sábado, 14 de setembro de 2024

Governo está atordoado diante do fogo

Há pelo menos 12 ministérios que têm ou deveriam ter o que fazer num plano nacional de combate imediato aos incêndios

Incêndio atinge vegetação perto da Rodovia Presidente Dutra, na altura de Barra Mansa, no interior do RJ — Foto: Domingos Peixoto

O Supremo Tribunal Federal é uma Corte constitucional. É um poder independente, que deve decidir, nas mais diversas situações e casos, se a Constituição é ou não cumprida. Portanto foi com certo espanto que tomamos conhecimento, nesta semana, de uma ordem executiva de um ministro do STF, Flávio Dino. Determinava que o governo federal enviasse mais bombeiros militares para atuar nas regiões afetadas pelos incêndios. Mandava também que se deslocassem mais equipamentos e veículos para apoiar os esforços da Força Nacional.

Onde estava a questão constitucional?

O Executivo também é um Poder independente, a que cabe justamente a função de executar políticas e tocar a administração. Governar, enfim. Não cabe ao STF determinar se bombeiros deveriam atuar aqui ou ali. Mas determinou. E o governo cumpriu. Dois dias depois da ordem de Flávio Dino, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, convocou 150 bombeiros para as ações de combate aos incêndios. Portanto dentro do prazo de cinco dias dado pelo STF.

Sabe-se que isso criou certo mal-estar no governo federal. Compreensível. Dino entrara na seara do Executivo e, mais, determinando algo que obviamente o governo já deveria estar fazendo. Mostrou a todo mundo que o governo falhava num momento gravíssimo de emergência nacional. E falhava em questões elementares, como a mobilização de bombeiros. O que fazia o ministro da Justiça? Esperava ordem do STF?

Não há crise, apressaram-se todos a dizer. É normal, disseram, pois o STF tem amparo legal para esse tipo de determinação executiva. Tem mesmo — e isso vem do tempo da pandemia, quando o governo Bolsonaro não era apenas incompetente na atuação sanitária de combate à transmissão de Covid-19. Era ostensivamente contra as medidas. E as sabotava.

Ameaça à saúde pública, à saúde de todos e de cada brasileiro, poderia ser interpretada, como foi, como descumprimento pelo governo de uma obrigação constitucional. Decorrendo daí a capacidade do STF de determinar medidas que contribuíssem para o cumprimento executivo daquela obrigação constitucional. “Saúde é dever do Estado.”

Dada a explicação, a coisa ficou ainda pior para o governo Lula. Dino deixou o Ministério da Justiça faz pouco tempo, chegou ao Supremo pelas mãos de Lula. Não é, portanto, um adversário. E ficamos assim: o juiz do STF precisou recorrer a uma prerrogativa instituída para barrar os desmandos de Bolsonaro para determinar mais eficiência ao governo Lula, de que fazia parte há até pouco tempo.

E, quer saber? Dino tem razão.

No complexo e confuso governo Lula, há pelo menos 12 ministérios que têm ou deveriam ter o que fazer num plano nacional de combate imediato aos incêndios. E que deveriam estar preparados para a emergência climática caracterizada hoje por uma seca severa — prevista por especialistas e mesmo por integrantes do governo.

Apanhado no meio da crise, o governo passou a especular sobre medidas que já poderia ou deveria ter tomado. Por exemplo: a criação de uma Autoridade Climática, com amplos poderes para enfrentar o presente e o futuro. A ministra Marina da Silva propõe isso faz tempo. Ficaria dentro de seu Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas.

Deu problema político. Não da grande política — uma discussão sobre poderes e alcance de tal Autoridade. A questão foi outra: onde e com que partido ficaria? Ainda agora, quando a ideia voltou à tona, já surgiram especulações sobre nomes para comandar a talvez futura Autoridade. Um ambientalista? Ou um representante da Frente Parlamentar da Agropecuária?

Também se tratou de um arcabouço jurídico da emergência climática — pois é, não tinha. E até entrou na pauta o horário de verão, ainda em análise, segundo fontes do governo. Repararam? Nenhuma ideia nova. Apenas expõe um governo atordoado, o mesmo que ficou atordoado com a epidemia de dengue.

Se bem que apareceu uma ideia nova, de Lula: treinar os 70 mil recrutas que entrarão no Exército para o combate aos incêndios.

Agora vai.

Carlos Alberto Sardenberg,o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 14.09.24

O Brasil apodrece e o desconforto é físico, político e moral

E o governo fala em asfaltar a BR-319 e protesta contra lei antidesmatamento da União Europeia

Poluição na cidade de São Paulo - Danilo Verpa - 12.set.24/Folhapress

Na manhã da segunda-feira (9), São Paulo registrou a pior qualidade do ar em todo o planeta, superando metrópoles como Ho Chi Minh, no Vietnã, e Lahore, no Paquistão.

O Brasil pega fogo. A fumaça e a destruição ambiental se espalham. Sem orientação sanitária, a população sofre os efeitos da seca, da poluição e do calor.

Assim como os rios Tietê e Pinheiros e a baía da Guanabara apodreceram diante do olhar complacente de autoridades de diferentes linhagens ideológicas, governo e Congresso são espectadores da tragédia climática, vendo-a como algo inexorável, natural ou divino.

É necessário (além da crítica jornalística) que, diante da "pandemia" de incêndios, o ministro Flavio Dino, do STF, aplique um polido puxão de orelhas.

O governo então se move em relação às queimadas, porém ressuscita a ideia temerária de asfaltar a BR-319, no coração da Amazônia, e protesta contra lei antidesmatamento da União Europeia que pode prejudicar exportações brasileiras.

Desenvolvimento sustentável (que satisfaz necessidade do presente sem comprometer necessidade futura) é ficção ou slogan.

A expansão das energias eólica e solar promove desmatamento da caatinga, bioma único, protegido pelo Estado brasileiro. Como é energia limpa, há relaxamento no licenciamento ambiental. Vegetação nativa é destruída para instalação de fazendas solares. Poluição sonora de turbinas eólicas afeta sono e audição de moradores locais, gerando ansiedade e depressão. Turbinas promovem também a matança de aves, ameaçando espécies em extinção. Empresas sustentáveis criam cemitérios clandestinos para descarte de cata-vento e painel solar.

O Brasil apodrece.

Entre 2012 e 2023, o número de pessoas que vivem nas ruas de São Paulo aumentou 16,8 vezes, passando de 3.842 para 64.818 habitantes.

Segundo o Datafolha, 23 milhões de brasileiros convivem, na vizinhança, com milicianos e facções criminosas.

Escolas públicas do complexo da Maré, no Rio de Janeiro, permaneceram pelo menos 15 dias totalmente ou parcialmente fechadas nas últimas semanas por conta de operações policiais: quase 20 mil alunos afetados por falta de ensino, insegurança alimentar e traumas psicológicos.

O setor de apostas esportivas cresceu 734% desde 2021. Movimenta bilhões, faz nascer um novo e vil "empresariado", favorece a lavagem de capitais e patrocina a maior parte dos times de futebol. Compromete 20% do orçamento de famílias mais pobres. Faz crescer o vício e o endividamento. Segundo a Fecomercio-SP, 20% dos apostadores deixam de pagar contas para jogar. O governo se vê diante de extraordinária fonte de arrecadação e recomenda que o jogador aposte com responsabilidade.

Cai o ministro dos Direitos Humanos, acusado de ser predador sexual.

Ministro bolsonarista do STF pega carona em jatinho de "empresário" do setor de apostas e vai para a Grécia comemorar, em luxuoso superiate, o aniversário de cantor sertanejo que tem bens bloqueados pelo Judiciário por suposto envolvimento no escândalo de lavagem de dinheiro da tal "influenciadora", atualmente presa.

O planeta é finito. O calor é desértico. A destruição ambiental parece irreversível. Fumaça e fuligem cobrem os céus do continente. O Brasil apodrece. O desconforto é físico, político, moral.

Luís Francisco Carvalho Filho, o autor deste artigo, é Advogado criminal  e, ainda,  autor dos livros "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 13.09.24

Posso fazer post com apoio a candidatos? As regras para as redes nas eleições municipais

Eu escolhi meu candidato para as eleições municipais de 2024. Gosto de suas propostas e quero compartilhar com meus amigos nas redes. Posso, então, fazer um post demonstrando o meu apoio?

Celular em cima da bandeira do Brasil (Crédito,Getty Images)

A resposta simples é "sim", mas nem sempre.

Nas eleições do Brasil, em algumas situações, as regras para propaganda eleitoral na internet são diferentes daquelas aplicadas à campanha na rua.

O advogado especialista em direito eleitoral Fernando Neisser, professor da Fundação Getúlio Vargas, explica que as pessoas podem fazer nas redes campanha a favor de qualquer candidato, contanto que não sejam pagas para isso.

Essa regra vale desde 2009, por meio de uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral.

"No Brasil, a gente tem a ideia de uma certa 'meritocracia digital'. Ou seja, os candidatos só podem atrair apoiadores para fazer campanha a seu favor nas redes de forma gratuita e voluntária. É proibido pagar, seja para fazer postagem a favor, para divulgar um corte de vídeo ou compartilhar um material", conta Neisser.

A determinação é diferente quanto às campanhas de rua, em que as campanhas podem contratar pessoas para distribuir santinhos, por exemplo, desde que as contas sejam prestadas diante da Justiça Eleitoral.

Na internet, uma pessoa até pode ser contratada pela campanha para administrar as redes sociais de um candidato. Mas ela não pode fazer isso usando os seus próprios perfis.

Impulsionamento de posts

Apesar de qualquer cidadão poder demonstrar seu apoio nas redes, ele não pode impulsionar posts políticos.

Isso é: pagar para que sua publicação chegue a mais usuários por meio de ferramentas do Instagram ou TikTok, por exemplo.

Só quem pode contratar impulsionamento são os candidatos, os partidos ou as coligações.

"As pessoas só podem se manifestar organicamente", ressalta o advogado Fernando Neisser

Também não se pode divulgar fake news, ofensas a outros candidatos ou criar bots para propaganda em massa. Isso pode resultar em multas que chegam a até R$ 30 mil.

Em 2022, o TSE distribuiu R$ 940 mil em multas por fake news durante as eleições presidenciais.

Postagens de apoio podem ser feitas em perfis de pessoas físicas, mas não de pessoas juridicas (Getty Images)

Influencers x empresas

Neisser explica que uma nova resolução que cuida de propaganda eleitoral editada pelo TSE no começo de 2024 deixa claro que não importa o número de seguidores que alguém tenha.

"Essa pessoa segue sendo cidadã e pode fazer propaganda a favor dos seus candidatos, desde que não receba por isso", diz o advogado.

A única observação que deve ser feita, diz o especialista, é que a página deve pertencer à própria pessoa física.

"Se aquele perfil se tornou uma empresa, se aquilo pertence a um CNPJ, ainda que seja de propriedade daquele influenciador, aquela página passa a ser considerada uma página empresarial e não pode ter campanha eleitoral", defende Neisser.

"O que importa é: no nome de quem aquela página está registrada junto à plataforma? Eu posso ser influenciador, ter mil seguidores, mas se a página está no nome de uma empresa, não pode. Se é uma página grande, com milhões de seguidores, mas está no meu CPF, pode."

Mesmo sem ter CNPJ, qualquer página que pareça ser de empresa, como uma loja de roupas ou uma doceria online, também está vetada da propaganda eleitoral, pois está atraindo pessoas por meio da prestação de um serviço.

"Isso quer dizer que eu não posso fazer propaganda em página pertencente à empresa, ainda que seja uma empresa da qual eu seja sócio ou da qual seja proprietário", completa o advogado.

Quem está vetado?

Os funcionários públicos podem se manifestar sua preferência eleitoral sem problemas, desde que seja fora de horário do expediente.

Campanha nas ruas tem menos restrições, mas distribuição de brindes e boca de urna são vetados (Getty Images)

Boca de urna

No dia da eleição, a regra da boca de urnas vale para as ruas e para as redes, ainda que no espaço digital a fiscalização seja muito difícil.

No domingo 6 de outubro, quando os brasileiros irão às urnas, é permitido o uso de camisetas e adesivos do seu candidato, mas, a partir da meia noite do sábado para o domingo, é proibido pedir votos.

Isso é um crime com pena que pode variar de seis meses a um ano de detenção ou multa no valor de mais de R$ 15 mil.

Durante toda a campanha, também não é permitido fazer propaganda eleitoral em locais como repartições públicas, escolas ou templos religiosos. Além disso, o tamanho dos cartazes colocados em bens particulares não pode ultrapassar meio metro quadrado.

Distribuir brindes como camisetas, bonés ou qualquer outro item que possa ser interpretado como uma tentativa de compra de votos também é crime passível de penalização: pode ser uma multa variando entre R$ 1.064 a mais de R$ 53 mil, ou até de reclusão, que pode chegar a 4 anos.

Se o candidato beneficiado por alguma dessas práticas ilegais for considerado responsável ou conivente, ele pode até ter o registro de sua candidatura ou seu mandato, caso eleito, cassado.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 13.09.24

Humanidade conquistou 'poderes divinos', mas pode acabar em Armagedom

Uma série de revoluções tecnológicas em curso — na genética, na biotecnologia, na inteligência artificial — estão dando à humanidade um poder que antes era considerado apenas dos deuses: de usar engenharia para redesenhar a vida e para interferir no planeta em uma escala inimaginável antes.

Jamie Metzl é autor de livros sobre tecnologia; na foto, ele discursava como especialista no Congresso dos EUA em investigação sobre a origem da covid. (Getty Images)

Um mundo em que as pessoas comem carnes produzidas não em fazendas, mas em laboratórios, sem necessidade de uso intensivo de terras, água e fertilizantes.

Com uma medicina que não precisa esperar sintomas de doenças para começar a diagnosticar pacientes — já que as doenças são detectadas por biomarcadores muito antes de se tornarem fatais.

Ou um mundo em que toda a energia e materiais utilizados nas indústrias são cultivados por seres humanos, e não retirados da Terra.

Esse mundo utópico é descrito pelo autor americano Jamie Metzl em seu livro Superconvergence: How the Genetics, Biotech, and AI Revolutions Will Transform our Lives, Work, and World (“Superconvergência: como as revoluções da genética, da biotecnologia e da IA transformarão nossas vidas, nosso trabalho e o mundo”, em tradução livre).

Metzl é considerado um autor futurista — alguém que monitora o estado atual das tecnologias e busca tendências que vão orientar o progresso da humanidade.

Segundo ele, o futuro descrito acima pode parecer utópico e distante, mas está mais próximo do que imaginamos, já que muitas tecnologias estão perto do alcance da geração atual de cientistas.

Para Metzl, a humanidade está alcançando o feito de Prometeu — figura da mitologia grega que roubou o fogo dos deuses do Olimpo e deu aos mortais esse poder.

Segundo essa ideia, uma série de revoluções tecnológicas em curso — na genética, na biotecnologia, na inteligência artificial — estão dando à humanidade um poder que antes era considerado apenas dos deuses: de usar engenharia para redesenhar a vida e para interferir no planeta em uma escala inimaginável antes.

No entanto, apesar de seu entusiasmo com as revoluções tecnológicas, Metzl se mantém cético e às vezes até mesmo horrorizado com alguns avanços.

Em seu livro, ele diz que se a humanidade não aprender a controlar a tecnologia, sobretudo com cooperação internacional e transparência, “iremos nos desviar para o Armagedom”.

Um exemplo desse perigo, segundo ele, aconteceu há seis anos.

Em 2018, o cientista chinês He Jiankui anunciou ter alterado o DNA dos embriões de duas bebês para torná-las resistentes ao HIV, caso elas entrassem em contato com o vírus.

A edição genética tem o potencial de prevenir que doenças hereditárias sejam transmitidas de pais para filhos.

Mas especialistas temem que modificações em genomas de embriões não apenas causem danos aos indivíduos, mas levem futuras gerações a herdar essas modificações de efeito ainda pouco conhecido.

O caso chocou a comunidade científica internacional. Um estudo posterior apontou que pessoas com a mutação genética que He tentou recriar têm probabilidade significativamente maior de morrer ainda jovens.

He Jiankui foi condenado a três anos de prisão na China.

Jamie Metzl participou do comitê consultivo de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre edição do genoma humano que analisou o caso.

Geneticista chinês He Jiankui anunciou que havia editado genes de dois bebês (Getty Images)

Para ele, esse episódio ilustra o perigo envolvido em novas tecnologias: a falta de transparência internacional e governança pode levar laboratórios a desenvolverem tecnologias perigosas e fora de controle. Isso pode acontecer em qualquer indústria — da engenharia genética a armas de destruição de massa.

Jamie Metzl tem experiência no mundo da política. Formado em História e Direito, ele trabalhou em diversos órgãos dos EUA: Conselho de Segurança Nacional dos EUA, Departamento de Estado e Comitê de Relações Exteriores do Senado — além de ter servido como Oficial de Direitos Humanos da ONU no Camboja. Seu livro anterior — Hackeando Darwin — foi publicado no Brasil.

Para ele, boa parte das soluções necessárias hoje para a humanidade não são mais tecnológicas, e sim políticas.

Preocupado com a falta de debate público sobre as tecnologias, ele criou o OneShared.World, um movimento global que propõe ações coletivas para lidar com o que chama de os desafios mais urgentes do mundo.

Nesta entrevista, ele conversou com a BBC News Brasil sobre os diversos riscos e oportunidades envolvendo as revoluções tecnológicas. E comentou sobre temas que vão desde as vacinas para covid até o desmatamento do Cerrado brasileiro.

BBC News Brasil: Você fala que hoje, para a maioria das pessoas, é a melhor época para se estar vivo e esse é um tema central do seu livro. Por que você está tão otimista com o momento atual e com o que está por vir em seguida?

Jamie Metzl: Se pegarmos qualquer medida de bem-estar humano, estamos melhores do que nossos ancestrais em praticamente qualquer momento da história.

Estamos vivendo de forma mais saudável, por mais tempo, somos mais educados, temos maior acesso a ferramentas e habilidades que nos permitem fazer mais. E essas tendências estão quase que todas se movendo na direção certa.

Estamos desenvolvendo essas capacidades quase divinas de fazer coisas ainda melhores. Nem tudo melhorou, mas a maioria está melhorando.

Mas esse otimismo também requer um pouco de pessimismo – e de ansiedade com o que pode dar errado caso não acertemos com a transição. Ninguém deve ser um otimista ou um idealista cego. Isso seria perigoso.

Se acertarmos nas nossas decisões, poderemos ter um futuro de grande abundância, sem bilhões de pessoas vivendo em extrema pobreza, onde todos têm acesso à educação, saúde e nutrição de qualidade — essas ferramentas que podem construir um planeta mais sustentável para humanos e para a vida como um todo.

Por outro lado, se errarmos, temos agora a capacidade de provocar dano incrível em uma escala planetária.

BBC News Brasil: No livro, você fala sobre os benefícios da biotecnologia para o futuro. Mas você fala bastante sobre o caso de cientistas chineses que em novembro de 2018 anunciaram que tinham conseguido editar genes humanos. Nesse caso, você não achou que isso era uma boa coisa. Por que você criticou esse episódio, que parece um pouco o futuro que você prevê no seu livro?

Metzl: Meu livro anterior, Hackeando Darwin, falava sobre o futuro da engenharia genética humana, o que inclui edição de genes. E eu sempre acreditei que os humanos poderão em algum ponto do futuro editar os genomas de embriões pré-implantados para eliminar os riscos de doenças terríveis e potencialmente fatais. E talvez fazer até mais do que isso. Mas isso não significa que estamos prontos para fazer isso agora.

Em 2018, quando o cientista chinês He Jiankui anunciou que tinha editado o genoma de dois bebês, eu fiquei horrorizado. Só porque temos a capacidade de fazer algo, não significa que devemos fazer.

Acho que o que Jiankui fez equivale a uma espécie de experimentação no estilo de Nuremberg, que é completamente inaceitável. Precisamos ser extremamente críticos de pessoas que estão assumindo riscos desnecessários, e isso é ainda mais sensível quando é feito com pessoas.

BBC News Brasil: Mas quem pode dizer quando estaremos prontos para fazer isso?

Metzl: Sim, é uma questão essencial. O maior desafio do mundo é que nossos maiores problemas são globais e comuns, incluindo de governança das tecnologias revolucionárias. Não temos estruturas suficientes de governança, e isso é fundamental. Temos alguns processos e temos a ONU. Temos padrões estabelecidos por cientistas.

Mas se você olha para o caso da China, o que He Jiankui fez foi inicialmente apoiado pelo governo chinês. He Jiankui foi saudado como um herói pela imprensa chinesa.

Mas quando começou uma onda de repercussão internacional, o governo e a imprensa da China mudaram de lado, e ele acabou preso por três anos como resultado das suas ações.

Precisamos fazer tudo que for possível para estabelecer padrões nacionais e internacionais de governança dessas tecnologias.

Edição de genes é tecnologia que já está ao alcance da humanidade, mas Metzl acredita que ainda é preciso debater mais o assunto (Getty Images)

Está claro que o mundo está cheio de “buracos negros” de regulação, o que vemos em vários tratamentos não-licenciados com células tronco que são banidos na Europa e nos Estados Unidos. As pessoas estão indo para o Caribe e para a Ásia Central em busca desses tratamentos. E acho que muitas pessoas estão sendo prejudicadas por isso.

Precisamos estabelecer fundamentos de sistemas de governança que nos ajudem a administrar essas tecnologias de Prometeu que temos.

BBC News Brasil: Sua posição sobre as origens da Covid se tornou famosa: você foi um dos primeiros a sugerir que o vírus pode ter surgido em um laboratório, e não ocorrido naturalmente em um mercado de comida. É um assunto ainda polêmico entre cientistas e mesmo dentro da Organização Mundial da Saúde (OMS). Qual é sua visão sobre isso?

Metzl: Sim. Tenho uma visão bastante forte de que existem evidências avassaladoras que apontam para uma origem da Covid relacionada a pesquisas. Ainda não temos uma resposta completa para isso. E o único motivo é que o governo da China fez de tudo para evitar uma investigação científica e forense completa.

Na minha opinião, houve um acidente de pesquisa, e não uma tentativa deliberada de criar uma arma biológica. Acredito que deveríamos estar cobrando sem parar do governo chinês maior acesso para uma investigação completa sobre as origens da Covid.

A revista The Economist estima que houve 28 milhões de mortes em excesso por causa da Covid, dezenas de trilhões de dólares em prejuízo econômico, centenas de milhões de pessoas, se não mais, que caíram na pobreza. Se dissermos “ah, é só a China sendo a China, vamos deixar isso para lá”, a China ou qualquer outro Estado autoritário terá todo incentivo para repetir isso.

BBC News Brasil: Nos dois casos – da Covid e da edição de genomas – estamos falando de um mesmo país: a China. Você acredita que a forma como a China lida com ciência e pesquisas é um obstáculo para a sua ideia de superconvergência?

Metzl: Sim. Acredito que a comunidade científica chinesa está fazendo contribuições incríveis para o mundo em saúde, agricultura e muitas outras áreas. E sou grato por essas contribuições. Mas acredito que o Partido Comunista Chinês (PCC) está usando a ciência e a tecnologia como meio para seu fim de ultrapassar os outros países rumo à liderança mundial.

A combinação da ideologia do PCC com o tremendo poder da ciência chinesa é uma ameaça fundamental para a comunidade global e toda a humanidade.

Para Metzl, evidências apontam que covid surgiu por causa de acidente em laboratório na China, e não em mercado

A China, por conta de seu tamanho e ambições, está se tornando uma ameaça à humanidade. E não precisa ser assim. Acho que é fácil imaginar um mundo em que a China desempenha um papel bem mais construtivo.

Sou um grande crítico da China, mas também sou muito crítico do meu próprio governo, os Estados Unidos.

BBC News Brasil: Qual é sua crítica aos EUA?

Metzl: Os EUA são a maior superpotência científica do mundo. O Instituto Nacional de Saúde (NIH, em inglês) faz um trabalho incrível de financiar ciência de base. E essa ciência se difunde pelo mundo. No caso dos bebês CRISPR [caso do geneticista chinês He Jiankui], se você olhar para a ciência de base que está por trás disso, muito dela foi financiada pela NIH. No caso da Covid também.

O problema é porque vivemos em um mundo onde a ciência é aberta, essas capacidades são difundidas por todo o planeta, e essas tecnologias são repassadas intencionalmente ou não.

Para cientistas que são éticos mas podem estar trabalhando em Estados autoritários, é inevitável que a política desses Estados se misture com a pesquisa científica.

BBC News Brasil: Então se no caso da China, você diz haver pouca transparência, no caso dos EUA haveria transparência demais, que pode prejudicar o mundo?

Metzl: É difícil responder a isso porque vivemos em um mundo de ciência aberta. Nós nos beneficiamos disso. É por isso que temos esses incentivos para os cientistas. No momento em que eles descobrem algo, eles publicam um artigo que é submetido a revisão por pares para avaliar se aquilo é válido ou não.

O problema é que integramos a China no mundo da ciência aberta como se fosse o Canadá ou a Suíça.

BBC News Brasil: A Covid parece ser um bom exemplo dos desafios que a humanidade tem em controlar seus “poderes quase divinos”, que você menciona no livro. Por um lado, a humanidade produziu vacinas em tempo recorde, mas do outro lado surgem esses problemas de governança, confiança pública e transparência. Como você avaliaria a humanidade nesse teste?

Metzl: É o ponto central de tudo. Mesmo no nível pessoal das nossas vidas, nossas melhores e piores qualidades são duas faces de uma mesma moeda.

A Covid mostrou os benefícios milagrosos das nossas habilidades. Fomos capazes de desenvolver, a partir do genoma sequenciado de um vírus, uma vacina de mRNA completamente funcional em apenas 11 meses. Foi inacreditável.

Isso abriu caminho para vários outros tratamentos, seja contra câncer ou muitas outras coisas. Deveríamos estar gratos que, enquanto humanidade, conseguimos fazer isso juntos. E, ao mesmo tempo, essas tecnologias nos permite fazer coisas com consequências terríveis.

A questão que fica é: como otimizamos as coisas que queremos e minimizamos os riscos para evitar o que não queremos. É esse o jogo. E não é impossível. Mas requer que muito trabalho seja feito agora.

BBC News Brasil: No caso da Covid, foi um sucesso?

Metzl: Acho que não fomos bem. Fomos no caso do desenvolvimento das vacinas. Mas na distribuição das vacinas, não fomos bem. Certamente os EUA precisariam ter feito mais para compartilhar as vacinas.

Também não empoderamos a OMS, que poderia ter tido um papel mais ativo. Não construímos uma OMS assim. E não é culpa dos líderes da OMS, é culpa nossa. Eu acredito que toda a pandemia de Covid poderia ter sido completamente evitada.

Acredito que essa foi uma pandemia política, e fracassamos em reagir à crise.

BBC News Brasil: No seu livro, você fala sobre bem-estar animal e vegetarianismo, dizendo que a tecnologia pode ajudar mais pessoas a ter acesso à comida de uma forma mais sustentável e eficiente. Você acha que a agricultura está mesmo se tornando mais sustentável e ecológica?

Metzl: Temos mais consciência ambiental do que no passado. Temos maior noção das implicações negativas do aquecimento global e mudanças climáticas. Mas como em todas as áreas, estamos tendo dificuldades em tomar as medidas necessárias para mudar nossa trajetória.

Muito mais precisa ser feito. Temos 8 bilhões de humanos, em breve seremos 10 bilhões. Todos precisam ser alimentados. Todos têm direito a alimentação de qualidade, para si e suas famílias. Cabe a nós fazer isso. Mas precisa ser feito de uma forma ecológica e sustentável.

Carne artificial, criada em laboratórios, poderia ser uma forma de se reduzir o aquecimento global no futuro, segundo o autor (Getty Images)

E não estamos fazendo isso. Para isso, as ferramentas da genética e biotecnologia podem nos ajudar a aumentar a produtividade da nossa agricultura.

Vivemos em um mundo com aumento contínuo na produtividade da agricultura e uma produção global de alimentos em massa, que triplicou em 70 anos.

O Brasil fez um excelente trabalho, mas também estamos vendo no Brasil as consequências de precisarmos de tanta terra, tanta água e tantos fertilizantes.

A questão é como podemos melhorar, conseguir alimentos de alta qualidade mas com menos necessidade de terra, água e fertilizantes.

Um caminho é continuar desenvolvendo melhores variedades de sementes. Podemos reduzir nossa dependência em fertilizantes sintéticos pensando em formas diferentes de dar nutrientes às plantas e manipulando microbiomas.

E precisamos pensar a pecuária de forma diferente. Nós humanos, assim como a espécie anterior a nós, temos comido carne por muito tempo e isso é parte da nossa identidade e nossa cultura. Mas eu acho que seria saudável para os humanos comermos menos alimentos baseados em animais. Seria bom para o clima se todos virassem vegetarianos.

Eu mesmo não sou vegetariano e não estou pedindo aos brasileiros para serem. Mas podemos conseguir produtos animais de outras formas, sem continuar desmatando a floresta amazônica para pecuária.

A taxa de conversão calórica de plantas para gado para humanos é de 30. Uma vaca precisa consumir 30 calorias em plantas para produzir uma caloria de bife. Isso não é eficiente. Por isso, as novas ferramentas de cultura de célula ou de carne cultivada vão utilizar céulas-tronco de animais saudáveis, crescê-las, expandir essas células e criar produtos animais em bioreatores.

Pode não parecer algo natural para muitas pessoas, mas a pecuária industrial também não é normal, se olharmos para a nossa experiência histórica.

Estamos nos primórdios deste tipo de tecnologia. A maioria de nós nem se importa com o que está na carne que comemos. Mas poderíamos ter um produto biologicamente idêntico que usa menos água, menos fertilizantes, menos energia, menos impacto ambiental e talvez sendo até mais seguro, saudável e nutritivo.

Ainda poderíamos ter o produto premium e pagar mais por ele — como carne de maior qualidade ou outros produtos animais.

Eu não acho que as pessoas estejam preparadas para uma mudança radical, em sair de como vivemos hoje para amanhã estarmos vivendo como os Jetsons.

Mas acho que é possível mudar os sistemas que usamos agora.

No caso de combustíveis fósseis, eles foram um tremendo sucesso para humanos no passado e nos permitiram fazer coisas incríveis, possibilitando que se pusesse fim a abusos horríveis, como a escravidão.

O aquecimento global é, de certa forma, uma consequência do sucesso da humanidade. Mas ele criou outros problemas. Se resolvermos esse problema, talvez isso gere outros problemas.

BBC News Brasil: No caso do Brasil, muitas pessoas são céticas quanto aos benefícios da tecnologia na agricultura. Por um lado, é inquestionável o ganho de produtividade que se teve no campo. Mas por outro, a tecnologia permitiu que se plantasse no Cerrado, e hoje ele se tornou um dos biomas mais desmatados no Brasil. A tecnologia parece ter piorado a situação do Cerrado.

Metzl: Muitos dos brasileiros que estão infelizes com o papel da tecnologia no desmatamento só existem por causa da revolução verde. O motivo que temos 8 bilhões de humanos é a revolução verde.

Quando ela aconteceu no México nos anos 1950, o país estava passando por fome, que afetava milhões de pessoas. O país não tinha comida para alimentar sua população e em poucas décadas havia tanta comida que o México começou a exportar grãos.

Mas a tecnologia nos ajuda a resolver problemas e acaba criando novos problemas. Por isso, quando cometemos erros, precisamos ter sistemas para identificar o que aconteceu de errado e nos responsabilizar pelos erros.

Agricultura no Cerrado se beneficiou com maior tecnologia, mas ela também provocou aumento no desmatamento (Getty Images)

Eu escrevo no meu livro como os humanos quase acabaram com várias espécies de baleia porque aperfeiçoamos tanto as formas de matar. Se não fosse a ONU dizer que precisamos de mecanismos de controle, muitas dessas espécies teriam sido extintas.

BBC News Brasil: No caso do Cerrado, qual seria uma boa solução? É possível aumentar ainda mais a produtividade sem expandir o uso de terras?

Metzl: Se diminuirmos nossa dependência em produtos animais, precisaremos de menos gado. Digamos que consigamos substituir 50% da carne que os humanos consomem hoje. Ou seja, 50% viriam de carne cultivada (em laboratório) e 50% de animais abatidos. Ainda teríamos acesso a bifes de qualidade, mas precisaríamos de muito menos gado e terras. A Terra quer se repovoar com vida selvagem, são os humanos que estão colocando pressão no planeta através do desmatamento.

Duas coisas são necessárias: uma é essa parte da demanda. A outra é a governança.

Governos precisam fazer um trabalho melhor na proteção de espaços naturais.

BBC News Brasil: Você acha que as pessoas já estão prontas para consumir carne artificial? Me parece que é algo que os consumidores ainda não estão preparados.

Metzl: A tecnologia para se criar carne cultivada existe e está avançando rapidamente, mas não está em um estágio em que possa competir com produtos animais “naturais”. Não em termos de custo e escala. Acho que ainda é preciso investir muito para se ganhar escala.

Precisamos lidar com o sucesso que foi a agricultura industrial. A boa notícia é que essa agricultura não é a que praticamos desde sempre. Nessa escala, ela existe há menos de cem anos. E podemos mudar isso.

BBC News Brasil: Em seu livro, você pinta um cenário de um futuro em que a humanidade controla poderes quase como deuses. Qual é o cenário ideal que você vê para a humanidade, em que os desafios foram vencidos?

Metzl: Quando eu estava escrevendo o livro, meu pai foi diagnosticado com câncer neuroendócrino, o mesmo que matou Steve Jobs. Ao contrário de Jobs, eu fui atrás de tudo que é tecnologia que pudesse combater esse câncer. Eu insisti que fizéssemos um sequenciamento das células de câncer e acabamos encontrando uma mutação.

E encontramos um tratamento para bloquear a habilidade desta célula de se reproduzir, um tratamento que praticamente nunca tinha sido usado neste câncer. Isso funcionou por um ano e meio, mas parou de funcionar porque o câncer evoluiu.

Sequenciamos as células de novo e achamos outra mutação.

Meu pai, pelo diagnóstico que recebeu, deveria ter seis meses de vida. Desde então ele já viu o Kansas City Chiefs ganhar dois Super Bowls. Ele foi ao bat mitzvah [comemoração judaica] de sua neta. Ele e minha mãe estavam no lançamento do meu livro em Nova York.

É um exemplo pequeno. As pessoas têm medo de um apocalipse com inteligência artificial. Esses medos não são necessariamente sem fundamento. Mas vivemos em um mundo mediado pela tecnologia. A agricultura é uma forma de biotecnologia.

Qual é minha visão para um futuro melhor? Viver com mais saúde, talvez por mais tempo, com vidas mais robustas, onde transformamos nosso sistema saúde baseado em sintomas de doença para algo preventivo e proativo.

Onde cultivamos comida para que todos no planeta tenham acesso a maior qualidade de nutrição, utilizando menos terra e água e coisas que dilapidam grande parte do nosso planeta.

Onde transformamos nosso modelo de transformação de materiais industriais, em que cortamos ou cavamos coisas da natureza, e passamos a cultivá-los.

Nossa espécie consegue viver em partes do universo que são inóspitas para nós.

O principal desse momento da humanidade nesse planeta é que depois de quatro bilhões de vida, uma espécie finalmente consegue usar engenharia para criar inteligência e redesenhar a vida. O que vai definir se fomos bem-sucedidos ou não é se saberemos usar sabiamente essas capacidades de Prometeu.

Daniel Gallas, o autor desta reportagenm trabalha para a BBC News em Londres. Publicado originalmente em 14.09.24

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Orçamento em frangalhos

Pelo que se vê, as emendas parlamentares fabricadas para abastecer currais eleitorais de congressistas não só continuarão sem nenhum critério técnico, como poderão ser turbinadas

A pedido do Supremo Tribunal Federal (STF), a Controladoria-Geral da União (CGU) realizou uma auditoria nos 10 municípios mais beneficiados, per capita, por emendas parlamentares que constituíam o chamado “orçamento secreto”, vetado pela Corte, e depois pelas emendas que substituíram esse mecanismo e mantiveram a opacidade. O resultado da amostra, entre 2020 e 2023, indica que desvios, atrasos e desperdício de dinheiro não são exceção, mas regra.

Pelo visto, a falta de transparência na destinação dos recursos é característica imprescindível desse instrumento para os objetivos dos parlamentares envolvidos: distribuir verbas sem critério para melhorar as chances eleitorais de si mesmos e de aliados políticos – isso sem falar na avenida de oportunidades para corrupção.

Diante das evidências de que o espírito dessas emendas é intrinsecamente antirrepublicano e antidemocrático, fica cada vez mais claro o acerto do Supremo em colocar um freio na distribuição desse dinheiro. Nada do que foi arrolado pela CGU respeita o que vai na Constituição.

Há de tudo ali, desde truques para mascarar os envolvidos na transferência dos recursos até a escandalosa desnecessidade por parte de quem os recebe. Um caso exemplar chamou a atenção dos auditores: para a minúscula Pracuúba (AP), destinou-se polpuda verba para construir nada menos que quatro campos de futebol, para usufruto de pouco mais de 5 mil habitantes – que já dispunham de campos de futebol. Isso não é desvio; é padrão.

Para a surpresa de ninguém, dos dez municípios que mais receberam dinheiro, cinco são do Amapá, Estado do senador Davi Alcolumbre, virtual eleito para voltar à presidência do Senado. Consta que sua habilidade na administração das emendas é um dos fatores que o tornaram favorito na eleição.

Na última década, as emendas parlamentares saltaram de 4% do Orçamento discricionário para 23%, tornaram-se obrigatórias e se diversificaram. Especialistas cansaram de alertar que esses repasses, distribuídos sem equidade, transparência ou critérios que garantam sua integração às metas da União e às necessidades locais, degradam as políticas públicas porque são pulverizados, pressionam os cofres públicos porque drenam recursos dos ministérios e geram riscos de corrupção porque não são fiscalizados. Finalmente, distorcem a competição democrática, porque abastecem redutos de alguns parlamentares em detrimento de outros, tornando-se um cobiçado complemento do Fundo Eleitoral.

Ainda assim, sob a conivência de Executivos fracos, os congressistas criaram doações aos caixas de Estados e municípios – as emendas “Pix” – e repasses sem transparência por apadrinhados de líderes do Parlamento – o “orçamento secreto”. Este último foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2022, mas continuou a ser operado sob as Emendas de Comissão. Tamanho foi o destempero que, em agosto, o STF, cumprindo sua função de guardião da Constituição, suspendeu os repasses até que o Congresso criasse parâmetros de “eficiência, transparência e rastreabilidade”.

Mas, como reza uma máxima do cinismo político, consagrado no romance O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa, é preciso que tudo mude se queremos que tudo permaneça como está. Temendo retaliações do Parlamento, o STF articulou com caciques do Legislativo e do Executivo um insólito “acordo”, que, em tese, deveria garantir as tais “eficiência, transparência e rastreabilidade”. Mas já se vê que a pizza, ainda no forno, não cheira bem. Conforme apurado pelo Estadão, as emendas de comissão podem virar obrigatórias; os recursos poderão bancar obras regionais, e não nacionais; o volume de emendas poderá ser turbinado; e as emendas “Pix” serão, na essência, mantidas.

Assim, nesse acordo, o Judiciário evita mais desgastes; o Executivo, com sua base parlamentar diminuta, garante ao menos um naco das emendas para seu PAC; e as bancadas fisiológicas seguem abastecendo seus currais eleitorais – quando não seus bolsos. A turma de Brasília superou até o célebre cínico da obra de Lampedusa: ao que parece, tudo mudará, mas para ficar ainda pior do que já estava.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.09.24

Não é apenas autocracia, é corrupção

A regra predominante é a falta de transparência, como ocorreu no recente processo eleitoral e o papel da autoridade eleitoral obscura e tendenciosa.

Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, em evento público em Caracas, em 9 de setembro. Palácio Miraflores (Reuters)

Tudo o que aconteceu na Venezuela em torno do ato eleitoral fraudulento e repressivo de 28 de julho é gravíssimo. E embora tenha recebido alguma atenção do mundo, a sobrevivência política de Nicolás Maduro indicaria que este impulso democrático tem sido insuficiente. Porque, além disso, o regime passou, impunemente, para uma fase mais dura de perseguição e repressão contra a oposição política e o jornalismo independente.

Sendo assim, não há dúvida de que a imagem “democrática” de Maduro e do seu regime é seriamente afetada. Particularmente em termos de algo crucial como a sua legitimidade democrática – e legalidade. Entretanto, o mundo observa, espantado, enquanto o autocrata consolida o seu estatuto como tal. Depois de mudar a data do Natal, as pessoas esperam ansiosamente e se perguntam: o que farão a seguir? Trocar a noite pelo dia? O número de meses? Tudo pode acontecer dada a impunidade de que Maduro tem beneficiado, contra todas as probabilidades.

Mas há uma questão que acaba por ser, na realidade, a outra face do autoritarismo “madurista”, que é a corrupção. Considerando o monitoramento realizado por organizações independentes como a Transparência Internacional sobre os graves “pecados” contra os valores e direitos democráticos, há uma corrupção muito grande e contínua. Que nos anais da história da corrupção na América Latina ocuparia provavelmente um espaço e lugar preferencial e particularmente volumoso.

Grande corrupção: sem precedentes

Dada a escassez de informações provenientes de fontes oficiais, nada mais justo e pertinente do que levar em conta as informações e investigações realizadas pela Transparência Internacional na Venezuela, que as realiza desde 2018.

Assim, detectou-se, por exemplo, que até março de 2023 haveria pelo menos 220 casos de desvio de bens públicos venezuelanos anunciados por órgãos do sistema de justiça. Embora a magnitude total dos casos e do dinheiro roubado possa ser superior aos relatados, o que já se sabe (61% dos casos registados) equivale a montantes espectaculares: sete vezes as reservas internacionais da Venezuela, estimadas em 9.532 milhões para Março de 2023, segundo dados do o Banco Central da Venezuela.

O montante de dinheiro comprometido ascenderia a 68.311 milhões, um valor que poderia ser uma espécie de recorde mundial no roubo de recursos públicos através da corrupção. De acordo com o registo e sistematização destes casos, a maior parte deles teria um carácter essencialmente “transnacional”. De acordo com o que a Transparência Internacional identificou a partir dos casos abertos, “…até agora, pelo menos 146 destes casos estão a ser processados ​​nos sistemas judiciais de 26 países terceiros e 74 na Venezuela”.

Corrupção e direitos humanos

Em relação a estes casos investigados na Venezuela, não há informação oficial sobre o andamento das investigações, nem certeza dos valores públicos comprometidos. Descobriu-se, no entanto, que, de acordo com a Transparência Internacional, a maioria dos casos envolve pessoas “que se opõem ao Governo, que estiveram nas suas fileiras, mas são tratadas como traidoras ou que colaboraram com os sistemas de justiça de outros países”. .” Muito pão, enfim, para fatiar.

Como observa com precisão a Transparência, “relatórios internacionais têm mostrado a relação e o impacto da corrupção na garantia dos Direitos Humanos, em sectores como a saúde, a alimentação, a educação, a qualidade dos serviços públicos como a água potável, a electricidade, bem como nas oportunidades de desenvolvimento”. , superando a pobreza e a desigualdade.” Questões críticas, portanto, nas quais órgãos de proteção como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos são chamados a assumir um papel de liderança.

As vítimas e a “cruzada” contra a corrupção

Quando a corrupção é grande e de “alto nível”, como neste caso, tem consequências e repercussões na vida das pessoas. Não apenas nos grandes balanços das contas nacionais. Sinistro paradoxo: numa situação como a de um país com enorme riqueza como a Venezuela, a crescente corrupção - e o enriquecimento - de alguns impacta diretamente as vidas - e o empobrecimento acelerado - não de algumas pessoas, mas de milhões.

A partir disso, promove-se o maior processo migratório latino-americano da história: pelo número de pessoas que emigraram e pelo seu impacto, basicamente na América Latina e em países como Colômbia e Peru. Com mais de 8 milhões de venezuelanos agora deslocados/refugiados na América Latina, como destacou a Transparência Internacional, “ocorreu a maior migração na região e uma das mais altas do mundo”.

É verdade que no início de 2023, o Governo venezuelano, em conjunto com o Ministério Público, promoveu a chamada “cruzada” contra a corrupção. Era mais barulho do que qualquer coisa . Isso tocou alguns funcionários de alto nível. Mas por ter sido mais superficial e “pontual” do que profundo, muitos interpretaram que as ações levadas a cabo foram, mais do que tudo, um passo que visava uma espécie de “expurgo interno”, e não tanto uma investigação séria e séria. profundidade.

De qualquer forma, o que fica evidente é que a regra que prevalece é a falta de transparência. Este foi o caso do recente processo eleitoral e do papel da autoridade eleitoral obscura e tendenciosa. E foi também o caso no processo da chamada “cruzada” com a pouca – ou nenhuma – informação que mais tarde se soube sobre as causas e os montantes saqueados.

Diego Garcia-Sayan, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado pelo EL PAÍS, em 13.09.24


quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O Congresso está de costas para o Brasil

Só a troca de comando na Câmara e no Senado está no radar dos parlamentares. Que se dane o País em chamas. Em gabinetes fechados, o único assunto é a manutenção do orçamento secreto

O Congresso virou de costas para o Brasil. Indiferentes ao que acontece em um país com tantas carências e, como se isso não bastasse, ora é consumido por queimadas que envolveram milhões de brasileiros numa gigantesca nuvem de ar irrespirável, deputados e senadores se fecharam em conchavos de gabinete que envolvem, fundamentalmente, a distribuição farta e descompromissada de dinheiro público – mais especificamente, o destino de bilhões de reais em emendas parlamentares a partir de fevereiro de 2025, quando haverá a troca de comando na Câmara e no Senado.

Está-se tratando de muito dinheiro. Um tanto capaz de mesmerizar os parlamentares até fazê-los esquecer as razões pelas quais receberam um mandato de representação e quem, afinal, deveriam representar. Em 2024, emendas parlamentares de toda espécie terão correspondido a mais de 20% das despesas discricionárias no Orçamento da União (quase R$ 45 bilhões). E, por mais que o Supremo Tribunal Federal aja para impor o respeito à Constituição e à moralidade pública, ninguém aposta que esse montante será menor no ano que vem.

O presidente Lula da Silva está perdido no enfrentamento da tormenta climática e até hoje segue devendo ao País um plano de governo digno do nome. O que o petista tem feito até aqui, na verdade, não significa muito mais do que espasmos de voluntarismo e uma mal-ajambrada reedição de seus velhos cacoetes como expoente do que se pode chamar de nacional-passadismo. E sempre, claro, de olho na próxima eleição, não nos melhores interesses do Estado brasileiro.

Diante dessa governança tíbia, em particular no enfrentamento da crise ambiental, não é pouco o que o Congresso poderia fazer dentro das atribuições que lhe são dadas pela Constituição. Mas o Congresso não está nem aí, absorto em interesses que nada têm a ver com os verdadeiros interesses da sociedade. No radar do Congresso, a mobilizar todos os partidos, está apenas a manutenção do orçamento secreto, seja qual for a conformação técnica que essa indecência venha a ter de tempos em tempos. É nesse sentido que a eleição para as Mesas Diretoras da Câmara e do Senado ganhou singular importância. Nesses arranjos, uma inaceitável “anistia” – na verdade, impunidade – aos golpistas do 8 de Janeiro passou a servir de instrumento de chantagem contra os candidatos à sucessão de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara como o primeiro passo para a anistia do golpista em chefe, Jair Bolsonaro.

Esqueçamos as medidas que poderiam ser tomadas pelo Poder Legislativo para mitigar os efeitos da tormenta climática para a população. Às favas os projetos de lei que regulamentam a reforma tributária. Fica para as calendas uma discussão séria em torno de uma agenda de reformas mais amplas para destravar o crescimento do País e promover o bem-estar geral dos brasileiros. Nada disso parece interessar ao Congresso. Além das eleições municipais, é claro, o único tema que eletriza a esmagadora maioria dos deputados e senadores, se não todos, é a sucessão na Câmara e no Senado, pois desse novo arranjo de poder depende a fluidez dos dutos subterrâneos por onde corre a dinheirama das emendas parlamentares, longe de quaisquer controles republicanos.

Não se vê, no horizonte imediato, qualquer disposição por parte dos parlamentares em assumir suas responsabilidades como mandatários, como se fossem representantes de si mesmos – no máximo, de uma casta de dirigentes partidários que instrumentalizam as legendas para jogar com os interesses coletivos da Nação enquanto, à sorrelfa, tocam seus próprios negócios.

O Congresso é o locus por excelência dos grandes debates nacionais. No entanto, o que se vê é uma Câmara e um Senado totalmente distantes das reais necessidades do País. Em meio a tantos problemas que afetam a vida de milhões de brasileiros e mantêm o Brasil muito aquém de suas potencialidades, essa indiferença chega a ser aviltante. Se nada mudar, como não parece que vá mudar, se o interesse público não for colocado no centro das atenções de deputados e senadores, o Brasil continuará refém de uma elite política que, para além dos males que já causa à representação, abre uma avenida para aventureiros dispostos a pôr tudo abaixo sem oferecer nada de bom no lugar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.09.24

Kakebo: o antigo método japonês para controlar gastos e poupar dinheiro

 "O que é mais importante: ganhar mais dinheiro ou controlar o seu dinheiro?", pergunta a japonesa Zun.

"Eu acho que é mais importante controlar o dinheiro que você tem disponível, e gastá-lo com cuidado e sabedoria. E acho que isso te leva a uma vida divertida."

O kakebo foi criado no século passado para ajudar as mulheres a administrar o orçamento doméstico (Getty Images)

Zun, mãe de quatro filhos, é adepta há 12 anos do kakebo — um método simples para controlar dinheiro criado no Japão em 1904.

Neste método, basta papel, caneta e perseverança.

A tarefa pode ser trabalhosa, especialmente no começo — mas esse também é um dos motivos do sucesso, dizem os especialistas.

Primeiro, você deve registrar suas despesas diárias, semanais ou mensais em diferentes categorias.

Por exemplo: renda (salário, rendimentos, pensões); despesas essenciais (moradia, transporte, alimentação, serviços domésticos e medicamentos); lazer (restaurantes, compras, academia etc) e extras (presentes, shows, viagens etc.).

Ou: necessidades, desejos, lazer e gastos imprevistos.

Você pode estabelecer quantas categorias precisar e também usar cores diferentes, para torná-las visualmente mais atraentes.

Ao subtrair as necessidades, o que sobra pode ser separado entre “poupar” e “gastar bem”.

O método foca em gastar e poupar de forma consciente. Ajuda a mudar nossa atitude em relação ao orçamento ao nos ensinar a “gastar bem” para “poupar bem”.

O ato de escrever com papel e caneta também é parte fundamental da prática. Pesquisas sugerem que escrever à mão ajuda o cérebro a processar informações de uma forma mais detalhada e cuidadosa.

Alguns também defendem que o uso de dinheiro é melhor do que cartão, pois o ato físico de entregar cédulas e notas te deixa mais sob controle.


                              

Usar anotações à mão e dinheiro físico ajudam no método (Getty Images)

"Eu acho que mais informações passam pela minha cabeça quando estou fazendo anotações à mão. Te ajuda a refletir sobre o que você comprou e se você está gastando muito dinheiro. Além disso, você pode voltar para o seu histórico de gastos [nas anotações]", diz Zun.

"Quando aquilo que eu queria muito era caro, eu normalmente desistia de comprar e escolhia no lugar várias coisas mais baratas e similares. Mas, ao olhar para os gastos totais, eu percebi que eu poderia ter comprado o que eu realmente queria. Isso me estimula a gastar meu dinheiro de uma maneira mais pensada."

Ao avaliar quanto, como e com o que gastamos o dinheiro, podemos fazer um balanço respondendo a quatro perguntas-chave:

Quanto dinheiro você guardou?

Quanto dinheiro você gostaria de guardar?

Quanto dinheiro você está realmente gastando?

O que você mudaria no próximo mês para melhorar?

A consultora financeira Harumi Maruyama recomenda testar o método por pelo menos três meses — a partir de quando geralmente se começa a ver os resultados, diz ela.

"O kakebo te ajuda a administrar seus gastos mesmo com um orçamento limitado e a parar de gastar de forma desenfreada. Eu acho que o kakebo é a base do orçamento doméstico", diz Maruyama.

"Mesmo se o orçamento é curto, eu já vi muitas pessoas conseguirem controlar os gastos e guardar dinheiro."

A consultora sugere que o kakebo se torne um ritual diário, de pelo menos cinco minutos, praticado mais ou menos no mesmo horário do dia.

"Ou você pode escrever uma vez por semana, ou quando você gasta algo", diz.

Origem do termo

O kakebo é uma palavra japonesa para "livro de contas domésticas", e suas origens remontam a 1904, de acordo com Fumiko Chiba, autora do livro Kakebo: A arte japonesa de poupar dinheiro.

Chiba conta em seu livro que a criadora desse método foi Hani Motoko, considerada a primeira mulher jornalista no Japão. A intenção dela era encontrar uma maneira de ajudar as donas de casa a administrarem a economia familiar de maneira eficiente.

"Embora o Japão seja uma cultura tradicional em muitos aspectos, o kakebo foi uma ferramenta libertadora para as mulheres, porque lhes dava controle sobre as decisões financeiras", escreve Chiba em seu livro.

Hoje, apesar do fato de já existirem vários aplicativos de celular para controlar receitas e despesas, esses livros de contas ainda são comercializados no Japão.

Eles geralmente são vendidos no início de cada ano e, de acordo com Chiba, são bastante populares.

Publicado originalmente porBBC News,  em 12.09.24. *Com informações do vídeo da BBC Reel "Kakeibo: The Japanese art of saving money"

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Liberdade de expressão?

Você pode – e deve – criticar o STF. Há muito o que questionar na corte. Só o que não dá para dizer é que o que aconteceu com o Twitter foi mordaça

No tempo da ditadura, sinais de emissoras exóticas chegavam livremente aos rincões da pátria armada e fardada. Em ondas curtas, a Rádio Moscou ressoava com seu português escorreito em todo o território nacional, dos igapós amazônicos às roças de Nuporanga. E não era só ela. Junto, vinham também as locuções da Rádio Pequim, da Rádio Tirana e da Rádio Bulgária. Comunismo na carótida, calafrios na caserna. As autoridades se inquietavam: como bloquear a radiofrequência da Cortina de Ferro?

Não havia como. Veteranos da radiodifusão lembram até hoje que os militares tentavam usar engenhocas para atrapalhar o som das invasoras, ao menos nas regiões ditas estratégicas, mas a manobra não dava certo. Vetaram peças de teatro, canções de protesto, revistas de mulheres nuas, filmes sortidos, telenovelas picantes e romances de esquerda, mas fracassaram indigentemente no projeto de emudecer as estações alienígenas. Falta de vontade não foi.

Agora, o mundo é outro, já sabemos. Você quase não encontra mais aparelhos de rádio de ondas curtas, e, quando os encontra, não vê ninguém de ouvido colado na geringonça. Tudo ficou diferente. Só uma coisa não mudou: desafiando a lei da evolução natural das espécies, os apoiadores do golpe de 1964 ainda andam por aí, preservadíssimos, e não escondem de ninguém a saudade que sentem da ditadura, da tortura e da censura – ridícula, mas teimosa.

Essa turma andou alvoroçada ao longo da semana. Ao saber que a plataforma denominada X, antes conhecida como Twitter, foi banida de celulares e computadores por uma decisão judicial, voltou a enxergar fantasmas. As assombrações são as mesmas de antigamente, mas as aparições sobrenaturais vieram com os sinais trocados. Antes, o espectro do comunismo era externo, vinha de fora para dentro. Agora, é interno, vem da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) e se irradia mundo afora. Antes, a proteção da liberdade marchava de coturno sobre o mármore branco do Palácio da Alvorada. Agora, mora longe e atende pelo nome de Elon Musk. Ectoplasmas reencarnados e revirados.

Fantasmagorias reversas. Nas suas alucinações miasmáticas, as viúvas do AI-5 são tragadas por mirações aterrorizantes. Veem a magistratura dos nossos tempos perpetrando à luz do dia a malvadeza que a magistratura de meio século atrás não foi capaz de perpetrar na escuridão: bloquear de uma canetada a comunicação do adversário exógeno. Mas como assim? Os saudosistas não se conformam e se contorcem de inveja: “Como é que os poderes da democracia são mais efetivos que os nossos na tirania de 1970?”. Não engolem o desaforo histórico: “Deram no X o sumiço que a gente não conseguiu dar na Rádio Moscou!”.

Para não passar recibo de que tudo não passa de dor de cotovelo auriverde, a claque tardia da ditadura extinta inventou que seu problema não é ciúme, mas o compromisso raivoso que ela teria com a “liberdade de expressão”. É isto mesmo: estamos vendo a bandeira da “liberdade” ser desfraldada pelas forças que sempre a conspurcaram. Não que os apoiadores do arbítrio mudaram – apenas repaginaram a própria vaidade. Eles, que ontem só admitiam a crítica se fosse “construtiva”, hoje se declaram favoráveis à manifestação do pensamento e até do não-pensamento. Principalmente do segundo.

É curioso, antropologicamente curioso. Você nunca vai ver este pessoal respaldando a liberdade de expressão dos moradores de rua, das mulheres pró-aborto, da população trans, dos trabalhadores pobres, dos quilombolas e dos indígenas, pois, segundo denunciam energicamente, esses setores, além de preconceituosos e intolerantes, são uns ongueiros mancomunados com as potências que só querem roubar nosso nióbio e nosso grafeno. Não, os saudosistas não se deixam engrupir. Eles têm lado. Defendem a liberdade de gente desprotegida, das vítimas indefesas da brutalidade togada. Combativos, prestam sua solidariedade pungente ao estropiado mártir da democracia: Elon Musk, este, sim, um injustiçado.

Os nostálgicos do arbítrio se converteram em musketeiros aguerridos. São todos por Musk, e estão convencidos até o bolso de que Musk sempre será por todos eles. Embalados pelos pesadelos das mil e uma noites de aquecimento global, não se lembraram de acordar para os fatos e para a realidade. Fatos: o ex-Twitter saiu do ar porque se negou a cumprir uma decisão judicial – decisão ratificada, por unanimidade, pela Primeira Turma do STF. Realidade: nenhum Poder Judiciário, em nenhum país conhecido ou desconhecido, poderia ter tomado outra atitude. Era preciso resguardar a autoridade judicial de um país soberano. Fato e realidade: isso não teve nada que ver com ataque à “liberdade de expressão”.

No mais, você pode – e deve – criticar o STF. Há muito o que questionar na corte. Só o que não dá para dizer é que o que aconteceu com o Twitter foi mordaça. Não há ninguém censurado aí, nem o pobre perseguido Elon Musk, que segue discursando à vontade. Mais que discursando, segue abusando de seu poder econômico, mas isso é outra conversa.

Eugênio Bucci, oo autor deste artigo,  é Jornalista e Professor na Universidade de S. Paulo - USP.Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.09.24

Guia das eleições municipais 2024

Falta pouco para o primeiro turno das eleições municipais deste ano, que ocorre no domingo de 6 de outubro.

Os eleitores vão às urnas para escolher prefeitos, vice-prefeitos e vereadores nas 26 capitais brasileiras e nas outras mais de 5,5 mil cidades do país. (Getty Images)

O segundo turno, caso necessário, acontece no último domingo do mês, dia 27 de outubro, somente nas cidades com mais de 200 mil eleitores.

Com base principalmente em materiais informativos divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), a BBC News Brasil responde abaixo a perguntas sobre as eleições deste ano.

Como votar nas eleições?

É importante se preparar com antecedência não só para escolher bem seus candidatos, mas também para saber seu local de votação. É possível descobrir isso no site do TSE ou no aplicativo e-Título. Os TREs também oferecem atendimento presencial e por telefone ao público.

O TSE estimula que o eleitor leve junto consigo para a urna uma colinha eleitoral com os números de seus candidatos.

Com quantos anos posso votar?

Já pode votar quem tem 16 e 17 anos, mas nesses casos, o voto é facultativo. A partir dos 18 anos, o voto é obrigatório. Essa regras valem para idades atingidas na data da votação.

O voto também é facultativo aos maiores de 70 anos e aos analfabetos.

Posso votar em outra cidade?

Todo eleitor tem seu domicílio eleitoral, que na prática, é um município. Não é possível estar vinculado a mais de um domicílio eleitoral ao mesmo tempo.

Nas eleições municipais não há possibilidade de voto em trânsito, como ocorre nas eleições para presidente da República e governador.

Portanto, quem não estiver no seu domicílio eleitoral e não puder votar deverá justificar a ausência no dia da votação.


Nas eleições municipais não há possibilidade de voto em trânsito (Getty Images)

Posso votar com o RG?

De acordo com o site do TSE, o eleitor que souber seu local de eleição pode votar apenas com um documento oficial com foto, sem exigência do título de eleitor.

Com ou sem título em mãos, são aceitos como documento oficial com foto: carteira de identidade, passaporte, carteira de categoria profissional reconhecida por lei, certificado de reservista, carteira de trabalho ou carteira nacional de habilitação.

Também é possível usar o e-Título. Mas essa possibilidade só é válida se a sua foto aparecer no aplicativo. Caso não esteja aparecendo, não será considerado válido para votar.

Certidões de nascimento e casamento não valem como documento para votar.

Posso usar o celular na hora do voto?

O eleitor não poderá ingressar na cabine de votação portando celular, máquinas fotográficas e filmadoras. Caso descumpra essa regra, pode ter de pagar multa de até R$ 15 mil e ser preso. Nada de selfies ou gravações do voto na urna, portanto.

Se eu votar só para um dos cargos em disputa, meu voto é invalidado?

Não. Cada voto é contabilizado separadamente e um não invalida os demais.

Qual a diferença entre voto branco e nulo?

Não há diferença entre voto branco e voto nulo para a contagem dos votos, ambos são excluídos da totalização dos resultados.

O eleitor vota em branco quando pressiona a tela branca da urna eletrônica e confirma. Já o voto nulo ocorre quando há erro de digitação. Se o eleitor digitar um número que não corresponda a partido ou candidato, o voto é anulado.

Quando sai o resultado das eleições?

Como a votação é feita por meio da urna eletrônica, o processo de apuração é relativamente rápido.

A apuração começa a ser divulgada a partir das 19h de Brasília.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 05.09.24

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O que está em jogo na disputa entre Musk e o STF

Bilionário não indicou representante do X no Brasil após fechamento de escritório em reação a pressão da Corte por remoção de conteúdos. Ministro Moraes responde com bloqueio de contas, e Musk recorre.

Elon Musk e Alexandre de MoraesFoto: Slaven Vlasic/Getty Images/La Nacion/Ton Molina/picture alliance/dpa

No mesmo dia em que o X (ex-Twitter) bateu o pé e anunciou que não cumpriria a ordem judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) para indicar um representante legal no Brasil, o bilionário Elon Musk, dono da rede social, viu outra empresa sua, a Starlink, ter suas contas bloqueadas nesta quinta-feira (29/08) por ordem do ministro Alexandre de Moraes.

O bloqueio foi justificado como necessário para quitar multas impostas pelo STF ao X por descumprimento de ordens judiciais anteriores, para remoção de conteúdos da plataforma.

Segundo o portal g1, a Starlink recorreu da decisão nesta sexta-feira alegando não ser parte do processo contra o X, e queixando-se de não ter tido seu direito à ampla defesa e ao devido processo legal respeitado.

A Starlink é um braço da SpaceX, empresa de exploração espacial de Musk, e que fornece serviços de conexão à internet em áreas remotas via satélite.

Antes do bloqueio, na quarta-feira, Moraes havia dado prazo de 24h a Musk para indicar um representante legal do X no Brasil, sob pena de "imediata suspensão" da plataforma em caso de descumprimento e não pagamento das multas. O prazo venceu na noite de quinta. 

A intimação havia sido postada pela conta do STF no próprio X, em resposta a uma postagem de 17 de agosto da equipe de relações governamentais internacionais da empresa, que anunciava o fechamento do escritório no Brasil e acusava Moraes de não "respeitar a lei ou o devido processo legal".

Na ocasião, a plataforma afirmou que a decisão foi uma resposta ao que chamou de "ameaça" e "censura" por parte do ministro, que cobrava a plataforma pelo não cumprimento de ordens judiciais anteriores que impunham à plataforma a retirada de conteúdos da rede social.

Algumas das contas alvo de bloqueio judicial eram de bolsonaristas, como o senador Marcos do Val (Podemos-ES).

O fechamento do escritório do X no Brasil, porém, não impactou o funcionamento da plataforma.

É a primeira vez que o STF intima alguém via redes sociais, segundo informado pelo próprio tribunal ao portal g1.

Musk acusa há meses Moraes de ser autoritário em decisões para retirada de perfis da plataforma. O ministro, por sua vez, alega que age para conter a disseminação de discursos de ódio e de movimentos golpistas que ameaçam a democracia no país, como foi visto nas vésperas dos ataques de 8 de janeiro de 2023.

Disputa ganhou nova dimensão com relatório no Congresso americano

A disputa entre Musk e Moraes se intensificou em abril, com a publicação de um relatório do Congresso americano que lista uma série de "demandas de censura" de Moraes.

O relatório, produzido por uma comissão presidida pelo deputado republicano Jim Jordan, ligado ao ex-presidente Donald Trump, foi elaborado com base em documentos internos da plataforma disponibilizados por Musk, e que revelariam supostos abusos em decisões do ministro. 

Segundo o documento, o STF e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ambos presidido por Moraes, pediram à plataforma X que suspendesse ou removesse quase 150 contas de críticos do governo brasileiro.

Moraes supostamente ordenou que as plataformas de mídia social removessem postagens e contas mesmo quando "muito do conteúdo não violava as regras [das empresas]" e "muitas vezes sem dar uma razão", aponta o relatório.

O texto afirma ainda que a "censura dirigida" não é um problema restrito aos governos "em terras distantes", e acusa a administração de Joe Biden de silenciar os críticos do governo.

O relatório foi divulgado a menos de sete meses das eleições presidenciais nos Estados Unidos. Trump é o candidato republicano 

As eleições presidenciais nos Estados Unidos estão marcadas para novembro, e Trump é o candidato republicano à Casa Branca. Pelo Partido Democrata, a candidata é a vice de Biden, Kamala Harris.

Milícias digitais

Em abril, Moraes determinou a inclusão de Musk como investigado no inquérito que apura a ação de milícias digitais que atentam contra a democracia. O magistrado apontou que viu indícios de obstrução de Justiça e incitação ao crime nas ações de Musk e determinou multa diária de R$ 100 mil para cada perfil que a empresa reativar de forma irregular.

Musk usou a sua plataforma para chamar o ministro de "ditador brutal" e afirmou que iria descumprir ordens judiciais brasileiras de bloqueio de perfis criminosos na rede social. A plataforma voltou a mostrar publicações de perfis bloqueados por ordem judicial, como o da juíza aposentada Ludmila Grilo e do apresentador Monark, conforme informou a agência de checagem Aos Fatos. 

O perfil no X do canal Terça Livre, do ativista de extrema direita Allan dos Santos, recebeu o selo dourado na rede, mesmo com uma ordem judicial que havia determinado o bloqueio da conta em  setembro de 2021.

Após protagonizar briga com o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, o empresário Elon Musk, dono da rede social X (ex-Twitter), virou alvo do inquérito das milícias digitais (Foto: Alain Jocard/AFP [M])

Articulação internacional

No início de março, o deputado federal Eduardo Bolsonaro conduziu uma comitiva de deputados brasileiros para Washington (EUA), onde conversaram com parlamentares republicanos sobre como o Brasil se tornou uma "ditadura de esquerda".

Eles foram convidados para participar em uma audiência na Comissão Tom Lantos de Direitos Humanos na Câmara dos Representantes, mas tiveram que mudar os planos quando o democrata James P. McGovern, um dos dois copresidentes da comissão, vetou o evento.

Em nota à Agência Pública, McGovern afirmou que os republicanos estariam "usando o Congresso dos Estados Unidos para apoiar os negacionistas eleitorais da extrema direita que tentaram dar um golpe no Brasil".

O que está por trás da briga 

As suspensões desses perfis haviam sido determinadas em 2022, ano da campanha à presidência da República, e em 2023, quando houve osatos golpistas de 8 de janeiro, em Brasília. 

Em 2022, a Justiça brasileira tomou medidas mais proativas para conter ameaças à democracia. Alexandre de Moraes virou a face mais conhecida desse processo porque era o relator do inquérito sobre as milícias digitais antidemocráticas e é o atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). 

O ministro determinou, no âmbito das investigações, que as redes sociais bloqueassem alguns alvos desses inquéritos, afirmando que esses investigados utilizavam as plataformas para práticas irregulares.

Perto do segundo turno, o TSE publicou resolução determinando que as plataformas digitais deveriam remover conteúdos inverídicos em até duas horas, sob pena de multa de R$ 100 mil por hora, um fato sem precedentes na Justiça brasileira. 

Essas decisões jurídicas de dois ou três anos atrás receberam críticas por terem uma redação muitas vezes ambígua, que não deixa clara a extensão do poder de polícia da Justiça Eleitoral.  

Não há informações públicas sobre todas as ações judiciais que motivaram as críticas de Musk contra Moraes. O X informou que havia sido proibido de informar quais contas foram retidas e qual tribunal ou juiz emitiu a ordem, mas em agosto publicou na rede social alguns documentos que chamou de "ordens secretas" de Moraes.

VPN e Starlink

Musk ainda sugeriu como burlar um eventual bloqueio da rede social no Brasil, o que não seria um fato inédito no país. Em 2015 e em 2016, por exemplo, juízes de primeira instância determinaram o bloqueio do Whatsapp depois que a empresa se negou a conceder informações para investigações policiais. O mesmo aconteceu com o Telegram no ano passado. 

"Para garantir que você ainda pode ter acesso à plataforma X, baixe um VPN", disse o empresário em uma publicação. "Usar um VPN é muito fácil", completou.  

Ferramentas de Virtual Private Network (VPN) são serviços que mascaram a origem do acesso à internet. Ele faz com que usuários pareçam estar outro país, driblando bloqueios locais. 

Caso a Justiça brasileira determine o bloqueio do X, outra questão se impõe. Musk também é dono da Starlink, empresa de internet via satélite que tem no Brasil um de seus principais mercados. 

Segundo levantamento feito pela BBC News Brasil, a empresa é líder entre os provedores de banda larga fixa por satélite na Amazônia legal, com antenas instaladas em ao menos 90% municípios da região. 

O professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade, alertou ao podcast Café da Manhã que esse seria "um segundo debate, que a gente ainda não enfrentou no Brasil, que é um provedor de internet descumprir ordens de bloqueios de plataformas." 

Reações 

Todo o embate ocorre enquanto o Congresso discute um projeto de lei para regulamentar as plataformas digitais, o chamado PL das Fake News, retirado da pauta da Câmara por falta de acordo entre parlamentares e pressão das plataformas. A União Europeia já aprovou uma norma desse tipo, que entrou em vigor em janeiro.

A briga aumentou a pressão pela regulamentação das redes sociais no Congresso. O relator do projeto de lei, deputado Orlando Silva, afirmou, em sua conta no X: "É impossível continuarmos no estado de coisas atual. As Big Techs se arrogam poderes imperiais. Descumprir ordem judicial, como ameaça Musk, é ferir a soberania do Brasil. Isso não será tolerado! A regulação torna-se imperativa ao Parlamento."

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, divulgou nota para afirmar que decisões judiciais podem ser objeto de recursos, mas jamais de descumprimento deliberado. 

Barroso diz que é público e notório que "travou-se recentemente no Brasil uma luta de vida e morte pelo Estado democrático de Direito e contra um golpe de Estado, que está sob investigação nesta corte com observância do devido processo legal".

 "O inconformismo contra a prevalência da democracia continua a se manifestar na instrumentalização criminosa das redes sociais", afirmou.

Sofia Fernandes para Deutshe Welle. Texto atualizado em 30.08.24

'Bilionário arrogante': 5 conflitos de Elon Musk no exterior

O embate entre Elon Musk e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), não foi o único caso em que o dono da rede social X entrou em conflito com autoridades de outros países.

A lista de conflitos e polêmicas envolvendo Musk é longa

No caso mais recente, Musk foi chamado de "bilionário arrogante" pelo premiê da Austrália pela relutância da sua rede social em tirar do ar por completo imagens de um esfaqueamento em uma igreja.

As polêmicas envolvendo o bilionário e suas empresas fizeram o jornal New York Times escrever, em outubro de 2022, antes da conclusão da compra do Twitter, que Musk emergia como "um ator novo e caótico no palco da política global".

"Embora muitos executivos bilionários gostem de tuitar a sua opinião sobre assuntos mundiais, nenhum deles chega perto da influência e da capacidade de Musk de causar problemas", disse a reportagem.

No Brasil, o embate entre Musk e a Justiça brasileira ganhou contornos mais dramáticos depois que Alexandre de Moraes intimou o dono do X a indicar em 24h quem é o representante legal da empresa no Brasil. Caso a ordem não seja cumprida, é prevista "pena de imediata suspensão" da mídia social.

A intimação, assinada por Moraes, foi postada pela conta do STF na própria rede social X (antigo Twitter), em resposta a uma postagem da equipe de relações governamentais internacionais da empresa, a Global Government Affairs.

A seguir, relembre cinco dos principais conflitos envolvendo Musk e suas empresas, nos quais ele se manifestou sobre assuntos como o conflito Israel-Hamas e a guerra da Rússia contra a Ucrânia.

1. Austrália: acusação de censura após Justiça ordenar remoção de vídeos

O primeiro-ministro australiano Anthony Albanese chamou Elon Musk de “bilionário arrogante” após um tribunal do país ordenar na segunda-feira (22/4) que a rede social X impedisse a circulação de vídeos do ataque a uma igreja em Sydney na semana passada.

A rede social disse que cumpriria a decisão, sinalizando de que haveria uma contestação legal à medida, mas Musk usou um meme para acusar o governo australiano de censura.

Nesta terça-feira (23), Albanese disse à emissora ABC News que Musk “pensa que está acima da lei, mas também acima da decência comum”.

Na semana passada, a comissária de segurança eletrônica da Austrália, Julie Inman Grant, ameaçou o X e outras empresas de mídia social com pesadas multas se não removessem os vídeos do esfaqueamento na igreja, classificado como um ataque terrorista pela polícia local.

O X argumentou que a ordem "não está dentro do escopo da lei australiana".

Grant conseguiu uma liminar contra a rede social sob o argumento que o X estava permitindo que usuários fora da Austrália continuassem acessando as imagens.

“Acho extraordinário que o X tenha optado por não obedecer e esteja tentando se defender”, disse Albanese em uma entrevista coletiva.

Em uma série de postagens, Musk escreveu: “Gostaria de aproveitar um momento para agradecer ao primeiro-ministro por informar o público que esta plataforma é a única verdadeira”.

Anteriormente, ele também criticou pessoalmente a comissária de segurança eletrônica, descrevendo-a como a "comissária da censura australiana".

Albanese defendeu Grant, dizendo que ela estava protegendo os australianos.

“A mídia social precisa ter responsabilidade social. Musk está demonstrando não ter nenhuma”, disse ele.

O X terá 24 horas para cumprir a decisão da Justiça de segunda-feira, com nova audiência sobre o assunto prevista para os próximos dias.

2. União Europeia: investigação do X e crítica à suspensão de contas de jornalistas

A União Europeia (UE) anunciou em 2023 uma investigação da rede social X, de Musk, para apurar suposta propagação de conteúdos terroristas e violentos, além de discurso de ódio, após o ataque do Hamas a Israel.

Na ocasião, o X disse ter removido centenas de contas afiliadas ao Hamas da plataforma.

Em dezembro daquele ano, a União Europeia formalizou que suspeita que o X tenha violado as suas regras em áreas que incluem o combate ao conteúdo ilegal e à desinformação.

O comissário digital da UE, Thierry Breton, expôs as supostas infrações em uma postagem na rede social. Breton disse que o X também era suspeito de violar suas obrigações de transparência.

Na ocasião, a empresa disse que estava "cooperando com o processo regulatório" e afirmou que é "importante que este processo permaneça livre de influência política e siga a lei".

Em outro episódio, Musk foi criticado pela União Europeia, pelas Nações Unidas, além de governos, por ter banido contas de jornalistas na rede social.

Na ocasião, a subsecretária-geral da ONU, Melissa Fleming, disse que "a liberdade da mídia não é um brinquedo".

"Uma imprensa livre é a pedra angular das sociedades democráticas e uma ferramenta fundamental na luta contra a desinformação prejudicial", disse ela.

A comissária da UE, Vera Jourova, ameaçou a rede social com sanções sob a nova Lei Europeia de Serviços Digitais, que, segundo ela, exige "o respeito da liberdade de imprensa e dos direitos fundamentais".

Elon Musk proferiu ataques ao Judiciário brasileiro e pediu impeachment de ministro Alexandre de Moraes

3. Ucrânia e o 'plano de paz' de Musk

Outra postagem de Musk o colocou no meio de uma discussão sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia.

Em outubro de 2022, ele usou o Twitter para sugerir um "plano de paz" para o conflito, em formato de enquete, que indignou autoridades ucranianas.

A tradução da enquete é a seguinte:

"Paz Ucrânia-Rússia:

-Refazer eleições de regiões anexadas sob supervisão da ONU; a Rússia sai se essa for a vontade do povo.

-Crimeia formalmente parte da Rússia, como tem sido desde 1783 (até o erro de Khrushchev).

-Abastecimento de água à Crimeia assegurado.

-A Ucrânia permanece neutra."

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, criou sua própria enquete no Twitter, na qual perguntava aos seguidores: "Qual @elonmusk você gosta mais?"

As opções: "Aquele que apoia a Ucrânia" e "Aquele que apoia a Rússia".

A enquete de Musk veio depois de ele ter postado uma imagem fazendo referência ao presidente ucraniano, em formato de meme, com a mensagem: "Quando já se passaram cinco minutos e você não pediu um bilhão de dólares em ajuda".

4. Delaware (EUA) e a guerra de Musk

Em uma polêmica mais recente, Elon Musk está em pé de guerra com o Estado americano de Delaware.

"Nunca registre sua empresa no Estado de Delaware", escreveu o bilionário americano em mensagem no X, em 30 de janeiro.

Duas de suas empresas, Neuralink e SpaceX, anunciaram que não teriam mais sede fiscal no Estado americano.

Em meados de fevereiro, soube-se que a Neuralink – que trabalha para conectar cérebros humanos a computadores – registraria seu endereço legal em Nevada (onde X, outra empresa de Musk, já tem sede), e a empresa aeroespacial SpaceX, no Texas.

Resta saber o que acontecerá com a Tesla, motivo pelo qual Musk quer cortar qualquer vínculo com Delaware.

No fim de janeiro, uma juíza de Delaware anulou o pacote salarial que Musk receberia da empresa, de US$ 56 bilhões, o maior pagamento concedido a um CEO de uma empresa de capital aberto na história.

A decisão veio após uma ação judicial movida por acionistas que consideraram o pagamento excessivo. A juíza concordou com eles.

Foi a partir daí que Musk iniciou sua campanha para convencer outras empresas a não estabelecerem domicílio legal no Estado.

Uma batalha difícil, no entanto, pois o Estado há décadas é considerado bastante atraente pelo setor empresarial.

Mais de 60% das empresas que compõem o índice Fortune 500, que inclui as 500 maiores empresas americanas, estão registradas em Delaware. Estamos falando de gigantes como Google, Amazon, Facebook, LinkedIn, Visa, MasterCard ou Walmart, entre muitos outras.

E mais de 1,6 milhão de empresas de todo o planeta têm sede legal no Estado (entenda mais nesta reportagem).

5. Bolívia: 'Daremos golpe em quem quisermos'

Em um episódio anterior à compra do Twitter, Musk usou a rede social, em 2020, para criticar um pacote de estímulo do governo dos Estados Unidos no contexto da pandemia de coronavírus.

Ele dizia que o pacote não atendia aos "melhores interesses do povo".

Em seguida, um perfil respondeu a Musk que não se tratava de "melhor interesse do povo" o governo dos EUA "organizar um golpe contra Evo Morales" para Musk "obter o lítio" (material usado na fabricação de baterias na Tesla) da Bolívia.

Morales havia renunciado em 2019, em meio a uma mobilização social que, somada ao motim de grande parte dos policiais bolivianos e ao pedido de renúncia feito pelas Forças Armadas, acabou por destituí-lo do poder.

Musk, então, respondeu, em ano eleitoral na Bolívia: "Nós daremos golpe em quem quisermos. Lide com isso".

Publicado originalmente por BBC News, em 29.08.24