quinta-feira, 14 de novembro de 2024

'Ainda estou aqui': por que caso da ditadura relatado no filme segue sem resolução no STF

Mais de meio século após o desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva na ditadura militar, um dos episódios mais emblemáticos de violação de direitos humanos da história do Brasil, o país revisita o caso em duas frentes em buscas de respostas, enquanto, em uma terceira, ele segue sem desfecho.

À esq., foto de família com Eunice, Rubens e Babiu (filha caçula) no Rio em 1970 (à dir., cena do filme) - Arquivo Pessoal

No cinema, Ainda Estou Aqui, novo filme de Walter Salles que estreou nesta quinta-feira (7/11) em salas pelo Brasil, retrata os impactos da perda de Rubens Paiva sobre sua esposa, Eunice, e seus cinco filhos no Rio de Janeiro dos anos 1970, durante os anos de chumbo.

O longa, inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado, foi premiado como melhor roteiro no último Festival de Veneza e escolhido por unanimidade para representar o Brasil no Oscar no próximo ano.

Ao mesmo tempo, o governo federal reabriu uma investigação do caso sobre o que de fato aconteceu com Rubens Paiva.

O deputado foi cassado e preso em 1971 e dado como desaparecido. Sua morte, confirmada só 40 anos mais tarde, segue até hoje sem que os culpados tenham sido responsabilizados.

Isso porque a denúncia do caso, feita há uma década, está no Supremo Tribunal Federal (STF). A demora é tal que três dos cinco militares acusados pelo crime já morreram.

Depois de seis anos sem qualquer movimentação, em 24 de outubro deste ano o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo caso, determinou que a Procuradoria Geral da República se manifeste sobre o mérito do tema, informou à BBC News Brasil a assessoria de imprensa da corte.

Esse impasse está intimamente ligado ao debate sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia, que concedeu perdão tanto a perseguidos políticos quanto a agentes do Estado que cometeram crimes durante o governo militar.

No centro da questão, há uma discussão se os crimes daquele período podem ou não ser ainda punidos e, em última instância, a disposição da sociedade brasileira de acertar as contas com um dos períodos mais violentos de sua história recente.

Este é o cerne de Ainda Estou Aqui, diz Marcelo Rubens Paiva à BBC News Brasil, em que sua mãe, Eunice, interpretada por Fernanda Torres, é apresentada como uma mulher forçada a se reinventar diante da violência do Estado e a criar um novo futuro para sua família.

Seu livro e o longa derivado dele propõem mais do que uma reconstituição histórica. São uma reflexão sobre a impunidade e a resistência à revisão de crimes da ditadura militar, tema que permanece atual e controverso no país.

“O nosso papel como cineasta, escritor, roteirista, pessoa das artes é falar aquilo que os vencidos não conseguem falar”, diz o filho do deputado.

“Mostrar, denunciar, apontar, é muito complicado em um país que sofreu um processo de ditadura tão longo e que na redemocratização fez um pacto sinistro entre a sociedade civil e os torturadores.            

Selton Mello, que interpreta Rubens Paiva e Fernanda Torres, que interpreta Eunice, ao lado do diretor Walter Salles (Getty Images)

Por que caso Rubens Paiva está sem resolução no STF

Rubens Beyrodt Paiva nasceu em 1929, em Santos, São Paulo. Casado com Eunice Facciolla Paiva, era pai de cinco filhos: Vera, Maria Eliana, Ana Lúcia, Marcelo e Maria Beatriz.

Formado em engenharia, Paiva foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962.

Durante seu tempo na Câmara dos Deputados, destacou-se como relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que investigava o financiamento de grupos que conspiravam contra o governo de João Goulart.

Com a instalação do regime militar, em 10 de abril de 1964, seu mandato foi cassado, levando-o ao exílio na Iugoslávia.

Após retornar ao Brasil em novembro do mesmo ano, Paiva estabeleceu-se com a família em São Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro, em uma residência na Avenida Delfim Moreira, no bairro do Leblon.

Ele atuava como diretor-gerente de uma empresa de engenharia e fundações, cultivando relações com jornalistas e políticos de oposição.

No entanto, em 1971, Rubens Paiva foi sequestrado por agentes do regime militar e, conforme denúncia do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, morreu no antigo DOI-Codi, na Tijuca, na zona norte da capital.

Foi somente durante a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que foi confirmada a morte de Rubens Paiva.

A comissão, instituída em 2012, no governo de Dilma Rousseff, tinha como objetivo investigar e documentar as violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.

Durante a comissão, foi confirmado e esclarecido que Rubens Paiva foi torturado e morto em instalações militares.

Foto de Eunice em 1971, após sair da prisão, com os cinco filhos  (Arquivo pessoal de Vera Paiva)

Em 2014, a CNV apresentou informações sobre o caso do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva.

m um relatório parcial divulgado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, a CNV apontou o então tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho como um dos torturadores responsáveis pela morte de Paiva.

Essa revelação veio à tona com base no depoimento de uma testemunha, identificada apenas como "agente Y", que afirmou ter visto um dos militares pressionar o ex-deputado contra uma parede durante uma sessão de tortura no Destacamento de Operações de Informações (DOI).

Segundo o relatório, Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas infligidas pelos militares. Apesar das novas provas, como recibos de pagamento de diárias que contradizem a versão de que José Antônio Nogueira Belham, comandante do Doi-Codi à época, estaria de férias durante a prisão e morte de Paiva, o destino final do corpo do ex-deputado ainda não foi esclarecido.

Cláudio Fonteles, ex-procurador geral da República e um dos coordenadores da Comissão Nacional da Verdade, explica que a recusa das Forças Armadas em abrir seus arquivos, mantendo a documentação sob sigilo, dificultou a investigação dos crimes.

Neste sentido, os depoimentos colhidos pela comissão tiveram um papel central.

“Nesses crimes antigos, as provas testemunhais são muito importantes”, pontua Marlon Alberto Weichert, procurador regional da República e coordenador do Grupo de Trabalho Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

“Especialmente nos casos de graves violações a direitos humanos, onde as evidências da tortura se perdem um pouco com o tempo e a documentação até hoje é mantida sob sigilo.”

Em 2014, após investigações iniciadas em 2011, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar pelo assassinato e ocultação do cadáver do deputado Rubens Paiva. As acusações incluíam homicídio doloso, ocultação de cadáver, associação criminosa armada e fraude processual.

Filme foi escolhido para representar o Brasil no Oscar (Divulgação)

Os denunciados foram José Antonio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza, Jacy Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos.

A Justiça Federal do Rio de Janeiro aceitou a denúncia, que foi mantida pelo Tribunal Regional da 2ª Região.

Esse desdobramento foi considerado um marco pelos membros do MPF, pois representou a primeira ação penal contra militares por homicídios ocorridos durante a ditadura. Os acusados solicitaram um habeas corpus à 2ª turma do TRF2, mas o pedido foi negado.

A defesa dos réus, então, recorreu ao STF alegando que a anistia já havia sido discutida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que é um instrumento jurídico utilizado no Brasil para questionar atos do Poder Público que violem preceitos fundamentais da Constituição, como direitos humanos básicos.

Em 29 de setembro de 2014, apenas 19 dias após o julgamento do habeas corpus, o ministro-relator Teori Zavascki concedeu uma liminar para suspender o andamento do processo.

Zavascki faleceu em 2017 em um acidente de avião, e o processo foi paralisado. Em 2018, o caso foi encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, que sucedeu Zavascki e herdou os processos pendentes.

 Deputado federal foi cassado logo após o golpe militar e preso após voltar de um exílio (Memorial da Resistencia)

Lei da Anistia em xeque

Os rumos do caso Rubens Paiva está ligado a uma discussão sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia.

Esta legislação, decretada em 1979, durante a ditadura, ao conceder perdão geral aos crimes cometidos durante o regime, permitiu por um lado o retorno de exilados e a libertação de presos políticos.

Por outro, ressaltam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, impediu que agentes da ditadura que torturaram e mataram opositores do governo militar fossem processados.

“A transição controlada, dominada pelos militares, com as elites brasileiras, levou a esse modelo de impunidade e de esquecimento”, diz Weichert.

“Esses assuntos foram assuntos interditados, assuntos proibidos.”

Em 2010, o STF decidiu que a Lei da Anistia é constitucional, o que é questionado ainda hoje.

Para Claudio Fonteles, a Lei da Anistia é inconstitucional, porque contraria princípios fundamentais da Constituição Federal.

Ele argumenta que uma lei ordinária, como a Lei de Anistia, não pode, sob a ótica constitucional, anistiar crimes cometidos por aqueles que violaram o Estado Democrático de Direito, já que a Constituição é a base permanente da democracia e deve ser preservada acima de qualquer legislação infraconstitucional

“Manter essa lei é preservar a figura do torturador. Não colabora para a defesa da democracia e coloca uma pedra sobre esse assunto”, afirma Fonteles à BBC News Brasil.

Weichert argumenta que, apesar da decisão do STF ter declarado a Lei de Anistia constitucional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a considerou incompatível com a convenção americana sobre direitos humanos.

Eunice combateu a política indigenista do regime militar até o fim da ditadura

Exemplos de processos envolvendo o Brasil na CIDH incluem os casos da guerrilha do Araguaia (Gomes Lund), do jornalista Vladimir Herzog e Collen Leite, todos levados à Corte após a comissão ter realizado esse procedimento.

Em decisões importantes, a Corte Interamericana declarou que tanto crimes contra a humanidade quanto graves violações de direitos humanos são imprescritíveis e não podem ser anistiados.

O fato de os próprios militares terem decretado a lei que perdoa os crimes cometidos por agentes do regime seria uma forma de “autoanistia”, defende Sergio Suiama, procurador da República do Ministério Público do Rio de Janeiro.

“Isso é inadmissível em casos de crimes contra a humanidade”, pontua Suiama.

O procurador destaca que isso tem travado o avanço de ações penais como a de Rubens Paiva.

"O caso de Rubens Paiva está suspenso devido a essa indefinição”, diz Suiama.

Segundo Suiama, o MPF já propôs mais de 40 ações penais, mas a maioria delas foi suspensa ou derrubada justamente porque o STF não julga essas arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

“As provas reunidas durante a investigação do MPF, incluindo confissões de farsa em tentativas de fuga, permanecem sem análise de mérito, esperando por uma decisão que determine se esses crimes são ou não imprescritíveis".

Eunice e os cinco filhos em Brasília depois da posse de Rubens em 1963 (Arquivo Pessoal)

O advogado Rodrigo Roca, que representa os acusados de torturar e matar Rubens Paiva, questiona a argumentação de que os crimes da ditadura podem ser enquadrados como crimes contra a humanidade.

Segundo Roca, para ser um crime contra a humanidade, a conduta precisa ter sido voltada contra uma população civil, o que, segundo ele, não seria o caso.

“Uma conduta para ser considerada crime contra a humanidade, ela precisa se voltar contra a população civil como um todo. E não contra determinados grupos insurgentes. Isso legalmente, ou seja, tecnicamente, penso até que dogmaticamente, não poderia jamais ser tipificado como crime contra a humanidade”, diz.

O advogado avalia ainda que o processo movido pelo MPF que busca um desfecho para a morte de Rubens Paiva, iniciado durante o governo Dilma e na esteira das conclusões da Comissão da Verdade, teve um "viés político".

Segundo ele, sempre que um governo de esquerda chega ao poder, há um "recrudescimento desse movimento", que ele qualifica como "delírios”.

“É preciso se perguntar antes a quem isso vai interessar, qual é a relação custo-benefício de uma nova mobilização dessas, do governo, de alguns setores do judiciário, em torno de pessoas com questões jurídicas plenamente resolvidas, quer dizer, é uma perda para todos, é uma guerra sem vencedores”, acrescenta.

“Há um revolvimento de uma matéria jurídica já bem desgastada e resolvida do ponto de vista social. Caberia ao plano jurídico apenas aderir a essa consciência popular e por um fim nessa história”, acrescenta.

Novo filme é inspirado no livro do filho de Paiva, Marcelo Rubens Paiva

Governo reabriu investigação do caso

Em paralelo, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reabriu o caso em abril deste ano.

O objetivo é investigar e produzir mais provas que comprovem o que aconteceu com Rubens Paiva.

Em agosto de 1971, o caso foi arquivado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão antecessor do atual Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

A votação evidenciou divisões: enquanto membros ligados à ARENA (Aliança Renovadora Nacional) apoiaram o arquivamento, representantes do MDB e da OAB se posicionaram contra.

O então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, exerceu o voto de desempate, decidindo pelo arquivamento. A justificativa oficial baseou-se em informações falsas do Exército, que alegava que Rubens Paiva havia desaparecido após uma intervenção de desconhecidos durante sua detenção.

Essa versão foi desmentida posteriormente pela Comissão Nacional da Verdade. Ademais, um dos conselheiros que votou pelo arquivamento afirmou ter sido coagido a tomar essa decisão.

Segundo André Carneiro, vice-presidente do CNDH, a medida tem caráter administrativo, com possibilidades de contribuir com essa ação penal do MPF.

Carneiro afirma ainda que será produzido um relatório que conterá recomendações ao Poder Público específicas para o caso Rubens Paiva e também gerais sobre o direito à memória, à verdade e à Justiça. O documento deve ser entregue até o fim deste ano.

“Como existe um processo no STF, esse relatório será entregue ao MPF e compartilhado com o Supremo”, ressalta Carneiro.

“Esse caso é bastante simbólico.Tratava-se de um ex-deputado federal, alguém que não tinha vínculo com a luta armada. A forma como foi tratado revela a estrutura de funcionamento de espionagem e uma máquina de tortura no país.”

Marcelo Rubens Paiva reforça a importância de manter viva a memória do pai, seja por filmes, livros ou reportagens.

Para o escritor, a forma de impedir que a ditadura volte é colocar em evidência o aconteceu durante o regime — e isso inclui o assassinato de Rubens Paiva.

“Tem que mostrar o que é a ditadura, o que foi o AI-5, o que foi a tortura, o que foi o Estado autoritário”, diz Marcelo Rubens Paiva.

“É algo que não se deve defender jamais.”

Priscila Carvalho, do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Os gatos fazem bem para nossa saúde?

Os gatos convivem com os seres humanos há milhares de anos. E, muito antes de os memes e os TikToks viralizarem na Internet, eles têm nos confortado com seus ronronados e nos feito rir com suas travessuras.

Muitos gatos preferem interação humana em vez de comida ou brinquedos (Getty Images)

Mas, o que dizem as pesquisas: os gatos nos fazem bem?

Viver com um deles pode ter um efeito profundo - e às vezes surpreendente - em nossa saúde física e mental. E isso não é isento de riscos.


Os gatos ficam com o rabo para cima quando estão felizes

Parte da Família

Você já deve ter ouvido falar que os gatos não têm donos, eles têm “funcionários”. Na verdade, vários levantamentos mostram que os humanos que moram com eles se sentem mais como parentes amados.

Em um estudo com 1.800 tutores de gatos holandeses, metade disse que seu bichano era parte da família. Um em cada três considerava-o como um filho ou melhor amigo, e o achava leal, solidário e empático.

Outra pesquisa, nos Estados Unidos, desenvolveu uma escala de “vínculo familiar ” e descobriu que os gatos eram um integrante tão importante das famílias quanto os cães.

Muitos gatos preferem interação humana em vez de comida ou brinquedos. E eles conseguem distinguir quando estamos falando com eles (e não com outro humano).

Na verdade, nós nos adaptamos uns aos outros. Os felinos são mais propensos a se aproximar de estranhos humanos que primeiro dão um “beijo de gatinho” – estreitando os olhos e piscando lentamente. E pesquisas sugerem que os gatos desenvolveram miados específicos que se sintonizam com nossos instintos de nutrição.

O que essa relação próxima significa para os resultados de saúde?

Gatos são ótimas companhias para idosos (Getty Images)

Um senso de propósito

Ter um animal de estimação está associado a um menor isolamento social. E alguns tutores de gatos dizem que “cuidar dele” aumenta a sensação de prazer e senso de propósito.

Mas os benefícios do relacionamento podem depender de como você interage com ele.

Um estudo analisou diferentes estilos de convivência, incluindo “remoto”, “casual” e “codependente”. E descobriu que pessoas cujo relacionamento era codependente, ou como um amigo, tinham uma conexão emocional maior com o animal de estimação.

Gatos têm centenas de expressões faciais diferentes (Getty Images)

Links para a saúde do coração

As pessoas que possuem – ou possuíram – um bichano têm menor risco de morrer de males cardiovasculares, como derrame ou doença cardíaca. Esse resultado foi repetido em várias pesquisas.

No entanto, um problema na interpretação de estudos populacionais é que eles nos informam apenas sobre uma associação. Isso significa que, embora os donos de felinos tenham um risco menor de morrer por problemas de coração, não podemos afirmar com certeza que os gatos são a causa.

Conviver com um gato também foi associado a algumas mudanças positivas na microbiota intestinal, especialmente em mulheres, como melhor controle da glicemia e redução de inflamação.

As 'caretas' dos gatos podem ter muitos significados (Getty Images)

Ajudando a saúde mental

Ser tutor de animais domésticos também está associado a um bem-estar psicológico maior. Para pessoas com depressão, acariciar ou brincar com seu bichano demonstrou reduzir os sintomas (embora isso tenha ocorrido em um curto período de duas horas e não possa ser extrapolado para um prazo mais longo).

Outra maneira de descobrir o impacto dos gatos na saúde é a pesquisa qualitativa: perguntar às pessoas o que seus gatos significam para elas.

Quando colegas e eu entrevistamos veteranos de guerra, descobrimos que pessoas mais apegadas aos seus animais de estimação na verdade tinham pontuações mais baixas em saúde mental. Mas, suas respostas à pesquisa contaram uma história diferente. Um entrevistado disse: “meus gatos são a razão pela qual eu me levanto de manhã”.

Outro escreveu:

”Considero-o um animal que presta um serviço. Ele me ajuda a relaxar quando estou lidando com minha ansiedade, depressão ou quando acordo durante a noite por causa dos pesadelos frequentes. Meu gato não é apenas um animal de estimação para mim, ele é uma parte de mim, parte da minha família.”

Pode ser que os veteranos fossem mais apegados aos seus gatos porque tinham saúde mental pior — e dependiam mais deles para obter conforto — e não o contrário.

O peso do amor

É possível que o apego tenha desvantagens. Se seu gato ficar doente, o fardo de cuidar dele pode ter um impacto negativo em sua saúde mental.

Em nosso estudo com tutores de animais portadores de epilepsia, cerca de um terço deles experimentou um nível clínico de sobrecarga como cuidadores que provavelmente interferiu em suas atividades diárias.

Toxoplasmose

Os gatos também podem transmitir doenças zoonóticas, que são infecções transmitidas de animais para humanos.

Eles são os principais hospedeiros da toxoplasmose, um parasita excretado nas fezes, que pode afetar outros mamíferos, incluindo os seres humanos.

Há mais probabilidade de o parasita ser transmitido por gatos selvagens, que caçam para se alimentar, do que por gatos domésticos.

A maioria das pessoas apresenta sintomas leves que podem ser semelhantes aos da gripe.

Mas a infecção durante a gravidez pode levar ao aborto espontâneo ou natimorto, ou causar problemas para o bebê, incluindo cegueira e convulsões.

Mulheres grávidas e pessoas com imunidade baixa correm maior risco.

É recomendado que esses grupos não esvaziem as caixas de areia dos gatos ou, se o fizerem, que usem luvas.

Trocar a caixa de areia diariamente previne que o parasita atinja um estágio que possa infectar pessoas.

Alergias

Até uma em cada cinco pessoas tem alergia a felinos - e esse número está aumentando.

Quando os gatos lambem seus próprios pelos, sua saliva deposita um alérgeno. Quando o pelo e a penugem (flocos de pele) se soltam, isso pode desencadear uma reação alérgica.

Pessoas sem alergias graves ainda podem conviver com gatos se lavarem as mãos regularmente, limparem as superfícies e passarem aspirador de pó para eliminar os pelos.

Elas também podem excluir os pets de locais que desejam que sejam livres de alérgenos, como os quartos.

Embora os gatos possam provocar reações alérgicas, também há evidências de que o contato com eles pode ter um papel protetor na prevenção do desenvolvimento de asma e reações alérgicas.

Isso ocorre porque a exposição permite modificar o sistema imunológico, tornando menos provável que reações alérgicas ocorram.

Susan Hazel, a autora deste artigo, é professora de veterinária na Universidade de Adelaide (USA). Originalmente publicado no site de divulgação científica The Conversation. Reproduzido pela BBC News, em 12.11.24

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Miguel Reale Jr. diz que ‘sequestro’ do Orçamento pelo Congresso revela País em ‘podridão’

Para ex-ministro da Justiça, Executivo está “de mãos atadas” diante de ações que priorizam o “atendimento pessoal de parlamentares”, e as eleições deste ano comprovaram o sucesso desse tipo de esquema

O jurista Miguel Reale Jr. durante o encerramento do 9º Seminário Caminhos Contra a Corrupção. (Foto: Alex Silva/Estadão)

O jurista Miguel Reale Jr. fez duras críticas nesta terça, 5, em São Paulo, ao que chamou de “sequestro” do Orçamento do País pelo Legislativo por meio das emendas parlamentares. Para o ex-ministro da Justiça, o Brasil vive um momento de “podridão”, em que o interesse público deu lugar ao interesse particular de deputados e senadores.

“O Legislativo pôs a mão no Orçamento. Se já é difícil para o Executivo cumprir seu papel com as despesas obrigatórias, com esse sequestro de receita por parte do Legislativo, o Executivo fica com as mãos atadas”, disse Reale Jr. no encerramento do 9º Seminário Caminhos Contra a Corrupção, promovido pelo Estadão e pelo Instituto Não Aceito Corrupção (Inac) nos últimos dois dias. “Estamos vivendo uma podridão vendo o dinheiro indo para o ralo, vendo ações que priorizam atendimento pessoal de parlamentares. Acabou o interesse público, este é o quadro.”

O jurista Miguel Reale Jr. durante o encerramento do 9º Seminário Caminhos Contra a Corrupção, nesta terça, 5 Foto: Alex Silva/Estadão

Professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, Reale Jr. citou os diferentes tipos de emendas parlamentares criados nos últimos anos, como as de relator, posteriormente consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, as emendas de comissão e de bancada, e as emendas pix, agora suspensas. “O Executivo está contra a parede, e o Legislativo tomou conta. Se reproduz aqui o que aconteceu na República Velha, um acordo entre elites para dar sustentação ao governo. Aqui, é o Legislativo que prevalece e faz com que o Executivo se submeta.”

O jurista avalia que, com as emendas, o Orçamento deixou de representar um instrumento de ação do Poder Executivo. “Para um deputado, interessa dar dinheiro para determinado reduto eleitoral para cavar votos para a reeleição. O Orçamento deixou de ser instrumento de ação política e administrativa do Executivo para ser dividido com o Legislativo, que passa a pôr a mão no Orçamento e destinar verbas para obras e eventos efêmeros, mas desconectados com um planejamento administrativo.”

Para o jurista, as eleições municipais de 2024 são a prova de como as emendas foram efetivas em privilegiar o aspecto eleitoral dos parlamentares. “Qual o clima que se vive no País? Qual o capital moral que se extrai? São (investimentos em) ações sociais, visando o bem comum, o interesse público, ou que visam atender interesses dos deputados, visando exclusivamente a cevar seu eleitorado? Prova disso é que, na última eleição, 91% dos prefeitos que receberam dinheiro de emendas foram reeleitos.”

Reale Jr. também fez críticas ao PSD, presidido por Gilberto Kassab, partido que terminou as eleições com mais vitórias em todo o Brasil. “O que é o PSD do Kassab? Se você for ler os seus princípios, qualquer um assinaria. ‘A favor do meio ambiente’, ‘contra desigualdade’. O PSD vai apoiar o que mais lhe interessa. O PSD é um partido sem caráter. Nada o caracteriza. PSD é um conglomerado de interesseiros que fazem da política um esporte, sem proposição. Kassab é um secretário de governo do (governador de São Paulo) Tarcísio de Freitas (Republicanos) e tem três ministérios no governo do PT.”

O Seminário Caminhos Contra a Corrupção se consolidou como um dos principais espaços de debate nacional sobre transparência, integridade, compliance, ESG e o universo anticorrupção. Quase 80 mil pessoas acompanharam as duas últimas edições, em 2022 e 2023. Os painéis e conferências deste ano foram transmitidos ao vivo no site do Estadão.

Matheus Lara, o autor, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.11.24

Controle do Orçamento pelo Congresso no Brasil é maior do que em países da OCDE

Estudo comparativo com 11 nações mostra que o Legislativo brasileiro é o único a atuar também na execução orçamentária

O Congresso brasileiro dispõe hoje de poderes sobre o Orçamento nacional maiores do que os detidos pelos Legislativos de 11 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) entidade que reúne algumas das nações mais desenvolvidas do mundo. A conclusão é de estudo do pesquisador do Insper Marcos Mendes e do ex-secretário do Orçamento Federal Hélio Tollini. 

O porcentual das despesas livres do governo dedicado às emendas parlamentares no Brasil (24%) é quase o triplo do segundo colocado, a Alemanha (9%). O Brasil também é o único país analisado em que o Legislativo atua na execução do Orçamento. Para os autores, “não se justifica a defesa da expansão das emendas parlamentares ao Orçamento sob o argumento de que ‘no mundo todo é assim’”.

O porcentual de emendas no Brasil é mais do que o dobro do que pratica a Alemanha, segunda colocada

“A forma como o Legislativo brasileiro atua no processo orçamentário é inusitada e (...) muito superior ao observado nos demais países (...). Não se justifica, a expansão das emendas sob o argumento de que ‘todo mundo é assim”

O poder do Congresso Nacional brasileiro sobre as emendas parlamentares é muito superior ao que acontece na maior parte dos países desenvolvidos. A conclusão é de um estudo elaborado pelo pesquisador do Insper Marcos Mendes e pelo e ex-secretário do Orçamento Federal Hélio Tollini. Os autores compararam a prática brasileira com a de 11 países da OCDE. O porcentual dedicado às emendas no Brasil é mais que o dobro do segundo colocado, a Alemanha, e o Congresso hoje dispõe de poderes que não existem em nenhum outro lugar, diz o levantamento. A OCDE é uma organização que reúne países dedicados à promoção de padrões internacionais econômicos, financeiros, comerciais, sociais e ambientais.

Do começo de 2021 até agora, deputados e senadores destinaram R$ 131,7 bilhões em emendas parlamentares de todos os tipos. O montante é 87% maior do que o indicado nos quatro anos anteriores (2017-2020), o que mostra a força do avanço do Congresso sobre os recursos do Orçamento. Segundo o estudo de Marcos Mendes e Hélio Tollini, esse avanço começa em 2015, quando o Congresso aprovou a chamada PEC do Orçamento Impositivo (EC 86). A PEC tornou obrigatório o pagamento de parte das emendas individuais. Hoje, as emendas representam 24% das despesas livres (discricionárias) do governo. É mais que o dobro do segundo colocado, a Alemanha, onde o montante chega a 9%.

Do total de R$ 131,7 bilhões indicados nos últimos quatro anos, quase um terço do total (32,4%) corresponde a emendas de relator (base do esquema do Orçamento Secreto, revelado pelo Estadão) e a emendas de comissão, o que torna impossível, na prática, saber quem são os “padrinhos” das indicações. Em agosto, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino reconheceu que o Congresso não havia dado fim à prática do Orçamento Secreto, declarada inconstitucional pelo STF em 2022 (mais informações nesta página). Ele suspendeu o pagamento das emendas. Na última terça-feira, a Câmara aprovou um projeto para tentar atender às exigências de Dino e liberar os recursos.

Segundo entidades que trabalham pela transparência dos recursos públicos, o projeto não é suficiente para garantir a rastreabilidade do dinheiro enviado por meio de emendas, principalmente as de comissão. Isto porque o texto não define nenhum parâmetro para as atas das reuniões nas quais a destinação do recurso é decidida. Além disso, a proposta eleva o valor das emendas para R$ 50,5 bilhões no ano que vem.

Para entender as diferenças no processo orçamentário de cada país, os autores entrevistaram especialistas locais, além de analisar dados. “A principal conclusão é de que a forma como o Legislativo brasileiro atua no processo orçamentário é inusitada e, em termos de montante, muito superior ao observado nos demais países analisados. Não se justifica, portanto, a defesa da expansão das emendas parlamentares ao Orçamento sob o argumento de que ‘no mundo todo é assim’”, escreveram os autores.

O Brasil, dizem os autores, é o único país analisado em que o Legislativo atua na execução do Orçamento, ao indicar ao governo para onde enviar recursos depois de aprovada a Lei Orçamentária Anual (LOA). É o que acontece com as emendas de comissão, por exemplo. O estudo compara a situação do Brasil com a observada no México, no Chile, dos Estados Unidos, na Coreia do Sul, na Alemanha, na Itália, em Portugal, na Espanha, na França, no Canadá e na Austrália.

PRIORIDADES.

“Nos países membros da OCDE, os parlamentos, em geral, têm a função de discutir as prioridades nacionais e de fiscalizar a execução do orçamento, e não de interferir diretamente na sua elaboração, tampouco na execução do orçamento, destinando recursos para as bases eleitorais dos parlamentares, como ocorre no Brasil”, diz um trecho do estudo. Em dois dos países, Canadá e Austrália, sequer existem emendas. E só o Brasil e os Estados Unidos permitem que as emendas sejam aprovadas sem a concordância do Executivo. “Das nove características (do processo orçamentário) que a gente avaliou, (...) há três que só existem no Brasil. Uma é a questão da cota financeira, ou seja, cada parlamentar ter direito a um determinado valor em emendas. Há depois a questão da reserva, do Poder Executivo ser obrigado a reservar antecipadamente um valor para atender às emendas. Finalmente, tem a intervenção do Poder Legislativo durante a execução do Orçamento. Dentre todos os países (analisados), é só no Brasil que o Legislativo interfere na execução do Orçamento. Em todos os outros, a execução é assunto exclusivo do Executivo”, diz Hélio Tollini. Segundo o pesquisador, os 24% das verbas “livres” à disposição do Congresso tornam o Brasil um ponto fora da curva em relação aos demais países. “Quem chega mais perto é a Alemanha, com 9%, e depois a Coreia do Sul, com 4,4%. São números muito diferentes. Não há comparação possível de 9% para 24%, e muito menos 4,4%. E depois que, em ambos os países (Alemanha e Coreia do Sul), os parlamentares têm que indicar, na emenda, o cancelamento correspondente. Lá, o parlamentar arca com o ônus de dizer de onde vai tirar o recurso. Aqui não, pois há uma reserva para isso”, explica.

QUESTIONÁRIOS.

Para obter as informações sobre o processo orçamentário nos diferentes países, os autores enviaram um questionário padronizado com 12 itens para especialistas de cada um dos países. “Para cada país, depois de enviado o documento, agendou-se entrevista online em que o(s) técnico(s) foram solicitados a fazer uma descrição detalhada do processo orçamentário de seu país, com ênfase na participação do parlamento e nas questões previamente enviadas”, descrevem os autores. Além disso, eles também estudaram a bibliografia disponível sobre cada um dos países.

Contrariados com a falta de definição sobre o bloqueio das emendas parlamentares, deputados ameaçam dar o troco e não votar a lei que autoriza os gastos do governo no próximo ano, que depende da aprovação do Congresso Nacional. A estratégia de integrantes da Comissão Mista de Orçamento é vista por especialistas como suicida, já que o Orçamento do Brasil ficaria completamente travado.

Parlamentares veem a medida como a principal moeda de troca para assegurar que o Supremo Tribunal Federal libere os recursos previstos nas emendas, destinando dinheiro público aos municípios.

O repasse das emendas está suspenso desde agosto, quando o ministro Flávio Dino determinou que o Congresso e o governo dessem mais transparência e rastreabilidade para o envio das verbas.

No entendimento de membros da Comissão Mista de Orçamento (CMO) ouvidos pelo Estadão, governo e STF jogam juntos para frear a liberação de recursos para os deputados. E impedir a votação da lei de diretrizes orçamentárias (LDO) imporia uma “humilhação” ao governo.

Se o impasse não for resolvido e as emendas não forem liberadas, apontam eles, as emendas remanescentes deste ano e que aguardam destinação não valeriam para 2025.

“Existe uma insatisfação da base, tanto pelo bloqueio das emendas por decisão judicial e tanto pela falta de entendimento por parte do governo” Cláudio Cajado, Deputado Federal (PP-BA)

O presidente da CMO, deputado Júlio Arcoverde (PP-PI), também confirma a movimentação. “Existe uma movimentação, mas acho que depois que o Senado aprovar (o projeto das emendas), resolve a questão”, diz. Segundo ele, a previsão é votar no fim do mês.

Congressistas queixam-se também da ausência do líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (PT-AP). Eles dizem que Randolfe é pouco presente nas negociações por um acordo em torno das matérias analisadas na comissão.

“A reivindicações são justas, adequadas, mas vamos resolver e não acredito que vamos ficar sem votar a LDO”, diz Randolfe, ao Estadão. Segundo ele, o calendário eleitoral apertou os prazos para votar projetos na comissão.

APROVAÇÃO.

O projeto de lei que estipula novas regras para as emendas parlamentares foi aprovado na Câmara no dia 5 deste mês. Ainda resta a aprovação do Senado e a sanção presidencial. Enquanto isso, faltam seis semanas para o fim do ano legislativo, que se encerra no dia 23 de dezembro.

Mesmo com os prazos apertados, Randolfe acredita que será possível votar a LDO e o Orçamento de 2025. Segundo ele, já há o acerto com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para votar o projeto no Senado amanhã.

Em tese, a LDO é enviada pelo Executivo ao Congresso até o dia 15 de abril. O texto passa pela análise da CMO e, após votação na comissão, Câmara e Senado aprovam o texto ou não conjuntamente em sessão do Congresso Nacional.

O Legislativo deveria já devolver o texto para sanção até o dia 17 de julho do mesmo ano. Essa, inclusive, é a condição para que haja o recesso parlamentar no meio do ano. Mesmo sem a aprovação, Câmara e Senado resolveram dar as férias de duas semanas mesmo assim — isso é o chamado “recesso branco”.

A LDO nunca deixou de votada. “Sim (é uma estratégia suicida)”, analisa Élida Graziane procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo. “Sem a LDO, nenhum gasto pode ser feito a partir de 1 de janeiro. Sem LDO é impossível ficar, porque significaria paralisação completa de todos os gastos, incluídos os subsídios (salários) e as emendas dos próprios parlamentares.”

Andre Shalders, o autor desta reportagem, é Jornalista. Marcos Mendes e Hélio Tollini são os autores do estudo sobre as emendas parlamentares. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 11.11.24.

A recalcitrância dos dinossauros

Ministros ameaçam pedir demissão caso sejam atingidos por cortes do pacote fiscal, confrontam equipe econômica e Lula da Silva apenas assiste, sem tentar sequer conter a insurgência

Ministros desafiam equipe econômica e Lula só assiste, sem conter insurgência

No curto espaço de uma semana, dois ministros do governo Lula da Silva ameaçaram de forma explícita e categórica pedir demissão caso suas pastas sejam atingidas pelo corte de gastos defendido pela equipe econômica. A recalcitrância de Carlos Lupi (Previdência) e Luiz Marinho (Trabalho), dois dinossauros da política oriundos do trabalhismo e do sindicalismo, em nada surpreende. O que perturba é a conduta de mero espectador assumida pelo presidente da República.

Lula da Silva acompanha com incômoda indiferença as declarações intimidatórias a eventuais medidas de seu governo. Por muito menos, ministros já foram desautorizados em comentários considerados insubordinados ou dissonantes, e não há nada de errado nisso. Faz parte do exercício da Presidência manter a equipe coesa e garantir certo grau de disciplina para que a máquina pública funcione dentro do roteiro traçado pelo governo.

Reportagem do Estadão informou que, em recente reunião no Palácio do Planalto, Luiz Marinho discutiu com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na frente de Lula, reclamando do pacote de corte de gastos. Em resposta, Haddad afirmou que o governo conduz a discussão desde fevereiro e que o ministro do Trabalho tem ciência disso. Há meses vêm sendo cogitadas mudanças no abono salarial, seguro-desemprego e na multa de 40% do FGTS em demissões sem justa causa.

Dias antes da reunião, ao ser questionado por jornalistas sobre essas propostas, Marinho respondeu que nada disso ocorreria, “a não ser que o governo me demita”. Em outra frente, Carlos Lupi, que também já havia se colocado contra qualquer mudança nos gastos previdenciários, declarou, em entrevista ao jornal O Globo, que não aceitará que o pacote venha a “pegar a Previdência”, desvinculando, por exemplo, benefícios da regra de aumento real do salário mínimo. “Se isso acontecer, não tenho como ficar no governo”, afirmou.

Como se fossem insubstituíveis ases da administração pública, os ministros assumem um comportamento afrontoso diante do pacote fiscal que, ao que tudo indica, terminará por propor um corte franciscano e sem mirar no equilíbrio entre receitas e despesas, como prevê o arcabouço fiscal. Sem o mesmo tom de ameaça dos colegas, o ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, também fez declarações descartando a possibilidade de desindexação do Benefício de Prestação Continuada (BPC) do salário mínimo, outra proposta que chegou a ser debatida.

O governo, que se contenta em alcançar a borda inferior das metas fiscais, também reduziu drasticamente as metas originais do arcabouço antes de a nova legislação completar um ano, o que minou a confiança na consolidação fiscal. Originalmente, o compromisso de Lula da Silva era chegar ao fim do mandato com superávit nas contas públicas de 1% do PIB. Agora, na melhor das hipóteses, a previsão de superávit foi empurrada para 2028 e, assim mesmo, cercada de ceticismo.

Na gestão Lula da Silva, a única ameaça de demissão que poderia fazer alguma diferença seria a de Fernando Haddad, que, com alguma coerência, tenta dotar de um mínimo controle fiscal o dispêndio de recursos públicos do governo. Seria exagero dizer que tem sido bem-sucedido na tarefa, mas ao menos tem conseguido evitar a total quebra de confiança no governo.

Levadas a termo, as ameaças dos ministros da Previdência e do Trabalho não fariam diferença nem mesmo em termos de apoio político. Mas os ultimatos bradados diante de um Planalto apático enfraquecem a equipe econômica e aumentam as dúvidas sobre o verdadeiro papel de Lula no esforço para caminhar na direção do equilíbrio sustentável das contas públicas. Sabe-se, de antemão, que parcimônia nos gastos é conceito inexistente na cartilha lulopetista, repleta de políticas populistas mantidas com dinheiro público.

A ferocidade dos ministros no combate ao corte de gastos parece se basear na certeza de que não precisarão cumprir ameaças de debandar do governo. Afinal, antes delas, Lula já havia interditado debate sobre as políticas que mais poderiam ajudar no ajuste e que atingem justamente suas áreas.

Editorial / Notas e Infomações, O Estado de S. Paulo, em 11.11.24

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Biden deixa para Trump uma economia próspera, quase sem desemprego e com inflação controlada

Os maiores problemas do novo mandato são o grande déficit público e a dívida

Trabalhadores da construção civil trabalham na plataforma que está sendo construída em frente ao Capitólio para a posse do novo presidente. (Foto de Hannah Mckay / Reuters)

“Você está melhor hoje do que há quatro anos?” Em 28 de outubro de 1980, apenas uma semana antes das eleições presidenciais, Ronald Reagan fez essa pergunta aos eleitores. O então governador da Califórnia varreu as pesquisas contra o presidente Jimmy Carter. Desde então, tornou-se a questão eleitoral por excelência. Trump tem repetido isto repetidamente nos seus comícios na última semana de campanha, ao mesmo tempo que apresenta os Estados Unidos como uma economia à beira de uma depressão económica. A verdade, porém, é que o novo inquilino da Casa Branca herda uma economia em forte crescimento, em que a taxa de desemprego está próxima dos seus mínimos históricos e a inflação, o grande problema do mandato de Joe Biden, está controlada. O principal problema é o grande défice público e a dívida crescente.

Trump diz que a economia está uma bagunça, mas que quando tomar posse irá consertar a situação “rapidamente”. Tão rápido que na verdade já está consertado. Graças à recente política monetária da Reserva Federal, os Estados Unidos estão a conseguir aquilo que os economistas – num termo emprestado da corrida espacial – chamam uma aterragem suave : controlar a inflação sem causar uma recessão ou perdas maciças de empregos.

O republicano aproveitou os dados distorcidos de Outubro – nos quais apenas 12 mil empregos líquidos foram criados devido aos furacões Helene e Milton e à greve da Boeing – para zombar do número. “Esses são os empregos que o Walmart cria, não os Estados Unidos”, disse ele. Chamou-os de “os piores números” da história, apesar de durante o seu mandato, e em plena pandemia, ter havido um mês em que 20,5 milhões de empregos foram destruídos. E, antes da pandemia, em fevereiro de 2019, outra em que foram criadas apenas 5 mil. Seu último mês completo no cargo, dezembro de 2020, viu 243 mil empregos destruídos. Seu mandato terminou com menos empregos do que quando chegou à Casa Branca.

Com Biden, no calor da recuperação da pandemia, primeiro, e com a força do consumo, depois, foram criados empregos em cada mês em que foi presidente, acrescentando 16 milhões de novos empregos. A taxa de desemprego, que era de 6,7% no final de 2020, caiu para 4,1% e está agora abaixo dos 4% há 26 meses, a melhor sequência em meio século. No debate de 1980, logo após a primeira pergunta, Reagan, consciente de que o desemprego tinha aumentado sob Carter, acrescentou esta outra: “Há mais ou menos desemprego no país do que havia há quatro anos?”

Crescimento de 15,5% do PIB

O produto interno bruto dos EUA caiu 2,1% no último ano do mandato de Trump e cresceu 5,8% no conjunto dos quatro anos, segundo dados do FMI. Nos quatro anos de Biden, a economia cresceu 15,5%, levando em conta a previsão do Fundo para este ano. No terceiro trimestre, cresceu a uma taxa próxima de 3% ao ano. Mesmo que os anos de 2020 e 2021 sejam retirados da contagem para tirar distorções da pandemia, a comparação ainda favorece Biden.

A inflação tem sido o grande calcanhar de Aquiles económico de Biden e explica em grande parte a vitória esmagadora de Trump nas urnas. Os preços subiram mais de 20% durante o seu mandato, em comparação com menos de 8% nos quatro anos do ex-presidente. Os factores externos foram, mais uma vez, decisivos. A pandemia, os congestionamentos na cadeia de abastecimento e a guerra na Ucrânia levaram a inflação a atingir um máximo de 9,1% em Junho de 2022, o nível mais elevado em quatro décadas, logo desde o surto inflacionário que lhe custou entregar a presidência a Carter.

Trump disse em seus comícios que iria acabar com a inflação. No entanto, este é um problema que basicamente foi superado. Os preços subiram 2,4% nos últimos 12 meses, menos que os 2,5% da pré-pandemia de Trump nos últimos 12 meses, segundo dados da Reuters. Se olharmos para o índice PCE, o favorito da Reserva Federal, a inflação está agora em 2,1%, apenas um décimo do objectivo de estabilidade de preços do banco central.

Embora a inflação tenha caído, os preços não. Isso continua a pesar na mente dos eleitores, que têm bem na memória quanto custava sair para jantar ou fazer compras há quatro anos. Os cidadãos não costumam ver o outro lado da história: os salários também subiram. Na verdade, o rendimento pessoal disponível aumentou 10% em termos reais, ou seja, já descontado da inflação, segundo dados da Reuters. Isto, claro, é uma média, pelo que haverá muitos agregados familiares que não notaram essa melhoria global.

Quanto à riqueza líquida das famílias, altamente dependente dos preços da habitação e da evolução do mercado bolsista, também registou um forte aumento. Segundo dados da Reserva Federal, eram 164 biliões de dólares (pouco mais de 150 biliões de euros) no final do segundo trimestre, o valor mais recente disponível. São 32 biliões de dólares a mais do que no final de 2020. Aliás, um dos que mais aumentou a sua riqueza durante o mandato de Biden, em mais de 50 mil milhões de dólares, é o convicto trumpista Elon Musk. O mercado de ações subiu quase 50% durante sua gestão e não parou de bater recorde após recorde.

Na realidade, o maior problema económico dos Estados Unidos são as suas contas públicas. O défice situa-se entre 6% e 7% do PIB e a dívida federal aumentou em mais de 7 biliões de dólares durante o mandato de Biden (embora tenha aumentado mais sob Trump), segundo dados da Reserva Federal. Trump concorreu ao cargo sem propostas credíveis para resolver este problema.

Miguel Jiménez, o autor deste artigo, é correspondente-chefe do EL PAÍS nos Estados Unidos da América. Publicado em 08.11.24.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Americanos escolhem o populismo autoritário

Trump provou que americanos estão realmente aborrecidos com o establishment, que os democratas bem representam. Ele ganhou amplo poder, mas terá pouco tempo para mostrar serviço


O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, dança após discursar em Palm Beach, Flórida  Foto: Alex Brandon/AP

O demagogo Donald Trump voltou à Casa Branca após dois processos de impeachment, quatro indiciamentos, uma condenação criminal, dissidências republicanas, a repulsa na mídia e em Hollywood, milhões de dólares a mais doados aos democratas e comparações com Hitler. Sobreviveu ainda a um atentado e, suspeita-se, a uma tentativa. As urnas falaram em alto e bom som.

Não foi um resultado da “desinformação” das redes sociais, como ultimamente têm dito os que perdem eleições para os populistas de direita. Foi uma vitória tão acachapante que os eleitores, ao contrário, demonstraram estar muito bem informados – sobretudo em relação à incapacidade dos democratas de enfrentar o que a maioria dos americanos enxerga como os principais problemas do país.

Com isso, Trump ganhou de Kamala Harris no voto popular por larga margem e o Partido Republicano parecia estar a caminho de conquistar a maioria no Congresso. Considerando-se que Trump já controla a Suprema Corte, o futuro presidente americano terá a faca e o queijo nas mãos para implementar suas promessas de campanha, que incluem deportar milhões de imigrantes ilegais, colocar o Departamento de Justiça a serviço de seu desejo de vingança contra seus adversários, transformar os EUA numa ilha protegida por tarifas e abandonar alianças e acordos militares, comerciais e ambientais, tornando o mundo consideravelmente mais instável.

Se os democratas quiserem atribuir o desastre à misoginia, ao racismo, ao fascismo, o farão por sua conta e risco. O fato é que o presidente Joe Biden falhou em reunir as condições necessárias para reduzir rapidamente a inflação que castigou a classe média americana nos últimos anos. Os índices só começaram a ceder recentemente, com pouco efeito prático sobre os preços, e é provável que seja Trump a colher os louros populares de uma recuperação econômica que já se verifica agora.

Ademais, ao invés de fazer um governo de transição, como prometido, Biden aferrou-se ao sonho da reeleição até se espatifar contra a realidade. Por anos, qualquer um que questionasse suas capacidades mentais era vilipendiado como um agente de desinformação da “extrema direita”. Quando ficou claro que Biden não tinha condições de concorrer, Kamala Harris foi coroada candidata pela elite democrata sem um único voto em eleições primárias. As únicas certezas em sua campanha eram a defesa do direito ao aborto e sua luta contra as ameaças à democracia, preocupações absolutamente secundárias para a maioria do eleitorado, como agora está claro. Ou seja, os democratas abusaram do direito de errar.

Já Trump provou que os americanos estão realmente aborrecidos com o establishment, que os democratas tão bem representam. Para a maioria dos eleitores, não importa que Trump seja um criminoso e um golpista, que não reconheceria o resultado da eleição se lhe fosse desfavorável, como fez há quatro anos. Aliás, já parece suficientemente claro que fazer troça da lei e da Constituição tornou-se um ativo político-eleitoral para Trump, visto como o outsider capaz de desafiar a estrutura jurídica e institucional do “sistema” – nome genérico para designar tudo aquilo que, segundo o discurso trumpista, frustra o sonho de “fazer a América grande de novo”, como diz o slogan de sua campanha e de seu movimento.

Ao desmoralizar espetacularmente o “sistema”, Trump praticamente não terá oposição ao assumir seu novo mandato. Isso obviamente lhe dá enorme liberdade para implementar sua agenda – que, a julgar pelo seu primeiro mandato, dependerá exclusivamente de seu humor. Como Trump é um orgulhoso agente do caos, é impossível fazer qualquer previsão.

Mas então virá o teste da realidade. Se suas políticas resultarem em inflação e desemprego, como alertam economistas de diversas extrações, Trump não terá a quem atribuir a responsabilidade, já que o Congresso e a Suprema Corte estarão sob seu comando. E então as engrenagens do “sistema” voltarão a funcionar, pois é assim que funciona a democracia. Considerando que Trump não pode concorrer a outro mandato e que daqui a dois anos haverá novas eleições, para a renovação de parte do Congresso e de governos estaduais, ele terá esse curtíssimo período para mostrar serviço e entregar a prometida “era de ouro da América”. Do contrário, será apenas um “pato manco” falastrão.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 07.11.24

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Com a direita fragmentada, esquerda no divã e centro no protagonismo, o que se pode esperar de 2026?

A esperança voltou à pauta e quem for o melhor portador dessa bandeira, colherá bons frutos

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), celebra sua reeleição em um evento com o governador Tarcísio de Freitas Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Nestas eleições, observamos uma nova dinâmica política se erguendo no Brasil. Aquela direita que se consolidou a partir do bolsonarismo já não é mais a mesma. Ela se fragmentou, perdida entre um radicalismo messiânico e antissistema e a necessidade de fazer alianças que possam garantir governabilidade e resultados práticos para a população.

A esquerda, por sua vez, entra definitivamente no divã, buscando entender em que ponto parte dos seus antigos eleitores passaram a renegar políticas assistencialistas, buscando pautas mais aptas a ensinar a pescar do que a entregar o peixe. Uma receita que agora é mais vista como eleitoreira do que como ferramenta de desenvolvimento social.

A esquerda também se debate nos temas referentes à segurança pública, sem saber ao certo como estar em sintonia com os desejos por uma polícia e uma Justiça mais duras no combate à criminalidade.

Já o centro voltou ao protagonismo. Sobreviveu à polarização, se tornando o fiel da balança. O discurso agora em voga, de que as pessoas querem boas gestões, diplomacia e diálogo, caiu como uma luva para políticos que prezam pelas alianças e entendem que a construção democrática passa pela aceitação das diferenças e não pela exacerbação que divide a sociedade.

É um sintoma de que o eleitor está mais maduro e, perante uma direita e uma esquerda que se radicalizaram, o centro se torna uma via que pode se adaptar melhor às nuances de cada região do País, ganhando cores mais progressistas ou conservadoras, de acordo com o desejo dos cidadãos de cada estado, mas sem demonizar parte do eleitorado, sem julgar as pessoas ou taxá-las de “nazistas” ou “comunistas”. A regra agora é incluir, e não segregar.

Sergio Denicoli, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.10.28

É assim que o cérebro armazena palavras: agrupando-as por significado

Pesquisadores da Universidade de Harvard demonstraram que os neurônios no córtex pré-frontal distinguem as palavras pelo que significam, não pelo som que soam, e fazem isso da mesma forma na cabeça de qualquer pessoa.

No córtex pré-frontal existem neurônios individuais que codificam o significado específico das palavras em tempo real. (Kirk Sides - Houston Chronicle/Getty)

Na maioria das pessoas, o processo mental da linguagem é especialmente dominante no hemisfério esquerdo do cérebro. No lobo frontal desse hemisfério – na chamada área de Broca, em homenagem ao neurologista que a descobriu – estão os neurônios executivos da fala, que organizam as sequências ou sequências de palavras e frases e levam à laringe e assim em. vocal periférico centraliza as ordens para emiti-los. É o cérebro que nos permite falar, o cérebro da fala propriamente dito, enquanto o cérebro que nos permite compreender o significado das palavras e das frases está localizado no lobo temporal do mesmo hemisfério esquerdo - a chamada área de Wernicke, também em reconhecimento ao neurologista que foi seu descobridor -. Simplificando, então, podemos dizer que a área de Broca contém os neurônios que nos permitem falar, e a área de Wernicke contém aqueles que nos permitem compreender a fala, o significado do que falamos e do que as outras pessoas falam.

Mas esta simples dualidade parece agora complicar-se quando entra em acção o córtex pré-frontal, uma região do cérebro humano envolvida nas funções mentais mais elevadas , uma vez que também parece contribuir significativamente para a essência linguística das palavras, isto é, para a sua capacidade cognitiva. significado. Até agora, as análises de imagens do fluxo sanguíneo cerebral permitiram estabelecer mapas do significado das palavras em pequenas regiões cerebrais. Mas agora, o neurocirurgião Ziv Williams e os seus colaboradores da faculdade de medicina da Universidade de Harvard (EUA) foram mais longe, mostrando que no córtex pré-frontal existem neurónios individuais que codificam em tempo real o significado específico das palavras. É uma descoberta importante saber como o cérebro os armazena.

Como o cérebro torna a consciência possível

A exploração experimental realizada por estes investigadores consistiu na implantação de eléctrodos no cérebro de 10 pacientes submetidos a cirurgia para determinar a origem das suas crises epilépticas. Dessa forma, registraram a atividade individual de cerca de 300 neurônios de cada paciente no córtex pré-frontal do hemisfério esquerdo, dominante para a linguagem. Assim, registraram os neurônios que foram ativados e o momento em que o fizeram, quando os pacientes ouviram múltiplas frases curtas de cerca de 450 palavras. O que observaram foi que para cada palavra eram ativados dois ou três neurônios diferentes e que as palavras que ativavam o mesmo grupo de neurônios pertenciam a categorias semelhantes, como ações (verbos) ou pessoas.

Da mesma forma, observaram que palavras que o cérebro conseguia associar entre si, como “pato” e “ovo”, ativavam alguns dos mesmos neurônios , e aqueles que tinham significado semelhante, como “rato” e “camundongo”, causou padrões semelhantes de atividade neuronal. Eles também encontraram neurônios que respondiam a conceitos menos precisos ou abstratos, como “atrás” ou “acima”. É especialmente impressionante que os investigadores tenham conseguido determinar, a partir dos seus registos de atividade, não apenas os neurónios que correspondiam a cada palavra e à sua categoria, mas também a ordem em que foram pronunciadas. Embora não pudessem recriar as frases com exactidão, podiam saber, por exemplo, que uma frase continha um animal, uma acção e um alimento, nesta ordem. Tudo isso, como dizemos, baseado exclusivamente na atividade dos neurônios registrados.

Os pesquisadores afirmam que os neurônios do córtex pré-frontal distinguem as palavras pelo significado, e não pelo som, porque quando, por exemplo, uma pessoa ouve a palavra inglesa son (filho em espanhol), os neurônios associados à palavra são ativados. família, o que não acontece quando a palavra é sun (sol em espanhol), embora sua pronúncia seja a mesma em inglês.

Embora as observações tenham se limitado a uma pequena parte do córtex pré-frontal, a principal conclusão deste importante trabalho, publicado recentemente na prestigiada revista Nature , é que os significados das palavras estão agrupados da mesma forma em todos os cérebros humanos, que utilizam o mesmas categorias padrão para classificar e dar sentido aos sons. Tudo isso é um passo importante para saber como o cérebro armazena as palavras e seus significados. Além disso, o mistério de como o cérebro converte a atividade dos neurônios (matéria) em conhecimento semântico (imaginação) sempre sobrevive.

A massa cinzenta é um espaço que tenta explicar, de forma acessível, como o cérebro cria a mente e controla o comportamento. Os sentidos, as motivações e os sentimentos, o sono, a aprendizagem e a memória, a linguagem e a consciência, bem como as suas principais perturbações, serão analisados ​​na convicção de que saber como funcionam equivale a conhecer-nos melhor e a aumentar o nosso bem-estar e as relações com outras pessoas.

Ignácio Morgado Bernal, o autor deste artigo, é professor emérito de Psicobiologia no Instituto de Neurociências e na Faculdade de Psicologia da Universidade Autônoma de Barcelona. Publicado originalmente no EL PAÍS,em 28.10.24

'O que deu errado com o capitalismo?'

Essa pergunta é o título do novo livro do investidor Ruchir Sharma, banqueiro que passou quase toda a sua carreira em Wall Street.

O contraste entre Índia e Cingapura, onde viveu, formou o pensamento de Ruchir Sharma (Getty Images)

Ele trabalhou para algumas das maiores empresas do distrito financeiro de Nova York — uma experiência que, segundo ele, o colocou no ponto de vista ideal para observar como o dinheiro flui através da economia global.

Sua conclusão? O capitalismo de hoje não atingiu seu verdadeiro potencial.

Autor de livros de sucesso como The rise and fall of nations ("Ascensão e queda das nações", em tradução livre) e Breakout nations: In pursuit of the next economic miracles ("Nações emergentes: em busca dos próximos milagres econômicos"), Sharma é presidente da empresa de gestão de patrimônio Rockefeller Capital Management e fundador e diretor da empresa de investimentos Breakout Capital.

“Este livro é uma história revisionista do capitalismo”, diz Sharma sobre seu lançamento.

Parte do interesse do executivo em escrever sobre o assunto tem a ver com sua história pessoal.

O banqueiro cresceu na Índia nas décadas de 1970 e 1980, onde o cenário era “muito socialista”, lembra o autor, apontando exemplos como a nacionalização dos bancos.

"Cresci aspirando a ser capitalista" nesse contexto, conta o autor.

Sharma foi depois viver com a família em Cingapura, onde ficou impressionado com a liberdade econômica e a “prosperidade”, em contraste com o que via em seu país natal.

Esse contraste influenciou diretamente sua visão do mundo.

'O que deu errado com o capitalismo?', questiona o título de novo livro

Seu próximo destino foi os Estados Unidos, a maior economia do mundo.

Trabalhando nas entranhas do capital, Sharma começou a perguntar-se por que nos países ocidentais tantos jovens dizem que prefeririam viver no socialismo.

Por isso, ele começou a refletir sobre o que houve no sistema capitalista, a ponto de muitos terem se tornado céticos.

Em "O que deu errado com o capitalismo?" (no original, What went wrong with capitalism), o autor argumenta que parte da culpa recai sobre os gastos gigantescos dos governos, viciados em dívidas, e sobre os bancos centrais, ao estimularem a economia injetando dinheiro no sistema, em vez de deixarem que as forças do mercado restabeleçam o equilíbrio.

Ao mesmo tempo, salienta, "nas últimas décadas houve uma perversão do capitalismo".

"As pessoas que se beneficiam do capitalismo não deveriam ser os grandes beneficiários”, diz ele.

"Algo está errado quando vemos que as pessoas que mais prosperaram nos últimos 20 anos são as mesmas que têm grande acesso a financiamento. Houve uma explosão de bilionários."

Hoje, os Estados Unidos abrigam mais de 800 supermilionários (coletivamente, a riqueza deles chega a quase US$ 6 trilhões, segundo a Forbes), mais do dobro do que era antes da pandemia.

Algo está errado quando vemos que as pessoas que mais prosperaram nos últimos 20 anos são as mesmas que têm grande acesso a financiamento', diz Sharma (Getty Images)

Mas Ruchir Sharma afirma que, embora os supermilionários sejam um alvo óbvio para os críticos do aumento da desigualdade, existe um culpado mais oculto: a queda na produtividade.

Se as empresas produzirem mais, diz ele, o bolo econômico pode crescer para todos, permitindo que elas aumentem os salários sem causar inflação.

Ele critica que, nas últimas décadas, as chamadas “empresas zumbis" são mantidas vivas graças aos bancos centrais determinados a manter as taxas de juro baixas, como ocorreu ao longo da década de 2010.

Além disso, bancos em dificuldades e considerados grandes demais para falir têm sido apoiados por resgates governamentais, uma política da qual ele discorda.

'Os loucos anos 1920'

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que tais ações eram consideradas prejudiciais à forma como o capitalismo deveria funcionar.

Revendo a história americana, Sharma volta à década de 1920, uma época que muitos associam a uma era glamorosa de jazz, à libertação nos costumes e à prosperidade crescente.

Contudo, após o fim da Primeira Guerra Mundial, entre 1920 e 1921, ocorreu uma profunda crise econômica que durou relativamente pouco, mas foi muito dolorosa. Ela foi antecessora da Grande Depressão de 1929.

A Grande Depressão de 1929 (foto) foi estudada em profundidade. Mas Sharma diz que devem ser tiradas lições da sua antecessora, a crise de 1920-1921 (Getty Images)

O empresário defende que há lições importantes sobre a política de não intervenção aplicada naquele momento.

Lições, aponta ele, que muitas vezes parecem ter sido esquecidas.

O que aconteceu nesses anos? Por que a política anti-intervenção foi tão ruim?

Os gastos e empréstimos do governo dos EUA dispararam durante a Primeira Guerra Mundial.

Mais tarde, à medida que a economia tentava adaptar-se aos tempos de paz, as pessoas correram para comprar bens que anteriormente eram racionados — e a inflação aumentou.

Além disso, as tropas que voltaram para casa aumentaram rapidamente a força de trabalho buscando emprego.

À medida que a recessão se instalou, os preços caíram e a atividade empresarial entrou em colapso, mas a Reserva Federal insistiu em aumentar os impostos.

Quase 500 bancos nacionais faliram em 1921, quando a produção industrial parou e o desemprego dobrou.

Isto pode parecer devastador, mas Sharma diz que a abordagem de não intervenção — deixar a crise continuar o seu curso, sem injetar dinheiro na economia e sem intervir para salvar os bancos — funcionou.

A abordagem permitiu que aqueles com fraco desempenho fossem eliminados da economia e que a crise terminasse em apenas 18 meses, argumenta.

“Temos uma prosperidade incrível após o período sem intervenção”, observa. “À medida que as pessoas aprendem a seguir sem intervenções, os fracos são escanteados.”

E na atualidade?


Ao contrário do que aconteceu naquele momento, em anos mais recentes, as respostas dos governos e dos bancos centrais às crises econômicas têm sido muito diferentes. (Getty Images)

Há o exemplo da crise de 2008, quando grandes bancos foram resgatados.

“A recuperação econômica [dessa crise] foi fraca. Muitos economistas pensaram que a lição foi que deveríamos ter feito mais”, diz Sharma.

Alguns anos depois, na pandemia de covid-19, no meio de uma brutal crise humana e econômica, mais uma vez as autoridades intervieram injetando grandes quantias de dinheiro.

“Os governos anunciaram grandes planos de isolamento social e geriram meios de estímulo. A ideia era a de que era melhor errar por excesso do que por falta de ação", afirma o autor.

“Sim, os governos devem intervir nas crises. Mas desta vez o estímulo foi tão grande que fez com que a inflação e também os preços dos ativos subissem.”

Ele se opõe, salienta, ao excesso de intervenção estatal e monetária.

Sharma diz que, até a década de 1970, as autoridades relutavam para intervir na economia e salvar o setor privado.

O problema é que agora "existe uma cultura de resgate".

Intervir em épocas de crise

Autor fez quase toda a carreira em Wall Street (Getty Images)

Do outro lado da balança, há muitos economistas que defendem intervenções econômicas em tempos de crise.

Um deles é Ben Bernanke, antigo presidente da Federal Reserve, o banco central dos EUA, que liderou o resgate ao banco de investimento Bear Sterns no início de 2008.

“Fiquei preocupado, mas senti-me muito confortável com a decisão”, disse Bernanke ao programa Marketplace da BBC, uma década após o resgate.

“Se o Bear Stearns tivesse falido de forma descontrolada, isso teria repercutido no sistema financeiro, causando muitos danos.”

Pouco depois, outros bancos de investimento ficaram à beira do abismo e Alistair Darling, então ministro da Fazenda do Reino Unido, interveio no maior resgate bancário da história britânica.

“Claro que é assustador, foi como uma catástrofe batendo na porta. Mas demorei um nanossegundo para pensar que não poderíamos deixar isso acontecer.”

Quem está certo então? Deveriam os políticos intervir e apoiar as empresas privadas em momentos de crise, ou a sociedade deveria aceitar o sofrimento a curto prazo para obter ganhos de produtividade futuros?

Por ora, Ruchir Sharma diz que alguns planos devem ser delineados, antes que a próxima crise chegue.

“Vamos traçar os limites agora”, diz ele, sugerindo que os governos tenham um roteiro caso ocorra uma crise financeira.

"Vamos fazer um plano hoje”, diz ele. “Não sinto que estejamos nos planejando."

Vivienne Nunis, a autora deste artigo, é jornalista do programa de rádio da BBC Business Daily e entrevistou Ruchir Sharma em Londres. Este texto foi adaptado a partir do programa de rádio. Publicado na BBC News, em 28.10.24

sábado, 26 de outubro de 2024

Os munícipes que não reclamam

Como uma obra literária inacabada, Graciliano Ramos não terminou o mandato em Palmeira dos Índios, mas seus relatórios deixam reflexões sobre o papel do prefeito


Graciliano Ramos, o Prefeito, famoso pelos seus Relatórios de Gestão

Na gestão em que se dedicaria a equilibrar as contas do município, enfrentar o desperdício e a ineficiência na administração, extinguir favores a compadres, pôr fim às extorsões que afligiam os mais pobres e, o mais inconveniente, relatar de forma clara e honesta o que fez e o que não conseguiu fazer durante o mandato, o prefeito de Palmeira dos Índios escreve, após o primeiro ano de trabalho: “Há descontentamento. Se a minha estada na prefeitura (...) dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos”.

O prefeito impopular, bem como o dono da autoavaliação seca, irônica e sobretudo literária, era Graciliano Ramos. O futuro romancista administrou Palmeira dos Índios, próxima a sua cidade natal, Quebrangulo, de janeiro de 1928 a abril de 1930, e no começo de cada ano escreveu relatórios de prestação de contas ao Conselho Municipal e ao governo de Alagoas. Desde aquela época os balanços da prefeitura chamaram a atenção da imprensa pela qualidade literária, e agora estão reunidos no livro O Prefeito Escritor: Dois Retratos de uma Administração (Record, 2024).

A leitura de texto tão burocrático, “com algarismos e prosa de guarda-livros”, interessa quase cem anos depois em primeiro lugar pelo que se pode antever do estilo do autor de Vidas Secas, já elogiado pelos contemporâneos dos relatórios. Em um trecho sobre os custos da administração, por exemplo, o prefeito escreve: “E lá se vão mais de trinta contos gastos sem uma varredela nas ruas, um golpe de picareta nas estradas, um professor, mesmo ruim, na Brecha ou no Anum”. Aos leitores atuais de Graciliano, interessa também o aspecto biográfico dos documentos, que ajudam a compreender o pensamento do homem que se tornaria preso político mais tarde. Por fim, para um público mais amplo, a leitura dos balanços interessa hoje porque muitos dos problemas que o prefeito escritor teve de lidar na Palmeira dos Índios do fim da década de 1920 o Brasil ainda enfrenta, como o patrimonialismo e o clientelismo.

No começo do mandato, diz um documento, o prefeito encontrou obstáculos dentro e fora da prefeitura: “Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro”. A dificuldade de arrecadação do município, o que o autor explica por serem todos, prefeitos e contribuintes, mais ou menos compadres, foi um dos desafios em que Graciliano teve sucesso durante a gestão, marcada pelo aumento da receita, mas também pela impopularidade.

Austero com uns, incluindo amigos e familiares, o prefeito registrou gastos com serviços públicos sanitários e de instrução, investiu nos subúrbios e aliviou a arrecadação dos mais pobres, estabelecendo “a equidade que torna o imposto suportável”. “Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.” Quanto aos prestadores de serviço da prefeitura, se não foram valorizados pelo gestor, ao menos constam nos relatórios exemplos de indignação com as remunerações pagas a eles (“uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários miseráveis”).

O corte de gastos nem sempre era possível, como no contrato para o fornecimento de energia elétrica firmado em outra gestão, no qual a cidade pagava “até a luz da Lua”. “Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras”, graceja o prefeito. Se era obra importante mas prorrogável, ele adiava, a exemplo da construção do cemitério novo: “Os mortos esperarão mais um tempo. São os munícipes que não reclamam”. E enterrava os recursos na conservação.

“Aí está, em traços largos, o estado em que se encontra a Prefeitura de Palmeira do Índios”, conclui o prefeito no primeiro relatório. Do interior de Alagoas, os documentos chegaram até o editor Augusto Frederico Schmidt, no Rio de Janeiro, que imaginou que quem escreve um relatório de prestação de contas com tamanha graça deveria ter um romance na gaveta. E tinha mesmo. Caetés, o primeiro livro de Graciliano Ramos, foi escrito durante a gestão, e saiu pela editora de Schmidt em 1933. O romance, aliás, se passa em Palmeira dos Índios, e tem como protagonista um guarda-livros que deseja ser escritor e fazer parte da elite social da cidade.

Como uma obra literária inacabada, Graciliano não terminou o mandato, mas seus relatórios deixam reflexões sobre o papel do prefeito, esse cargo cada vez mais esquecido em relação às pautas de política nacional que dominam as conversas nos ônibus e padarias, mas fundamental para o lugar onde a vida acontece, ou seja, o município.

Matando-lhe “o bicho do ouvido”, as reclamações fizeram parte do começo ao fim da gestão do escritor, inclusive colaborando para a renúncia. Mas a indiferença da população à política local não ajudaria Graciliano a construir uma cidade mais próspera e justa. Pelo contrário, o prefeito escreve: “Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão”. A apatia política, em vez disso, tende a buscar soluções tão fáceis quanto falsas, não se importando em destruir o que não afeta mais. É melhor que reclamem.

Amanda Calazans, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em26. 10. 24

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

'Não tem que ter propaganda' de casas de apostas, diz diretora de saúde mental do governo sobre as 'bets'

Um levantamento feito pela consultoria Kantar Ibope e divulgado no início do mês pela revista Meio & Mensagem, aponta que, apenas em janeiro, as casas de apostas haviam injetado pelo menos R$ 2,4 bilhões no mercado publicitário do país em 2024.

 Imagem de tela de celular com campo de futebol e o termo 'Bet'

Na TV, no celular, no computador ou nos estádios brasileiros, as operadoras de apostas online, popularmente conhecidas no Brasil como "bets", são quase onipresentes. (Getty Images)


Mas para a diretora do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Sônia Barros, as empresas que atuam no ramo de apostas online não deveriam poder anunciar os seus serviços da forma como acontece agora.

"Não tem que ter propaganda [...] É a ausência de propaganda que faz mais efeito do que as caixinhas", disse Barros em entrevista à BBC News Brasil na semana passada.

A lei que regulamentou o funcionamento das chamadas "bets" no Brasil proíbe a publicidade desses serviços para crianças, não impõe proibições ou faixas de horário para a propaganda como ocorre com bebidas e cigarros.

Barros é doutora em Enfermagem, professora titular aposentada do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP e, desde 2023, comanda a diretoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde

Na entrevista, Barros admite que o Brasil não estava preparado para o aumento na utilização das bets resultante da liberação em 2018 e da posterior regulamentação do setor feita durante o primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"O país como um todo não está preparado para esse aumento. Vemos, por exemplo, que o Congresso, que autorizou o jogo há quatro anos, agora está surpreso com a repercussão que isso tem na vida das pessoas", afirmou.

Ela diz ainda que o governo ainda não tem um diagnóstico sobre qual o tamanho da crise gerada pelo uso indiscriminado deste tipo de plataforma, embora dados do próprio ministério apontem para um aumento no número de atendimentos de pessoas relatando problemas com a compulsão pelos jogos.

Segundo a pasta, entre 2022 e 2023, houve um aumento de 53% no número de atendimentos relacionados a transtorno do jogo patológico no Sistema Único de Saúde (SUS).

Foram 1.290 atendimentos naquele ano contra 841 em 2022. Os dados parecem ainda mais alarmantes quando comparados ao registrado em 2018, ano em que as apostas online foram liberadas. Naquele ano, houve apenas 108 atendimentos, um número mais de 10 vezes menor que o registrado no ano passado.

Em meio às críticas geradas pelos casos de abuso e aumento do endividamento de usuários de apostas online, Barros admitiu que o governo não tinha um diagnóstico preciso sobre os impactos sociais e na saúde mental da população durante a regulamentação.

Ela disse, por exemplo, que o Ministério da Fazenda, que conduziu a regulamentação, não chegou a pedir um relatório sobre o assunto, mas que o Ministério da Saúde participou das discussões sobre o tema e conseguiu emplacar mecanismos que, segundo ela, reduziriam danos aos usuários.

Na entrevista, Barros também falou sobre as dificuldades para se encontrar soluções para as chamadas "cracolândias", o aumento no número de casos de "burnout" no país e os impactos da descriminalização do porte da maconha para uso pessoal.

Confira os principais trechos da entrevista:


Sônia Barros comanda a diretoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde desde 2023 (Ag. Brasil)

BBC News Brasil – Qual é o tamanho do problema das bets no Brasil hoje em relação à saúde mental?

Sônia Barros - Nós não sabemos por que isso é um fenômeno novo para o Brasil. Os jogos, no Brasil, existem desde o século passado, mas com a abertura que foi feita em 2018 é que começamos a identificar o problema.

Temos muitos grupos de estudos que começaram a se dedicar a esse tema e nós, aqui no Ministério da Saúde, começamos a tentar identificar também quem é que está atendendo essa população dentro do SUS.

O que a gente conseguiu perceber é que houve um aumento no número de atendimentos, mas não podemos saber se houve aumento no número de pessoas atendidas.

Não podemos dizer que houve uma causalidade e que houve aumento no número de pessoas que nos procuraram. A gente supõe que sim, mas também supomos que, hoje, há uma preocupação maior em se fazer o registro, o diagnóstico, dada a visibilidade que o tema ganhou.

BBC News Brasil – O Brasil estava preparado para o avanço das bets?

Barros - O país como um todo não está preparado para esse aumento. Vemos, por exemplo, que o Congresso, que autorizou o jogo há quatro anos, agora está surpreso com a repercussão que isso tem na vida das pessoas.

Eu digo ‘surpreso’ considerando as declarações que a gente escuta. Esta gestão, logo no primeiro ano de governo, se preocupou em fazer uma regulamentação [das apostas online] porque [no passado] haviam sido autorizadas [as apostas online] sem qualquer regulamentação. Foi o jogo pelo jogo.

O Ministério da Saúde foi procurado já o ano passado pelo Ministério da Fazenda, que já nos trazia essa preocupação. Diziam: "Olha, nós vamos regulamentar e estamos preocupados com a saúde das pessoas".

Então, desde o ano passado, o Ministério da Fazenda nos convidou e tivemos a preocupação de contribuir para a regulamentação no sentido da prevenção, da redução de danos e encaminhamento [de pacientes] para o cuidado.

BBC News Brasil – Dados apontam que a senhora teria tido apenas duas reuniões sobre o assunto...

Barros – É um equívoco. Me reuni sobre o assunto uma vez no ano passado e, neste ano, pelo menos seis vezes. Houve outras reuniões. Em algumas, eu não estive, mas outros técnicos foram. Mas o que isso significa?

BBC News Brasil - O que queremos saber é: o quanto a saúde mental da população brasileira foi levada em consideração ao longo do processo de regulamentação?

Barros – Eu posso te afirmar que, sim. Foi [considerado]. Nós pudemos contribuir no processo de regulamentação fazendo sugestões, prevendo a possibilidade de redução de danos, das travas [para vetar apostadores vulneráveis].

BBC News Brasil – No conjunto de documentos preparatórios divulgados pelo Ministério da Fazenda via Lei de Acesso a Informação sobre a medida provisória que regulamentou o funcionamento das bets, não consta nenhum relatório elaborado pelo Ministério da Saúde nem pela sua diretoria sobre os potenciais impactos à saúde mental das pessoas por conta das bets. O governo deveria ter procurado vocês ao longo do processo para tratar deste assunto?

Barros - Mas nós fomos procurados e nós conversamos bastante com o ministério.

BBC News Brasil - E vocês elaboraram um parecer ou um relatório?

Barros - Não. Nós participávamos da discussão fazendo sugestões que foram perfeitamente acatadas.



Governo considera que ação na área das apostas deve ser na linha da 'redução de danos' (Getty Images)

BBC News Brasil - Quais sugestões?

Barros – Fizemos sugestões para criar mecanismos para ajudar a redução de danos e sobre a prevenção da patologia [transtorno do jogo patológico]. Eram sugestões sobre travas para jogadores com problemas e para permitir a autoexclusão de jogadores.

As sugestões foram acatadas. Não tem relatório porque não foram pedidos. O que nos interessava era poder contribuir para que as pessoas tivessem menos danos com a questão do jogo [...] Já que foi permitido, uma vez que ninguém consultou a população quando foi autorizado, a ideia é fazer o que for possível para reduzir ao máximo possível os efeitos negativos disso na vida das pessoas.

BBC News Brasil - Considerando que o jogo, esse tipo de jogo estava autorizado desde 2018, ainda que não regulamentado, quão necessário era ter um diagnóstico sobre o impacto das apostas online antes da regulamentação?

Barros – Acho que você deve perguntar ao Ministério da Fazenda, que é o responsável por essa regulamentação. O que nos cabe é o que estamos fazendo como, por exemplo, adotar medidas para expandir a rede [de atenção psicossocial] para poder atender as pessoas que tem um sofrimento mental por causa disso.

É importante lembrar o seguinte: o jogo causa sofrimento mental? Sim. Mas também precisamos entender que as pessoas procuram o jogo porque têm sofrimento mental e buscam [no jogo] algum tipo de alívio. Nós precisamos expandir a rede e estamos com projetos de capacitação de trabalhadores da rede de saúde mental.

Além disso, estamos planejando uma ampla campanha de divulgação para a prevenção com avisos em relação ao risco e aos danos que os jogos podem causar.

BBC News Brasil – Já há uma data para o início dessa campanha?

Barros – Ainda não saberia dizer porque estamos preparando isso de forma muito cuidadosa [...] A ideia é que ela ajude a prevenir situações, promova a saúde e mostre os riscos. É claro que, na sequência, vamos ter necessidade de outras capacitações, de outras campanhas, mas essas são as medidas mais emergenciais.

Estamos, também, priorizando a habilitação de novos serviços CAPS AD [Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas], que seriam os mais preparados para lidar com isso, considerando que o jogo pode ser considerado uma adição [vício].

É importante dizer, no entanto, que qualquer CAPS do Brasil, tem condições de atender pessoas com problemas relacionados aos jogos.

BBC News Brasil – Especialistas com quem conversei me disseram exatamente o contrário. Eles afirmam que os CAPS não são preparados para essa nova realidade e que não teriam expertise para tratar do transtorno do jogo patológico...

Barros - O transtorno de jogo patológico, como qualquer transtorno da adição, requer as mesmas medidas. E se alguém te disse diferente, eu desconheço. Você deve estar se referindo a entrevistas dadas por trabalhadores em saúde mental que disseram que não estamos preparados [para atender esse público]. Aí, é preciso ponderar.

Estamos saindo de um período de gestão em que os CAPS foram completamente desmobilizados e danificados de todas as formas. As pessoas não têm capacitação há muito tempo, os CAPS não tinham reajuste há muito tempo... saímos de uma situação caótica [...] Quando o trabalhador diz que não tem capacitação, isto é verdade e por isso estamos providenciando. O serviço tem limitações? Sim, sem dúvida.

Com relação ao tratamento [para jogo], nós fizemos uma revisão da literatura internacional sobre o assunto, que é muito recente, e não há diferença significativa para o tratamento de outras adições, como álcool e drogas.

É claro que cada pessoa tem sua singularidade, assim como cada problema de saúde mental tem a sua, mas não existem grandes diferenças de tratamento para a compulsão pela droga, álcool ou pelos jogos. São os mesmos tratamentos: psicoterapia e medicamentos, quando necessário.

BBC News Brasil – Esses especialistas também dizem que os governos vêm priorizando o viés de arrecadação em detrimento do impacto que as bets têm na saúde mental das pessoas. A senhora concorda com essa afirmação?

Barros - Acho que, mais uma vez, você tem que buscar o governo. Tanto aquele que liberou [gestão Michel Temer] quanto aquele que está regulamentando. 


Publicidade das casas de apostas é ponto a ser atacado, diz Sônia Barros (Getty Images)

BBC News Brasil – Mudando um pouco de assunto, dados divulgados pelo próprio Ministério da Saúde no primeiro semestre indicavam que apenas 38% dos municípios brasileiros tinham pelo menos um CAPS, que é uma das estruturas mais conhecidas do atendimento à saúde mental. O que explica esse vazio?

Barros - Neste momento, dos municípios que poderiam ter CAPS, aproximadamente 1.000 não têm. E não tem por que, muitas vezes, o município não pede ao Ministério da Saúde para implantar um CAPS. A gente vive pensando em formas de estimular um município a ter um CAPS.

Algumas vezes, isso ocorre porque o município já tem uma rede de atenção básica que acaba suprindo essa demanda de saúde mental. [Esses vazios] não existem porque nós não estimulamos ou não queiramos que os municípios tenham CAPS, mas somos entes federados e nós não podemos chegar num município e obrigá-lo a ter um CAPS. Isso tem que vir da autoridade municipal.

Tem também um outro fator: nós estávamos há quase 10 anos sem um reajuste nas verbas destinadas pelo governo federal à manutenção dos CAPS e isso é um desestímulo aos municípios. No ano passado, a gente fez uma recomposição e neste ano saiu outra e ainda deve sair mais uma neste ano.

BBC News Brasil – Neste ano, o tema das chamadas "cracolândias" ou "cenas de uso de drogas", voltou a pautar debates nas eleições municipais de São Paulo e de outras cidades. Por que é tão difícil encontrar uma solução para ele?

Barros - É difícil porque não está relacionado apenas ao uso da droga. Esse problema está relacionado a diversos fatores que têm a ver com a vida das pessoas e com a vida que, por vezes, é escolha dela, mas que também é determinada por outras circunstâncias. Para ter uma ação nesses grupos e segmentos é preciso ter uma ação intersetorial fortíssima.

É preciso incluir soluções de moradia, geração de renda, raça e gênero. Temos determinantes sociais agindo fortemente e determinando fortemente como essas pessoas vivem. Não é só por desejo delas. Temos um pensamento, e isso se aplica ao jogo, em que se pensa que o vício, seja sobre substâncias como drogas ou o jogo, é tido como um problema de caráter e não como uma doença.

BBC News Brasil – E qual é a estratégia do governo federal para esse assunto?

Barros - Nós estamos trabalhando em conjunto com a Secretara Nacional de Políticas de Drogas [vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública]. Nós cuidamos da política de atenção às pessoas [...] nós temos trabalhado com cenários para pensar em como reduzir ou dar alguma diretriz para essa questão das cenas de uso.

BBC News Brasil - Tem algum prazo para que essa estratégia seja lançada?

Barros - Não tem prazo porque pensar um projeto desse tipo implica encaminhamentos diferentes, como, por exemplo, para a questão da moradia. E isso o Ministério da Saúde não tem como resolver sozinho.

Estamos buscando essas parcerias [...] Enquanto isso, o que temos são os grupos que têm trabalhado com a população de rua, na redução de danos e tentando buscar residências para essa população. Sabemos que isso é uma medida ainda pequena e que precisa ser ampliada e que precisa ser vista como uma política maior.

BBC News Brasil - Nesse ano, o STF descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal. Quais os impactos já sentidos na rede de saúde pública em decorrência dessa decisão?

Barros – Não detectamos nada, por enquanto. Na semana passada, tive uma reunião com os coordenadores estaduais de saúde mental e com os que atuam nas capitais e não houve nenhum relato sobre isso.

Também não houve nenhum aumento na busca por atendimento. No entanto, como existe essa expectativa, o Ministério da Saúde e a Senad estão trabalhando conjuntamente para pensar em como vamos lidar com essa decisão [...] O que precisamos é pensar como será feito o encaminhamento do usuário.

O fato de que não haverá uma punição criminal não significa, necessariamente, que todo usuário pego com maconha será um problema de saúde.

BBC News Brasil – Qual sua avaliação sobre essa decisão do ponto de vista da saúde mental? A decisão foi satisfatória?

Barros - Acho que é uma situação que não tem bom nem mau, né? O que nós entendemos é que fazer o uso dessa quantidade de maconha, isto porque não estamos falando de todas as drogas, aparentemente não é prejudicial.

Lembrando sempre que a questão do uso de drogas ou do jogo envolve outras questões de sofrimento mental. Isso tem a ver com o que antecede esse uso. O que leva as pessoas a esse uso.

BBC News Brasil – Dados apontam que houve um aumento no número de casos da síndrome de burnout no Brasil. O Brasil saiu de 178 afastamentos laborais por burnout em 2019 para 421 em 2023. O Brasil vive uma epidemia de burnout?

Barros - Eu não creio que o Brasil viva uma epidemia de burnout. Temos que ver que muitas coisas aconteceram neste período. Desde um governo que, no meu ponto de vista, exaltava a violência e a tensão entre as pessoas, passando por uma epidemia [Covid-19] que matou muita gente [...] Foi um momento bastante crítico para se analisar. Há também o fato de que, agora, há mais gente estudando o tema e isso dá uma dimensão maior do problema. Mas não estou dizendo que o problema não existe. Estou apenas dizendo que ele começa a ter uma maior divulgação

BBC News Brasil – Gostaria de encerrar entrevista com mais uma pergunta sobre as bets. A senhora comparou o tratamento ao jogo compulsivo ao dado à dependência de drogas e álcool. Hoje, no Brasil, há regras rígidas sobre a publicidade para bebidas alcóolicas e cigarros. Qual deveria ser o limite para a publicidade das bets?

Barros - Do meu ponto de vista, deveria ser igual ao cigarro. Começou tirando as grandes figuras, as grandes imagens e depois proibiu.

BBC News Brasil – Na sua opinião, as bets deveriam ser proibidas de anunciar?

Barros - Deveria. A propaganda faz o que é papel dela que é seduzir e convencer o outro de que aquilo é um sinal de bem-estar, de estar bem na vida. Tudo o que ela produz é no sentido de criar uma imagem de que aquilo é só benefício. Veja as figuras que eles trazem [para fazer propaganda]. São todos bem-sucedidos. Não tem ninguém ruim de vida. É isso o que a propaganda traz.

Então, não tem que ter propaganda. É como no cigarro. Há um estudo que diz que o que faz efeito [sobre as pessoas] não é exatamente as imagens que estão nas caixinhas [de cigarro]. Aquilo, parece, não tem efeito sobre as pessoas. É a ausência de propaganda que faz mais efeito do que as caixinhas.

BBC News Brasil - E a senhora acha que há um ambiente para que isso de fato ocorra no Brasil?

Barros - Não sei dizer. Eu creio que haverá uma forte tendência a colocar limites e limites sobre quem faz [a publicidade] e como faz. Mas garantir se será banido, eu não sei dizer. Apesar do interesse do grande capital porque o comércio e os bancos estão dizendo que o dinheiro está "fugindo". É preciso saber quem vai ganhar essa queda de braço entre o capital internacional e as betas.

Leandro Prazeres, o autor deste  artigo, é repórter da BBC News Brasil em Brasília. Publicado em22.10.24.