duro, o custo político é muito alto.

Outra questão é o manejo da vinculação entre política social e política salarial. Houve uma valorização real do salário mínimo, e isso impacta o maior gasto social, que é a Previdência. Haddad jogou como balão de ensaio desconectar as duas coisas, mas ninguém aceita, é perigoso porque o governo vai ter um incentivo para diminuir o pagamento da Previdência. E isso bate nas pessoas. Então, o governo atou as próprias mãos.

Dá uma falta de flexibilidade, mas o mundo é o que é. Não vamos ter um crescimento maravilhoso porque é assim que está funcionando a economia brasileira. É viver com isso aí. E vai ser esse Congresso. A sociedade brasileira é conservadora, não adianta gritar. É baixar as expectativas e não ficar gritando que está tudo errado, como um bando de palmeirenses malucos.

Democracia Negociada - Política Partidária no Brasil da Nova República

Preço R$ 61 (ebook R$ 43)Autoria Leonardo Weller e Fernando Papaterra LimongEditora FGV (256 págs.)

RAIO-X

Fernando Limongi, 67

Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago, é professor titular aposentado de ciência política da USP. Atualmente dá aulas na Escola de Economia de São Paulo da FGV (Fundação Getúlio Vargas). É autor de livros como "Operação Impeachment - Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato" (2023) e "Política Orçamentária no Presidencialismo de Coalizão" (2008), este em co-autoria com Argelina Figueiredo.

Mauricio Meireles, originalmente para a Folha de S. Paulo, edição impressa, em 07.03.25


Lula se refugia entre aduladores e reforça erros do governo

Presidente encara impopularidade com lentes do passado, recusa responsabilidade fiscal e se afasta de forças moderadas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - Adriano Machado - 29.jan.25/Reuters

Por uma mistura de falta de visão estratégica, apego a ideias obsoletas e má leitura do equilíbrio de forças na política, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) avança pela segunda metade de seu mandato sem um projeto claro sobre o que pretende fazer daqui para a frente. Na dúvida, ele vira à esquerda.

Na economia livrou-se dos últimos vestígios daquele verniz que vez ou outra o fazia prestigiar a agenda de mínima responsabilidade orçamentária proposta pelo seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A opção pela gastança, que sempre foi a preferida de Lula, agora está escancarada.

O presidente está à caça de "medidas" como liberações de créditos e recursos do FGTS que, de acordo com a sua cartilha primitiva de gestão pública, possam ajudá-lo a combater a impopularidade. Como decidiu torrar recursos no início da administração, as opções agora são restritas.

O custo de continuar pisando no acelerador também ficou difícil de enfrentar. Não dá para empurrar a conta para o mandato seguinte, um clássico na política, com a inflação à porta. Toda pressão extra no gasto federal vira carestia, toda heterodoxia populista impulsiona a cotação do dólar e as taxas de juros da praça.

Esse será o efeito de qualquer "atitude mais drástica", palavras de Lula, que o presidente vier a tomar para frear na marra a inflação da comida. A ida ao supermercado não deixará tão cedo de ser uma experiência desagradável para milhões de brasileiros.

Diante desse quadro desfavorável, o chefe do governo tem basicamente duas linhas de resposta.

A mais promissora, embora desconfortável para um líder vaidoso, passa pelo exercício da autocrítica e pela inculcação da necessidade de alterar a rota. Trata-se de se reaproximar das racionalidades econômica —que exige neste momento austeridade fiscal— e política —a aliança com as forças moderadas na sociedade e no Congresso.

A segunda vereda é a de reforçar o que já se provou um equívoco. Dar as costas à agenda do controle da dívida pública e encastelar-se entre forças sociais e políticas de ideias envelhecidas e pouca representatividade parlamentar foi a escolha de Lula.

Ele preferiu a familiaridade de assessores e aduladores que atribuem o declínio da popularidade à má comunicação do governo, e não à desconexão com o Brasil atual. Nomeou uma imoderada, Gleisi Hoffmann, para articular as pautas do governo no Legislativo e cogita nomear outro, Guilherme Boulos (PSOL), para o ministério.

Os titulares da Previdência e do Trabalho ainda não superaram o século 20 nas suas mentalidades. O mandatário continua achando que posar de pai dos pobres, de provedor-geral da nação, vai lhe render dividendos eleitorais.

Sem inspiração, sem projeto, sem tirocínio, sem nem sequer a sagacidade de outras passagens do maior líder da moderna esquerda brasileira, a terceira Presidência Luiz Inácio Lula da Silva corre grande risco de ser a pior.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 09.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

Trump dobra a aposta no confronto

Presidente se compromete com ações drásticas, como a ofensiva tarifária e o alinhamento com Putin em relação à Ucrânia

Donald Trump, presidente dos EUA, discursa no Congresso, em Washington - Mandel Ngan - 4.mar.25/Pool via Reuters

Em 1987, quando era só um polêmico empreendedor, Donald Trump lançou um livro, escrito de fato pelo jornalista Tony Schwartz, chamado "A Arte do Negócio", sobre sua suposta genialidade empresarial.

A obra pode ser um guia para entender a mente do presidente americano, que suscita alarme com sua abordagem agressiva em temas como a ofensiva tarifária, a Guerra da Ucrânia ou o futuro da Faixa de Gaza.

Se está mantido o ideário negocial do Trump de quase 40 anos atrás, todas as ameaças seguem uma lógica: tumultuar o ambiente e assustar ao máximo o rival com exigências absurdas para, ao fim, arrancar concessões.

É uma leitura plausível dos acontecimentos, mas que não chega a ser tranquilizadora. Passados 45 dias de sua volta à Casa Branca, o republicano parece dobrar a aposta no confronto.

A começar pela guerra tarifária, que foi disparada contra os vizinhos México e Canadá e logo suspensa. Agora, as alíquotas de importação de 25% entraram em vigor, assim como os 20% aplicados sobre produtos chineses, o alvo real do equilíbrio comercial pretendido no discurso de Trump.

Ainda falta o teste da realidade para o argumento de que tal protecionismo vai gerar empregos, mas a ideia de que ele fará com que os EUA importem inflação está bastante consolidada. A medida acarreta juros mais altos, numa espiral de impactos no varejo doméstico e para consumidores de outros países, como o Brasil.

Dada a interconexão entre as maiores economias do mundo, EUA e China, a resultante dessa escalada tende a ser nefasta.

Na Europa, Trump ungiu Volodimir Zelenski como seu bode expiatório, armando uma espécie de emboscada ao vivo em encontro na Casa Branca. A partir dessa debacle histórica, com direito a bate-boca e expulsão do visitante, o americano suspendeu a ajuda militar à Ucrânia na sua luta contra Vladimir Putin.

Zelenski pediu perdão, mas parece improvável que o republicano vá deixar o alinhamento com o autocrata russo. Aqui, não seguiu o conselho central de seu livro: "A pior coisa que você pode fazer em uma negociação é parecer desesperado para fechá-la".

O embate azedou as relações entre Trump e a Europa, com a aliança militar Otan à frente. Governantes no continente correm a fazer contas para se rearmar, o que leva tempo e, ao fim, favorecerá empresas americanas.

Toda essa movimentação foi reafirmada no primeiro discurso do mandatário ao Congresso nesta gestão, com outros aspectos inquietantes. O anômalo ideário de enxugamento da máquina pública pelas mãos do bilionário Elon Musk foi aclamado, e Panamá e Groenlândia foram de novo ameaçados, assim como políticas ambientais e de diversidade.

Sem possibilidade de reeleição e em cenário muito mais favorável a ações drásticas do que no primeiro mandato, o Trump de 2025 confronta-se com o de 1987; resta saber qual prevalecerá.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 06.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

Gasto do Judiciário é anomalia e Congresso precisa agir

Projeto para enquadrar despesas com supersalários no setor está parado no Senado e governo apresentou proposta melhor

Imagem aérea da Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira/Folhapress

Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), por iniciativa do ministro Flávio Dino, impôs algum nível de transparência à origem, propósito e destinação das bilionárias emendas parlamentares, o Congresso deveria, mesmo que em forma de salutar resposta, tomar a iniciativa de regular os gastos do Poder Judiciário.

Eles tornaram-se uma anomalia no Brasil, onde uma casta do funcionalismo se apropria do dinheiro público de forma voraz, sem que isso se traduza em eficiência para o sistema de Justiça.

País de renda média e com enormes desafios no campo da desigualdade social, o Brasil sustenta privilégios escandalosos para juízes, desembargadores e servidores do setor. Algo que requer, o quanto antes, uma ação contundente a fim de que possam ser eliminados.

Notícias sobre rendimentos na casa de centenas de milhares de reais pagos a magistrados e desembargadores, muito acima do teto constitucional, tornaram-se corriqueiras e, infelizmente, quase não chocam mais. Trata-se de dinheiro de impostos, e os chamados penduricalhos custaram nada menos que cerca de R$ 40 bilhões entre 2018 e 2023.

Não apenas no topo. Dados oficiais mostram que a remuneração dos servidores do Judiciário nos últimos 40 anos ultrapassou em várias vezes o reajuste concedido à média do funcionalismo federal, estadual e municipal.

Outro levantamento, do Tesouro Nacional, revela que o gasto do poder público brasileiro com os tribunais de Justiça, incluindo a remuneração de magistrados e funcionários, é o segundo maior entre 50 nações analisadas. O sistema custa aqui quatro vezes mais que a média internacional.

O Brasil despende cerca de 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) com o Poder Judiciário, ante 0,3% em outros países. Apenas El Salvador tem um gasto maior com tribunais, de 1,6% do PIB.

Não há nenhuma justificativa para isso, apenas o fato de, encastelados, juízes e desembargadores legislarem em causa própria, com autonomia para se apropriar do Orçamento na União e, principalmente, nos estados.

Tal situação ocorre por omissão do Congresso Nacional, onde dormita no Senado, desde 2021, projeto para limitar o pagamento de benefícios acima do teto. É lamentável que, mesmo considerando mais de 30 exceções que permitiriam a existência de penduricalhos, a matéria não tenha sido analisada até hoje.

No final do ano passado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em iniciativa sensata, encaminhou ao Legislativo uma Proposta de Emenda Constitucional que pretende substituir o projeto ora parado no Senado, de forma a limitar as brechas para pagamentos acima do teto.

Em nome da moralidade e do equilíbrio orçamentário, o Congresso deveria encarar já a matéria. Seria uma conveniente resposta ao STF pela fiscalização das emendas. Os dois movimentos tornariam o Brasil mais justo.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 05.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

sexta-feira, 7 de março de 2025

Catarina Mina, de escravizada a empreendedora de sucesso

São Luís do Maranhão guarda a história intrigante de uma mulher trazida da África no século 19, que subverteu a mecânica da escravidão ao conquistar liberdade e enriquecer. Mas há controvérsias sobre como isso aconteceu.

Beco Catarina Mina, em São Luís do Maranhão (Foto: Tainã Mansani/DW)

Quando a africana liberta Catarina Mina caminhava pelas ruas de São Luís do Maranhão colonial, a cidade parecia estremecer. Caminhava altiva, sempre sorrindo. Atrás dela, o cortejo de outras africanas, vestidas de renda, ouro no pescoço, nos pulsos, nas orelhas. "Lá vem Catarina Mina com as suas escravas para a festa da padroeira", escreveu um jornalista da época.

Catarina Rosa Pereira de Jesus chegou ao Brasil como escrava da Costa da Mina, região do golfo da Guiné (daí o nome "Mina"). Foi quituteira, comerciante: de escrava de ganho a "mulher de negócios". Comprou sua alforria e fez fortuna com o dinheiro do próprio trabalho, e, segundo dizem, dos favores prestados a comerciantes portugueses da Praia Grande (algo que a historiografia nunca provou).

"Quando encontrei o inventário da Catarina Mina, fiquei surpresa. Essa mulher era riquíssima! O inventário, e depois o testamento, foram os documentos que mais me emocionaram durante as pesquisas sobre a vida dela", contou à DW Brasil a historiadora Iraneide Soares da Silva, que estuda a vida da africana. Embora seja difícil precisar o valor dos seus bens, sabe-se que tinha muito – e o mistério sobre como ela alcançou tal feito intriga estudiosos até hoje.

Trazida para o Brasil no século 19, Catarina Mina continua viva na cidade que adotou, "sempre sorrindo" (Foto: Tainã Mansani/DW)

Testamento generoso

Datado de 1887 e hoje preservado no arquivo público do Tribunal de Justiça do Maranhão, o testamento da ex-escrava revela uma generosidade incomum entre os ricos da época. Mina distribuiu sobrados, casas, vilas e lotes entre comadres, figuras influentes do judiciário e do meio eclesiástico. Mas, acima de tudo, libertou seus escravos e lhes assegurou riqueza – algo raro, pois em geral esses eram repassados como bens.

Os documentos mostram que Catarina Mina acumulou riqueza e criou uma rede de socialização e cooperação entre mulheres libertas durante a escravidão, explica a Iraineide Soares. Nos jornais da época há muitos a anúncios de fugas de mulheres que contavam com redes de apoio, pois, para fugir, precisavam de colaboração externa.

De fato, até hoje circulam em São Luís histórias sobre a vida de Catarina Mina. Elas falam de uma personagem de caráter heroico, que comprava escravos para os libertar. Mas as pesquisas historiográficas revelam que ela também manteve escravos durante a vida.

Quando eles saíam com ela às ruas, andavam bem ornados, mas sempre descalços, explica a historiadora. "Há sempre essa pergunta: 'Como assim? Catarina Mina viveu a escravidão e escravizou?' Minha compreensão é a que, quando existe um escravo numa condição de vida miserável, e você o traz para perto de si para ser tratado com mais humanidade, há um pouco a lógica de trazer para perto para poder libertar de algum modo."

A documentação sobre Mina revela que foi uma das mulheres mais ricas do período, com pecúlios e riqueza, mas que não teve o título de 'senhora dona', um importante símbolo de distinção para mulheres de posse.

"Beco Catarina Mina"

Catarina Mina não teve o reconhecimento oficial para a época, mas fez história. Seu nome ficou em ruas, músicas, marcas de roupas e nas cozinhas da capital maranhense. O assim chamado "Beco Catarina Mina" era o local onde vendia peixes e farinha, e nele se encontra um restaurante que também leva o nome da benfeitora.

Maria de Lourdes, a dona do estabelecimento, ri ao dizer que trabalha muito, mas não tem a liberdade que Catarina Mina conquistou. Para ela, a história de Mina – marcada pela solidariedade e uma mudança incomum de condição social para a época – entrelaça passado e presente, inspirando sua própria vida.

"Quando eu coloquei o nome do restaurante ‘Catarina Mina', comecei uma grande pesquisa. Antes de eu vir para esse beco, ninguém falava sobre ela. Eu já trabalhei muito essa história e divulgo sempre que posso."

Maria de Lourdes tem o restaurante desde 1990. Por muitos anos preservou o testamento de Catarina Mina, mas o entregou para conservação. Segundo ela, a ex-escrava teria falecido por volta dos 35 anos. Ao longo de sua vida, além de comprar a própria alforria, comprava outros escravos e os libertava, incluindo a própria mãe.

A pesquisa revela que Mina teve um único filho, chamado Alexandre (embora haja controvérsias se foi realmente filho, afilhado ou se faleceu ao nascer). A africana também teria se casado e, num gesto significativo de ascensão social, adquirido para seu esposo uma patente de alferes, um posto de oficial subalterno do Exército, intermediário entre tenente e aspirante a oficial.

Dona do Bar e Restaurante Catarina Mina preserva a memória da homenageada (Foto:Tainã Mansani/DW)

Como Mina enriqueceu?

Uma das questões mais intrigantes sobre a história dessa personagem é por que Catarina conseguiu enriquecer e outros escravos, não? Segundo historiadores, havia uma diferença entre a escravidão urbana (contexto em que Mina viveu) e a rural, em que era muito mais difícil qualquer ascensão social, pois escravos raramente tinham alguma remuneração.

No Brasil colonial e no Império, escravos de ganho, como Mina, trabalhavam nas ruas sob ordens de seus senhores, devendo entregar uma quantia diária estipulada. Essa prática surgiu no século 17, mas só no Império passou a ser mais controlada pelo Estado. Esse trabalho lhes permitia, em algumas circunstâncias, acumular algum valor excedente, que poderia ser guardado para negociar a compra da alforria e acumular algum recurso.

Diferentemente dos escravizados nas fazendas, os escravos de ganho desempenhavam atividades urbanas remuneradas, como carregadores, doceiras ou faziam pequenos reparos. As mulheres trabalhavam dentro das casas e podiam sair para vender. E as pesquisas mostram que Catarina foi além, ao construir, à sua própria maneira, negócios que lhe permitiram acumular muitos bens.

O caráter de Catarina Mina chama atenção nos documentos seu respeito, explica a historiadora Iraneide Soares. Como quituteira, estabeleceu sua rede de sociabilidade que manteve até a ascensão social. Foi uma personagem bem relacionada naquele contexto histórico, o que explicaria, em grande parte, o seu mérito.

Também o historiador Manolo Florentino, um dos maiores nomes nas pesquisas sobre os escravos de ganho no Brasil, mostrou, com estudos principalmente sobre o Rio de Janeiro, que os escravizados eram vítimas, mas também tinham ação, relevância e protagonismo como sujeitos humanos.

Florentino explicou numa entrevista em 2012: "Sobretudo em países como o Brasil, estratégias que levavam à formação de famílias e à adoção do trabalho por tarefas foram fundamentais para a acumulação de pecúlio e a obtenção da alforria [...]. Sabemos terem sido altas as taxas anuais de alforrias, sobretudo nas cidades, com amplo predomínio de manumissões [ato de libertar um escravizado]."

Outras histórias de ascensão social

Mas Catarina Mina não foi a única ex-escrava bem-sucedida no Brasil colônia, embora essa não fosse a realidade mais comum em todo contexto da escravidão. Cem histórias semelhantes de mulheres negras escravizadas com trajetórias excepcionais para o período estão no livro Dicionário biográfico: Histórias entrelaçadas de mulheres afrodiaspóricas (Editora Malê, 2024).

Adelina, a Charuteira, filha de uma escravizada e de um senhor empobrecido, tornou-se vendedora de charutos em São Luís. Frequentando o Largo do Carmo, entrou em contato com estudantes abolicionistas e passou a atuar como informante, alertando sobre investidas policiais e auxiliando na fuga de escravizados, contribuindo para o movimento abolicionista.

Para além do Maranhão, no Piauí do século 18, Esperança Garcia não se tornou advogada formalmente, mas é reconhecida simbolicamente pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como primeira advogada do país. Mulher negra e escravizada, ela ficou conhecida por escrever uma carta-petição ao governador da capitania do Piauí, em 1770, denunciando os maus-tratos que sofria e pedindo melhores condições para si e outras escravizadas.

Esse documento foi considerado por juristas e historiadores um dos primeiros registros de petição por direitos no Brasil. Em reconhecimento a seu ato pioneiro na luta por justiça, a OAB do Piauí concedeu-lhe, em 2017, o título honorário de primeira advogada do estado.

Segundo a pesquisadora Iraneide Soares, a ausência de histórias como essas nos livros escolares implica que "a historiografia brasileira tem muito a avançar nas pesquisas sobre essas personagens que aparecem como sujeitos ativos e dinâmicas de vida diferentes, na história da escravidão".

Tainã Mansani, a autora, é Jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 07.03.25

Cid Flaquer Scartezzini, ministro aposentado do STJ, morre aos 96 anos

O magistrado ingressou na Corte como membro do Tribunal Federal de Recursos — que antecedeu o STJ — e ocupou a vice-presidência até 1999, quando se aposentou. O velório acontecerá no sábado (8/3), às 9h, e sepultado, às 13h, no Cemitério Morumbi, na capital paulista.

O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça Cid Flaquer Scartezzini

Scartezzini foi professor titular de Direito Público e Privado, Direito Penal e Direito Processual Penal nas Faculdades Metropolitanas e no Instituto de Ensino Superior Senador Flaquer, em Santo André. Atuou como advogado, principalmente, em São Paulo e na região do ABC paulista. Foi presidente da Associação dos Advogados de Santo André e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo por dois biênios.

Trabalhou, ainda, como professor primário e secundário, ministrando disciplinas como Língua Portuguesa, Economia Política e Legislação Aplicada.

O professor ingressou na magistratura como juiz federal. Entre 1969 e 1971, atuou no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Foi nomeado ministro do TFR em 1981 e ficou no cargo até a criação do STJ, em 1988. Permaneceu na nova corte até sua aposentadoria.

O ministro também exerceu o cargo de corregedor-geral eleitoral no Tribunal Superior Eleitoral, onde trabalhou de 1990 a 1994. No Legislativo, foi vereador da Câmara Municipal de Santo André.

Advogados, magistrados e estudiosos do Direito lamentaram a morte de Scartezzini. Um deles foi Fábio Prieto, secretário de Justiça de São Paulo e ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul): “O ministro Cid Scartezzini foi o magistrado mais relevante na história da Justiça Federal de São Paulo. Dos anos 1960 até os dias atuais”.

Em nota, a Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp) prestou condolências à família e aos amigos do ministro. “É com profunda tristeza que recebemos a notícia do falecimento do ministro Cid Flaquer Scartezzini. Sua trajetória de vida e serviço à Justiça brasileira deixarão uma marca eterna em todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Cid Scartezzini foi um exemplo, principalmente, para nós, juízes federais (…) Sua atuação foi marcada pela busca incansável pela verdade e pela defesa dos direitos fundamentais, sempre pautada pelo respeito e pela integridade. Neste momento de dor, expressamos nossas mais sinceras condolências à família e aos amigos. Que todos encontrem conforto nas memórias de sua vida e nos legados que deixou.”

Juiz federal criminal em Santos (SP), Roberto Lemos ressaltou sua gentileza e importância para a jurisdição federal. “Sempre gentil, humilde, alegre e muito cordial. Por certo, parte importante da história da Justiça Federal”, disse.

Martina Colafemina, a autora deste texto, é repórter da revista Consultor Jurídico. Publicado originalmente em 07.03.25

EUA com Trump vivem 'situação mais aterrorizante desde a guerra civil', diz autor de "Como as Democracias Morrem" Morrem'

Como alguém que se destacou no estudo do declínio das democracias no mundo todo, o cientista político Steven Levitsky tem certeza de uma coisa: os Estados Unidos estão a caminho de perder a sua.

'Depois da vitória de um populista, a oposição fica sempre estagnada e atordoada, muito insegura sobre o que fazer', diz Levitsky

Professor da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Levitsky observa semelhanças cada vez maiores entre o presidente americano, Donald Trump, e o que aconteceu com líderes latino-americanos, tanto de direita quanto de esquerda, com tendências autoritárias.

"Em vários aspectos, a democracia dos EUA, o regime dos EUA, começa a se parecer muito mais com muitos regimes da América Latina do que antes", avalia Levitsky, que pesquisou esta região em profundidade, em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

Ele não acredita que Trump esteja seguindo necessariamente uma espécie de manual populista latino-americano, nem que a democracia dos EUA vá entrar em colapso total.

Mas adverte que "o maior ataque às instituições democráticas dos EUA na história moderna" está em andamento, e que o país pode tirar algumas lições do passado recente da América Latina.

Leia a seguir a entrevista da BBC News Mundo com Levitsky, coautor do livro "Como as democracias morrem."

BBC News Mundo - Qual é a principal conclusão que você tira após o primeiro mês do segundo mandato de Donald Trump?

Steven Levitsky - Acho que os EUA estão perdendo sua democracia, entrando em um regime híbrido que eu caracterizaria como autoritário competitivo.

Estava bastante claro que os americanos estavam elegendo uma figura abertamente autoritária em 2024. Diferentemente de 2016, não havia ambiguidade sobre a posição de Donald Trump em relação às normas democráticas.

O establishment político dos EUA, incluindo o Partido Democrata, não estava preparado de forma alguma para o que viria. Acho que nunca vou entender por que estava tão despreparado.

Mas Trump começou uma onda de ataques contra as instituições do Estado, contra a lei... É um pouco como o primeiro round de uma luta de boxe em que um boxeador desfere uma série de golpes, e seu oponente fica atordoado e tonto.

É apenas o primeiro round. Não creio que possamos tirar muitas conclusões sobre o que vai acontecer. Não creio que a nossa democracia vá entrar em colapso total. Mas este é o maior ataque às instituições democráticas dos Estados Unidos na história moderna, e estamos entrando em um momento autoritário: leve, mas ainda assim um momento autoritário.

BBC News Mundo - A democracia americana passou por vários testes ao longo da história e nos últimos anos. O que poderia ser diferente agora?

Levitsky - Não exageremos o quão democráticos os EUA foram no passado. No século 19, éramos uma democracia para homens brancos que coexistia com a escravidão. Entramos em uma guerra civil, e a democracia entrou em colapso. Depois houve um período em que o sul dos EUA esteve sob um governo autoritário de partido único.

Por fim, a democratização total ocorreu em 1965, quando o país se tornou uma democracia multirracial. E aí começou a polarização que agora está matando nossa democracia. Portanto, não temos sido uma democracia tão robusta quanto gostaríamos de pensar.

Steven Levitsky afirma que 'Trump usou desta vez um discurso populista que seria bastante familiar em grande parte da América Latina'

Algo novo e diferente em relação, por exemplo, ao macarthismo [acusar alguém de comunismo ou traição sem respeitar o devido processo legal] é que temos agora um partido político inteiro afastado das normas democráticas e sob o controle de um único líder.

O Partido Republicano sempre foi um partido de múltiplas facções, comprometido com as regras democráticas, e agora não é nada disso. É um partido personalista que consente abertamente o autoritarismo.

É um grande perigo quando, num sistema bipartidário a nível nacional, há um partido que não está comprometido com a democracia, e é condescendente com o autoritarismo.

E Donald Trump também não tem precedentes. Nunca nos bem-aventurados 250 anos de história desta república, tivemos um presidente que se recusou a aceitar os resultados de uma eleição, tentou anular a eleição e depois usou violência para tentar impedir uma transferência pacífica de poder [uma referência à invasão ao Capitólio por parte de alguns dos seus apoiadores, em 6 de janeiro de 2021]. Este é um território novo.

Portanto, temos uma figura abertamente autoritária apoiada por todo um partido político. É uma situação política tão aterrorizante como eu acho que não tínhamos desde, pelo menos, a época da guerra civil.

BBC News Mundo - Donald Trump foi eleito presidente ao vencer desta vez no voto popular, e os EUA cumprem os critérios para serem classificados como uma democracia liberal...

Levitsky - Ambas as coisas são verdadeiras.

BBC News Mundo - Então, como ambas as coisas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo em que você diz que os EUA estão perdendo sua democracia?

Levitsky - A Venezuela era uma democracia liberal em 1998, quando Hugo Chávez ganhou de forma esmagadora no voto popular, em uma eleição livre e justa, totalmente democrática, e depois começou a desmantelar a democracia venezuelana.

Juan Perón foi eleito livremente nas eleições de 1946 na Argentina e, em seguida, começou a desmantelar a democracia argentina. Viktor Orbán foi eleito livremente na Hungria, assim como o AKP na Turquia em 2002.

Devemos deixar bem claro agora que o fato de um governo ser eleito não dá a ele o direito de ser rotulado como democrático, independentemente do que faça depois.

Se você for eleito livremente e começar a perseguir ou processar diretores de empresas, universidades, políticos, meios de comunicação que criticam o governo, você deixou de ser uma democracia.

Porque as democracias são regimes que realizam eleições livres e justas, mas também protegem as liberdades civis básicas dos cidadãos. E é isso que está ameaçado hoje nos EUA.

BBC News Mundo - Desde o primeiro mandato de Trump, você comparou as ações dele como presidente ao que os populistas latino-americanos fizeram. Você percebe cada vez mais semelhanças nesse sentido neste segundo mandato?

Levitsky - Em alguns aspectos, sim. A personalização do Partido Republicano, sem precedentes na história dos Estados Unidos, me lembra o tipo de relação que Perón e Chávez tinham com seu partido, ou que Ortega chegou a exercer sobre o partido sandinista na Nicarágua.

Este não era o caso nos EUA durante o primeiro mandato de Trump, então é algo novo.

Trump usou desta vez um discurso populista que seria bastante familiar em grande parte da América Latina.

'Diferentemente de 2016, não havia ambiguidade sobre a posição de Donald Trump em relação às normas democráticas', diz Levitsky (Getty Images)

Além disso, a politização do Estado por parte de Trump, algo que já aconteceu antes nos EUA e em outros países, e o uso do Estado como arma são bastante familiares na América Latina.

Assim, em vários aspectos, a democracia dos EUA, o regime dos EUA, começa a se parecer muito mais com muitos regimes da América Latina do que antes.

BBC News Mundo - Os populistas latino-americanos tendem a pressionar seus críticos e os meios de comunicação independentes que consideram ameaças aos seus planos. Você vê isso acontecendo nos EUA?

Levitsky - Sim, houve ameaças de usar a Comissão Federal de Comunicações para punir empresas de mídia que estão do lado equivocado para Trump.

Já houve processos judiciais frívolos movidos por Trump contra empresas de mídia por difamação, e outras autoridades do governo ameaçaram com mais.

Resta saber se o Departamento de Justiça vai ser mobilizado para investigar a oposição, empresários ou políticos.

BBC News Mundo - E como você avalia, comparando com a América Latina, uma postagem recente do presidente Trump nas redes sociais dizendo que "aquele que salva seu país não viola nenhuma lei"?

Levitsky - Não tenho certeza se há presidentes latino-americanos que diriam isso. Não acho que Milei diria isso. Talvez, sim...

BBC News Mundo - Mas há muitos que chegaram ao poder como "salvadores"...

Levitsky - Sim, isso me lembra um artigo muito importante que o cientista político argentino Guillermo O'Donnell escreveu há uns 30 anos sobre o que chamou de "democracia delegativa", em que presidentes latino-americanos eleitos livremente fariam campanha como "salvadores da pátria", dizendo: "Há uma crise enorme, só eu posso nos salvar".

O povo confiaria no presidente, que acumularia muito poder, e então governaria como bem entendesse. Ele estava se referindo a pessoas como Fujimori [no Peru], Menem [na Argentina] e Collor de Mello [no Brasil]. Exemplos mais recentes são Bukele [El Salvador], Chávez [Venezuela] e Correa [Equador].

Não é algo que tivéssemos visto nos EUA. Mas, acima de tudo, se trata de alguém que não é democrata. A presidência está nas mãos de uma figura autoritária. Ele nos disse isso repetidas vezes, e os americanos não prestaram atenção ou não se importaram.

BBC News Mundo - Você acha que essas semelhanças que observa entre o populismo latino-americano e as ações de Trump são meras coincidências, ou Trump segue uma espécie de manual?

Levitsky - Não acho que seja necessariamente um manual. Os eleitores são muito antiestablishment nas democracias do mundo todo, as elites políticas estão enfraquecendo drasticamente, especialmente por causa das redes sociais e do poder da internet.

É muito mais fácil ser populista hoje do que em meados do século 20.

Levitsky afirma que Trump conseguiu uma 'personalização' sem precedentes do Partido Republicano em torno da sua figura (Getty Images)

Portanto, acho que não se trata tanto de um manual, mas de uma espécie de método para se apresentar como um outsider político, atacando o establishment e o status quo, e depois personalizando o poder. É um conjunto de táticas políticas que não haviam sido muito utilizadas nas últimas décadas nos EUA, mas que vimos funcionando no mundo.

BBC News Mundo - A propósito, você está comparando Trump com presidentes latino-americanos de diferentes ideologias, como Chávez, Bukele, Correa e Fujimori... As divisões tradicionais entre esquerda e direita são irrelevantes neste sentido?

Levitsky - Há populistas de diferentes ideologias. O populismo não é uma coisa de esquerda ou de direita. Continua havendo esquerda e direita, mas os populistas podem aparecer em ambos os lados.

BBC News Mundo - Você também vê semelhanças com os países latino-americanos na forma como a oposição política atua nos EUA para equilibrar o poder do presidente Trump?

Levitsky - É muito difícil se opor a um governo populista autoritário. Muitas vezes, seus opositores têm dificuldades, como vimos na Venezuela, no Peru e no Equador.

Neste sentido, acho que os democratas têm uma certa vantagem. Eles estão em melhor forma, são um partido único que continua viável do ponto de vista eleitoral.

Mas depois da vitória de um populista, a oposição fica sempre estagnada e atordoada, muito insegura sobre o que fazer. É uma experiência humilhante. E, muitas vezes, a oposição leva anos para se recuperar.

Não é de se surpreender que o Partido Democrata tenha chegado a esse estado de choque e atordoamento, mas acredito que ele vai se recuperar mais rapidamente do que outras oposições.

BBC News Mundo - Muitos podem se perguntar se Trump é uma causa ou um sintoma da crise que você vê na democracia dos EUA. O que você diria?

Levitsky - Boa pergunta. Acho que são ambas as coisas.

Definitivamente, é um sintoma em vários aspectos. Mesmo antes de Trump, durante o governo Obama, já estava surgindo dentro do Partido Republicano uma facção populista radicalizada e cada vez mais antidemocrática, o Tea Party, que tinha muitos traços do Maga (acrônimo do movimento trumpista Make America Great Again).

Então isso, para mim, é uma reação mais ampla à transição dos EUA para uma democracia multirracial, que é realmente uma mudança muito drástica. Trump surge a partir disso.

Mas há coisas que Trump fez que nenhum outro político teria feito, como tentar anular os resultados das eleições de 2020. Portanto, há elementos nesta crise que são produto de Trump.

BBC News Mundo - Em uma entrevista que tivemos no início do primeiro mandato de Trump, você disse que o apelo dele para os brancos em geral era menos inclusivo do que o dos populistas latino-americanos que apelam para os pobres em geral.

E que esta distinção tornava difícil para Trump alcançar os altos níveis de apoio que Fujimori, Chávez e Evo Morales tiveram. Esta diferença continua sendo relevante para entender até onde pode chegar o poder de Trump?

Levitsky - Sim. Acho que Trump em 2024 foi mais populista do que em 2016. Sua mensagem antiestablishment e antigovernista alcançou mais eleitores não-brancos. Mas continua sendo principalmente um apelo etnonacionalista.

Levitsky observa semelhanças e diferenças entre Trump e políticos latino-americanos, como Hugo Chávez (Getty Images)

E embora Trump tenha vencido no voto popular, ele obteve 49,8% dos votos. Seu índice médio de aprovação é de 48,5%. Isso é alto para Trump, mas não chega nem perto do que pessoas como Chávez, Fujimori, Correa ou Bukele alcançaram. E ele nunca vai chegar nesse patamar.

BBC News Mundo - Isso significa que Trump não vai ser capaz de fazer coisas que outros presidentes com os quais você o compara foram capazes de fazer?

Levitsky - Correto. Fujimori, Correa e Chávez impuseram unilateralmente novas Constituições. E todos eles, assim como Bukele, conseguiram alterar ou burlar a Constituição para estender seus mandatos.

Não creio que Trump seja capaz de fazer isso. Ele pode abusar do poder, mas não mudar unilateralmente a ordem constitucional.

BBC News Mundo - Na mesma entrevista, perguntei se havia alguma lição que os EUA poderiam tirar do que aconteceu com o populismo na América Latina, e você disse que não tinha uma resposta clara, embora tivesse refletido muito sobre o assunto. Você chegou a uma conclusão oito anos depois?

Levitsky - Olha, não é muito feliz, mas uma lição que aprendemos ao observar as experiências populistas na América Latina, por exemplo, com Perón, Chávez, Correa, Fujimori, Bukele e Obrador, é que é realmente difícil ser oposição a um presidente populista bem-sucedido.

As derrotas rápidas de populistas que vemos costumam ser conduzidas pelos militares, e não queremos isso.

Então, nos casos do populismo latino-americano, não vemos muitas lições positivas para a estratégia da oposição.

Acho que o Brasil oferece algumas lições úteis, sem ser tanto um caso de populismo. Bolsonaro é um político de direita radical que nunca teve apoio generalizado.

Mas a forma como grande parte da sociedade civil respondeu à ameaça representada por Bolsonaro, a forma como até os políticos de direita aceitaram os resultados das eleições de 2022, e a forma como o sistema judicial, com todas as suas falhas e possíveis excessos, e as instituições brasileiras responderam a um ataque autoritário, responsabilizando política e judicialmente Bolsonaro, oferecem muito para os EUA aprenderem.

As instituições do Brasil responderam de forma mais eficaz do que as instituições dos EUA a Trump.

Gerardo Lissardy, originalmente para a BBC News Mundo, em 07.03.25

  • Role,BBC News Mundo

quinta-feira, 6 de março de 2025

Trump em estado bruto

No momento em que castiga México e Canadá com tarifas inexplicáveis e bagunça cadeias produtivas globais, Trump celebra a si mesmo e promete mais disrupção em discurso ao Congresso


Em discurso ao Congresso americano, na terça-feira, 4, Trump nominou o Brasil entre os alvos da ofensiva tarifária
 Foto: Ben Curtis/AP

O primeiro pronunciamento presidencial anual no Congresso americano de Donald Trump em seu novo mandato foi um sucesso – ao menos para os fins almejados por ele. Ecoando o discurso de posse – que por sua vez ecoou os comícios de campanha –, o pronunciamento foi calculado para humilhar os democratas, intimidar republicanos, unir o movimento trumpista Maga, mas, acima de tudo, celebrar o próprio Trump. Por isso, considerando os fins almejados pela Constituição – um diagnóstico ao Congresso acompanhado de recomendações – e pela tradição – uma demonstração cerimonial de unidade entre os Poderes –, o discurso foi um desastre.

Como bom populista, Trump invocou agendas populares: ampliar a produção de petróleo, cortar gastos perdulários da burocracia federal, reduzir impostos, deportar imigrantes que violam leis, proibir cirurgias de mudança de sexo em crianças e a participação de mulheres transgênero em esportes femininos. São políticas que o ajudaram a vencer o voto popular e os republicanos a vencer a Câmara e o Senado, e o fato de que os democratas ainda não aceitam que essas agendas têm amplo apoio da população só mostra por que perderam. Trump pretende reduzir tudo a uma luta de classes – a classe trabalhadora, defendida pelos republicanos, contra as elites identitárias entranhadas na administração pública.

Mas se Trump é mais popular do que os democratas gostariam, é menos do que ele imagina. Ao contrário do que sugerem suas mentiras e hipérboles, ele é relativamente impopular num início de mandato, com menos de 50% de aprovação.

É revelador que em seu longuíssimo discurso Trump tenha se omitido justamente sobre o tema de campanha que mais machucou os democratas. Com seis semanas de governo, Trump continua atribuindo a culpa pela inflação – como, de resto, por tudo de ruim no país – ao governo de Joe Biden, sem contudo dar nenhuma pista de como pretende reduzi-la.

Ao contrário, ele impôs 25% de tarifas ao Canadá e ao México e mais 10% sobre a China, sob o argumento de que protegerão a “alma da nação” e, como num passe de mágica, resolverão problemas como o narcotráfico. O mercado de ações caiu, pela óbvia razão de que as tarifas contra México e Canadá são inexplicáveis, e os economistas projetam mais inflação, prejuízos para a indústria e para os exportadores agrícolas e ampla disrupção nas cadeias globais de produção. Trump diz que será só um “pequeno distúrbio”, mas logo deve descobrir que para os eleitores, sobretudo para a classe trabalhadora, o distúrbio é imenso.

No front externo, Trump não terminou a guerra da Ucrânia em 24 horas, como prometeu, mas está perto disso. Só que o que chama de “paz” são a capitulação da Ucrânia e o triunfo da Rússia, isto é, um interlúdio para novas guerras. Os americanos muito provavelmente não votaram para que seu presidente impusesse indiscriminadamente tarifas sobre aliados, e menos ainda para que alienasse aliados, como faz com os europeus, e reabilitasse adversários, como faz com a Rússia.

Mais significativa que os conteúdos presentes ou ausentes no discurso foi a posição de seu destinatário. Nunca o Congresso pareceu tão irrelevante. Trump falou muito do que fez e pouco do que fará, mas, em todo caso, promove poucas negociações com o Congresso, o que sugere escassa confiança na maioria republicana.

De fato, o protecionismo comercial e o desmonte da aliança transatlântica podem ser populares entre os trumpistas, mas não entre os republicanos tradicionais. Que a escolhida pelos democratas para responder ao discurso de Trump, a senadora Elissa Slotkin, uma moderada, tenha concentrado suas críticas nesses pontos sugere que um exame de consciência pós-eleições pode estar surtindo frutos. Um governo construído sobre ordens executivas pode ser bombástico, mas também efêmero. Outra legislatura pode revertê-las rapidamente.

Por isso, Trump tem pressa e submeterá os freios e contrapesos da república americana a um teste de estresse. Seu discurso no Congresso mostra isso. Nessa toada, muitos desses freios e contrapesos podem quebrar irremediavelmente.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 06.03.25

Trump dobra a aposta no confronto

Presidente se compromete com ações drásticas, como a ofensiva tarifária e o alinhamento com Putin em relação à Ucrânia


Donald Trump, presidente dos EUA, discursa no Congresso, em Washington - Mandel Ngan - 4.mar.25/Pool via Reuters

A imagem mostra uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos, com um grande número de pessoas presentes. No primeiro plano, um homem de costas, aparentemente falando, com os braços abertos. Atrás dele, há uma plateia composta por membros do Congresso, juízes e outras pessoas, algumas aplaudindo e outras em pé. O ambiente é formal, com bandeiras e símbolos do governo ao fundo.

Em 1987, quando era só um polêmico empreendedor, Donald Trump lançou um livro, escrito de fato pelo jornalista Tony Schwartz, chamado "A Arte do Negócio", sobre sua suposta genialidade empresarial.

A obra pode ser um guia para entender a mente do presidente americano, que suscita alarme com sua abordagem agressiva em temas como a ofensiva tarifária, a Guerra da Ucrânia ou o futuro da Faixa de Gaza.

Se está mantido o ideário negocial do Trump de quase 40 anos atrás, todas as ameaças seguem uma lógica: tumultuar o ambiente e assustar ao máximo o rival com exigências absurdas para, ao fim, arrancar concessões.

É uma leitura plausível dos acontecimentos, mas que não chega a ser tranquilizadora. Passados 45 dias de sua volta à Casa Branca, o republicano parece dobrar a aposta no confronto.

A começar pela guerra tarifária, que foi disparada contra os vizinhos México e Canadá e logo suspensa. Agora, as alíquotas de importação de 25% entraram em vigor, assim como os 20% aplicados sobre produtos chineses, o alvo real do equilíbrio comercial pretendido no discurso de Trump.

Ainda falta o teste da realidade para o argumento de que tal protecionismo vai gerar empregos, mas a ideia de que ele fará com que os EUA importem inflação está bastante consolidada. A medida acarreta juros mais altos, numa espiral de impactos no varejo doméstico e para consumidores de outros países, como o Brasil.

Dada a interconexão entre as maiores economias do mundo, EUA e China, a resultante dessa escalada tende a ser nefasta.

Na Europa, Trump ungiu Volodimir Zelenski como seu bode expiatório, armando uma espécie de emboscada ao vivo em encontro na Casa Branca. A partir dessa debacle histórica, com direito a bate-boca e expulsão do visitante, o americano suspendeu a ajuda militar à Ucrânia na sua luta contra Vladimir Putin.

Zelenski pediu perdão, mas parece improvável que o republicano vá deixar o alinhamento com o autocrata russo. Aqui, não seguiu o conselho central de seu livro: "A pior coisa que você pode fazer em uma negociação é parecer desesperado para fechá-la".

O embate azedou as relações entre Trump e a Europa, com a aliança militar Otan à frente. Governantes no continente correm a fazer contas para se rearmar, o que leva tempo e, ao fim, favorecerá empresas americanas.

Toda essa movimentação foi reafirmada no primeiro discurso do mandatário ao Congresso nesta gestão, com outros aspectos inquietantes. O anômalo ideário de enxugamento da máquina pública pelas mãos do bilionário Elon Musk foi aclamado, e Panamá e Groenlândia foram de novo ameaçados, assim como políticas ambientais e de diversidade.

Sem possibilidade de reeleição e em cenário muito mais favorável a ações drásticas do que no primeiro mandato, o Trump de 2025 confronta-se com o de 1987; resta saber qual prevalecerá.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 06.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

A mentira como verdade

Os que hoje gritam cinicamente por liberdade de expressão querem usá-la justamente para suprimi-la


Reprodução da capa do jornal Pravda, que circulou na extinta União Soviética - Alekseev/Reprodução/Wikimedia

O principal canal de Donald Trump para disseminar mentiras chama-se Truth Social —Confederação da Verdade ou algo assim. É a rede social fundada por ele em 2021, destinada a disparar textos, posts e arquivos para os lorpas americanos. Mas, se a extrema direita acha que essa tática de fazer da mentira a verdade é de sua invenção, engana-se. Foi usada com grande sucesso pela União Soviética de 1917 a 1991, através de seu jornal oficial, Pravda, editado pelo Partido Comunista com a função de encobrir os crimes do Estado. Pravda, em português, quer dizer verdade.

Em "1984", romance de George Orwell, a mentira era também a especialidade do Ministério da Verdade, órgão dedicado a "corrigir" periodicamente a história, falsificando informações e convertendo antigos heróis em inimigos do regime. Seu slogan era "Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado". Seu modelo era o mesmo Pravda, que apagava das fotos os velhos revolucionários que tinham se voltado contra Stálin.

Outra tática dos comunistas era inverter o sentido de certas palavras. Os países-satélites da URSS no Leste Europeu, tristes ditaduras subjugadas a Moscou, eram chamados de repúblicas "populares" ou "democráticas". O povo a que elas se referiam era o Comitê Central do Partido Comunista local, que supostamente o representava. Da mesma forma, na Alemanha, o nazismo era uma abreviatura de "nacional-socialismo". Não tinha nada de socialista, mas a palavra ajudou-o a consolidar-se.

Corromper palavras é típico dos autoritários de qualquer cor política. Bolsonaro e seus esbirros, adeptos da ditadura militar que asfixiou o Brasil por 21 anos, têm o cinismo de gritar por "liberdade de expressão" —liberdade que querem usar justamente para suprimi-la se voltarem ao poder. É o mesmo cinismo com que dizem "o Brasil acima de tudo" enquanto municiam Trump para afrontar a soberania brasileira.

O perigo não está só na mentira, mas, pior ainda, na mentira como verdade.

Ruy Castro, o autor desta crônica, Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 06.03.26

Gasto do Judiciário é anomalia e Congresso precisa agir

Projeto para enquadrar despesas com supersalários no setor está parado no Senado e governo apresentou proposta melhor

Imagem aérea da Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira/Folhapress

Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), por iniciativa do ministro Flávio Dino, impôs algum nível de transparência à origem, propósito e destinação das bilionárias emendas parlamentares, o Congresso deveria, mesmo que em forma de salutar resposta, tomar a iniciativa de regular os gastos do Poder Judiciário.

Eles tornaram-se uma anomalia no Brasil, onde uma casta do funcionalismo se apropria do dinheiro público de forma voraz, sem que isso se traduza em eficiência para o sistema de Justiça.

País de renda média e com enormes desafios no campo da desigualdade social, o Brasil sustenta privilégios escandalosos para juízes, desembargadores e servidores do setor. Algo que requer, o quanto antes, uma ação contundente a fim de que possam ser eliminados.

Notícias sobre rendimentos na casa de centenas de milhares de reais pagos a magistrados e desembargadores, muito acima do teto constitucional, tornaram-se corriqueiras e, infelizmente, quase não chocam mais. Trata-se de dinheiro de impostos, e os chamados penduricalhos custaram nada menos que cerca de R$ 40 bilhões entre 2018 e 2023.

Não apenas no topo. Dados oficiais mostram que a remuneração dos servidores do Judiciário nos últimos 40 anos ultrapassou em várias vezes o reajuste concedido à média do funcionalismo federal, estadual e municipal.

Outro levantamento, do Tesouro Nacional, revela que o gasto do poder público brasileiro com os tribunais de Justiça, incluindo a remuneração de magistrados e funcionários, é o segundo maior entre 50 nações analisadas. O sistema custa aqui quatro vezes mais que a média internacional.

O Brasil despende cerca de 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) com o Poder Judiciário, ante 0,3% em outros países. Apenas El Salvador tem um gasto maior com tribunais, de 1,6% do PIB.

Não há nenhuma justificativa para isso, apenas o fato de, encastelados, juízes e desembargadores legislarem em causa própria, com autonomia para se apropriar do Orçamento na União e, principalmente, nos estados.

Tal situação ocorre por omissão do Congresso Nacional, onde dormita no Senado, desde 2021, projeto para limitar o pagamento de benefícios acima do teto. É lamentável que, mesmo considerando mais de 30 exceções que permitiriam a existência de penduricalhos, a matéria não tenha sido analisada até hoje.

No final do ano passado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em iniciativa sensata, encaminhou ao Legislativo uma Proposta de Emenda Constitucional que pretende substituir o projeto ora parado no Senado, de forma a limitar as brechas para pagamentos acima do teto.

Em nome da moralidade e do equilíbrio orçamentário, o Congresso deveria encarar já a matéria. Seria uma conveniente resposta ao STF pela fiscalização das emendas. Os dois movimentos tornariam o Brasil mais justo.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 05.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 3 de março de 2025

Europeus se oferecem como fiadores da paz na Ucrânia

Reunidos em Londres com Zelenski, líderes europeus e de países da aliança militar Otan querem ajudar Kiev a retomar negociações com Trump e apaziguar americano após bate-boca na Casa Branca.

Líderes europeus e da aliança militar Otan se reuniram em Londres com Volodimir Zelenski para discutir apoio à Ucrânia após fiasco de negociações de paz mediadas pelos EUA. (Foto: Christophe Ena/AP/picture alliance)

O Reino Unido e a França, as duas potências nucleares da União Europeia, estão encabeçando uma "coalizão dos dispostos" a garantir a paz na Ucrânia – isto é, a defendê-la militarmente com tropas e armamentos –, anunciou neste domingo (02/03) o premiê britânico, Keir Starmer, após reunião em Londres com lideranças de 18 países.

A coalizão entraria em cena após a assinatura de um cessar-fogo apoiado pelos americanos. Deste modo, os europeus querem desencorajar novos ataques russos contra a Ucrânia, transformando-a num "porco-espinho de aço indigesto para potenciais invasores", nas palavras da chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

"Nosso ponto de partida deve ser colocar a Ucrânia na posição mais forte possível agora, para que eles possam negociar a partir de uma posição de força, e estamos reforçando nosso apoio", disse Starmer ao final da reunião. "Os que estiverem dispostos [a aderir à coalizão] vão intensificar seus planejamentos agora com verdadeira urgência.

Participaram das discussões governantes europeus e do Canadá e da Turquia, além do chefe da aliança militar Otan, Mark Rutte, e do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski.

O encontro já estava planejado, mas ganhou caráter de urgência após a implosão de um acordo para exploração de terras raras ucranianas pelos Estados Unidos. Essa proposta é encampada pelo governo de Donald Trump como solução para o fim da guerra na Ucrânia.

O tratado deveria ter sido assinado na sexta-feira, mas acabou suspenso após Trump e seu vice, JD Vance, baterem boca com Zelenski e o acusarem de ingratidão. A insistência dele em garantias de segurança irritou Trump, que o despachou da Casa Branca e disse que só voltaria a conversar quando ele "estiver pronto para a paz".

Segundo Starmer, o Reino Unido está preparado para ser o fiador da paz na Ucrânia "com botas no terreno e aviões no ar, junto com outros [países]". O britânico, porém, frisou que embora a Europa tenha que dar conta da parte mais difícil desse trabalho, a paz no continente depende de um apoio sólido dos Estados Unidos – a quem os europeus agora tentarão persuadir.

Apesar de serem potências nucleares, o Reino Unido e a França não dispõem de um poderio militar comparável ao dos EUA. Eles querem convencer Trump de que a Europa é capaz de aumentar seus gastos militares e se defender, mas que a Rússia só irá respeitar um acordo se ele também for respaldado militarmente pelos americanos.

"Rearmar a Europa"

Von der Leyen disse que a União Europeia precisa "se preparar para o pior" e defendeu aumentar o "espaço fiscal" para manter elevados investimentos em defesa por "um período prolongado de tempo". O bloco encaminhará um plano em 6 de março para "rearmar urgentemente a Europa".

Assim como outros líderes europeus, Von der Leyen defendeu que a Ucrânia precisa de "garantias abrangentes de segurança". Segundo ela, a UE está pronta para "defender, junto com os EUA, a democracia e o princípio de que há um Estado de Direito, de que não se pode invadir [...] e atordoar vizinhos ou mudar fronteiras à força".

O chanceler federal alemão, Olaf Scholz, que deve ceder o cargo nas próximas semanas para o conservador Friedrich Merz, também defendeu a autonomia ucraniana, posicionando-se contra um veto da Rússia à entrada de Kiev na UE. Segundo Scholz, também não cabe à Rússia condicionar a paz à desmilitarização do país.

A Alemanha, que é a maior economia da UE e acabou de sair de uma eleição, até agora vinha evitando a discussão sobre o envio de tropas alemãs à Ucrânia. O assunto era considerado delicado e os conservadores, que venceram o pleito, descartaram a ideia durante a campanha.Resta saber se eles mudarão de ideia agora.

Starmer reconheceu que será preciso envolver Moscou num acordo de cessar-fogo, mas frisou que, diante de seu histórico de desrespeito a acordos, o presidente russo, Vladimir Putin, não deveria poder ditar quais garantias serão oferecidas à Ucrânia.

Ele justificou o apoio europeu à Ucrânia como necessário à estabilidade e segurança do próprio Reino Unido e de todo o continente. "O caminho para garantir estabilidade é garantir que somos capazes de defender um acordo na Ucrânia. Porque tem uma coisa que nossa história nos ensina: se há conflito na Europa, os dejetos acabam nas nossas praias."

Além do empréstimo de 2,26 bilhões de libras esterlinas (R$ 16,75 bilhões) à Ucrânia anunciado no sábado, Starmer prometeu mais 1,6 bilhão de libras esterlinas em financiamento para compra de "mais de 5 mil mísseis de defesa aérea" de fabricação britânica.

O anúncio deste domingo deve implicar o aumento de gastos com Defesa num contexto de arrocho fiscal, possivelmente demandando cortes em outras áreas, como gastos com assistência social, educação e investimentos em infraestrutura.  (a/as (DPA, Reuters, ots)

Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 03.03.25

'"Ainda Estou Aqui" ensina aos jovens o que realmente significa viver em uma ditadura'

Indicada ao Oscar 2025 de Melhor Atriz, a brasileira Fernanda Torres comparou o prêmio ao Everest, a montanha mais alta do mundo.

'Eu não meço a vida em termos de ganhar ou perder', disse Fernanda Torres à BBC

"Se eu conseguir um lugar na base 1 do Everest, eu ficarei mais que satisfeita, mas ganhar...",disse a atriz em entrevista ao programa de rádio Weekend, do serviço mundial da BBC, dias antes da indicação ao prêmio da Academia americana.

"Eu odeio expectativas. Sou uma pessimista por natureza. E o que vier, vou ficar feliz. Sabe, estou mais do que feliz com o meu pesado Globo de Ouro na minha mala."

"Mas eu não meço a vida em termos de ganhar ou perder", afirmou então.

Ainda estou aqui recebeu mais duas indicações, além da da atriz: Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro. É a primeira vez que um filme brasileiro é indicado na principal categoria do Oscar.

Fernanda Torres vence Globo de Ouro: 'Às vezes você sonha que seus filhos te ponham no colo, mas não dá certo. O papel da mãe é segurar'

A carioca foi a primeira atriz brasileira a levar o Globo de Ouro, derrotando nomes conhecidos mundialmente como Nicole Kidman, Tilda Swinton e Kate Winslet.

Ela comparou ter ganhado o Globo de Ouro a subir o K2, a segunda montanha mais alta do mundo.

Uma tonelada de cocaína, três brasileiros inocentes e a busca por um suspeito inglês

"Eu era o cavalo azarão naquela noite, e foi bonito de ver, porque é um ano muito especial para performances femininas — performances incríveis, e também coisas muito bonitas de mulheres maduras", afirmou à BBC.

A atriz de 59 anos dedicou o Globo de Ouro à sua mãe, Fernanda Montenegro — que, em 1999, foi indicada ao mesmo prêmio e ao Oscar de melhor atriz por sua atuação em Central do Brasil, mas perdeu para Cate Blanchett e Gwyneth Paltrow, respectivamente.

A conexão entre as conquistas de mãe e filha é inevitável — inclusive porque tanto Central do Brasil quanto Ainda estou aqui foram dirigidos por Walter Salles.

E é interpretando uma mãe da vida real que Fernanda Torres está alcançando voos tão altos com Ainda estou aqui: ela faz o papel de Eunice Paiva (1929-2018), esposa de Rubens Paiva, político brasileiro desaparecido e morto durante a ditadura militar no Brasil.

O longa é baseado em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, um dos cinco filhos de Eunice e Rubens.

"Marcelo escreveu o livro porque a mãe dele estava começando a ter Alzheimer. Ele pensou: se eu não escrever isso, a memória dela vai ser esquecida junto com a memória do país", relatou a atriz.

Para Torres, o filme está ensinando aos jovens "o que realmente significa viver em uma ditadura", em um momento em que o Brasil "estava perdendo sua memória".

"Muitos jovens que foram criados durante o período democrático... A democracia não resolveu nossos problemas, a desigualdade e tudo mais. Eles [os jovens] começaram a pensar que talvez uma economia liberal com um toque de ditadura iria resolver nossos problemas, porque eles não tinham qualquer memória da ditadura."

A atriz considera que o momento atual é "distópico" — como o período retratado no filme.

"Não é só no Brasil. Acho que a Eunice Paiva e a família Paiva foram vítimas da Guerra Fria, um momento muito distópico no mundo", afirmou. "E tem muito a ver com o momento que estamos vivendo agora, eu acho."

'Não é um filme que te destrói'

À esq., foto de família com Eunice, Rubens e Babiu (filha caçula) em 1970; à direita, cena do filme

Fernanda relata que, mesmo diante de um drama familiar e político do país, Eunice decidiu "não se tornar uma vítima".

"Eunice sempre teve essa percepção de que, se se colocasse como uma vítima, a ditadura teria ganhado", diz a atriz, citando a marcante cena de Ainda estou aqui em que Eunice insiste em sorrir com os filhos para um retrato, após o fotógrafo de uma revista sugerir que a família — já sem Rubens Paiva — posasse de uma forma "menos feliz".

"Mesmo nas entrevistas que eu assisti para interpretar Eunice, ela sempre estava sorrindo."

Segundo a atriz, Eunice foi "criada para ser a dona de casa perfeita dos anos 1950".

"Foi criada para ser a grande mulher por trás do grande homem", comentou Torres.

"Então ela é uma mulher que, depois de abrir mão da vida utópica dela, é aí que ela se torna ela mesma."

"Ela conseguiu sair e se reinventar depois de uma tragédia como essa", disse a atriz na entrevista à BBC, acrescentando que Eunice Paiva formou-se em Direito aos 46 anos e se tornou uma ativista pelos direitos humanos e pelos povos indígenas.

Era uma "mulher à frente do seu tempo", concluiu Torres.

"É um filme sobre uma história triste, mas você sai do cinema muito tocado e com sentimento de esperança, eu acho. Não é um filme que te destrói. É um filme sobre uma família que foi capaz de sobreviver sorrindo, dizendo 'sim' para a vida."

Publicado originalmente por BBC News, em 03.03.25

sábado, 1 de março de 2025

Vem aí a ministra da discórdia

Ao trazer Gleisi Hoffmann para o governo, Lula mostra que está disposto a ir para o tudo ou nada pela reeleição, ainda que isso prejudique a governabilidade e implique riscos para o País

O presidente Lula da Silva confirmou na tarde de ontem que a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, será a substituta do ministro Alexandre Padilha na Secretaria de Relações Institucionais (SRI). A deputada paranaense, portanto, ficará incumbida da articulação política do governo com o Congresso a partir do próximo dia 10 de março, quando está prevista sua posse.

São incertos os resultados da ida de Gleisi para a SRI no que concerne aos interesses político-eleitorais do presidente da República, mas as agruras do PT e de Lula nesse particular são irrelevantes. Para o País, contudo, não poderia ter havido escolha pior para uma área tão sensível do governo – e uma das mais carentes de competência e espírito público.

Gleisi Hoffmann é a antítese do esforço de concertação política de que o Brasil precisa para avançar em uma agenda virtuosa comum, que seja capaz de exprimir o melhor interesse público em meio às rusgas ideológicas que não raras vezes têm travado o bom debate político no Brasil. Como presidente do PT, Gleisi pode até ter contribuído, como Lula argumenta, para a formação de palanques durante a campanha vitoriosa do petista em 2022, articulando sua candidatura com uma variada gama de partidos. Mas, àquela época, tratava-se exatamente disto, de uma campanha eleitoral – e contra um incumbente amplamente rejeitado.

Com Lula eleito e empossado, a sra. Gleisi Hoffmann não contribuiu com uma palavra sequer para a pacificação do País nem tampouco para a construção daquela agenda virtuosa, que haveria de derivar de um governo que refletisse, de fato, a frente ampla que o elegeu. Muitíssimo ao contrário. Passada a eleição, a presidente do PT se esmerou no papel de agente da discórdia, não raro sabotando políticas do próprio governo petista, em particular as formuladas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Portanto, a decisão do presidente de nomear Gleisi Hoffmann para o cargo de ministra das Relações Institucionais, longe de trazer alívio, liga um incandescente sinal de alerta para a estabilidade política do País. Tida e havida como uma das figuras mais polarizadoras da política brasileira, Gleisi Hoffmann, uma vez encarregada da articulação política com o Congresso – e, por extensão, com o conjunto da sociedade –, pode representar um passo decisivo em direção à ingovernabilidade.

Ao contrário do que seriam os atributos ideais de alguém à frente da SRI, Gleisi sempre se comportou como um obstáculo à pacificação do País – não raro manifestando certo orgulho por isso. Ao invés de promover o diálogo, ela tem sido mais uma advogada incansável de posições radicalmente opostas àquelas defendidas por uma parcela significativa da população brasileira e às vezes até pelo próprio governo, como evidenciam as suas diatribes contra o mercado financeiro, o Banco Central, o Congresso, a direita em geral e países alinhados com os valores liberais democráticos, cerrando fileiras na defesa de autocracias repulsivas por alinhamento ideológico, pura e simplesmente.

Esse perfil de enfrentamento incessante – decerto admirado por um presidente que se ressente da falta de “agressividade” de alguns de seus ministros – faz com que a escolha de Gleisi para a articulação política se torne mais preocupante do que normalmente já seria. Trata-se de uma função que exige, por óbvio, habilidade política, tato e capacidade de transitar entre diferentes espectros ideológicos – atributos que Gleisi não tem. A bem da verdade, nem precisaria ter, pois sempre que instado a decidir entre a competência e a fidelidade canina de seus correligionários, Lula nunca titubeou ao fazer sua escolha.

Por tudo isso, ao invés de ajudar a construir pontes e restabelecer os laços comuns entre os brasileiros, malgrado suas eventuais dissensões ideológicas, Gleisi tem se destacado por seu especial denodo em erigir muros. Isso reforça que, premido pela queda recorde de sua aprovação, Lula parece disposto a ir para o tudo ou nada pela reeleição, ainda que isso prejudique a governabilidade e implique consequências imprevisíveis para a estabilidade política e econômica do País. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 01.03.25