Na conversa com o apresentador, presidente ucraniano disse que vai propor até novembro um plano de paz para encerrar o conflito
O apresentador Luciano Huck vai a Ucrânia e entrevista o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky — Foto: Divulgação / Exclusiva para O GLOBO
Os alarmes agudos soaram a partir das 3h. Sirenes nas ruas, alertas no celular, chamados nos alto-falantes do hotel, o alerta veio de todos os lados. Parecia um filme, mas era vida real. Hóspedes e funcionários foram prontamente encaminhados ao abrigo antiaéreo, no subsolo. Camas dobráveis tinham sido improvisadas, lado a lado. Mas como conseguir desligar, que dirá dormir?
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Minha primeira madrugada em Kiev, capital da Ucrânia, foi em claro, à mercê de um dos mais amplos e intensos ataques aéreos que a Rússia lançou desde o começo da guerra. Foram 127 mísseis e 109 drones, a maioria deles tendo como alvo instalações de infraestrutura. A estratégia de Vladimir Putin é clara: a Rússia tenta destruir os serviços de água e energia antes do início do rigoroso inverno europeu.
Por volta das 10h, quando o impacto do bombardeio ainda não era totalmente sabido, fomos autorizados a deixar o abrigo. Para minha surpresa, o presidente Volodymyr Zelensky manteve a agenda e me recebeu logo em seguida para uma entrevista exclusiva. Fui à Ucrânia para ouvi-lo e ver de perto o que está acontecendo na terra de 3 dos meus 4 avós, onde estão minhas raízes familiares.
O conteúdo completo da conversa com Zelensky sobre os mais de mil dias de resistência armada (e também sobre família, rotina no cargo, saúde mental, seu passado nos palcos e TV, judaísmo etc.) e os detalhes da minha viagem de ancestralidade pela Ucrânia em breve serão compartilhados na forma de um documentário na plataforma do Globoplay. Mas, em função do ataque russo de ontem e das declarações tempestivas de Zelensky, um trecho merecia ser publicado de imediato.
O quão distantes estamos do fim da guerra? O senhor tem um plano para a paz?
Tenho. Não posso dividir agora os detalhes, mas farei isso em breve. Nós sabemos o que é preciso.
É um plano para a vitória ou um plano para a paz?
Temos um plano de paz, que pretendo apresentar até novembro. Mas a pergunta que fica é: os russos concordarão?
O senhor está disposto a sentar-se com Putin para debater esse caminho para a paz?
Estou seguro de que a maioria dos países vai apoiar o plano que eu vou apresentar. E nós queremos os russos participando. Eles precisam estar no tratado de paz. É por isso que estou preparando um plano que vai pressionar o Putin a sentar e terminar a guerra.
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O senhor está disposto a devolver terras russas, se eles devolverem terras ucranianas?
Sim. Nós não precisamos da terra deles.
A recente incursão armada na cidade russa de Kursk mudou a posição da Ucrânia: de defensora de um ataque em seu território a também invasora do país vizinho. Quais são as implicações disso para a busca de uma solução pacífica para o conflito? O senhor invadiu a Rússia para ter uma moeda de troca?
São muitas as razões, é uma operação grande e ainda não acabamos. Você me pergunta se estamos prontos para devolver a terra deles se eles nos devolverem a nossa, e a resposta é sim. Mas a pergunta é: eles estão prontos? E para mim a resposta é que Putin não está pronto. Este é um momento muito importante da guerra. É muito importante que todo mundo abra os olhos porque Putin não está pronto. Isso significa que ele não valoriza seu povo. Não é sobre nós. É sobre ambição. Toda esta guerra é sobre a ambição de uma única pessoa.
O presidente dos EUA, Joe Biden, que foi um grande aliado seu até agora, está saindo de cena. Na semana passada, a convenção do Partido Democrata oficializou a candidatura da vice dele, Kamala Harris. E não podemos ignorar que há chances reais de Donald Trump ser eleito. Ele já disse que, no cargo, acabará com a guerra em 24 horas, o que significa o corte total do apoio à Ucrânia. O vice da chapa republicana, J.D. Vance, vai além: ele defende o congelamento das fronteiras como estão hoje, com a Rússia anexando as áreas que ocupou, e que os EUA deveriam se preocupar com a China, e não com a Rússia, e mandar armas para Taiwan, e não para a Ucrânia. Como o senhor enxerga a eleição nos EUA?
Eu estou preparando um plano vitorioso para a paz e preciso que alguns pontos desse plano comecem a ser mostrados ao mundo. E a primeira pessoa que eu vou procurar é o presidente Biden. Talvez eu também divida esse plano com Kamala Harris e com Trump, já que não sabemos quem vai ganhar.
O Brasil se nega a tomar partido abertamente na guerra, alegando neutralidade. O presidente Lula disse recentemente que “não há razão para procurar culpado na guerra”. O que o senhor acha disso?
Isso é apenas retórica política. Não é uma fala honesta. Não é honesta nem conosco nem com o povo brasileiro. Porque todo mundo sabe quem iniciou essa guerra. A equipe dele trouxe uma resolução para nós, antes do do “encontro pela paz” que organizamos, mas o Brasil não quis vir, o presidente Lula não quis vir. Foi uma pena. Eu me reuni com o time dele algumas vezes, mas até agora eles não se uniram a nós na busca de uma solução. Por outro lado, eles se somaram ao plano chinês. O primeiro-ministro Modi, da Índia, esteve aqui há dois dias e me perguntou: qual seu pensamento sobre o plano chinês? E eu disse que não é um plano. É apenas uma declaração política, só para dizerem que não estão alheios à guerra —mas é apenas algo no papel. Eu entendo apenas propostas concretas e honestas. Eu falo pelas nossas vítimas, pelos nossos mortos. Então, se você quer nos ajudar a parar a guerra, ou nos ajudar a fazer com que o Putin pare com a guerra, nós temos que nos unir.
O Brasil é uma liderança importante do Sul Global. Que mensagem o senhor mandaria para Lula e para o meu país?
Tive uma reunião com o presidente Lula e vi que ele me entendeu. Porque tivemos um diálogo muito bom, realmente bom. Estou agradecido por isso, mas ele vive as narrativas da União Soviética. É uma pena. Ele pensa na Rússia como se hoje ainda existisse a União Soviética. A China é um país democrático? Não. E o que dizer sobre o Irã? É um país democrático? Não. E o que dizer da Coreia do Norte? Eles não são países democráticos. Então, o que o Brasil, um grande país democrático, faz nessa companhia? Eu não consigo entender esse círculo de países. É normal quando você tem relações econômicas, mas estamos falando sobre uma guerra, não é sobre relações econômicas. É sobre geopolítica, é sobre valores, é sobre pessoas. É sobre democracia, propósito e liberdade. O que um país democrático e livre como o Brasil está fazendo junto com países que não respeitam estes valores? Quem vai ganhar essa queda de braço? O Brasil vai engolir esses quatro aliados ou esses quatro aliados vão engolir o Brasil?
Publicada n'O GLOBO, em 27.08.24