sábado, 25 de janeiro de 2025

'Trump mente sobre o Canal do Panamá. É preciso checar se amigos dele não têm interesses lá'

Trump considera que a América Latina é irrelevante para os Estados Unidos. E também diz que ela deve se comportar de determinada maneira para merecer algo positivo.


Donald Trump assinou dezenas de ordens executivas imediatamente após o início do seu segundo mandato presidencial nos Estados Unidos. (Getty)

Para Juan Gabriel Tokatlian, doutor em relações internacionais pela Universidade Johns Hopkins de Washington, nos Estados Unidos, Donald Trump retorna à Casa Branca com uma lista de assuntos pendentes em suas relações com a América Latina.

"Trump chega frustrado com a América Latina pelo que não conseguiu no seu primeiro mandato", declarou o ex-reitor e atual professor da Universidade Torcuato Di Tella, de Buenos Aires, na Argentina. Ele conversou com a BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, de sua propriedade perto de Medellín, na Colômbia, onde morou por 18 anos.

"Acredito que iremos observar esta mistura de desinteresse e fúria pela América Latina representada nas suas primeiras ações [no governo]", declarou o reconhecido analista e pesquisador argentino.


Juan Tokatlian é doutor em relações internacionais pela Universidade Johns Hopkins, de Washington DC, nos Estados Unidos.(Crédito: Universidad Torcuato Di Tella)

Tokatlian acaba de publicar seu livro Consejos No Solicitados sobre Política Internacional ("Conselhos não solicitados sobre política internacional", em tradução livre), que reúne suas conversas com a jornalista Hinde Pomeraniec.

A obra analisa as relações de Trump com o México, o posicionamento de Washington frente a Nicolás Maduro e o vínculo com a China na sua disputa pela influência na América Latina.

Confira abaixo a entrevista.

BBC News Mundo - Como o sr. analisa esta nova etapa nas relações entre os Estados Unidos e a América Latina?

Juan Gabriel Tokatlian - Se fizermos uma análise histórica dos discursos de posse dos presidentes dos Estados Unidos no último século, o papel da América Latina na mensagem de Trump na segunda-feira [20/1] é incomum.

Trump não mencionou nenhum país ou região, a não ser por dois anúncios vinculados à América Latina: a fronteira sul dos Estados Unidos e o Canal do Panamá.

Ele quis mostrar que estava voltando com força frente à região, mas seu discurso apresentou um paradoxo. Para Trump, os Estados Unidos enfrentam um estado calamitoso, uma espécie de impotência, que ele resolve de forma totalmente prepotente.

Ele afirma que irá recuperar os Estados Unidos, mas parte da mesma debilidade exposta por ele próprio.

BBC News Mundo - Como o sr. acredita que Trump veja a América Latina?

Tokatlian - Tanto na campanha de 2016, que o levou à Presidência, quanto na de 2024, tudo o que se referia à América Latina fazia parte de uma agenda negativa: criminalidade, narcotráfico e migração.

Para Trump, pelo menos no discurso de campanha e depois de ser eleito presidente, a América Latina não tinha nenhum valor positivo. Acredito que irá continuar desta forma.

Mas Martha Cottam, autora do livro Foreign Policy Decision Making ["Tomada de decisões na política externa", em tradução livre], utiliza a imagem da ameaça e da dependência para analisar a política externa americana.

A imagem da ameaça é a de um país ou região que coloca em risco a segurança nacional e a própria sobrevivência dos Estados Unidos. Antes, era a União Soviética. Agora, é a China.

A imagem da dependência é a do país ou região que, para os Estados Unidos, não entende que suas ações possam prejudicar este país. É aquele que não percebe os danos que pode provocar, por exemplo, com o narcotráfico ou a migração.


O governo americano cancelou as reuniões com solicitantes de asilo no país assim que Donald Trump assumiu a presidência. (EPA)

BBC News Mundo - Então Trump vê a América Latina como "dependente", mais do que como ameaça...

Tokatlian - Sim, para Trump, a América Latina é a imagem do dependente. E, acima de tudo, ele a infantiliza.

Trump considera que a região é irrelevante para os Estados Unidos. E também diz que ela deve se comportar de determinada maneira para merecer algo positivo.

A imagem da América Latina como dependente atravessa diversos governos além de Trump. Mas, com ele, ela se fortalece e inclui também um componente de revanche.

BBC News Mundo - Por que de revanche?

Tokatlian - O livro do seu último secretário de Defesa, Mark Esper [A Sacred Oath: Memoirs of a Secretary of Defense During Extraordinary Times – "Juramento sagrado: memórias de um secretário de Defesa durante tempos extraordinários", em tradução livre], conta que Trump queria aumentar o bloqueio total a Cuba, iniciar uma política de ataque em laboratórios de fentanil no México e derrubar Maduro, na Venezuela.

Trump continua tentando, em parte, impor esta agenda. Mas ele chega frustrado com a América Latina, pelo que não conseguiu fazer no seu primeiro mandato.

Além disso, seu nível de desinteresse pela região naquele momento foi total. Ele foi o primeiro presidente, em mais de 60 anos, a não fazer nenhuma visita oficial a um país latino-americano. Ele só compareceu à cúpula do G20 na Argentina, em 2018.

Acredito que iremos ver esta mistura de desinteresse e fúria pela América Latina representada nas suas primeiras ações no governo.


Para Tokatlian, o retorno de Trump ao poder traz um componente de revanche contra a América Latina. (Getty)

BBC News Mundo - O sr. escreveu que, com o regresso de Trump, observamos a volta da Doutrina Monroe, "a América para os americanos". A disputa pela América Latina agora é com a China, no lugar da Europa?

Tokatlian - Trump retoma a Doutrina Monroe, mas com um detalhe.

Quando os Estados Unidos instrumentalizaram esta ideia, seu objetivo era evitar militarmente a expansão da Europa rumo às suas ex-colônias. O desafio era militar.

Agora, no caso da influência da China, não existe nenhuma expansão militar chinesa. Na verdade, o que observamos é um participante que ingressa e se projeta na América Latina, com recursos, investimentos, assistência e presença.

Por isso, se Trump quiser aplicar à China uma nova versão da Doutrina Monroe, como não há uma ameaça militar direta de Pequim, ele enfrenta um "dilema de recursos e compromissos".

Mas os americanos exigem compromissos sem oferecer recursos. Eles querem que os países da América Latina os sigam sem que eles coloquem um dólar, o que é um equívoco absoluto e pode causar muitos danos.

À medida que aumentar a disparidade entre poucos recursos e mais compromissos, Washington irá aumentar as retaliações, recorrendo mais à ameaça da força e jogando no limite da chantagem.


Existe forte rejeição no Panamá à posição de Donald Trump sobre o canal. (Getty)

BBC News Mundo - A reivindicação do Canal do Panamá por Trump vai nesta direção?

Tokatlian - Sim, mas o que Trump diz sobre o papel da China no Canal do Panamá é falso.

Trump afirma que um dos terminais no Pacífico e outro no Atlântico são controlados por uma empresa chinesa. Mas os dois outros grandes terminais são operados por capital ocidental. Ou seja, o canal não está sob o controle da China.

Além disso, os Estados Unidos nunca tiveram problemas com o Panamá a este respeito. Mais de 40% das suas exportações para a Ásia cruzam o canal, que sempre funcionou e operou sem nenhuma dificuldade.

É preciso recordar que o Panamá mantinha relações diplomáticas com Taiwan até o ano de 2017, quando decidiu rompê-las para estabelecer relações com a República Popular da China. Esta foi uma mudança muito importante do ponto de vista de Washington.

Isso significa que o canal foi dominado pelos chineses? Não. Isso quer dizer que Washington deveria ter feito muito mais para recuperar sua influência e projeção no Panamá.

BBC News Mundo - Então por que o sr. acredita que Trump coloca este tema na mesa de discussões?

Tokatlian - Acho que, aqui, é preciso verificar se existem interesses particulares de amigos de Trump no Panamá, porque a China não afetou a neutralidade do canal, nem fez nada para colocar em xeque o eventual aumento de investimentos americanos.

Por isso, presumo que, aqui, entra o mundo dos negócios. Se compreendermos este quadro, ficará mais claro que, por trás de uma suposta rubrica geopolítica estratégica, o que existe é uma disputa por parcelas de negócios.

Por isso digo para não olharmos apenas para Washington e Nova York ao analisar os Estados Unidos.

É preciso também observar a Califórnia, onde estão as empresas de tecnologia que, nesta última corrida eleitoral, fizeram um movimento massivo e decisivo a favor de Trump, e para a Flórida, porque este Estado ocupa um lugar inusitado neste novo gabinete.


Os executivos das principais empresas de tecnologia (Mark Zuckerberg, Lauren Sanchez, Jeff Bezos, Sundar Pichai e Elon Musk) presenciaram a posse de Donald Trump para seu segundo mandato. (Getty)

BBC News Mundo - No seu último livro, o sr. descreve a América Latina não como irrelevante para os Estados Unidos, mas como uma região que perdeu gravitação. O que significa isso e qual é a resposta da América Latina a esta posição de Trump?

Tokatlian - A América Latina é uma região com menos gravitação, porque seu peso global é menor do que era 50 anos atrás.

Mas esta perda de gravitação não significa que ela seja irrelevante, pois é uma região rica em minérios, hidrocarbonetos e alimentos.

Existem muitos atributos que, se funcionassem em associação e não unilateralmente, nos dariam pelo menos alguma capacidade de negociação. Mas não existe uma posição regional frente aos Estados Unidos, já que vivemos a maior fragmentação e fratura política da América Latina desde a década de 1960.

A América Latina está totalmente fragmentada. Nossos mecanismos de associação não funcionam. O Mercosul vive encalhado, a Aliança do Pacífico deixou de existir e a Celac não chega a consensos.

Por isso, presumo que, ante os Estados Unidos, observaremos mais políticas bilaterais, ou seja, Argentina com os Estados Unidos, Brasil com os Estados Unidos, Chile com os Estados Unidos – e não regionais, o que favorece Trump.

BBC News Mundo - O sr. costuma dizer que, na América Latina, existe um país que mantém posições políticas diferentes do restante da região: o México. Como o sr. vê as relações deste país com Donald Trump?

Tokatlian - As relações dos Estados Unidos com o México foram, são e serão fundamentais.

O México é o parceiro comercial mais importante dos Estados Unidos. Sua relação bilateral, em termos de intercâmbio comercial, é de US$ 807 bilhões (cerca de R$ 4,8 trilhões) por ano. Os Estados Unidos não mantêm este tipo de intercâmbio com os outros países da América Latina.

Mas, além deste tema, existe o fentanil, o narcotráfico, a deportação dos migrantes mexicanos e da América Central e a declaração dos cartéis como sendo organizações terroristas.

Neste sentido, acredito que o México tentará proteger a relação, pois tem muito a perder. Não é nenhuma novidade.

Insisto que é uma continuidade. É preciso ver se o México muda de posição, não os Estados Unidos.


O combate ao narcotráfico é um dos principais pontos nas relações entre os Estados Unidos e o México. Claudia Sheinbaum, Presidente do México. (Getty Images)

BBC News Mundo - Em relação ao México, Trump assinou uma ordem executiva que designa os cartéis e as gangues criminosas como organizações terroristas. O que isso significa?

Tokatlian - Isso significa que haverá uma pressão maior sobre o México, porque El Salvador já está fazendo sua parte de forma brutal. Mas esta mensagem também se dirige à presença dessas gangues no território americano.

Trump identificou organizações mexicanas, salvadorenhas e uma venezuelana, mas não acrescentou os grupos armados colombianos, que poderiam ter sido incluídos na denominação geral de narcoguerrilhas. Por isso, inicialmente, o peso específico é em relação ao México.


O presidente da Argentina, Javier Milei, compareceu à posse de Donald Trump. (Getty)

BBC News Mundo - Isso dará a Trump o poder de avançar sobre outros países?

Tokatlian - Imagino que o que Trump irá fazer será perseguir de forma mais dura estas organizações dentro dos Estados Unidos.

Mas não o vejo tomando uma ação de ataque com drones ou destruindo laboratórios no México. Se ele fizesse isso, acredito que estaria cruzando uma fronteira inédita na América Latina e, particularmente, nas relações com o México.

BBC News Mundo - Como o sr. analisa as relações entre Donald Trump e o presidente argentino Javier Milei? Milei se aproxima de Trump por afinidade pessoal ou porque atende aos interesses da Argentina?

Tokatlian - Milei é um presidente que se interessa mais pelas relações pessoais do que pelas relações entre os Estados.

Trump também funciona assim. Ele é um homem de acordos e não de regras. Por isso, existe proximidade entre os dois.

Existe aqui um núcleo de coincidências próprio de dois estilos que, apesar das nuances, são muito semelhantes. E eles também estão unidos por convicções ideológicas similares e pela conveniência.

Esta conveniência é a intenção de fazer com que o projeto econômico interno da Argentina funcione. Ou seja, que o Fundo Monetário Internacional despeje mais recursos na Argentina e que o país passe a ser atraente para os capitais internacionais, especificamente norte-americanos.

Nesta relação, existe uma mistura de convicção e conveniência pessoal para preservação de um projeto político.

Tokatlian acredita que Donald Trump irá testar diversos instrumentos para lidar com Nicolás Maduro e a questão venezuelana. (Getty)

BBC News Mundo - Por fim, Trump insinuou, na noite da sua posse, que os Estados Unidos podem deixar de comprar petróleo da Venezuela porque "não precisa dele". Como o sr. vê as relações com Nicolás Maduro?

Tokatlian - A Venezuela é o quarto maior exportador de petróleo para os Estados Unidos. Dizer que seu petróleo é irrelevante é relativo.

De qualquer forma, não acredito que se trate apenas do petróleo. Eu diria que ele irá tentar diversos instrumentos.

Trump também precisará definir o que fazer com Edmundo González [candidato de oposição à presidência da Venezuela, que se declarou vencedor das últimas eleições].

O que os Estados Unidos fizeram, durante o primeiro mandato de Trump, com Juan Guaidó [autoproclamado presidente venezuelano em 2019] foi um fracasso. Se quiserem fazer novamente o mesmo, o risco de um novo fracasso é alto.

Por isso, eu diria que devemos dar um passo de cada vez, observando gesto após gesto e entendendo que os Estados Unidos com Trump sempre irão combinar incentivos e sanções, não apenas praticar coerção.

Ayelén Oliva, o autor desta matéria, é Jornalista. Publicado originalmente pela BBC News Mundo, em 25.01.25

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Com posse de Trump, aumenta o caos em que ninguém ouve mais ninguém

Nem sabemos como explicar a aposta caótica no niilismo que define era de contradição e impotência diante da realidade

Donald Trump em nova Foto Oficial

[RESUMO] Autor reflete sobre a complexidade do cenário atual, marcada por polarização, superficialidade e impotência analítica diante da realidade, critica a fragmentação social, a perda de diálogo democrático e a transformação de antigas bandeiras em discursos contraditórios e sugere que a era digital amplifica histerias e abismos cognitivos.

Advertência: este texto não pretende explicar nada. Seu ponto de partida é a certeza de que ninguém entende o que está acontecendo no mundo hoje, que nossas ferramentas analíticas —sobretudo as autodenominadas críticas— perderam o poder de encontrar na (ir)realidade contemporânea qualquer pista para sua explicação ou, pior, interpretação. Nada faz sentido.

É preciso reconhecer essa impotência (contra a moda dos adjetivos potente, robusto, resiliente e companhia).

No lugar da maioria silenciosa de Baudrillard, o planeta ganhou uma maioria tagarela-rede-social, com inteligência emoticon e —spoiler do que vem abaixo— vontade (sem causa profunda nenhuma, tudo é superficial, tudo vibe sem motivação grave) de que o mundo acabe em crise climática apoteótica/apocalíptica cafona/patrocinada como festa de reality show ou em pirueta suicida de administrador de fundo de investimento em comemoração de privatização na Bolsa de Valores de Orlando.

Claro que não existe Bolsa em Orlando, mas não existir hoje é grife niilista indignação-ostentação, bem ao gosto do mercado. Deixe toda a esperança, quem ler o resto, as palavras a seguir. Fim da advertência.

Aperte os cintos, a partir da próxima segunda (20) temos novo governo nos EUA e o piloto é o Donald. A maioria do povo daquele país assim decidiu, mesmo conhecendo bem em quem votou. Não quero menosprezar a vitória, mas preciso lembrar, em antiquado respeito aos fatos: não foi uma maioria avassaladora. Trump teve 49,9% dos votos, e Kamala Harris, 48,4%.

Fazendo as contas: só 1,5 ponto percentual de diferença. 77.303.573 votaram em quem ganhou; 75.019.257, na candidata democrata. Esses números retratam uma nação rachada entre dois projetos de vida (educação, saúde etc. —até crença ou não em crise climática), que se mostram cada vez mais incompatíveis. Sendo assim, ainda é possível falar em nação?

Cada um dos lados do espectro político vê o outro como pura insanidade, sem possibilidade de diálogo ou de contenção de radicalidades. No primeiro governo Trump, houve até dois impeachments seguidos, que não mudaram coisa alguma. E agora com o Congresso todo dominado pelo Partido Republicano?

O que as 75 milhões de pessoas que votaram em Kamala Harris vão fazer quando, por exemplo (e espero ainda que isso não aconteça), a obrigatoriedade de várias vacinas para crianças for extinta? Um ponto percentual e meio de votos a mais —e o pacto democrático de aceitar o resultado de eleições— pode obrigar tanta gente assim a viver quatro anos sob um governo que ameaça só tomar decisões contra seus princípios mais caros (e contra a ciência etc.)? Ao levantar essas perguntas ingênuas, estou aqui contribuindo para a descrença em ou corrosão de valores democráticos?

Sei que os EUA são também a terra de Thoreau e sua desobediência civil, mas tal multidão desobediente significaria o quê?

Eu também sei: nada disso é exatamente novidade. Clausewitz já denunciava esse tipo de efeitos especiais do processo democrático como "continuação da guerra civil por outros meios".

No clássico "A Retórica da Intransigência", Albert Hirschman resumiu a receita para evitar impasses beligerantes: para haver legitimidade das decisões em uma democracia, as pessoas que participam das deliberações "não devem ter opiniões formadas de maneira plena ou definitiva no início". "Espera-se que se dediquem a um debate significativo, o que quer dizer que devem estar dispostas a modificar as opiniões que tinham anteriormente à luz dos argumentos dos demais participantes, e também como resultado das informações tornadas acessíveis no curso do debate."

Parece simples, mas as dificuldades para que as coisas aconteçam cordialmente são bem conhecidas desde as assembleias atenienses.

Hoje, ficaram frenéticas: todo o mundo chega no debate com opiniões imbecis tão sólidas e imutáveis quanto aquele monolito de "2001: uma Odisseia no Espaço" (olha a IA ali, gente!). Perda de tempo absolutamente desgastante. Certamente as redes sociais têm culpa no cartório, mas imagino que outros fatores estão em jogo, provavelmente alguma radiação alienígena fritando os cérebros humanos com o bug do milênio.

Nunca vi tanta gente esbravejando certezas idiotas ou tantos grupúsculos (coitado do Guattari) usando conspirações para desqualificar de antemão qualquer "nova informação". Passamos a viver saltando entre abismos cognitivos dissonantes.

No Brasil, somos medalha de ouro nessa nova categoria das olimpíadas de ideias. Eu me acreditava o mais esforçado defensor do relativismo, mas tudo tem um limite: descobri que não quero nem conversar com o pessoal formado em medicina (que em tese deveria entender o que é método científico) que receita cloroquina como cura milagrosa para qualquer doença. Se esse tratamento virar regra aprovada por um CRM da vida, quero me mudar para um lugar onde essa regra não seja aplicável.


Repito: chegamos a um ponto em que conversas não adiantam nada, ninguém vai convencer ninguém, não há chance de meio-termo conciliador. Como perguntaria Lênin: o que fazer? Secessão no país: quem quer vacinar crianças vai para o Nordeste (onde, segundo Manuel Bandeira, há brisa) e quem não quer se muda para o edifício residencial mais alto do mundo em Balneário Camboriú (ou vai para a Flórida ou para a Hungria)?

O filósofo especulativo francês Tristan Garcia, um dos pensadores mais interessantes da atualidade (autor inclusive de uma história, em andamento, do sofrimento), também escreve ficção, inclusive algo como ficção científica. No seu romance "7", uma das sete partes (a sexta) fala de um mundo transformado em hemisférios, bolhas hermeticamente fechadas para evitar a entrada de informações das bolhas exteriores.

Começou com a bolha cristã, depois a islâmica e aí disparou: aqui só entra neoanimistas, ali é o hemisfério do "comunismo em um só país", mais adiante o que legaliza o incesto, outro que reconstrói o Japão feudal da Paz Tokugawa e ainda uma cidade grega antiga fortemente militarizada.

Sabemos que há gosto para tudo e as pessoas gostam de viver entre "iguais". Claro que há rachas e a formação de sub-hemisférios com gente descontente. Sectarismo é coisa nossa, comoventemente humana. A fragmentação vai ficando tão intensa e acelerada que a tendência é só restar lobos solitários ou bolhas do eu e meus avatares sozinhos.

Esse separatismo radical seria a única solução para nossos impasses atuais? Pena: sempre simpatizei com gente diferente, que pensa diferente, que me faz pensar diferente do "costume". Mas ficou difícil: a tolerância e a aposta na boa-fé de quem pensa diferente não estão "funcionando" no meio da histeria atual.

Fico até desconfiado de que quem propõe —como cura para tudo— a recusa de qualquer vacina faz isso não por crença, mas por pura implicância ou diversão, estilo pagode só para contrariar. Gente de niilismo absoluto, mas envergonhado. Cosplayers fajutos do "mais feio dos homens" ("devasto e torno intransitável todo caminho em que piso") de Nietzsche, que querem se divertir com teatrinhos do absurdo, já que não encontram nada melhor para passar estes tempos com tantos indícios de serem terminais.

Por isso, optaram não por um novo governo nos EUA, mas por um reality show (com gabinete VIP de pulseirinha) de furiosa bizarrice transmitido direto da Casa Branca. Gente que quer bet, cada vez mais tudo bet, aposta pesada no caos, com distribuição farta de dopamina para espantar o tédio de propostas tidas como sensatas de melhorar o mundo.

É como naquela canção do Roberto: para essa bet-gente (não mais bat-gente), a sensatez só sabe proclamar que "tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda", aumentando a chatice geral com cada vez mais limites e promessas de lockdowns ou finais do mundo por catástrofes terríveis.

A ideia básica da alt-right é estourar a boca do balão, sem medo de ser feliz, como se não houvesse amanhã, já que amanhã sem farra do boi (com muita picanha), próteses de silicone, fake news e queimação de combustíveis fósseis (com muita motociata) não tem graça nenhuma.

Sim, há também a pregação anarcocapitalista. Sua pré-história pré-alt-right está bem contada no livro "Radicals for Capitalism", de Brian Doherty, que parte da experiência pessoal do autor em grupos —que incluem há décadas muitos think tanks patrocinados por bilionários— desse movimento, que não é nada homogêneo e hoje se espalha mundo afora, do Vale do Silício à Casa Rosada.

São muitas leituras diferentes de Ayn Rand ou da antiga crítica que Hayek fez do Estado do bem-estar como caminho para a servidão, contra liberdades individuais. Na base de seu multifacetado projeto político, está a crença no poder do mercado (e a tecnologia produzida por um mercado totalmente desregulado) para resolver todos os problemas da humanidade.

Hoje, vemos a ideia de liberdade ser aplicada de forma seletiva e circunstancial por quem se diz fã de Hayek. Claro que imigrantes na fronteira entre Texas e México não têm a liberdade de decidir para onde querem ir (obviamente, há imigrantes com mais liberdade, como Elon Musk, agora com passe livre para entrar em Mar-a-Lago, ou o pai e a mãe de Usha Chilukuri Vance, mulher do J.D., agora segunda dama dos EUA). Outras liberdades "individuais", como de ser trans ou fazer aborto, são cada vez mais atacadas ou cerceadas.

Ao mesmo tempo, gente "influencer" em ambientes Cpac (Conferência de Ação Política Conservadora) e no Partido Republicano dos EUA (sem falar em gurus "eurasianos" da Rússia), como o economista Oren Cass (ou Trump inimigo de teto de gastos), já aponta para o fim do neoliberalismo, sem receio de apostar (bet!) em protecionismo para fortalecer a indústria norte-americana ou mesmo em privilégios para seu operariado do Cinturão da Ferrugem.

Quem poderia cuidar disso se não for um Estado "great again"? Afinal, mesmo o Vale do Silício tem consciência de que, sem o Estado, não teríamos computador, internet ou inteligência artificial (delicado lembrar esses "detalhes" no momento atual do Brasil, onde aparentemente o único projeto político aprovado pelo mercado —e adjacências— para o futuro do país é uma reforma fiscal —e ai do governo que não fizer a reforma que o mercado quer).

Essa situação ganhou contornos mais dramáticos com a pandemia. A China pôs o Ocidente contra a parede: decretou rapidinho um lockdown de proporções épicas, cercando Wuhan e o país todo logo depois. O mundo inteiro não teve opção, precisou ir atrás, mas em total desvantagem: com internet controlada etc., a China tinha facilidade para fazer o que fez.

Tentar a mesma coisa em democracias "ocidentais" se revelou tarefa mais que temerária, com questionamentos de todos os lados, sobretudo de novos movimentos de direita já bem populares, com a pregação de defesa de liberdades individuais estilo Hayek, incluindo campanhas antivacina. Agora já era: de certa forma, nunca mais saímos de nossos lockdowns mambembes.

Muito barulho em volta. A nova direita não cria nenhuma ideia realmente nova, mas inventa uma maneira de reciclar, de forma mais maluca a cada dia, tudo aquilo que um dia foi bandeira da esquerda (também encostada na parede de suas crenças do passado).

Quem fazia a crítica do capitalismo selvagem da indústria farmacêutica era a esquerda, agora isso virou coisa de gente "patriota" que defende tradição e família. De repente, ao mesmo tempo, até o desconstrucionismo virou arma da direita, que continua tratando tudo como se fosse "narrativa". Sem falar na psicodelia "conservadora". Que o diga o xamã do Q-Anon, invasor "viking" do Capitólio. Quem sabe se, com perdão presidencial, ele não passe a comandar rituais animistas nos jardins da Casa Branca?

Tudo confuso, tudo embaralhado, tudo duplo pensar 1984, tudo com sinais trocados. Tudo parecido com as estratégias das vanguardas da virada do século 19 para o 20 para "épater la bourgeoisie" com múltiplos tratamentos de choque. Só que agora a caretice é que parece estar no comando, ridicularizando a maluquice beleza, fazendo paródias de suas conquistas modernas.

Roteiro para os próximos anos: o Heliogábalo de Artaud reencenado sem parar na vida real, sem objetivo nenhum? Não precisa nem de crueldade ou a crueldade é bem mais sofisticada, como quando Trump tem que parar um comício e fica 40 minutos com aquela dancinha de filme de terror, repetida depois por Elon Musk em Mar-a-Lago.

Dançando o quê? YMCA, ex-hino gay! É "mashup" juntando elementos de procedências antes disparatadas do imaginário contemporâneo, tudo ganhando novos sentidos ou sentido nenhum.

A mesma coisa aconteceu com as coreografias e marchas TikTok inventadas para dançar o hino nacional brasileiro naqueles acampamentos nas portas de quartéis militares. Como cantava David Bowie citando o acionismo vienense: "It's all deranged". Ou: degringolou/abilolou geral.

Ronaldo Lemos diagnosticou tudo isso, aqui mesmo na Ilustríssima, como a Grande Ruptura. Cito suas palavras: "Seu objetivo final não é transmitir informação, mas modular experiências imediatas, especialmente estados emocionais; é muito mais experiência do que conteúdo. Para isso, seus artefatos são instrumentalizados mais para produzir alegorias e mesmo manipulação emocional do que para comunicar qualquer coisa".

Não é algo que acontece só na arte ou em guerras culturais. É a doença infantil (ainda lembrando Lênin) do conservadorismo doidão que derrubou o mundo.

Em que buraco abestalhado nos metemos! Como adverti acima, este meu texto-chacrinha não explica nada, quer apenas confundir ainda mais ou é atestado reclamão da minha perplexidade. Eu que não gostava de reclamar de nada, cá estou. Tenho que me acostumar: este é o (meu) novo normal.

Hermano Vianna, o autor deste ensaio, é Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com / Publicado na Folha de S. Paulo - Ilustrada, em 19.01.25

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Emendas (Parlamentares) movimentam R$ 150 bi em 5 anos com protagonismo do Congresso e baixa transparência

Verba representa mais de quatro vezes a quantia do período anterior e drena orçamento federal

O plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília - Pedro Ladeira - 17.mai.23/Folhapress

A explosão de verbas de emendas parlamentares a partir de 2020 movimentou mais de R$ 148,9 bilhões em cinco anos. O aumento drenou recursos dos ministérios e garantiu protagonismo a deputados e senadores.

A cifra representa mais de quatro vezes o valor desembolsado em indicações parlamentares no ciclo anterior, de 2015 a 2019, de R$ 32,8 bilhões.

Do valor total pago nos últimos cinco anos, cerca de R$ 74 bilhões são das chamadas emendas individuais, enquanto R$ 29,5 bilhões foram direcionados pelas bancadas estaduais, e R$ 9 bilhões partiram das comissões temáticas da Câmara e do Senado.

Ainda foram distribuídos mais de R$ 36,5 bilhões de emendas de relator, modalidade que se tornou um dos símbolos da distribuição de verbas apadrinhadas pelo Congresso sob baixa transparência. Em 2022, o STF (Supremo Tribunal Federal) declarou esse modelo inconstitucional.

O aumento do controle do Orçamento pelo Congresso tornou órgãos públicos dependentes das indicações parlamentares para despesas de rotina. O Ministério dos Esportes, por exemplo, teve mais de 74% dos seus recursos discricionários (de execução não obrigatória) em 2024 definidos por emendas, de acordo com levantamento feito pela Folha.

A cifra desembolsada desde 2020 ainda é o dobro dos R$ 70 bilhões aplicados por órgãos federais, no mesmo período, em ações ligadas a ciência e tecnologia, cultura, esportes e saneamento.

O boom de emendas resultou na remodelação de órgãos federais, como a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) e o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas).

Antes dedicados aos projetos de irrigação e de redução de desigualdades, ambos se voltaram à distribuição das emendas por meio de doações de maquinários e obras de pavimentação.

Emendas executadas pelos dois órgãos são alvos de apurações sobre possíveis irregularidades. Em dezembro, a PF realizou uma operação dentro de um inquérito sobre um suposto desvio de emendas direcionadas ao Dnocs.

O avanço do Legislativo sobre o Orçamento ocorreu a partir de uma série de mudanças na legislação feitas a partir de 2015.

Desde então, o Congresso tornou obrigatória a execução das emendas individuais e das bancadas dos estados, criou a emenda Pix e garantiu fatias cada vez maiores de recursos.

Entenda as emendas parlamentares

As mudanças se escancararam a partir de 2020, quando o Orçamento federal chegou a prever R$ 46,2 bilhões em emendas, mais que o triplo dos R$ 13,7 bilhões disponíveis no ano anterior.

Com o avanço inédito, elas se tornaram a principal ferramenta de poder de deputados e senadores em suas bases eleitorais e continuaram a ter importância como moeda de troca em negociações entre Congresso e Executivo.

Para garantir o apoio de parlamentares, o presidente Lula (PT) manteve sob domínio do centrão pastas que servem como canais de escoamento das emendas, como a Codevasf.

Durante a campanha eleitoral de 2022, Lula o petista se referiu à distribuição de verba com baixa transparência de "o maior esquema de corrupção da atualidade", "orçamento secreto" e "bolsolão". Aliados da sua gestão, porém, ocupam posições de destaque em órgãos que mantiveram o escoamento de bilhões de reais, sem apontar os verdadeiros padrinhos da verba.

A distribuição das verbas ganhou como novo elemento, em 2024, uma série decisões do STF travando por meses a execução das emendas, sob argumento de que não havia transparência na partilha.

Relator das ações no Supremo, o ministro Flávio Dino também ordenou abertura de auditorias da CGU (Controladoria-Geral da União) sobre repasses para ONGs e para os municípios mais beneficiados pelos parlamentares.

O atrito arrefeceu após a aprovação de uma lei e a edição de uma portaria que atenderiam às decisões do STF.

Dino, porém, voltou a segurar a destinação de parte das emendas em dezembro. Ele ainda determinou a abertura de uma investigação da PF sobre uma suposta manobra de líderes da Câmara para remanejar, sem transparência, cerca de R$ 4 bilhões das chamadas emendas de comissão.

Para integrantes do governo e do Congresso, as decisões do Supremo sinalizam que as incertezas sobre o tema devem se repetir neste ano.

A destinação das emendas também está na mira de investigações sobre supostas irregularidades que envolvem políticos de diferentes posições.

Integrante da cúpula do governo Lula, o ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil-MA), foi indiciado pela Polícia Federal sob a suspeita de desvio de verba indicada para obras na cidade governada pela sua família. Ele nega e diz que os investigadores criaram uma "narrativa".

Em 2023, o ministro do STF Gilmar Mendes mandou paralisar e anulou provas de uma investigação sobre supostas irregularidades na compra de kits de robótica com verbas de emendas, caso que envolve pessoas ligadas ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O deputado rechaça as suspeitas.

Lira mantém forte influência sobre a partilha das verbas de comissão. Como a Folha mostrou, parte desse dinheiro era direcionada conforme orientações dadas aos colegiados por uma assessora de confiança do presidente da Câmara.

Em nota, a Secretaria de Relações Institucionais, pasta comandada pelo ministro Alexandre Padilha (PT) e que faz a interlocução com o Congresso, disse que cabe ao Executivo a execução da Lei Orçamentária, enquanto o Congresso "detém a competência para incluir emendas".

O ministério ainda afirmou que a lei complementar 210, sancionada em novembro passado, limita o crescimento das emendas pelas regras do novo arcabouço fiscal e estabelece outros critérios, como a "exigência de aplicação a projetos de interesse nacional ou regional, no caso das emendas de comissão".

Explosão de emendas movimenta quase R$ 150 bi em 5 anos

Valor pago, em R$ bilhões

Ministério da Saúde

78,680

Emenda Pix*

20,740

Ministério do Desenvolvimento Regional

11,780

Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional

7,650

Ministério da Educação

6,090

Ministério da Cidadania

3,730

Ministério da Justiça e Segurança Pública

2,730

Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome

2,440

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

2,410

Ministério da Defesa

2,380

Ministério da Infraestrutura

2,120

Ministério da Agricultura e Pecuária

2,030

Ministério do Turismo

1,490

Ministério dos Transportes

0,850

Ministério das Cidades

0,700

Ministério da Economia

0,470

Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

0,470

Ministério do Esporte

0,440

Ministério do Trabalho e Emprego

0,200

Ministério do Meio Ambiente

0,190

Ministério da Cultura

0,190

Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania

0,180

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações

0,170

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

0,170

Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações

0,100

Ministério das Comunicações

0,100

Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar

0,090

Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima

0,080

Ministério das Mulheres

0,060

Ministério de Portos e Aeroportos

0,040

Ministério da Igualdade Racial

0,030

Presidência da República

0,030

Ministério das Relações Exteriores

0,020

Ministério da Pesca e Aquicultura

0,020

Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços

0,020

Ministério de Minas e Energia

0,010

Ministério do Trabalho e Previdência

0,010

Encargos Financeiros da União

0,008

Ministério dos Povos Indígenas

0,006

Ministério da Fazenda

0,006

Controladoria-Geral da União

0,005

Operações Oficiais de Crédito

0,003

Ministério do Desenvolvimento Agrário

0,001

Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos

0,001

Ministério Público da União**

0,000

Justiça Eleitoral**

0,000

Ministério da Previdência Social**

0,000

Total: R$ 148,96 bilhões

*Modalidade de emenda individual em que o recurso é enviado diretamente ao cofre do estado ou município

**Ministério Público da União: R$ 0,0003 bilhões; Justiça Eleitoral: R$ 0,0003 bilhões; Ministério da Previdência Social: R$ 0,00003 bilhões

Fonte: Siga Brasil/Senado Federal, com dados extraídos em 9 de janeiro

Mateus Vargas, o autor, é Repórter da Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 13.01.25

O que deseja Mark Zuckerberg

Ele está oferecendo a Trump suas plataformas para distrair o público americano

O dono da Meta, Mark Zuckerberg — Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP/ 31-01-2024

Faz uma semana que o principal acionista da Meta, Mark Zuckerberg, anunciou ao mundo um cavalo de pau na direção da companhia. Cai o uso de empresas de checagem de fatos, entra um sistema em que a comunidade avalia o que é confiável ou não. A moderação diminuirá, e o espaço para debates sobre política aumentará. Nesse barata-voa geral, quem leu a cobertura da imprensa brasileira possivelmente não compreendeu alguns pontos essenciais. O primeiro, e mais importante, é que estas mudanças valem em sua maioria para os Estados Unidos. Os contratos de checagem, aqui no Brasil, na América Latina, na Europa e no além-mar geral seguem de pé. Este não é um detalhe. Na verdade, para entender o que se passa na cabeça de Zuckerberg, essa é uma das peças essenciais.

As plataformas digitais estão perdendo a briga da regulação. Pode parecer o contrário, mas não é verdade. Sim, estas são companhias grandes, ricas como jamais companhias o foram na História do capitalismo. São poderosas. Mas, aos poucos, o que os Estados nacionais estão descobrindo é que, quando querem regular, regulam. Isso ficou claro quando a Europa impôs suas novas regras. A Apple está tendo de se virar para permitir que usuários possam comprar apps em seus iPhones fora da loja da empresa. Na Austrália, decidiu-se que menores de 16 anos não podem ter contas nas redes sociais. Decidiu-se, também, que o ônus dessa garantia é das plataformas. E elas não têm o que fazer. Precisarão cobrar documentação para abrir as contas ou desenvolver alguma tecnologia que permita fazer o filtro. Ponto final. Elon Musk bateu de frente com o Supremo Tribunal Federal no Brasil, forçou o quanto pôde — e aí cedeu em tudo que o STF queria. A alternativa era não funcionar no país, um luxo ao qual o X não pode se dar.

Este é, em essência, o problema de Zuckerberg. Não só dele, mas de todas as plataformas digitais. O lento consenso da necessidade de regulação está sendo alcançado. Não está claro ainda qual o melhor tipo de regulação, e o debate está aberto sobre que regulação é eficaz para combater que tipo de problema. Os debates são muitos. O que não é mais discutido é se governos conseguem regular. Sim, conseguem. Basta querer que o fazem. E isso está claro por uma única razão: todos os governos estão ganhando as brigas que compram. Essa é a razão de Zuck ter anunciado mudanças imensas, mas, no caso das de maior impacto, limitadas aos EUA. Ele não tem como bater de frente com a União Europeia. Ou mesmo com o Brasil. Perderia.

Este, portanto, é o jogo de Mark Zuckerberg: ele está propondo uma barganha para Donald Trump.

Ora, veja: o debate público americano foi dominado, na última semana, pela ideia de conquista do Canal do Panamá, da Groenlândia e do Canadá. Nenhuma das propostas é séria. Ou sequer plausível. Os EUA, com todo o seu poder militar, não foram capazes de controlar o Afeganistão ou o Iraque. Não foram capazes de conquistar o Vietnã, onde o exército adversário era uma guerrilha. Imagine o Canadá ou um país da União Europeia. Mesmo que uma guerra de conquista do pequeno Panamá fosse possível, o governo Trump precisaria de aprovação do Congresso, onde quase metade de deputados e senadores são da oposição. Se um pequeno número de republicanos votar contra em só uma das Casas legislativas, o que é esperado, as Forças Armadas não poderiam agir.

Isso mesmo. Não poderiam agir sequer sob ordens do presidente. Donald Trump sabe disso. Só que parte essencial de seu método é a criação permanente de ruído. O ruído serve a este novo governo americano. Ele suga a atenção do debate público enquanto decisões que levarão ao desmonte do Estado serão tomadas. Decisões, aliás, muito mais complexas e também burocráticas. Portanto chatas de acompanhar. Trump precisa de ruído constante.

É para isso que serve a desinformação. Ela é parte eficaz da estratégia de Trump não tanto porque engane as pessoas, mas mais porque as distrai. Ele gera tantos debates absurdos simultaneamente, a maioria sem qualquer consequência, que aquilo que de fato é importante se perde. A arte de Trump é a do ilusionista que constantemente desvia o foco de seu público dos movimentos relevantes.

Pois Zuckerberg está oferecendo ao novo presidente suas plataformas para distrair à vontade o público americano. Em troca, pede que o peso do Estado americano seja usado para enfrentar Europa, Canadá, Austrália, e, sim, o Brasil. O governo dos EUA tem melhores condições de pressionar para evitar a regulação desses negócios americanos.

É a esperança de Zuck.

Pedro Doria, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 14.01.25

A guerra

Já ingressamos em uma era em que o Ocidente deverá recorrer ao uso da força na defesa de seus valores de liberdade e igualdade


Em qualquer guerra, as crianças são as maiores vítimas

Se os filósofos sempre prezaram a racionalidade, chegando a formular a ideia de que o homem, por definição, seria um animal racional, a história da humanidade, porém, fez um contraponto: o da irracionalidade, se não o da maldade, da relação entre os homens e, mais especificamente, entre Estados. Intenções malignas, voltadas única e exclusivamente para destruição do outro, são apenas uma amostra disso. A violência, perseguida como um fim em si mesma, e não como um meio, continua povoando a História, apesar de tentativas de estabelecer a concórdia e o diálogo como vetores das relações intraestatais.

A cena histórica é frequentemente irracional. A relação entre Estados, enquanto unidades políticas, é regida por aquilo que filósofos como Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau e Friedrich Hegel consideravam como estado de natureza. Ou seja, ela seria regida por desejos de dominação e subjugação do outro. Os motivos podem ser variados, como prestígio, glória, ganhos econômicos e apropriação de territórios. Por sua vez, as relações internas aos Estados, individualmente considerados, nas experiências democráticas e constitucionais, vieram a se definir pelo império da lei, pelo livre jogo das instituições, pelas liberdades e pela economia de mercado.

Por um curto período, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), pareceu estabelecer-se a ideia de que uma instituição supranacional poderia preencher a função da lei e de racionalidade nas relações internacionais. Mal que bem, conseguiu preencher algumas dessas funções enquanto as potências hegemônicas, EUA e União Soviética, foram capazes de firmar formas de convivência, principalmente de equilíbrio nuclear, com a ressalva de que esse último país tivesse reconhecida a sua dominação sobre os países da Europa Oriental. Se se insurgissem, a invasão militar comunista era a regra, como aconteceu na Hungria em 1956, na Checoslováquia em 1968 e na Polônia em 1981.

Com a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética, parecia enfim que o mundo da livre economia de mercado, através do primado do comércio internacional, iria reduzir as tensões entre os Estados. A guerra cessaria de ser um meio de resolver o combate pelos interesses econômicos. Voltar-se-ia para uma ideia elaborada pelo pensador francês Benjamin Constant. Ocorre, todavia, que a guerra tem outras razões, dentre as quais a dominação de outros Estados, a ocupação pura e simples de seu território, quando não a intenção física de aniquilação do adversário, tido por inimigo absoluto.

A Rússia invade a Ucrânia ao arrepio de qualquer lei internacional, por mais precária que seja a consideração de lei no sentido próprio, pela ausência de um poder coercitivo que a implemente e garanta. Interesse econômico propriamente dito não existia, haja vista as dificuldades que esse país enfrenta em seu cenário interno. Levou adiante o seu projeto tzarista e comunista de uma grande nação russa, portadora de uma ideia exclusiva e civilizatória, que deveria se impor, pela violência, aos povos eslavos e bálticos. Não contava com a resistência da Ucrânia, cujo povo e liderança reagiram com bravura e determinação. Contudo, em assim fazendo, a Rússia rompeu com o equilíbrio europeu vigente, fundado na inviolabilidade das fronteiras.

O Irã teocrático, graças ao apoio do ex-presidente Barack Obama e de seu acordo nuclear, teve recursos e mãos livres para estender os seus tentáculos sobre todo o Oriente Médio. Iraque, Síria, Líbano, por intermédio do Hezbollah, e Iêmen tornaram-se seus braços armados, instrumentos de sua dominação colonial. Leis internacionais não têm, para ele, nenhum valor salvo instrumental para justificar seus objetivos geopolíticos, centrados na eliminação do Estado de Israel. Paradoxalmente, tornou-se um membro proeminente da ONU, supostamente defensor dos “direitos humanos”, certamente segundo a moda xiita. Por si só, esse fato mostra a baixeza política e moral dessa organização internacional, afastada de seus ideais kantianos de fundação.

O Hamas, talvez atualmente a forma mais pura do terror islâmico, vive no culto da morte, na disseminação do ódio, visando, também, à destruição do Estado de Israel. Usa do assassinato, do estupro, da tortura e da captura de reféns. Em vez de administrar o seu território, criando um Estado de bem-estar social, submete os palestinos à sua total dominação, utilizando-os como escudos humanos. E o mais surpreendente, com o apoio da ONU e de seu secretário-geral, António Guterres, vindo a ser um instrumento do terror islâmico e do Irã. Em sua boca, direitos humanos são palavras vazias.

É forçoso reconhecer que o mundo está entrando em uma condição de guerra, sendo necessário repensar esse processo em curso para enfrentá-lo, sem que daí se derive necessariamente uma terceira guerra mundial. Já ingressamos em uma era em que o Ocidente, particularmente a Europa, deverá recorrer ao uso da força na defesa de seus valores de liberdade e igualdade. Se não o fizer, por falta de vontade, sucumbirá.

Denis Lerrer Rosenfield, o oautor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S.  Paulo, em 13.01.25

Um criminoso na Casa Branca

Trump será o primeiro condenado a presidir os EUA, num caso que ilustra como os demagogos abusam da vontade do povo expressa nas urnas para violar a vontade do povo expressa na lei


Trump confronta Juiz em audiência (G1/O Globo)

Na última sexta-feira, a poucos dias da posse de Donald Trump, um juiz de Nova York, Juan Merchan, manteve uma condenação criminal do júri ao presidente eleito dos EUA, tornando Trump o primeiro condenado a ocupar a Casa Branca.

Contudo, foi uma sentença estranha em tempos estranhos, pois Trump foi “incondicionalmente” dispensado de qualquer pena, já que será em breve o presidente dos EUA. Eis aí o dilema que populistas como Trump representam para o Estado Democrático de Direito: a lei, expressão da vontade popular, deveria valer para todos, mas esses líderes autoritários invocam a vontade popular expressa nas urnas para se tornarem inimputáveis.

Há um ano, Trump respondia a quatro processos criminais. Em maio foi condenado por unanimidade por 12 jurados em Nova York por 34 acusações de falsificação de registros contábeis para disfarçar pagamentos durante as eleições de 2016 a uma atriz pornô para que mantivesse silêncio sobre um alegado relacionamento sexual. As condenações deveriam acarretar desde multas até liberdade condicional – e, no limite, quatro anos de prisão. Um levantamento do jornal New York Times revelou que, de 30 condenações por falsificação de registros em Nova York na última década, nenhum outro réu recebeu uma dispensa incondicional.

Esse não foi o único passe livre da Justiça conferido a Trump. O republicano foi indiciado na Flórida por dispor ilegalmente de documentos confidenciais e no Distrito de Columbia pelas suas tentativas de subverter os resultados das eleições de 2020. Se tivesse perdido as eleições em novembro, teria sido julgado por ambas as acusações e, se condenado, também poderia ir para a prisão. Mas as acusações foram dispensadas em razão de uma regra do Departamento de Justiça de que um presidente em exercício não pode ser processado. De resto, numa decisão que deve ter feito os Pais Fundadores dos EUA se revirarem no túmulo, a Suprema Corte determinou que ex-presidentes da República não podem ser investigados e julgados criminalmente por seus atos no exercício do cargo.

Tudo isso obviamente é inconciliável com a noção basilar do Estado de Direito segundo a qual ninguém está acima da lei. A incompatibilidade ficou evidente nos esforços do juiz Merchan por resolver a quadratura do círculo.

Trump insiste que não fez nada de errado e em seu perfil nas redes sociais trombeteou que a sentença “prova que não há um caso”. Mas não foi o que disse a Justiça. Seus advogados tentaram bloquear a sentença nas cortes de apelação e na própria Suprema Corte, alegando que um presidente eleito gozava da mesma imunidade de um presidente em exercício, mas o pedido foi rejeitado em todas essas instâncias.

Explicitamente nas falas de Trump e implicitamente nos recursos estava a ideia de que ele fora absolvido pelo “veredicto do povo” dado nas eleições de novembro. Mas as urnas não podem apagar o legítimo veredicto do povo (sem aspas) dado pelo júri. Merchan não poderia se furtar a esse veredicto sem rasgar a toga, mas reconheceu ser impraticável um presidente exercer suas funções por trás das grades.

Trump, portanto, não será penalizado, mas ainda assim é um criminoso condenado. A sentença tenta preservar as aparências de que há alguma justiça, mas demonstrou que ela efetivamente não é igual para todos.

Como todo populista à direita, Trump se vangloria de ser o paladino da lei e da ordem. Mas, no que promete ser mais um teste de estresse do Estado Democrático de Direito de seu país, ele já anunciou que pretende empregar seus poderes presidenciais para perdoar os condenados pelo infame assalto ao Capitólio no 6 de Janeiro, passando a mensagem de que a violência política é aceitável se praticada a favor de quem está no poder.

“Sem precedentes” é uma expressão que se tornou corriqueira ao longo da carreira política de Donald Trump. Um ex-presidente condenado por crime foi sem precedentes, e a posse de um presidente condenado por crime será sem precedentes. Agora, a condenação sem pena ilustra mais uma vez a tensão sem precedentes entre o Estado Democrático e o Estado de Direito provocada por um presidente que, contra todos os anseios dos fundadores da República americana, quer governar como um rei.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.01.25

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Os venezuelanos saem às ruas. Está na consciência do soldado não atirar

Protestar contra Maduro é perigoso, mas seria ingênuo pensar que ele deixará o poder sem luta cidadã

Mulheres manifestam-se na Venezuela, em setembro de 2024. (Ronald Pena R (EFE)

A incerteza geral sobre se Edmundo González Urrutia, presidente democraticamente eleito em 28 de julho, conseguirá regressar à Venezuela e tomar posse marcou os últimos meses. Apesar dos esforços da sua equipa para criar condições que o permitam, o que inclui uma árdua diplomacia e uma intensa viagem de Ano Novo que o levou de Buenos Aires a Washington, para garantir o apoio de figuras tão politicamente diferentes como Javier Milei e Joe Biden, poucos acreditam que ele conseguirá. alcançá-lo. Em Caracas e em Washington, observadores experientes por anos de experiência acreditam que o uso da repressão por parte de Nicolás Maduro e dos seus tenentes alcançará o seu objectivo: paralisar os venezuelanos, frustrando o apelo de María Corina Machado para regressar às ruas a partir de 9 de Janeiro. De acordo com essa lógica, Maduro tomará posse, implementando um novo status quo pós-fraude e dando um passo decisivo para a normalização da tirania. Seria, sem dúvida, um tremendo golpe nas aspirações de liberdade e democracia expressas por 67% dos eleitores venezuelanos, para não mencionar o sonho de muitos dos oito milhões de migrantes de regressar ao país.

Essa é uma maneira de ver as coisas. Outra, mais optimista mas não menos realista, é que o 10 de Janeiro é o marco histórico que despoja para sempre o regime chavista, despindo-o das vestes justas, da superioridade moral e das belas mentiras que prometeu nos seus primórdios remotos, há um quarto. do século. Aqui vale a pena lembrar que Hugo Chávez chegou ao poder através das urnas oferecendo uma revolução pacífica e democrática. Nessa perspectiva, o dia 10 de Janeiro poderá não acabar com a tirania de Maduro, mas será, na verdade, o fim da revolução bolivariana. Não importa como você olhe para isso, não será um dia qualquer.

Ao fazer esta distinção, é essencial esclarecer que a revolução chavista está em declínio há pelo menos uma década e que o seu fim só foi adiado pela força com o trágico custo de levar um país inteiro à ruína.

A fraude eleitoral de Maduro foi o último elo naquele outono . Isolado da cena internacional, e sancionado pelos Estados Unidos, o que o impedirá de superar a crise económica crónica, o seu regime transformou o país num Estado falido apoiado pelas baionetas dos militares e que opera através de uma criminalidade descarada. Basta olhar para a onda de sequestros e desaparecimentos forçados esta semana, que inclui um familiar do presidente eleito, um activista pela liberdade de imprensa e um antigo candidato presidencial.

Perante esta realidade esmagadora, a questão é como a sociedade deve reagir. Pessimistas e céticos recomendam cautela. Isto é: reconhecer a assimetria entre o poder de fogo do regime e uma população que não tem outras armas senão a indignação e a vontade de mudança. Isto implicaria manter a denúncia da fraude eleitoral e retirar-se sem provocar o Governo nas ruas; resistir enquanto espera por um novo cenário mais favorável à mudança. É certamente possível que em algum momento as Forças Armadas abandonem Maduro. Mas dada a acção repressiva do Ministro do Interior, Diosdado Cabello, e a reengenharia constitucional anunciada pelo presidente da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez, a única coisa certa neste cenário é um controlo mais apertado da nomenklatura chavista sobre a sociedade.

Edmundo González Urrutia e María Corina Machado optaram por desafiar Maduro galvanizando o descontentamento e apelando à comunidade internacional para que tome medidas mais decisivas sobre a situação. Aos olhos do mundo e dos venezuelanos, Machado, González e uma miríade de líderes políticos e comunitários fizeram tudo o que podiam, apesar do elevado risco para eles próprios e para as suas famílias. Seja qual for o resultado, eles terão tentado honrar a sua promessa de ir até ao fim e poucos podem culpá-los.

Confrontados com esta realidade e rodeados por uma atmosfera de terror, como deverão os venezuelanos responder? Há muito se diz que a saída do regime chavista só ocorrerá por uma fratura interna, ou seja, quando os homens armados lhe virarem as costas. Este acontecimento pode ocorrer de duas formas: um golpe de Estado contra Maduro ou uma recusa em reprimir os manifestantes para evitar um banho de sangue que custará muitas vidas. Não há sinais de que esta fractura tenha ocorrido, mas está na consciência de cada líder de tropa e de cada soldado não disparar contra os seus compatriotas.

É o momento mais sombrio e perigoso que os venezuelanos viveram desde a queda da atroz ditadura de Marcos Pérez Jiménez, há mais de meio século. A história venezuelana é marcada por episódios violentos e sangrentos, como captou eloquentemente o ensaísta Jesús Sanoja Hernández em sua saga Entre Golpes e Revoluções . O apelo de María Corina Machado ao protesto pacífico é uma tentativa de desencadear uma crise que ponha fim ao regime. Na ausência de instituições públicas que os protejam e com uma sociedade civil sob vigilância, sair às ruas acarreta um enorme perigo para todos aqueles que participam no protesto. Seria ingenuidade negá-lo. Mas seria igualmente ingénuo acreditar que o regime chavista deixará o poder sem a luta dos cidadãos. Assim, tal como os venezuelanos optaram por votar em condições adversas em 28 de julho e venceram, deveriam agora apoiar o esforço para que o vencedor assumisse a presidência.

Nas próximas horas saber-se-á se a chamada tem pernas curtas ou longas. Se não houver repressão massiva e a mobilização dos cidadãos for sustentada por algum tempo, é provável que provoque uma negociação para a saída de Maduro. Se este objetivo não for alcançado, o Governo tentará tirar Machado do caminho e a possibilidade de mudança ficará sem cabeça até novo aviso, no limbo.

Mas esse final ainda não foi escrito. O destino da Venezuela é agora uma moeda no ar. O que está em jogo são dois futuros radicalmente opostos: um de terror totalitário, em que o poder continuará a ser sequestrado por uma liderança criminosa e pela sua elite corrupta, e outro em que há pelo menos a liberdade de empreender um debate plural que promova a tarefa muito difícil de reconstruir a democracia e de levantar uma sociedade prostrada. Perante ambas as possibilidades, serão as pessoas que se levantarem e os pequenos grupos da sociedade civil que ainda existem, que farão a diferença.

Boris Muñoz, o autor deste artigo, é um cronista e editor venezuelano. É curador do IDEAS da plataforma BOOM e colunista do EL PAÍS. Foi fundador e Diretor de Opinião do  The New York Times en Español. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em 09.01.25

Oposição denuncia detenção e posterior liberação de María Corina Machado às vésperas da posse de Maduro

A líder da oposição venezuelana María Corina Machado foi "detida violentamente" nesta quinta-feira (9/1) e minutos depois liberada, segundo denunciou o seu partido.

María Corina Machado compareceu às manifestações na véspera da posse de Maduro, depois de permanecer meses na clandestinidade (Getty Images)

Machado apareceu em um protesto contra a posse de Nicolás Maduro, marcada para esta sexta-feira (10/1), após meses escondida na clandestinidade. Ela não era vista em público desde o final de agosto, em meio a um período em que se intensificaram as prisões de cidadãos comuns e líderes da oposição.

"O que eles farão amanhã marca o fim do regime", disse Machado diante de uma multidão de apoiadores em Caracas. "A partir de hoje, estamos em uma nova fase."

Pouco depois de terminar seu discurso, seu partido, Vente Venezuela, informou na rede social X que a líder havia sido "detida violentamente" pelas forças de segurança do Estado.

"María Corina (@MariaCorinaYA) foi detida violentamente ao sair do comício em Chacao. Esperamos confirmar sua situação em minutos. As tropas do regime atiraram nas motocicletas que a transportavam", afirma a postagem.

O portal de notícias venezuelano Economía Cocuyo informou que agentes do governo "dispararam contra as motocicletas em que viajava a líder da oposição".

"De acordo com informações divulgadas por sua gestora de campanha, Magalli Meda, a dirigente foi detida por um contingente de drones, motocicletas e agentes que a detiveram e ao condutor de sua motocicleta", acrescentou o portal.

Momentos depois, sua liberação foi anunciada.

"María Corina Machado (@MariaCorinaYA) foi interceptada e derrubada da moto que a transportava. No evento foram detonadas armas de fogo. Ela foi levada à força. Durante o período de seu sequestro, foi forçada a gravar vários vídeos e logo foi liberada", informou o Comando con Venezuela, que faz parte da coalizão opositora.

À BBC News Brasil, a organização Human Rights Watch confirmou que ela estaria em liberdade.

O ministro da Informação do governo da Venezuela, Freddy Ñáñez, chamou o episódio de "distração midiática" e compartilhou um vídeo em que Machado aparece dizendo que está bem.

Ela é acusada de "traição à pátria" e estava sob ameaça de ser presa.

Em entrevista recente à BBC, poucos dias antes de ser detida, pediu que Maduro não permanecesse no poder pela força.

"Ele sabe que não tem como permanecer no poder, exceto pelo uso da violência, o que é insustentável", defendeu ela, em entrevista concedida por teleconferência.

Chamado ao protesto

Um dia antes da posse de Maduro, Machado apelou a opositores que saíssem às ruas para protestar.

O governo Maduro respondeu com uma extensa operação de segurança que incluiu a instalação de postos de controle e com a convocação de manifestações favoráveis ao chavismo nos mesmos locais programados pela oposição.

Esta reivindica a vitória do candidato Edmundo González nas eleições realizadas em 28 de julho afirmando que ele teve 70% dos votos — o grupo divulgou um grande número de atas de votação.

No entanto, o Conselho Nacional Eleitoral, próximo do partido no poder, declarou Maduro vencedor sem publicar as atas conforme exigido por atores internacionais.

Os Estados Unidos e a maioria dos governos da região questionaram a vitória de Maduro, e alguns até reconhecem González como presidente. O candidato da oposição deixou a Venezuela em setembro devido a ameaças de prisão, exilando-se na Espanha.

O Brasil não reconheceu a vitória de Maduro e tem pedido nos últimos meses a publicação das atas.

Após anos de alinhamento entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Maduro, o brasileiro passou a criticar o regime venezuelano principalmente após as eleições de 2024 no país vizinho, cuja transparência foi contestada por Brasília.

Para a posse de Maduro nessa sexta-feira, está prevista a presença da embaixadora do Brasil em Caracas, Glivânia de Oliveira. Lula não deve comparecer.

Simpatizantes do chavismo também saíram às ruas nesta quinta-feira, 09/01, (Getty Images)

Maduro assumirá um terceiro mandato em cerimônia de pompa no Palácio Legislativo Federal, sede do Parlamento unicameral venezuelano, dominado pelo chavismo.

Nas cidades de Maracaibo e Maracay, os protestos da oposição foram rapidamente dispersados ​​pela polícia e militares, enquanto bombas de gás lacrimogéneo foram disparadas no centro de Valência, informou a agência de notícias Reuters.

Apoiadores da oposição também se reuniram em San Cristóbal, perto da fronteira com a Colômbia.

Maduro conta com o apoio do alto comando militar, da inteligência militar e dos órgãos policiais.

Após o anúncio da vitória de Maduro há cinco meses, eclodiram manifestações nas quais cerca de 2.000 pessoas foram presas, segundo o governo.

Os planos de regresso de González

González prometeu voltar à Venezuela para assumir o mandato de presidente, apoiado por um grupo de ex-presidentes de outros países, embora não tenha explicado como pretende fazê-lo.

"Devo assumir o papel de comandante-em-chefe", disse González Urrutia num vídeo no qual instou os militares a "romperem" com a atual liderança militar e a serem uma "garantia de soberania e respeito pela vontade popular".

O procurador-geral do país, Tarek William Saab, e o presidente da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez, afirmaram que, se González, regressasse ao país seria preso.

As autoridades venezuelanas chegaram a oferecer mesmo uma recompensa de US$ 100 mil pela captura do candidato da oposição.

No momento, González está numa viagem que o levou à Argentina e na segunda-feira a Washington, onde se encontrou com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.

Como parte da pressão contra ele, na última terça-feira (7/1) o opositor denunciou o "sequestro" de seu genro, Rafael Tudares, em meio a uma série de prisões ocorridas nos últimos dias — entre as quais do ativista de direitos humanos Carlos Correa e o líder político Enrique Márquez.

As prisões também ocorreram no interior do país. No Estado de Bolívar, no sul do país, na fronteira com o Brasil, agentes do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin) detiveram pelo menos quatro opositores desde dezembro, incluindo o vereador Jeremy Santamaría.

Por sua vez, no Estado andino de Trujillo, outras cinco pessoas foram presas na segunda-feira (6/1), informou a imprensa local.

Até agora, as autoridades venezuelanas não confirmaram estas detenções.

Publicado originalmente por BBC News, em 09.01.25

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Maduro rouba eleição, e Brasil vai à posse

O governo brasileiro decidiu enviar representante à posse do ditador venezuelano, estágio final de uma crise contratada pelo compromisso ideológico do lulopetismo com o chavismo


Lula e Maduro no Planalto

O Governo do presidente Lula da Silva enviará uma representante à nova posse do ditador venezuelano Nicolás Maduro, marcada para 10 de janeiro. Será a embaixadora do Brasil na Venezuela, Glivânia Maria de Oliveira. Os exegetas do Palácio do Planalto se apressaram em tentar edulcorar a decisão, destacando que o presidente ficará no Brasil e não enviará nenhum ministro a Caracas, e que a presença da embaixadora não significa que o governo brasileiro reconheceu o resultado da eleição fraudada com mão de ferro pela ditadura chavista. Mais um pouco e dirão que o envio da representante brasileira é uma sanção diplomática para marcar posição.

Como tudo o que diz respeito à imoral relação de Lula da Silva com Maduro e sua ditadura, dá-se aos fatos e aos gestos nomes distintos do que realmente são. Sejamos claros, contudo: só a presença de uma representante do Brasil, independentemente de seu escalão, é uma forma explícita de chancela, aceitação e conivência institucional por parte do governo brasileiro. É o reconhecimento da legitimidade da posse e, por efeito, do resultado da eleição que garantiu o novo mandato a Maduro de maneira reconhecidamente fraudulenta. Mas, na falta de coragem de admiti-lo de maneira oficial, inventa-se um reconhecimento oficioso.

No fim das contas, dá no mesmo: o envio da embaixadora à posse é o estágio final de uma crise contratada há meses, quando o governo Lula resolveu equilibrar entre suas obrigações constitucionais de defesa da democracia e os compromissos ideológicos – e sabe-se lá o que mais – do lulopetismo com o chavismo. Embora o Palácio do Planalto, sob o silêncio cúmplice do Itamaraty, hesite em reconhecer oficialmente o resultado, o fato é que o governo brasileiro jamais admitiu sequer duvidar abertamente da lisura da eleição e do poder de Maduro, apesar de todas as evidências e dos alertas em contrário.

Quando o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um simulacro da Justiça Eleitoral que se submete às ordens do Palácio de Miraflores, declarou a vitória de Maduro, sabia-se que o ditador não sobreviveria politicamente se respeitasse liberdades individuais e a soberania da vontade popular. Foi porque os chavistas sabiam disso que, do início ao fim, o processo eleitoral foi conspurcado. A oposição não só jamais teve chance real de derrotá-lo, como foi perseguida sistematicamente, incluindo a cassação sumária de candidaturas que, segundo pesquisas independentes, poderiam vencer Maduro, prisões políticas de oposicionistas, intimidação de adversários e violência do Estado contra quem ousou protestar em público contra o regime.

Antes do pleito, o ditador fez ameaças, prevendo uma “guerra civil” caso não fosse eleito e prometendo que o país testemunharia um “banho de sangue” – uma ignóbil incitação à violência política. Depois, autoproclamado vitorioso mesmo que o CNE tenha resistido a fornecer as atas de votação à oposição e aos escassos observadores internacionais presentes na Venezuela, ele continuou a promover arbitrariedades. Dezenas de manifestantes foram mortos e cerca de 2 mil foram detidos nos meses seguintes. Há relatos de que as milícias paramilitares conhecidas como “Coletivos”, a Gestapo chavista, intimidaram famílias e jornalistas. O oposicionista Edmundo González Urrutia, que reivindica a vitória eleitoral, é caçado pelas instituições de Maduro, que ofereceram uma recompensa de US$ 100 mil por informações que levem à sua prisão.

Tudo isso sob o silêncio obsequioso do governo lulopetista ou sob declarações que beiraram o escárnio – como aquela em que Lula declarou que a Venezuela realiza mais eleições que o Brasil, e por isso é um país democrático. Ou quando o chanceler de facto Celso Amorim, cobrado a fazer o mesmo que diversos países latino-americanos que haviam emitido notas veementes de repúdio contra Maduro, afirmou, em tom jocoso: “Sou do tempo da bossa nova – a gente nunca sobe o tom”. Nunca, claro, desde que se trate de tiranos companheiros. Depois da eleição, o regime chavista passou a criticar abertamente Lula e o Itamaraty, chegando a afirmar que o presidente brasileiro estaria a serviço da CIA, o serviço secreto americano. Nem o Brasil reagiu nem, como se reafirma agora, quer distância do chavismo. O lulopetismo é irremediável.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 07 de janeiro de 2025

Por uma Venezuela livre

Talvez a pressão internacional force a mudança, que deverá ser pacífica e negociada, como foi o caso dos países orientais sequestrados pela URSS. Ou talvez ainda exista um soldado venezuelano que se reconhece no hino nacional e decide homenagear, gloriosamente, o “povo valente que o jugo derrubou”. 

A líder da oposição venezuelana, María Corina Machado. (Crédito: Miguel Gutierrez - EFE)

Você não pode viver com um pouco de luz na testa

                                                                              onde os tiranos governam. - José Marti, líder da Independência de Cuba

A liberdade no nosso continente tem uma data histórica na Venezuela. Se em 10 de janeiro Nicolás Maduro tomar posse da presidência , usurpando o mandato que o povo deu nas urnas em 28 de julho ao candidato da oposição Edmundo González (e à sua parceira política, a heróica María Corina Machado) , a partir daí, cada passo , cada ato, cada palavra, cada minuto da sua gestão ficará marcado pelo estigma indelével da ilegitimidade.

90% dos venezuelanos querem o fim do seu governo. Maduro concluiu o trabalho de demolição económica e institucional iniciado por Chávez. Ele tem sido tirânico por causa da miséria e do desamparo em que mergulhou o povo, por causa do exílio a que a sua "gestão" inepta forçou oito milhões de seus compatriotas, por causa da sufocação de todas as liberdades (excepto a sua e a que da sua satrapia) e – acima de tudo – pela barbárie das suas perseguições, torturas e assassinatos. Se ele impor a sua reeleição ilegal, não só a esmagadora maioria do povo o repudiará ainda mais (se possível). Todas as democracias lhe virarão as costas, especialmente a Europa, os Estados Unidos, o Canadá e a maioria dos países latino-americanos, incluindo aqueles governados por líderes de esquerda, como Gabriel Boric. É claro que não faltarão estados autoritários, totalitários ou teocráticos que se prestam à farsa. Claro que a China, a Rússia, o Irão e os seus satélites; Também a Nicarágua e Cuba, que não só não são democráticas como também mostram o seu carácter tirânico. E nessa trupe de ignomínia os governos do Brasil e do México (e certamente da Colômbia) incluirão um representante.

Mas outro ato poderia ocorrer a partir daquele dia. Sem que seja possível saber como – tão incerta é a figura da história – Edmundo González pôde ser empossado presidente da Venezuela. Talvez mudem as forças de pressão internacionais, políticas e financeiras, que deveriam ser pacíficas e negociadas, como foi o caso dos países orientais sequestrados pela URSS até 1989. Ou talvez ainda haja um soldado venezuelano que se reconhece na letra do hino nacional . e, dada a natureza ilegítima do regime, decidir homenagear, gloriosamente, as “pessoas corajosas que o jugo derrubou”. Certamente o povo marchará novamente em direção ao bunker de Miraflores. E o acaso, como sempre, jogará as suas cartas, que nem sempre favorecem o mal.

Seria o maior triunfo da democracia na história da América Latina. Não hesito em afirmar isso. O regresso da ordem democrática só ocorreu com ditadores de direita. Na Argentina isso foi conseguido em 1983 com a retirada dos militares criminosos, o mesmo que no Peru, Uruguai, Brasil e até no Chile, onde Pinochet, com toda a sua imprudência, não teve escolha senão aceitar o resultado do plebiscito que separou ele do poder em 1988.

Nada semelhante foi visto em ditaduras de esquerda. Em 1990, a transição fugaz de um regime revolucionário para um regime democrático ocorreu na Nicarágua, mas não demorou muito para que o líder máximo do sandinismo, Daniel Ortega, se declarasse líder vitalício e restaurasse práticas que o próprio Somoza aplaudiria. Quanto a Cuba, alguém alguma vez sonhou que Fidel Castro daria início a uma ordem republicana? Morreu na sua cama – como tantos tiranos – ainda aclamado pelo mito de uma Revolução que prometia ser de Martí e acabou stalinista. Mas esse mito já não sustenta os militares cubanos, donos daquela ilha de tristeza que morre de fome e de solidão diante dos nossos olhos. Por tudo isto, o regresso à democracia na Venezuela estabeleceria um precedente fundamental: provaria que os ditadores de esquerda também estão a abandonar o poder.

A Venezuela livre chegará. Voltarão os filhos e netos que migraram, voltarão os agricultores, trabalhadores, empresários, profissionais e técnicos espalhados pelo mundo, voltarão os laços diplomáticos e comerciais, voltará o capital, a PDVSA se reconstituirá como a empresa estatal exemplar que já foi e muitas empresas expropriadas ou arruinadas renascerão. A paz voltará às estradas, às praças e às consciências.

E os horrores? E as horríveis prisões e salas de tortura? E justiça? No seu exílio indeterminado, os déspotas gastarão os seus milhões, os seus milhares de milhões. Os venezuelanos curarão as suas feridas, honrarão os seus mártires, mas não terão tempo de olhar para trás. Eles reconstruirão a sua república, respirarão o ar da liberdade.

Enrique Krauze, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, o diário global, em 07 de janeiro de 2025.

Pesquisas - Curiosidades do Maranhão

          No Maranhão, não tem governo fraco, todos são fortes. Aqui a Penitenciária de Pedrinhas foi matéria do Fantástico, tal as atrocidades ocorridas ali de cabeças decepadas, mas as pesquisas sempre apontaram índices de aprovação acima de qualquer bom senso. 

Pontes caem, pessoas perdem as vidas, mas o resultado das pesquisas não muda. Nem o mistério da Santíssima Trindade é tão complexo de explicar como os resultados dos escrutínios locais que envolvem desempenho de governos.                

Cerca de 61 famílias estão morando debaixo da Ponte José Sarney, conhecida como Ponte do São Francisco, em São Luís. Grande parte destas pessoas estão vivendo em condições precárias, sem acesso à água encanada, saneamento básico e alimentação. (Blog do Djair Prado)
                                     
Uma coisa que me chama atenção há bastante tempo são as pesquisas sobre desempenho dos governos aqui no Maranhão. Em geral, todos os governos recebem aprovação da população pesquisada acima de 70%. Não raro chegam a 90%, independentemente de como estão os índices sociais do estado se comparados aos demais, quase sempre na rabeira. Se o índice é o de pobreza pior ainda. Andam juntos, o aumento da pobreza e o da popularidade dos governantes. Que coisa engraçada, não fosse trágica.

Não importa o quão são deploráveis o desempenho dos governantes, como deixaram os índices sociais que medem a sua passagem pelo honroso cargo de governador, as pesquisas desmoralizam o trabalho censitário do IBGE. Chego a desconfiar que tais estatísticas oficiais valem para todos os estados, menos para o Maranhão.

Recentemente, viu-se uma pesquisa que teria sondado a opinião de mais de 22.000 entrevistados, nos 217 municípios do Estado, cujo resultado foi a aprovação do desempenho do atual governo de 70,9%. Não se tem notícias se a coleta das opiniões foi ao vivo ou por telefone, ou outro método qualquer que agora mais recentemente a inteligência artificial tenha produzido; também não se sabe quantos dias foram consumidos para a realização de tal façanha, se ela desceu ao campo ou foi feita no escritório. O que se sabe é que em São Luís a aprovação do nosso governo não passava de 40%. É de se estranhar, portanto, que a soma dos outros municípios tenha superado o peso da população da Capital e o resultado tenha ido a 70,9% de aprovação. Teria ocorrido uma revolução silenciosa na percepção pública?  (Dados e comentários do Diário 98).

A isso ser verdade, há que se parabenizar o governo pelo que está fazendo no interior do Maranhão, ainda que por aqui disso não se tenha notícias. Se você tenta analisar os dados, não encontra cruzamentos sólidos para ter uma ideia do mistério circundante. Alguém me falou que o Instituto Opinião, realizador da pesquisa, deve ter se esquecido das entrevistas e exibiu opinião própria acerca do objeto pesquisado.

No Maranhão, não tem governo fraco, todos são fortes. Aqui a Penitenciária de Pedrinhas foi matéria do Fantástico, tal as atrocidades ocorridas ali de cabeças decepadas, mas as pesquisas sempre apontaram índices de aprovação acima de qualquer bom senso. Pontes caem, pessoas perdem as vidas, mas o resultado das pesquisas não muda. Nem o mistério da Santíssima Trindade é tão complexo de explicar como os resultados dos escrutínios locais que envolvem desempenho de governos.  

Antigamente, tínhamos o IBOPE, que se consagrou entre nós pelas fraudes em pesquisas eleitorais, mormente quando se tratava de beneficiar o grupo Sarney. Agora, parece que tudo ficou ainda mais fácil de fraudar, pois não há vigilância da concorrência. Jornais de oposição desapareceram, emissoras de TV também, rádios tomaram o mesmo rumo, agora só existem diários oficiais ou panfletos de governo.

A grande verdade do Maranhão é que aqui não existe sociedade civil, ninguém reclama nada. Todos os absurdos que se cometem contra a população são tidos como normais. Um exemplo bem claro desta afirmação foi a cassação do governador Jackson Lago (costumo chamar de estupro judicial): nenhuma manifestação da sociedade civil sobre o assassinato que o TSE cometeu contra a população que elegeu democraticamente o governador, o mesmo Tribunal que, depois, decide diferentemente em Recurso Contra Expedição de Diploma mandando que o TRE seja ouvido em primeiro lugar, como deveria ter sido ouvido no caso do ex-governador.

A sociedade civil há tempos perdeu a voz, anda de joelhos perante os poderosos, de cabeça baixa, moralmente abatida, envergonhada da cabeça aos pés. Triste!

Aziz Santos, o autor deste artigo, é economista. Foi Secretário do Planejamento e Orçamento do Estado (Governo Jackson Lago - 2007-2009). Publicado originalmente no WhatsApp).