sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Sarney diz que não apadrinha ninguém na disputa pela PGR

José Sarney tem dito que não tem nenhum nome de sua preferência na disputa pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

O recado tem o objetivo de deixar claro que não é o padrinho político do subprocurador Luiz Augusto dos Santos Lima, ligação que tem sido atribuída ao ex-presidente.

A confusão ocorreu porque Sarney de fato ligou para Alexandre Padilha pedindo que o ministro recebesse o procurador. Mas foi um pedido de amigos do ex-presidente na PGR. (publicado originalmente por Metrópoles, de Brasília-DF)

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Lula sabota o país

Ao largar meta de déficit zero, presidente cria problemas e força alta dos juros

  1. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante encontro com a imprensa no Palácio do Planalto, em Brasília (DF) - Gabriela Biló/Folhapress

O ministro Fernando Haddad (Fazenda) tem trabalhado para conter o crescimento de déficit e dívida do governo. Ocupa-se de convencer o Congresso a aprovar aumentos de impostos e de evitar que os parlamentares explodam bombas que abram mais buracos no casco do navio fiscal. Além disso, tenta evitar que seus colegas de ministério contribuam para a detonação.

Haddad talvez não imaginasse que o próprio presidente da República disparasse um torpedo contra o projeto já não muito rigoroso de estabilização das contas públicas.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) parecia mais contido e baixara o tom e o número de declarações que, desde a eleição, contribuíram para a alta das taxas de juros. Nesta sexta (27), porém, decidiu perturbar seu governo e o país.

Em resumo, disse que sua gestão não chegará à meta de déficit primário zero em 2024, o que é opinião quase geral. Mas Lula afirmou que, entre outros motivos, a meta não será cumprida pois não haverá cortes "em investimentos e obras".

Para piorar o estrago e demonstrar seu desconhecimento do problema, disse ainda que "o mercado é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que eles sabem que não vai ser cumprida".

Trata-se de fantasia e desinformação deliberada. Recusar mais déficit não é ganância; ganância com ganhos para os mais ricos haverá com crescimento do déficit. O governo federal terá de expandir a tomada de empréstimos a taxas elevadas —até mesmo por esse tipo de declaração do presidente.

Os parlamentares, indiferentes ao destino do país e certamente despreocupados com um fracasso do governo, têm proposto, pautado ou aprovado leis para aumentar a despesa ou reduzir a receita.

Colocam, ou pretendem colocar, na conta federal gastos com servidores estaduais. Prorrogam desonerações para empresas ou benefícios regionais. Querem novos tipos de emendas de pagamento obrigatório. A fala de Lula se junta a esse ímpeto parlamentar destrutivo.

O presidente parece se comportar como um prefeito desinformado ou um deputado paroquial, para quem governar é inaugurar obras, sem se importar com consequências. Ademais, ainda não parece ter aprendido o efeito pernicioso desse tipo de declaração: governo e país pagarão juros mais altos; a confiança econômica diminuirá.

De fato, fazer com que receita e despesa se equilibrem no ano que vem, o déficit zero, será difícil. Desprezar uma meta necessária e definida em projeto de lei, porém, cria e antecipa problemas.

Que fique claro: Lula não está propondo um programa econômico controverso, está sabotando o próprio governo. Além de danoso, é incompreensível.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 27.10.23 / editoriais@grupofolha.com.br

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

O plano de segurança do governo e os projetos do Congresso contra o STF: as montanhas pariram ratos

Na crise entre poderes, todos sobrevivem. Em tiroteios reais, quantos mais vão morrer?

Senado enfrenta o STF e aprova marco temporal para terras indígenas Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado / DIV

O nosso Brasil, tão varonil, vive duas guerras simultâneas. Uma, política, cheia de malícia, de Senado e Câmara contra o Supremo, Senado contra a Câmara, o Executivo fugindo das balas perdidas. Outra, sangrenta, que atinge crianças, famílias inteiras e médicos tomando cerveja na praia do Rio de Janeiro.

Na de Brasília, é “tudo junto, tudo misturado”, como diz um ministro do Supremo. No Congresso, uns reagem à condenação dos terroristas do 8/1, outros às pautas liberais e quem manda se aproveita para atrair todos eles. Detalhe: os dois projetos contra o Supremo foram aprovados rapidinho, mesmo o Senado todo sabendo que ambos vão parar no próprio Supremo e, portanto, não vão dar em nada. Ou seja, foi birra, recado.

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou em 42 segundos (42 segundos!) uma PEC que altera o regimento interno do Supremo sobre decisões monocráticas e pedidos de vista – já modificados, aliás, pela própria corte. Pode fazer sentido no mérito, mas é só implicância. Se for até o fim, é claro que vai ser julgado inconstitucional na corte, pela cláusula pétrea da independência dos poderes. Ponto.

O marco temporal das reservas indígenas foi votado no Senado dias depois do julgamento contrário no STF. Numa tarde, passou pela comissão, ganhou urgência e foi aprovado no plenário. O Supremo foi para um lado, o Senado, para outro. Se o presidente Lula sancionar o projeto do Congresso, o Supremo também vai derrubar. Ponto.

E vem por aí o projeto que dá poder ao Legislativo para derrubar decisões não unânimes de uma corte onde qualquer unanimidade é impossível com o ministro Nunes Marques. Curioso é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, liderar a rebelião contra o Supremo. Por estar isolado em Minas? Sob o cabresto do senador Davi Alcolumbre? Por ter sido preterido para a corte?

O novo presidente do STF, Luís Roberto Barroso, é da paz, mas “quando dois não querem, dois não brigam” e quando ninguém quer a paz, não há paz. Pacheco, Alcolumbre, Arthur Lira e Centrão usam a pauta liberal do Supremo para conservadores e a extrema direita do Congresso. Lembrando que o Brasil é, majoritariamente, contra a descriminalização do aborto e do porte de pequenas quantidades de maconha, por exemplo.

O que o Brasil não aguenta mais são episódios como o assassinato dos médicos no Rio, que remete ao de Marielle e Anderson, e a chacina contra uma família de ciganos na Bahia, campeã em mortes criminosas. E o pacote contra o crime do ministro da Justiça, Flávio Dino, foi feito às pressas, para inglês ver. Assim, Congresso e governo federal, com projetos e planos que não dão em nada, agem como “a montanha que pariu um rato”. Na crise entre poderes, todos sobrevivem. Em tiroteios reais, quantos mais vão morrer?

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Jornalista. Comentarista de politica no telejornal Em Pauta da Globo News. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.10.23

Somos a matéria de que são feitos os sonhos

Uma democracia moderna precisa, tanto na sociedade quanto no governo, de serenidade para enfrentar seus inúmeros desafios

Fernando Henrique Cardoso e Pedro Malan (sentado) lançam, no Governo do Presidente Itamar Franco, o Plano Real. Brusca freada  no galope da inflação então dominante

“Sonhei o sonho errado” escreveu Fernando Gabeira, então deputado federal eleito pelo PT, numa passagem do sereno discurso com que anunciou sua desfiliação do partido, no plenário da Câmara dos Deputados. Foi em outro outubro, 20 anos atrás.

A expressão teve chamada de primeira página nos principais jornais do País, que registraram a primeira explicação que deu Gabeira sobre o sonho errado: “Confiei que poderíamos fazer tudo aquilo que prometíamos rapidamente, num período de quatro anos ou imediatamente”. O que escreveu a seguir não mereceu tanta atenção: “Mas este sonho foi pior ainda: foi confiar que era possível transformar o Brasil a partir do Estado; foi não compreender que o Estado já perdeu o dinamismo, o qual agora se encontra na sociedade”.

Dois livros e um discurso foi o título do artigo que publiquei neste espaço em 9/11/2003. O discurso em questão era o de Gabeira; os livros, O Elogio da Serenidade, de Norberto Bobbio, e Insultos Impressos, de Isabel Lustosa. O primeiro é uma bela defesa dessa virtude tida como não muito política – “virtude fraca, mas não dos fracos”, no dizer de Bobbio. O segundo revisita os primeiros momentos de nossa imprensa, quando a “democratização do prelo” levou a surpreendentes níveis de violência o debate na forma impressa.

Naquele artigo de novembro de 2003 referi-me ao falso dilema subjacente ao discurso de Gabeira: “Estamos chegando ao final do primeiro ano do governo Lula. O aprendizado da sociedade tem sido extraordinário. Não menor tem sido o aprendizado do governo. Se conseguirmos, como parte desse processo de melhoria de qualidade do debate público informado, reduzir o peso relativo dos insultos impressos (em favor do conteúdo da discussão), valorizar mais a serenidade e a prudência-com-propósito como virtudes políticas e aprofundar a discussão sobre sonhar sonhos errados e sobre sua realização no mundo real ‘a partir do Estado’ ou ‘a partir da sociedade’ (um falso dilema), estaríamos contribuindo para continuar mudando, para melhor, um país difícil como o nosso. Ou, pelo menos, sonhando um sonho certo, o que inclui não ter ilusões sobre as dificuldades em realizá-lo”.

Falso o dilema porque é preciso tentar combinar o dinamismo de ambos, Estado e sociedade. Isso exige uma percepção de que não há que tentar fazer tudo “em quatro anos”, mas sim ter visão estratégica de longo prazo, consistente e comunicável, com clara definição de prioridades e avaliação dos inevitáveis trade-offs envolvidos, pensando nas próximas gerações, e não apenas nas próximas eleições.

O governo FHC definiu em 1998, no programa Avança Brasil, sua visão sobre o papel essencial do Estado: “O novo modelo, ao contrário do que alguns querem fazer crer, exige um Estado atuante e vigoroso. Por isso, o grande desafio contido no objetivo de promover o crescimento econômico sustentado, a geração de empregos e de oportunidades de renda consiste em recompor a capacidade estatal de formular políticas, construir estratégias e exercer suas novas atividades regulatórias, especialmente em relação às atividades transferidas para o setor privado. (...) não é mais possível desenvolver a economia no chamado regime autárquico, ou seja, isolada da competição e da convivência com produtos, tecnologias e capitais internacionais”.

Sigo julgando que deveria ser possível encontrar ampla convergência em torno dessa visão, evitando debates estéreis sobre o papel do Estado.

Três fenômenos, todos incompatíveis com um republicano Estado Democrático de Direito, maculam nosso passado: o messianismo salvacionista, o voluntarismo explícito e o autoritarismo exercido em nome do povo. Traços desses fenômenos seguirão vivos entre nós enquanto a sociedade – que é dinâmica, complexa, heterogênea e desigual – julgar que somente a partir do aparelho do Estado é possível realizar “grandes coisas” (Maquiavel) como, por exemplo, o desenvolvimento econômico e social sustentado.

O Brasil de hoje ostenta permanentes excessos de violência verbal, agora nas redes sociais, cada vez mais determinantes na luta política e social. Carece, em contraste, da virtude da serenidade – no debate político e social, por vezes no econômico. Uma democracia moderna precisa, tanto na sociedade quanto no governo, de serenidade para enfrentar seus inúmeros desafios. Trata-se de uma postura, uma atitude em relação aos outros e às coisas – aí incluídas as que se deseja transformar.

Sem usar a palavra serenidade, Bobbio certa vez definiu o que chamou de maior lição da sua vida: “Respeitar as ideias alheias, deter-se diante do segredo de cada consciência, compreender antes de discutir, discutir antes de condenar. E rejeitar todo tipo de fanatismo”. Sábia lição para países como o nosso, e muitos outros no mundo de hoje, que correm o risco de se enredar numa pobre e calcificada polarização política. Como se o Brasil, país de enormes complexidades – e não menores potencialidades – pudesse se dar ao luxo de incorrer numa enganosa e estéril escolha binária entre um lulopetismo e um antilulopetismo. Um desavisado nós contra eles. O Brasil – e seu povo – não merecem essa simplória e excludente redução.

Pedro S. Malan, o autor deste artigo, é economista. Foi Ministro da Fazenda no Governo FHC. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 08.10.23

Golpe?

O que houve no 8 de Janeiro foi uma espécie de estertor do bolsonarismo, com seus fiéis ainda acreditando numa narrativa ‘revolucionária’ evanescente

Para melhor compreendermos os eventos do dia 8 de janeiro, alguns açodadamente considerando tratar-se de uma tentativa de golpe, torna-se necessário analisarmos o papel dos militares nos últimos anos e meses. Nesse sentido, convém, preliminarmente, observarmos que não há a menor possibilidade de golpe sem intervenção militar e, em particular, do Exército. A história brasileira está repleta de exemplos desse tipo. Logo, impõe-se logicamente a seguinte conclusão: se não houve golpe, foi simplesmente porque o Alto Comando do Exército evitou que isso acontecesse. E isso ocorreu antes da posse do presidente Lula.

Se não soubermos fazer a distinção da instituição Exército em relação a alguns militares, principalmente da reserva, que agiram enquanto indivíduos numa colaboração estreita com o bolsonarismo, falharemos em abordar a questão central. Foram os militares constitucionalistas do Alto Comando, com destaque para os generais Tomás Paiva, Valério Stumpf, Richard Nunes, Guido Amin e Fernando Soares, entre outros, que disseram não às articulações que então se fizeram. Não compactuaram nem aceitaram a quebra do Estado de Direito, da democracia, permanecendo apegados aos seus princípios. Alguns sofreram, inclusive pessoalmente, com acusações caluniosas, considerados como “generais melancias”, verdes por fora, vermelhos por dentro. Familiares foram também objeto de acusações desse tipo nas redes sociais. No entanto, permaneceram firmes em suas convicções e não cederam.

A República muito lhes deve e isso deveria ser reconhecido. Não faz, assim, nenhum sentido empreender campanhas públicas contra os militares como se estes fossem “golpistas”. A tais pessoas falta bom senso. Que houve militares da reserva envolvidos nas depredações do dia 8 de janeiro significa tão somente que agiram enquanto pessoas, sem nenhuma representação institucional. Da mesma maneira, civis estiveram envolvidos. E todos devem ser investigados e, se for o caso, punidos na forma da lei. Ademais, caberia também determinar a responsabilidade do então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), escolha pessoal do presidente Lula, e a inércia da Força Nacional, subordinada ao Ministério da Justiça, que poderia ter sido efetivamente acionada, considerando a tensão institucional naquele momento.

Quando da violência daquele dia, a tentativa de golpe já havia sido abortada. O presidente eleito tinha assumido e estava em pleno exercício de suas funções. O resultado eleitoral tinha sido respeitado e a transição de um governo a outro, operada, embora o antigo presidente não tenha seguido a liturgia de passagem de poder. O que, sim, houve naquele momento foi uma espécie de estertor do bolsonarismo, com os seus fiéis ainda acreditando numa narrativa revolucionária evanescente. Foram iludidos e ludibriados. Os mentores sumiram de cena, apesar de sabedores de que o Exército não os seguiria. Foi simplesmente uma ópera-bufa. Portanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria ter maior moderação na pena aplicada a esses participantes, por mais lamentáveis que sejam as suas condutas. Penas de 17 anos não guardam nenhuma proporção com suas ações e responsabilidades. Em bom Português, estamos observando uma encenação midiática para punir bagrinhos.

Carecem igualmente de sentido ações políticas em curso procurando modificar o artigo 142 da Constituição federal, como se este fosse permissivo em relação a uma intervenção dos militares como Poder Moderador. Não há nada lá escrito que enseje tal interpretação, salvo se formos enveredar para interpretações completamente arbitrárias, desprovidas de quaisquer fundamentos. Um golpe, por definição, é um ato de força e, por isso mesmo, prescinde de qualquer interpretação jurídica. É um ato de ruptura com a ordem constitucional e, enquanto tal, se institui como fonte de um novo tipo de direito, tido por revolucionário. Assim o entendeu o jurista Francisco Campos ao escrever o Ato Institucional número 1 a mando do então ministro da Guerra, Costa e Silva. Não precisou fazer uma interpretação da Constituição válida naquele momento, mas simplesmente lhe sobrepôs uma lei maior, considerada como “revolucionária”.

Um dos grandes eventos da história universal, a Revolução Francesa, de 1789, nasceu de uma ruptura constitucional, abolindo o arcabouço legal e institucional baseado na monarquia de direito divino dos reis. O destino do rei e de sua família foi a guilhotina, acionada segundo um tribunal revolucionário carente de qualquer base legal à luz da Constituição então vigente. Robespierre chegou a dizer que seria julgado pela História, como se a História fosse um tribunal. Trata-se tão somente de uma narrativa política que capturou mentes e corações, engendrando uma outra ordem constitucional, ancorada em novos princípios e valores, que veio a moldar boa parte das Constituições posteriores em todo o mundo. No momento da ruptura, não fizeram nenhuma interpretação da Constituição vigente, simplesmente clamaram contra a sua injustiça.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRS. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 09.10.23

Processo que pode levar Collor à prisão se aproxima do fim após manifestação da PGR

Ex-presidente foi condenado a oito anos de 10 meses de reclusão, mas ainda não há definição de quando começará a cumprir pena

O ex-senador Fernando Collor (PTB-AL) — Foto: Roque de Sá/Agência Senado

A Procuradoria-Geral da República (PGR) contestou na terça-feira um recurso apresentado pelo ex-presidente Fernando Collor contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de condená-lo a oito anos e 10 meses de prisão. O julgamento desse recurso é uma das últimas etapas para a conclusão do processo, o que permitiria o cumprimento da pena.

Após só achar R$ 14,97 em conta: Justiça manda bloquear bens da esposa de Collor para pagar dívida trabalhista

O julgamento de Collor e de outros dois réus foi concluído pelo STF no fim de maio. No dia 21 de setembro, foi publicado o acórdão do julgamento, com a íntegra dos votos. Na semana passada, os três réus apresentaram embargos de declaração, um tipo de recurso utilizado para esclarecer pontos da decisão. Com a manifestação da PGR, cabe agora ao relator do caso, Edson Fachin, liberar os recursos para julgamento.

Collor foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, por um esquema envolvendo a BR Distribuidora que foi investigado pela Operação Lava-Jato. Pedro Paulo Bergamaschi de Leoni Ramos, apontado como operador do esquema, foi condenado a quatro anos e um mês de prisão, e Luis Amorim, diretor executivo da Organização Arnon de Mello, conglomerado de mídia do ex-presidente, recebeu pena de três anos e 10 dias.

Nos embargos, os três questionam pontos do acórdão, como o de que ele não teria respondido a tese das defesas de que o processo foi baseado unicamente em delações premiadas. Além disso, também foi questiona a forma de definição das penas.

Em resposta, a PGR afirma que os réus querem "reabrir a discussão da causa, promover rediscussão de premissas fáticas e provas, além de atacar, por meio de via indevida, os fundamentos do acórdão condenatório", o que não seria a função dos embargos.

Em relação ao questionamento de que o acórdão não cita provas além de delações, a peça afirma que há o texto apresenta um "há robusto conjunto probatório indicando a existência dos crimes".

Daniel Gullino, de Brasília-DF para O Globo, em 04.10.23

O Senado entre a sensatez e a provocação

Se merecem elogios por barrar reformas sem sentido, senadores têm de parar de retaliar o STF

Plenário do Senado — Foto: Roque de Sá/Agência Senado

O Senado tem desempenhado papel fundamental ao cumprir sua missão constitucional de Casa revisora dos projetos recebidos da Câmara. Nos últimos dias, a atitude cautelosa dos senadores impediu o avanço de propostas que, se aprovadas na forma como queriam os deputados, teriam representado retrocesso para o país.

A primeira foi a minirreforma eleitoral, que alivia controles e punições a políticos e partidos. A segunda foi a PEC da Anistia, que, além de livrar as legendas e candidatos de punições da Justiça por irregularidades nas últimas eleições, cria um sistema de cotas nas vagas do Legislativo sem paralelo nas maiores democracias. A resistência do Senado em aprová-la a tempo de vigorar no pleito municipal do ano que vem levou a própria Câmara a adiar a votação na semana passada.

“São temas muito complexos para votar num tempo muito exíguo”, afirmou à GloboNews o senador Marcelo Castro (MDB-PI), relator da minirreforma. “Vamos com mais calma, mais devagar, com mais sensatez.” Castro sugeriu que, em vez de uma minirreforma, o Congresso aprove uma reforma mais duradoura, com base nos projetos de código eleitoral e de lei sobre inelegibilidades que já tramitam no Senado. É uma sugestão que, para empregar o termo do próprio Castro, traduz sensatez.

Pacheco já havia alertado STF de que poderia liberar ‘pauta bomba’

Sensatez também foi o que levou os senadores a rejeitar um projeto aprovado em 2021 na Câmara recriando as coligações em eleições proporcionais, expediente que favorece a pulverização de partidos no Legislativo e felizmente foi banido pela minirreforma eleitoral de 2017. E a mesma sensatez retarda a tramitação no Senado da esdrúxula proposta aprovada na Câmara criminalizando a “discriminação” de políticos.

Paradoxalmente, parcela dos senadores revela não partilhar dessa sensatez. Numa votação de apenas 42 segundos, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou um projeto que impõe limite a decisões individuais de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Proposta semelhante já havia fracassado em 2019 — e o próprio STF já adotou normas mais rígidas para as decisões monocráticas.

A iniciativa foi uma reação a julgamentos do Supremo que têm desagradado a parlamentares conservadores, em temas como o marco temporal para demarcação de terras indígenas, a descriminalização do porte de drogas ou as regras para o aborto legal. No caso do marco temporal, declarado inconstitucional pelo STF, o Senado aprovou projeto contrariando a tese no próprio dia da votação. Tramita também na Casa uma proposta descabida impondo mandatos a ministros do Supremo.

Todas essas são provocações sem sentido, que em nada contribuem para a harmonia entre os Poderes. Cada Poder tem seu papel, e a Constituição garante independência para que seja exercido na plenitude. Mas é fundamental que os atores saibam agir com comedimento, sobretudo num momento em que o país precisa recobrar a normalidade institucional. O Senado tem demonstrado conhecer seus deveres ao rever projetos da Câmara que exigem maior reflexão e mais debate entre os parlamentares. É essa sensatez que deveria prevalecer.

Editorial de O Globo, em 05.10.23

‘Afrontá-la, nunca’

A Constituição precisa ser real, e não peça abstrata para quem vive nas periferias urbanas

Ulysses Guimarães mostra o projeto da Constituição — Foto: Gustavo Miranda

Celebramos hoje os 35 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988. Uma oportunidade para a renovação dos compromissos do Estado e da sociedade brasileira com a democracia. A Assembleia Nacional Constituinte, convocada em 1987 como parte do processo de transição, aprovou uma Carta capaz de espelhar a nação que buscava o amanhecer da liberdade de um Brasil desenhado com todas as cores da aquarela.

Mesmo os segmentos políticos que apontaram insuficiências na Constituinte travaram embates fortes e fizeram críticas políticas a seus próprios limites, como no tema relacionado às Forças Armadas e segurança pública, sem jamais comprometer seu processo. Ainda é ela a melhor referência de abertura e transparência do Congresso e dos demais Poderes para com a nação. Resgatá-la e valorizá-la é reforçar que o caminho da unidade entre os democratas é irrenunciável.

Ainda assim, nossa Constituição, uma das mais avançadas do mundo, que tem como premissa a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito, já foi objeto de 131 emendas que demonstram nítida intenção reformadora dos constituintes derivados, mesmo antes da completa regulamentação e efetivação dos princípios nela consagrados.

A Carta Magna que entrou em vigor no Brasil, carregada de um sentido de responsabilidade do Estado, obteve atenção diversa à sua observância pelos governos, no período destes 35 anos, como ajustes fiscais que aprofundaram a desigualdade econômica e social. Registrar isso é destacar que a Constituição pode ser interpretada, mas não moldada pela autoridade de cada momento, por serem os governantes eleitos que juram respeitá-la, não o contrário.

A democracia deve cumprir a promessa de superação da desigualdade, da segregação, da dependência e do racismo estrutural que definem historicamente o Brasil. A Constituição precisa ser real, e não peça abstrata para quem vive nas periferias urbanas, para as mulheres em busca da equidade e respeito, para jovens negros vítimas de violência, para assegurar a existência dos povos indígenas, a cidadania aos LGBTQIA+ e a todos aqueles e aquelas que tantas vezes são tratados como cidadãos sem direitos.

É hora de construir uma cultura política democrática, em que exercer a cidadania vá além do voto. Estar informado, participar diretamente de decisões de interesse público, avaliar políticas públicas, acompanhar demandas, ser parte de comunidades e organizações, ser agente de ideias.

Num contexto de avanço de autoritarismo no mundo e de atentados à democracia, tais como os ocorridos no 8 de Janeiro, é preciso retomar o sentido originário da nossa Constituição, no mesmo espírito com que Ulysses Guimarães fez seu discurso na sessão de promulgação:

— Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.

Maria do Rosário, a autora deste artigo, é Deputada Federal (PT-RS). Publicado originalmente n'O Globo, em 05.10.23

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

O necessário constitucionalismo das FA

Cabe às Forças Armadas a consciência de que defender o Brasil não é ser facção política ou sinecura do Estado

A Nova República, resgatada nas campanhas das Diretas e pela Constituinte, deu na Constituição de 1988 e em seu artigo 142. Interpretado à esguelha, pôs as Forças Armadas (FA) como Poder Moderador, apto a arbitrar divergências entre os órgãos do poder, e susteve teorias golpistas, inspiradoras do 8 de Janeiro – em conflito com sua literalidade e afronta ao sistema constitucional de 1988.

As Forças Armadas, contudo, vivem momento alentador e buscam repetir o soldado constitucional – Caxias e Osório gloriosos –, para que elas não se desviem para o golpismo, outro lado de sua tradição.

A cultura brasileira carece de libertar-se do trauma dos golpes, em superação que passa pela depuração de conflitos existenciais. Isso para a equilibrada convivência democrática e a solução de nossas incertezas propendentes a um totalitarismo em que o apelo à força é a regra de solução para nossos entraves institucionais.

Pondere-se o Exército originar-se no militarismo português, com D. João VI, em 1808. E já em abril de 1821 promovendo golpe de Estado e obrigando o rei a jurar a Constituição espanhola, enquanto Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte de 1822 por golpe militar.

Cessadas as guerras da Independência em 1827, com a Batalha de Ituzaingó ou do Rosário, já em 1831 o Exército depõe Pedro I, que recebe do Major Frias a ordem do Brigadeiro Francisco Lima e Silva para apear-se do poder. Abdicou o trono a contragosto.

A desordem sucessiva à abdicação é contida por Feijó, que, para tanto, cria a Guarda Nacional. Força cívica militarizada, para confrontar a indisciplina militar que grassava no Brasil, desestruturando o Exército.

A História certificou que o golpe contra a monarquia fora movimento militar, e desde então e até a Proclamação da República o Exército é a força condestável do Império, com Osório e Caxias, políticos. Nunca moderadora, porque não pode moderar quem deva conflitar.

Quando Floriano Peixoto, em 1889, disse ao Conde D’Eu que não contivesse revoltosos pela artilharia, como fizera na Guerra do Paraguai, acrescentou que seus canhões não atirariam contra soldados brasileiros. O deputado Aristides Lobo, da última legislatura do Império, observou que o povo assistiu a esse golpe militar surpreso e bestificado, porque pensara fosse tudo aquilo uma parada militar, concluída no Campo de Santana, onde tropas do Exército professavam seus pronunciamentos políticos. A República foi, pois, um golpe militar.

Deodoro da Fonseca, monarquista, como seus familiares militares, estava, na República, como os Lima e Silva na Independência, a sustentá-la. Curiosamente, como o Major Frias, um militar, dera a carta de demissão a Pedro I, na abdicação, foi o Major Sólon, outro militar, quem deu dispensa a Pedro II, na República. Ambos os imperadores foram depostos pelo Exército, em golpes militares.

Após os republicanos civis fecharem com Floriano, segurando seus adversários na divisa de São Paulo com o Paraná, em 1894, os militares entregaram a Presidência a Prudente de Morais. O Exército parecia ter abandonado pronunciamentos políticos e concentrou-se em Canudos e no Contestado, contra jagunços, e a República foi civil.

Salvo a campanha civilista em que Rui Babosa foi derrotado pelo militarismo de Hermes da Fonseca, dos Fonseca de Deodoro, o Exército sufocou revoltas dos tenentes, em 1922, e reprimiu a Revolução de 1924, por eles desencadeada em São Paulo.

A partir daí, a ordem se rompe no Exército, que vai por seus dissidentes ser a alavanca propulsora da Revolução de 1930, destrutiva da ordem constitucional, colocando Getúlio Vargas no poder, por um golpe militar, e depondo Washington Luís.

Sucede 1934 e segue 1937, com o anticomunismo a inspirar as Forças Armadas, sustentáculo do Estado Novo, depois da imprudência de Prestes, que em 1935 ferira o Exército, em sua expressão corporativa de grupo profissional e a ver que a chamada Intentona Comunista de 1935 foi, mesmo, um golpe militar dentro do Exército.

Golpe, em 1945, contra Vargas, para depô-lo. Vargas voltou ao governo sob a égide da Constituição de 1946, é deposto pela Vila Militar e suicida-se, no Rio de Janeiro. O General Lott dá golpe, em 1955, para assegurar a posse de Juscelino Kubitschek. Após a renúncia de Jânio Quadros, o Exército, liderando forças de mar e ar, em 1964, altera a ordem constitucional, por golpe de Estado – sendo revolução ou golpe, na hipótese, mera questão semântica. O mais absurdo golpe deu-o a Junta Militar de 1969, outorgando uma Carta, a da emenda dita constitucional n.º 1. Nunca poderia ter acontecido.

É preciso que a sociedade brasileira fuja da patologia de correr às portas dos quartéis cada vez que estiver contrariada com os rumos do Brasil. Igualmente, às Forças Armadas cabe a consciência de que defender o Brasil não é ser facção política ou sinecura do Estado. Cabe-lhes ceder à ordem constituída, exatamente, pela Constituição. Isso pode ser passagem para a civilização.

Luiz Antonio Sampaio Gouveia, o autor deste artigo, é advogado. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.10.23

É hora de desacelerar

Cidades europeias têm seguido recomendação da OMS de limitar a 30 km/h a velocidade em vias com maior interação entre carros, pedestres e ciclistas

O atropelamento do ator Kayky Brito, no Rio de Janeiro, comoveu o Brasil. Sensibilizado, o prefeito Eduardo Paes anunciou que vai solicitar a redução do limite de velocidade na orla e em outros pontos da cidade. O anúncio deixou muitos indignados. Mas Paes está certo. Desacelerar as cidades é uma das formas mais efetivas de salvar vidas no trânsito e tem pouco impacto nos tempos de viagem.

A velocidade é um dos principais fatores de risco no trânsito: contribui tanto para a chance de um sinistro ocorrer quanto para sua gravidade. Uma pessoa atropelada por um carro a 30 km/h tem 90% de chance de sobreviver; a 60 km/h, menos de 5%. Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o limite de 30 km/h em vias com maior interação entre carros, pedestres e ciclistas.

Muitas cidades têm seguido à risca a recomendação. Nos últimos anos, o limite de 30 km/h passou a vigorar em Bruxelas inteira – à exceção de algumas arteriais –, em grande parte de Paris, em vias importantes de Berlim, e por aí Europa afora. Além do aumento da segurança, as cidades percebem melhora significativa na qualidade do ar.

A medida pode soar escandalosa para alguns e suscitar críticas de “aqui não é a Europa”. Mas as leis da Física não conhecem nacionalidade: as cidades brasileiras podem colher os benefícios de um trânsito menos acelerado.

Estima-se que ajustes pequenos, de 60 km/h para 50 km/h, reduzam em 1/3 os riscos de sinistros fatais. Quando São Paulo reduziu para 50 km/h a velocidade nas Marginais, em 2014 a média de sinistros caiu à metade e os casos com fatalidades caíram 35%. A redução de atropelamentos foi de 53%, e de fatalidades de pedestres, 48%.

Mitos da redução. Apesar dos benefícios evidentes, quando se fala em reduzir velocidades, o que se vê são reações instintivas a partir de crenças infundadas ou de uma ideia ilusória de infalibilidade. “Sou um ótimo motorista e a velocidade não afeta isso!” As leis da Física também não ligam para sua perícia na direção. A velocidades mais altas, qualquer motorista vai percorrer uma distância maior até reagir e, finalmente, parar o carro. A 50 km/h, são necessários 42 metros para frear completamente o carro. A 70 km/h, 62 metros.

Há, também, a pressa inerente aos nossos tempos: “Vou perder mais tempo ainda no trânsito!” Acredite, o impacto é irrisório. Campinas fez um teste e constatou que a redução de 60 km/h para 50 km/h numa avenida importante gerou um aumento médio nos tempos de viagem de míseros 12 segundos a cada quilômetro percorrido. A velocidades mais baixas, o trânsito flui melhor, com menos interrupções.

A abordagem do sistema seguro, melhor prática reconhecida para promoção da segurança viária, considera que humanos cometem erros, imprudências, atos de desatenção. E que humanos são frágeis e vulneráveis a impactos. A responsabilidade por evitar que essa combinação de características inatas resulte em mortes é de todos, incluindo o poder público. Ao projetar, construir e fiscalizar as vias, governos têm nas mãos a possibilidade de salvar milhares de vidas e estabelecer um novo normal – afinal, não precisamos normalizar as quase 34 mil vidas perdidas no trânsito brasileiro só em 2021.

Todos são responsáveis. A sociedade, os órgãos de trânsito e as campanhas de conscientização tendem a responsabilizar principalmente os pedestres e condutores. “Atravesse na faixa”, “respeite o sinal vermelho”, “não corra”. Quem trabalha com segurança viária deve saber que educação e conscientização são importantes, mas não resolvem a violência no trânsito em lugar nenhum – e não trarão redução significativa no vergonhoso índice de vidas perdidas no trânsito brasileiro.

O que tem um potencial tremendo, mas se vê pouco, são governos se comprometendo com fazer o que está ao seu alcance para evitar que falta de educação, de consciência ou de atenção resulte em sinistros e em vidas abreviadas ou comprometidas. A velocidade é o principal. É possível tornar o trânsito à prova de imprudências e à prova de mortes? Muitos especialistas, entre os quais me incluo, acreditam que sim.

Para a efetiva redução da velocidade praticada nas vias, pode ser necessário mais do que placas indicando “30 km/h”. A via comunica ao condutor. Tente perceber na próxima vez que dirigir: larguras amplas, pavimentos planos e caminhos retos incentivam velocidades maiores, enquanto em vias com curvas acentuadas costumamos desacelerar. O estreitamento do espaço para trafegar, lombadas ou pavimentos que provocam pequenas trepidações são algumas das medidas de que gestores podem lançar mão para acalmar o tráfego, e já são comuns em áreas escolares de cidades brasileiras.

A segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito da OMS tem a ambição de reduzir à metade as mortes no trânsito até 2030. Como se caminha para essa utopia no horizonte? Desacelerando as cidades e dando passagem às melhores práticas para salvar vidas no trânsito. Habituados a altas velocidades, gestores, tomadores de decisão e população precisam escolher entre a pressa e a vida.

Paula Santos, a autora deste artigo, é gerente de mobilidade urbana do WRI Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.10.23

Responsabilidade com a segurança pública

O tema é prioridade nacional, mas governo Lula o trata como se fosse mera questão política. Criação de uma pasta específica significaria insistir em olhar equivocado sobre o problema

A segurança pública é uma área especialmente sensível para a população. Ao mesmo tempo, sempre foi desprezada pelo PT, que, com sua visão enviesada e ideológica do problema, acha que a prevenção e o combate à criminalidade são sinônimos de truculência a serviço das elites nacionais, e não um assunto essencial para a vida de todos. Segundo a lógica petista, bastaria o Estado cuidar da educação e da saúde que a violência se resolveria num passe de mágica.

Diante desse histórico, é natural que haja especial pressão política para que o governo Lula cuide da segurança pública. Nas últimas semanas, o tema ganhou destaque em razão de situações especialmente graves na Bahia – com altíssimas taxas de letalidade policial – e no Rio de Janeiro – com extensas áreas dominadas por facções. Mas, verdade seja dita, a questão da segurança pública não é uma crise em alguns Estados. Ela afeta todo o País. Recente pesquisa do Instituto Atlas mostrou a segurança como a área com pior avaliação no governo Lula.

Nesse cenário de insatisfação por parte da população – e pressionado politicamente para apresentar algum resultado –, o ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou o programa de Enfrentamento às Organizações Criminosas, com a previsão de investimento de R$ 900 milhões ao longo dos próximos três anos.

Ainda que haja pontos positivos – como o incentivo à integração das polícias e às atividades de inteligência no combate aos grupos criminosos –, o programa é bastante genérico e não enfrenta as causas das crises. Pior: expressa uma visão de fundo equivocada, como se segurança pública fosse apenas uma questão de mais polícia (e como se a própria polícia não fosse, muitas vezes, parte do problema).

O País está cansado de respostas populistas na área de segurança pública, respostas essas que não enfrentam e ainda agravam o problema. Basta ver a questão do encarceramento massivo de jovens por tráfico de drogas, em processos com baixíssima qualidade investigativa. Prende-se muito, mas prende-se mal. O efeito é conhecido: o Estado oferece continuamente novos contingentes de mão de obra às organizações criminosas nos presídios.

Outra resposta populista, criticada por este jornal, foi a intervenção federal na área de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, durante o governo de Michel Temer (ver o editorial Uma intervenção injustificável, de 17/2/2018). Passados cinco anos e meio da medida, vê-se com nitidez seu completo fracasso, bancado com os recursos de toda a Federação.

Logo após a intervenção federal no Rio de Janeiro, o governo Temer criou, por meio de uma medida provisória, o Ministério Extraordinário da Segurança Pública, desmembrando-o da pasta da Justiça. Era a mesma compreensão populista acerca do problema, como se o que precisasse ser resolvido fosse uma questão política. Sob essa lógica, o decisivo era o governo aparentar preocupação com o tema.

Agora, uma vez mais surgem vozes pedindo a criação de um Ministério da Segurança Pública, como se a pasta pudesse representar, por si só, melhoria efetiva para a população. A segurança pública demanda políticas públicas responsáveis, implementadas e acompanhadas de forma coordenada com Estados e municípios ao longo do tempo. Basta de jogadas de marketing que invariavelmente insistem em ações espetaculosas e nem sequer tocam nas causas dos problemas.

Mais do que simples punição, segurança pública é prevenção, o que se relaciona diretamente com o cumprimento da lei e com o respeito ao Estado Democrático de Direito. O funcionamento das polícias, por exemplo, nunca é meramente operacional. Ele tem sempre forte dimensão institucional. Por isso, é muito recomendável que a segurança pública esteja sob a alçada do Ministério da Justiça.

As gravíssimas situações de crise atuais na segurança pública devem servir de alerta. Chega de populismo. É tempo de mudar a forma como o poder público enfrenta e previne a criminalidade. O tema demanda planejamento e responsabilidade.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de . Paulo, em 04.10.23

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Lula faz mandato intuitivo e cheio de vontades e não conseguiu pacificar o País

Lula vai para uma pausa forçada por razões de saúde, e desejamos que se recupere logo e bem da operação de artrose no quadril. Como vem fazendo cada vez mais, Janja zelosamente guardará o espaço à volta do presidente. Esse espaço não é meramente físico, e tem incluído também a quem o presidente ouve.

Janja cada vez mais tem guardado espaço no entorno do presidente e controlado quem pode falar com Lula Foto: Ricardo Stuckert/PR/Divulgação

Lula deixou para depois da intervenção cirúrgica algumas definições importantes e de grande alcance político, como a nomeação de ministro para o STF, um novo chefe do Ministério Público, os termos finais de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, os parâmetros da transição energética (exploração de petróleo na Amazonia), entre outros.

A demora em tomar decisões abrangentes tem sido uma característica importante de seu terceiro mandato. Uma delas encareceu substancialmente o “preço” político de governar. Trata-se do longuíssimo acerto com o centrão para distribuição dos pedaços da máquina pública e do orçamento, no qual Lula provavelmente jamais conseguirá saciar o apetite dessas forças políticas.

Outra característica relevante do atual mandato é a figura de um Lula mais “intuitivo” e cheio de “vontades”. A de gastar e expandir as despesas públicas, por exemplo, foi transformada em eixo central da política econômica. Assim como desfazer matérias importantes acertadas no Congresso – não importa recente advertência dura e explícita do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para os perigos dessa “vontade”.

A “credibilidade” e a “estabilidade” que Lula promete aos agentes econômicos têm sido recebidas por eles com a expectativa de juros futuros mais altos, e com a resignada certeza de que terão mais, e não menos, impostos pela frente. Além da teimosa postura de confrontar o governo com a questão fiscal, acentuada pela dúvida se as autoridades estariam outra vez seduzidas pela criatividade contábil no trato das contas.

A “vontade” de Lula em relação ao exterior está sendo realizada. Na ausência de uma definição de objetivos estratégicos (um problema brasileiro de longo prazo), a política externa acaba se transformando, nas palavras do professor José Guillon de Albuquerque, em “exercícios opinativos de livre escolha” por parte do presidente. Portanto, a ação externa é a agenda pessoal do chefe do Executivo.

No geral, se era mesmo uma “vontade” de Lula pacificar o País, até aqui ela não se cumpriu. Ao contrário: a divisão que saiu das urnas aprofundou-se, e não diminuiu. Tornou-se mais calcificada, geograficamente mais delimitada, socialmente mais perigosa (com contornos de raça, classe e religião) e politicamente mais intratável.

Talvez seja a vontade de Lula ver nessa divisão uma vantagem política nas próximas eleições

William Waack, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.09.23

Viva por uma causa e não caia no consumismo implacável: a mensagem de Noam Chomsky e Pepe Mujica aos jovens

Dois grandes líderes da esquerda sentam-se para refletir e pedir aos jovens que lutem pelo futuro da humanidade. O encontro está registrado em livro do documentarista Saúl Alvídrez

Noam Chomsky Pepe Mujica, a bordo do carro do ex-presidente, em imagem promocional do documentário 'Chomsky & Mújica'.

Saul Alvídrez. Don Pepe, com toda essa experiência que você carrega e conhecendo o grande amor que você tem pela humanidade, o que diria a todos os jovens do planeta?

Pepe Mujica.Não acredite, não tenho tanto amor pela humanidade [sorri]; Tenho amor pela vida, que é muito mais que a humanidade. A humanidade é apenas parte do fluxo da vida. Nisso sou quase animista. Mas pelo amor à vida, com Nietzsche, penso que o homem pode ter uma causa para viver e que isso, sendo capaz de dar sentido à vida, o distingue um pouco dos demais animais. Estar vivo é um milagre, é o maior milagre para cada um de nós. Mas você pode viver simplesmente porque nasceu, como um vegetal, ou depois de nascer pode dar sentido à vida. Este é o luxo que a consciência nos dá e que nos permite criar a civilização: viver com uma causa. (...) Viver é ser livre, e ser livre é tirar a venda. (...) Não se deixem, rapazes, não deixem que a sua liberdade seja roubada! Eles não podem dar liberdade ao mercado! A liberdade deve servir a vida, e a vida não a liberdade. Porque você tem que ser dono da sua própria vida, e não permitir que ela seja gerenciada pela tela da televisão ou pelo celular. É por isso que a imagem da venda me parece bonita. O problema é que há jovens já idosos, totalmente absorvidos pela dinâmica consumista que a sociedade impôs e vivem vegetativamente; Eles não questionam, apenas passam. Mas existe, fundamentalmente na base das universidades, entre os mais jovens que têm a oportunidade de começar a educar as suas mentes, uma margem de inquietação intelectual, questionadora, crítica, que é uma alavanca promissora e positiva. É aí que vejo as reservas mais importantes de uma esperança humana para o futuro. A minha geração sonhava com um proletariado independente, homens fortes de macacão e boné em fábricas gigantescas... Isso aconteceu. O que está por vir é o que está entrando no mundo das universidades de hoje. Mas a batalha é que a ideia de trocar o carro por um mais novo ou a saudade de uma viagem para Miami não acabe absorvendo-os, e que possam ter senso de responsabilidade com a sociedade a que pertencem. Mas temos também de compreender que existe uma outra humanidade, aquela que não é nem jovem nem velha, que é a que mais dói, a humanidade que sobrou, aquela que não tem lugar no mundo, em lado nenhum, e que aparentemente nasceu para ser vítimas. . São essas multidões da África, essas multidões da América Latina que querem emigrar, aqueles que pegam o trem na América Central, todos esses, os desesperados do mundo que crescem. Bem, Não são jovens nem velhos, são vítimas. A batalha é por isso, por incorporá-los à existência humana. Esta não é uma tarefa fácil, esta civilização deO marketing pega você pelo nariz para transformá-lo em um consumista implacável. É preciso deixar de lado o consumismo a imagem do homem feliz, que, segundo a Bíblia, não tinha camisa - talvez morasse num país tropical e não pedisse tanto - mas vamos entender que a felicidade não está na riqueza. Ou você alcança a felicidade com pouco ou não a alcança com nada. E acho que há duas maneiras de morrer: renunciando ou lutando. Os jovens são os que vão nos suceder, e a sua contribuição fundamental neste mundo e neste momento da história é salvar a natureza e forçar os governos a corrigir este desastre; Caso contrário, apenas contribuímos com a nossa resignação para pavimentar o caminho do holocausto da civilização humana. Se a humanidade não começar a acalmar a guerra e a lutar para reverter as alterações climáticas, estaremos perdidos. Porque os governos não vão fazer isso, a menos que os jovens cubram as ruas e os forcem.

José 'Pepe' Mujica e os 50 anos do golpe no Chile: “É preciso lembrar, mas também é preciso olhar para frente”

Noam Chomsky. Devíamos ter vergonha de termos colocado este fardo sobre os jovens. Quando Greta Thunberg se levanta em Davos, nas reuniões dos ricos e poderosos, e simplesmente diz “fomos traídos”, ela tem razão. Nossas gerações traíram você; Impusemos aos jovens a tarefa de resgatar a civilização do nosso fracasso.Nós o destruímos e é seu trabalho tentar resgatar algo desse caos que deixamos para eles. É feio, mas é verdade. E os jovens estão reagindo; Vimos isso de forma dramática em Glasgow, na reunião internacional para combater as alterações climáticas. Ali aconteceram simultaneamente dois eventos paralelos muito diferentes: enquanto dentro dos espaços glamorosos e cheios de gente elegante se falava sobre como evitar fazer alguma coisa, lá fora, nas ruas, dezenas de milhares de jovens protestavam exigindo que fizessem o que deve ser feito para nos salvar do desastre. A questão é: qual destas duas forças prevalecerá? Deveríamos estar fazendo o que eles dizem. Não podemos abandonar a luta; Devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para ajudar as gerações mais jovens a superar os crimes das nossas gerações.

Pepe Mujica. Definitivamente. A pior luta é aquela que não acontece. A vida me ensinou que nenhum cordeiro se salva vagando sozinho e que, como tal, a defesa da vida nos obriga a unir e encorajar aqueles jovens que se movimentam tentando salvar a vida no planeta. No fundo, essa é a verdadeira causa.

Noam Chomsky. Temos que parar com esta loucura e ouvir os povos indígenas do mundo sobre como viver em harmonia com a natureza , e temos que ouvir os jovens que exigem que escapemos desta corrida suicida.

Pepe Mujica.Para que o mundo continue a existir, as gerações jovens terão de forçar os governos a descansar a barba e a mudar as suas atitudes. Eu sei que é muito difícil, mas nada mudará se as pessoas não lutarem. A história da humanidade nos ensina que tudo o que pôde ser alcançado em termos de direitos e conquistas em favor da vida humana foi porque existiram pessoas que tiveram a capacidade de dedicar boa parte de sua existência à luta por essas coisas. Nada caiu como presente dos deuses; você tem que ser claro sobre isso. É muito difícil mudar de rumo, mas se não forçarmos os governos a fazê-lo, grande parte da nossa humanidade futura estará condenada e não poderemos comportar-nos como criminosos no futuro; É por isso que temos que falar as coisas de forma simples e clara. Não há outra maneira senão sair às ruas e lutar por essas coisas, e o mundo universitário e o mundo jovem são os que têm a palavra neste momento. Não esperemos do mundo fossilizado que governa a Europa, o mundo ocidental e o mundo oriental;Em todo caso, esperemos um raio de esperança das novas gerações., particularmente do mundo universitário, do mundo estudantil e dos jovens trabalhadores da nossa terra. Com eles e para eles! Não esperemos nada das Nações Unidas, das organizações internacionais; Devemos agir para que o povo force os seus próprios governos e encoraje os povos militantes e activistas dos países centrais, que têm a responsabilidade histórica pelo que está a acontecer. Isso se chama Europa, isso se chama EUA, Rússia, China, isso se chama mundo desenvolvido. Olha, se você caminhar por uma montanha, dormir à noite e acordar cedo, vai se surpreender que de manhã cedo, à meia-luz, quase todos os pássaros cantam e falam... E você tem a impressão de que eles estão gratos porque a noite passou, a noite chegou, o dia e eles estão vivos. Não há sentido na tristeza eterna, na submissão eterna; Todo dia amanhece e você tem que começar de novo. O valor da vida não está no sucesso; Não há triunfo, porque no final a morte sempre nos espera. O verdadeiro triunfo é se levantar toda vez que você cai e recomeçar, no sentido mais prolífico que você possa imaginar. Recomeçar é se apaixonar de novo quando você é jovem e fracassou, é se recuperar de uma doença e começar de novo, é perder um emprego e conseguir outro, é ter um amigo te traindo e continuar fazendo amigos, é ter a capacidade de derrotar os outros. A desesperança e não a desesperança derrota você. Até sempre. Recomeçar é se apaixonar de novo quando você é jovem e fracassou, é se recuperar de uma doença e começar de novo, é perder um emprego e conseguir outro, é ter um amigo te traindo e continuar fazendo amigos, é ter a capacidade de derrotar os outros. A desesperança e não a desesperança derrota você. Até sempre. Recomeçar é se apaixonar de novo quando você é jovem e fracassou, é se recuperar de uma doença e começar de novo, é perder um emprego e conseguir outro, é ter um amigo te traindo e continuar fazendo amigos, é ter a capacidade de derrotar os outros. A desesperança e não a desesperança derrota você. Até sempre.

Saúl Alvídrez Ruiz (Chihuahua, México, 1988), é ativista e documentarista. Este texto é um trecho do livro Chomsky e Mujica. Sobrevivendo ao Século 21 , de Debate, que é publicado em 26 de setembro no El País.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

A pindaíba dos municípios

Pressionadas por gastos obrigatórios com saúde e educação, prefeituras clamam por mais repasses federais. Mas engordam suas folhas de pagamento em período pré-eleitoral

Prefeitos de mais de 4.000 cidades preparam uma marcha a Brasília em outubro para pressionar o governo Lula da Silva por maiores repasses federais. A choradeira nada tem de novidade, mas tem relevância. Expõe paradoxos ainda não superados ao longo dos 35 anos de vigência da Constituição Cidadã. A correta transferência de atribuições sociais aos municípios pela Carta de 1988 jamais encontrou respaldo em uma equação federalista que garantisse às prefeituras as receitas necessárias para a execução dessas e outras políticas essenciais aos cidadãos. Quem sofre com essa omissão é o munícipe.

Reportagem do Estadão, integrante da série Desigualdade – O Brasil tem jeito, expôs a dificuldade enfrentada pela maioria dos municípios para quitar sua própria folha de pagamento – não raro, sobrecarregada e vitaminada em períodos eleitorais. De janeiro a junho deste ano, o gasto com os 7 milhões de servidores públicos das 5.568 cidades do País totalizou R$ 208,5 bilhões. Os repasses federais, resultantes da partilha do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), cobriram 74,8% dessa conta.

Não há dúvida de que uma elevação casual dos repasses da União aos municípios apenas enxugaria gelo. Cobriria o déficit na folha de pagamento, que somente no primeiro trimestre deste ano cresceu mais de 16%, sem grandes chances de suprir a carência de investimentos urbanos nem de melhoria no atendimento básico de saúde e educação. Obviamente, em razão de interesses eleitorais, não se vislumbram cortes de servidores municipais.

A questão de fundo certamente está na equação dos repasses federais e do acesso à parcela devida do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) estadual, sobretudo pelo fato de que as obrigações constitucionais de prover os serviços de saúde e educação recaíram sobre os municípios desde 1988. Dados do Observatório de Informações Municipais (OIM) mostram que, de 1972 a 2022, os dispêndios orçamentários das prefeituras com saúde saltaram de 5,67% para 25,49%. No caso da educação, passaram de 14,82% para 26,76%. Os inevitáveis cortes recaíram, sobretudo, nos serviços urbanos, com queda de 27,41% para 9,89%.

A compressão do Orçamento pelos gastos com saúde e educação, entretanto, não é o único vetor da pindaíba das prefeituras desfalcadas de recursos até mesmo para essas áreas, além dos cruciais investimentos em saneamento básico e na infraestrutura urbana e rural. Igualmente grave é a incapacidade de os municípios construírem, ao longo desses 35 anos, estruturas arrecadadoras eficientes dos tributos que lhes competem. Nos mais pobres, é preciso considerar que a cobrança de IPTU é inviável; a do ISS, nula; e a do ITBI, surreal. Fato é que a maioria dos municípios que abrigavam mais de 50 mil habitantes de 2015 a 2019 não conseguiu coletar mais do que 10% do seu orçamento, segundo o OIM.

A situação de Araguainha (MT), pinçada com destaque pela reportagem, ilustra esse quadro. A prefeitura da cidade, onde vivem 1.010 brasileiros, emprega todos os trabalhadores formais da localidade, cujos salários consomem 64% dos repasses federais. Em contrapartida, cerca de 94,5% da população não tem acesso a esgoto tratado, a única escola está em ruínas, não há creche e falta asfalto nas ruas. É admirável haver candidatos à sua prefeitura.

Em parte, a reforma tributária poderá contribuir para elevar a receita da maioria dos municípios, ao garantir a arrecadação do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) no destino do consumo, conforme estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mas há que considerar seriamente a revisão das leis que regulamentaram a acertada decisão do constituinte de 1988 de garantir maior protagonismo aos municípios no federalismo brasileiro. A Carta, tal qual promulgada, é irretocável nesse quesito. Mas, a bem do cidadão, falta ser aplicada.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.09.23

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Bolsonaro e os generais calados

O golpe do capitão foi abafado pelo silêncio

Bolsonaristas invadem Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro — Foto: TON MOLINA / AFP

Bolsonaro, com meia dúzia de generais palacianos e algumas dúzias de oficiais da reserva, sonhou com um golpe. Tinha ingredientes de outros golpes, mas faltou-lhe o apoio de um tipo de general inescrutável, por calado.

É natural que se dê atenção aos generais que falam. Noves fora o fato de eles quase sempre estarem de pijama, ou no comando de mesas, é impossível ouvir quem não fala.

CPI dos Atos Golpistas: Heleno diz não ter 'condições' de falar sobre atos golpistas e chama de 'fantasia' delação de Cid

Como o golpe de 1964, o de Bolsonaro mobilizou alguns milhares de pessoas, mas faltou musculatura a essas manifestações. Quando ela aconteceu, no 8 de Janeiro, descambou para o vandalismo.

Como o de 1968, o golpe foi tramado no Planalto, com a simpatia do ministro da Justiça. A quartelada de Bolsonaro, desde o início, desafiava uma legítima manifestação eleitoral. Esse golpismo teve ajuda de oficiais que sopravam as brasas da contestação das urnas eletrônicas.

O golpe tinha os ingredientes, mas faltava-lhe um eixo. Faltou-lhe sobretudo a unidade rebelada. Em 1964, bem ou mal, o general Mourão Filho comandava uma Região Militar. Mourão desafiou um governo que havia estimulado a indisciplina militar. Bolsonaro desafiava um resultado eleitoral.

Golpes vitoriosos ganham adesões. Golpes fracassados caem no ridículo.

Em 1984, quando a candidatura de Tancredo Neves atropelou o governo do general João Batista Figueiredo e a candidatura de Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, havia bolsões golpistas. Foram travados no Alto-Comando do Exército. Quem se lembra dos generais Ademar Costa Machado e Jorge de Sá Pinho? Calados, ajudaram a neutralizar os golpistas e, calados, passaram para a reserva.

Uma vinheta daquele tempo: no segundo semestre de 1984, com Tancredo virtualmente eleito, no Centro de Informações do Exército concebeu-se uma operação de propaganda mentirosa. Imprimiram-se cartazes com fundo vermelho, uma imagem de Tancredo, uma foice e martelo e a legenda “Chegaremos Lá”. Mobilizaram-se soldados do Comando Militar do Planalto (CMP), comandado pelo general Newton Cruz, um ícone da época.

Os soldados colavam os cartazes, chegou a polícia e os levou para uma delegacia. Apareceu um coronel do CMP e, com uma carteirada, soltou-os. O caso explodiu na imprensa, denunciando a bruxaria.

Com a palavra, o general Newton Cruz:

— Na reunião do Alto-Comando, pouco depois, o general comandante do Rio interpelou o ministro Walter Pires sobre o caso dos bruxos, dizendo que a imprensa estava insistindo muito no assunto. Então o Pires disse: “Gente do meu gabinete, não foi”. Eu estava na reunião e senti um frio na espinha. O chefe do CIE estava atrás dele. Se não tinham sido eles, então tinha sido eu.

Sobrou para Newton Cruz. Na reunião seguinte do Alto-Comando, ele foi preterido na promoção a general de Exército e passou para a reserva.

Bolsonaro foi eleito e governou esticando a corda das relações da sociedade com as Forças Armadas. Desperdiçou 30 anos de trabalho de chefes militares que recompuseram a relação das Forças. Antes dele, o Exército foi comandado pelos generais Enzo Peri e Gleuber Vieira. Nunca disseram uma palavra. Gleuber, por exemplo, viu de tudo e falou nada.

Durante toda a segunda metade do século passado, só João Goulart e Bolsonaro esticaram essa corda. Um foi deposto, o outro viu seu golpe virar baderna. Coisa dos generais calados.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Globo, em 27.09.23

Jornalista e escritor

A ministra Anielle, sua assessora e a ‘mordomie’ no voo da FAB

Dupla exibiu postura de quem teria resolvido ‘curtir a vida’ com dinheiro público; MPF e TCU poderiam ensinar-lhes que a probidade administrativa é um dever de ‘todes’

Tricolor Afro do São Paulo; assessora de Anielle escreveu em rede social que time tinha 'Torcida branca que não canta' Foto: Reprodução

Aos 86 anos e com sua saúde debilitada, o papa Francisco deixou o Vaticano no domingo e se dirigiu ao Palazzo Madama, sede do Senado italiano, em Roma. Ali se postou em silêncio e rezou diante do caixão de um ateu e ex-comunista, que expressara a vontade de ter um enterro laico. Era Giorgio Napolitano, o único político a ser eleito duas vezes presidente da Itália.

Francisco é o papa da encíclica Fratelli Tutti (Todos irmãos). Ele afirmou: “Às vezes aqueles que dizem não crer podem viver a vontade de Deus melhor do que os crentes”. A gravidade do momento parecia reconciliar as duas grandes forças políticas que conduziram a Itália no pós-guerra: a Democracia Cristã e o Partido Comunista. Não é preciso saber que nem a racionalidade, nem a sociedade ou as normas e valores podem ter uma existência fora da linguagem para se compreender o alcance do gesto. A importância da autoridade também está no exemplo.

A República se alimenta deles e das leis. Seus funcionários deveriam desconhecer a vulgaridade e o deboche, facilmente identificáveis por aqueles que comparecem às urnas de dois em dois anos. Quando nem a ameaça de demissão serve de constrangimento para controlar a conduta do agente público, é porque a degradação se tornou normal. Para saber disso, não é necessário conhecer As Regras do Método Sociológico.

O mesmo vale para o comportamento de Marcelle Decothé, a chefe da assessoria especial da ministra Anielle Franco (Igualdade Racial). Torcedora do Flamengo, pegou uma carona em um avião da FAB para ir a um evento do ministério no Morumbi, no dia em que seu time e o São Paulo disputavam a Copa do Brasil. Ali publicou em uma rede social a seguinte mensagem: “Torcida branca que não canta, descendente de europeu safade.” Seria só uma pilhéria tola de uma flamenguista? E, portanto, perda de tempo lembrar que, do outro lado, havia a Tricolor Afro ou o Comando Feminino, agremiações presentes na curva sul do Morumbi? Seria um mero bate-boca de torcidas? Não. Não é só disso que se trata.

O problema da assessora que recebe R$ 15 mil dos cofres públicos por mês é o exemplo. As imagens dela e da ministra no conforto do avião e, depois, a caminho do estádio em um carro da PF em meio a postagens com provocações pueris exibem uma postura de quem teria resolvido “curtir a vida” com dinheiro público. O dicionário de linguagem não binária da dupla acaba de ganhar um novo vocábulo: mordomie. O MPF e o TCU poderiam ensinar-lhes que a probidade administrativa é um dever de todes.

Em tempo: só agora se soube que Napolitano não torcia pelo Napoli, mas para a Lazio.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 27.09.23.

A elite que envergonha o País

Para assumirmos as rédeas do Brasil e escantear a elite decadente e os populistas, precisamos nos unir em torno de uma agenda de país


O comportamento da elite intelectual e cultural é patético. Sua afinidade ideológica com a esquerda e sua subserviência às verbas públicas para financiar suas atividades profissionais destroem o pensamento crítico.

A verdadeira elite não tem nada que ver com poder, dinheiro ou privilégios. Como bem definiu Ortega y Gasset, elite “é sinônimo de vida dedicada, sempre disposta a superar a si mesma, a transcender do que já é para o que se propõe como dever e exigência”. A verdadeira elite se define pela “exigência e pelas obrigações – não pelos direitos”. Se usarmos a definição de Ortega y Gasset, concluiremos que a elite brasileira envergonha o País.

O comportamento da elite econômica é motivo de opróbrio. Dependente de subsídios, favores do governo e reserva de mercado, o centrão empresarial sempre corteja o governo do dia – não importa se o presidente é um populista de esquerda ou de direita. Se atuasse como verdadeira elite, não estaria dilapidando a reforma tributária com a defesa de seus interesses mesquinhos porque sempre acha que o seu setor é “estratégico” e merece tratamento especial. Assim, dinamita a reforma e corremos o risco de perpetuar a existência do manicômio tributário, cujo contencioso representa mais de 70% do PIB, ante 0,28% dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Deve-se muito a essas atitudes da elite a perda de competitividade e de produtividade que vem condenando o País ao baixo crescimento econômico nos últimos 40 anos.

O comportamento da elite política é igualmente vergonhoso. Enquanto os principais países emergentes abriram a economia, investiram na educação pública de qualidade e aumentaram a eficiência do Estado, o Brasil seguiu o caminho inverso. Manteve o País entre as economias mais fechadas do mundo, figura nos exames de avaliação internacional entre os piores sistemas educacionais do planeta e, graças à captura do Estado pelos interesses corporativistas, continua prestando serviço público de péssima qualidade e liderando os indicadores de insegurança jurídica. Triste retrato de um país onde as reformas institucionais são lentas, tímidas e insuficientes para colocar o Brasil no caminho do crescimento econômico sustentável, da democracia plena e de um país com regras previsíveis e confiáveis.

O comportamento da elite intelectual e cultural é patético. Sua afinidade ideológica com a esquerda e sua subserviência às verbas públicas para financiar suas atividades profissionais destroem o pensamento crítico. Sua condescendência com um presidente da República que afaga ditaduras na política externa, sabota os avanços institucionais – como o Marco do Saneamento, a reforma do ensino médio e a reforma trabalhista – e diz que o seu objetivo na Presidência é vingar-se do senador Sergio Moro é abominável. Seu silêncio sepulcral em relação à rápida erosão do Estado de Direito é vergonhoso.

O Brasil vive um clima de censura comparável apenas ao dos governos autoritários. Voltamos a conviver com violações de liberdades de pensamento e de expressão, ameaça de cassação de órgãos de imprensa, ingerência do Poder Judiciário na esfera do Legislativo e revisionismo histórico. A diferença é que, desta vez, tal arbitrariedade é exercida pelo Supremo Tribunal Federal, justamente o Poder que deveria zelar pelo Estado Democrático de Direito e pela Constituição. A decisão patética do ministro Dias Toffoli tratando os escândalos de corrupção desvendados pela Lava Jato como obras de ficção de procuradores, juízes e investigadores mal-intencionados é um acinte numa nação onde a institucionalização da corrupção vem corroendo a credibilidade das instituições e a confiança nas leis e na democracia.

Qual é a solução para assumirmos as rédeas do País e escantear a elite decadente e os populistas? Precisamos nos unir em torno de uma agenda de país. Essa agenda tem de contemplar a abertura econômica, a liderança do Brasil na economia de baixo carbono, a educação pública de qualidade e a defesa do Estado democrático que serve ao cidadão – e não aos interesses das corporações. Para cada um desses objetivos, temos de estabelecer metas concretas para atingirmos até 2030.

Na abertura econômica, precisamos dar um salto da vergonhosa 127.ª posição no Índice de Liberdade Econômica para a 30.ª posição (Heritage Foundation). No meio ambiente, o Brasil tem de ser a primeira nação do mundo entre as dez maiores economias a se tornar carbono neutro. Na educação, precisamos figurar entre os 20 melhores países no exame do Pisa. No quesito do Estado eficiente, são três objetivos: combater a corrupção e estar entre os 40 países menos corruptos do mundo (Corruption Perceptions Index), acabar com a extrema pobreza e combater a epidemia do crime, colocando o Brasil entre os dez países menos violentos do G20.

A Agenda Brasil 2030 tem como objetivo unir a sociedade civil em torno do resgate do Estado de Direito, da democracia, do crescimento econômico sustentável e da igualdade de oportunidade. Como disse John Kennedy, presidente dos Estados Unidos, “não pergunte o que o seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer para o seu país”. A construção do Brasil que queremos vai depender das nossas escolhas, ações e atitudes.

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é Cientista político, autor do livro ‘10 Mandamentos – Do Brasil que Somos para o País de Queremos’, foi candidato à Presidência da República. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 27.09.23

Um deboche míope

A maioria dos brasileiros que estão hoje nos presídios não dispôs de uma defesa adequada. Isso é o que deve nos escandalizar

Não é possível que continuemos prendendo pessoas submetidas a defesas desqualificadas. Isso não é um reality show. Isso não é uma sessão de stand-up. São pessoas. São vidas. E está em jogo a efetividade de nossa democracia.

Surpreendeu-me a reação de deboche de parte do campo progressista com o equívoco de um advogado durante o segundo julgamento do 8 de Janeiro, confundindo O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, com O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry.

A esta altura, é mais do que evidente que os processos do 8 de Janeiro não têm nada de excepcionais quanto ao comportamento da Justiça. Ainda que possuam características próprias, eles são reflexo fidedigno do modo como o sistema penal funciona habitualmente. Inquéritos com investigação insuficiente, prisões preventivas mal fundamentadas, denúncias genéricas, defesas tecnicamente deficientes e sentenças desproporcionalmente pesadas não são exceções no dia a dia da Justiça.

É uma realidade conhecida há séculos – denunciada por nomes como Cesare Beccaria (1738-1794), Georg Rusche (1900-1950) e Otto Kirchheimer (1905-1965) –, mas fingimos não vê-la. Além de violar direitos, o sistema penal não cumpre suas funções declaradas. Ele é radicalmente perverso com o réu. Mesmo quando o caso – eis a triste constatação – é julgado pela mais alta Corte do País.

A batalha pelo efetivo direito de defesa não é, portanto, tema acessório. Mais do que ao deboche, o erro do advogado deve nos levar a refletir sobre a qualidade da defesa exercida habitualmente nos processos penais no Brasil.

É de justiça reconhecer o excelente trabalho da Defensoria Pública, que atua com abnegação, competência técnica e grande sentido prático, em condições muitas vezes adversas. Em suas várias esferas, a Defensoria Pública é motivo de orgulho. Sua tarefa, verdadeiramente hercúlea, é concretização cotidiana do Estado Democrático de Direito.

Mas isso não impede de constatar os muitos casos, muitíssimos casos, assistidos por advogados despreparados, em que não há uma defesa tecnicamente adequada. Se os julgamentos fossem transmitidos pela televisão, eles também seriam ocasião de deboche e ridicularização. Mas nada disso é motivo de deboche ou ridicularização. Há, diante dos nossos olhos, um abismo de cidadania. É preciso reconhecer a absoluta insuficiência da defesa de muitos réus. Não se pode fugir dos fatos: a grande maioria dos brasileiros que estão hoje nos presídios não dispôs de uma defesa adequada.

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, mas grande parte dessas pessoas teve uma defesa frágil e deficiente, tal como a dos primeiros julgamentos do 8 de Janeiro. Isso é o que deve nos escandalizar. Não ignoremos os direitos das pessoas. Não tratemos os adversários políticos – quem está em campo ideológico diferente do nosso – como cidadãos de segunda categoria, detentores de menos direitos.

Somos míopes se vemos na falha do advogado uma questão a ser ridicularizada. Estamos em 2023 e ainda não aprendemos nada com o histórico do sistema penal. Continuamos achando que ele é capaz de resolver os problemas nacionais. O fetiche da prisão continua reinando absoluto, em todas as cores ideológicas.

Precisamos de um novo marco de cidadania, de um novo patamar de respeito aos direitos, de um novo compromisso com o direito de defesa. Gostemos ou não dos réus. Partilhemos ou não de suas ideias políticas.

Não é possível que continuemos prendendo pessoas submetidas a defesas desqualificadas. Isso não é um reality show. Isso não é uma sessão de stand-up. São pessoas. São vidas. E está em jogo a efetividade de nossa democracia.

Por que prendemos tanto e continuamos com índices altíssimos de criminalidade? Por que condenamos massivamente por tráfico de drogas – sem investigação, só em função do porte e da raça –, e os problemas não diminuem? Continuaremos rindo das pessoas sem acesso a advogados minimamente qualificados? É essa a nossa resposta aos ataques antidemocráticos? Debochando da defesa tecnicamente mal feita?

É tempo de um novo olhar, de uma nova sensibilidade, de uma nova compreensão. Ou seguiremos enredados nas mesmas disputas absurdas, nos mesmos círculos viciosos, no mesmo sistema que tortura e mata – mas de que reclamamos só quando atinge nossos amigos. A Operação Escudo, a mais letal depois do massacre do Carandiru, segue sendo aplaudida e justificada.

Repetida pelos ministros do Supremo nos julgamentos do 8 de Janeiro, a retórica a respeito da gravidade dos crimes julgados é exatamente a mesma que se ouve todos os dias nos tribunais do País, para limitar o alcance da presunção de inocência. Para ridicularizar o réu. Para constranger as testemunhas de defesa. Para tornar menos escandalosa – menos visível – a aplicação de penas disfuncionais e desproporcionais.

Em vez de despertar nossa arrogância – sobre isso, confira o artigo Arrogantes príncipes principiantes, de Eugênio Bucci (Estadão, 21/9/2023) –, o erro do advogado deve ser ocasião de repensar a qualidade e o currículo dos cursos jurídicos. Há muito a ser feito.

O 8 de Janeiro foi um evento único. Mas é também matéria corrente da vida nacional. Como nos lembrou o deboche com o advogado, o respeito ao regime democrático – e aos direitos a ele inerentes – é ainda uma grande utopia.

Nicolau Da Rocha Cavalcanti, o autor deste artigo, é Advogado e Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 27.09.23

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Além de super-ricos, governo precisa taxar empresas de médicos e advogados, defende Arminio Fraga

Enquanto parte da elite brasileira recebeu mal a intenção do governo de ampliar impostos sobre os super ricos, o economista Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, considera que as medidas propostas até o momento não são "nenhum absurdo" e não vão provocar uma fuga de capitais do país.

Armínio Fraga (Crédito: Edilson Rodrigues, Ag. Senado)

Em entrevista à BBC News Brasil, Fraga diz que é uma "vergonha" que ricos paguem menos impostos que pobres no Brasil – algo que reflete uma estrutura tributária muito pesada sobre o consumo e leve sobre rendas elevadas.

O governo enviou em agosto ao Congresso propostas para taxar fundos exclusivos e investimentos fora do país – medidas que afetarão, em especial, milionários.

Fundador da Gávea Investimentos, gestora que administra bilhões de reais, ele diz que as mudanças são corretas, já que esses fundos e recursos no exterior hoje são menos taxados que outros tipos de aplicação.

"Apenas o que está se fazendo é corrigir as alíquotas hiper baixas, que é bem diferente da introdução de alíquotas mais altas, sobretudo se está em consideração uma comparação internacional", afirmou.

Para Fraga, porém, há outras medidas necessárias para corrigir a desigualdade do sistema tributário, como a revisão de regimes especiais que permitem que empresas com faturamento elevado paguem poucos impostos, recurso usado por profissionais liberais de alta renda para serem menos taxados.

Aumentar os impostos sobre esse grupo não aparece ainda na agenda do governo e enfrenta resistência no Congresso.

Em 2021, a Câmara aprovou a volta da taxação de dividendos distribuídos por empresas a seus acionistas, mas isentou empresas do Simples Nacional e do lucro presumido com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões. Depois, a proposta empacou no Senado.

"Esse aspecto (dos regimes especiais de tributação) afeta sobretudo aos profissionais liberais que têm sabido se representar bem nessa questão. Estamos falando de advogados, médicos, todos sempre muito influentes", critica.

"Acredito que em algum momento vai haver um fator, eu diria, ético, que vai constranger esse ímpeto lobista e esse assunto vai ser retificado. Seria natural que fosse num governo do PT", defende ainda.

Na entrevista, falou também sobre seus investimentos em reflorestamento com a empresa re.green. O setor aguarda o Congresso aprovar a regulamentação do mercado de crédito de carbono – para Fraga, é essencial que isso ocorra sem protecionismos.

"O que é fundamental é que esse mercado se comunique com o mercado internacional, porque hoje empresa aqui no Brasil vende seus créditos a uns US$ 20 a tonelada, e, na Europa, eles pagam US$ 100. Se não, vamos estar subsidiando empresas para poluir", ressalta.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - Pesquisas do Datafolha mostram que o otimismo da população com a economia vem caindo ao longo do ano, enquanto pesquisa recente da Quaest revela queda da aprovação ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, entre agentes do mercado financeiro. Como está a sua avaliação?

Arminio Fraga - É muito difícil avaliar pequenos ciclos. Houve uma grande mudança a partir das eleições, o Brasil estava seguindo um caminho complicado em algumas áreas, sobretudo no contexto internacional, meio ambiente, a qualidade da nossa democracia, essas áreas estavam na berlinda e o Brasil sofreu. Eu penso que a partir das eleições houve uma certa distensão, as coisas se acalmaram, a despeito do 8 de janeiro, e começaram a andar.

No lado da economia, houve uma piora logo após as eleições, quando o presidente eleito não se comprometeu muito com a estabilidade macroeconômica, sobretudo com a questão fiscal. De lá pra cá, as coisas melhoraram e o arcabouço fiscal demonstra isso até, embora, na minha opinião, ele ainda seja insuficiente.

De fato, a área fiscal é um enorme desafio. De uns tempos pra cá, começou a ficar claro que não seria fácil sequer cumprir com as metas (para melhorar as contas públicas) que foram anunciadas, então isso talvez explique um miniciclo de (piora do) humor.

Além disso, uma excelente notícia foi o avançar da reforma tributária, eu me refiro aqui a reforma da criação do IVA, que será um grande avanço quando aprovado.

De resto, os sinais que emanam do PT são um pouco confusos. O que se vê ainda são posições divergentes dentro do partido, referências complicadas no âmbito da Previdência.

Falou-se das regras trabalhistas sem muita sutileza, (houve tentativa de) mexer no arcabouço jurídico do saneamento, que é uma grande vergonha nacional e precisa de capital privado. O uso das estatais, outra vez, referências a Petrobras, Eletrobras, e por aí vai.

Então, não é uma estratégia de desenvolvimento arrumada. Muitos elementos que sugerem que lições importantes do passado foram esquecidas, tanto boas quanto más.

BBC News Brasil - A pesquisa Quaest mostra uma desconfiança do mercado com a capacidade do governo de cumprir a promessa de zerar o rombo nas contas públicas. Além disso, a piora da avaliação pode ser uma reação à proposta de taxar os mais ricos, ou não seria uma conclusão adequada?

Armínio Fraga - Não muito. Primeiro, a ideia de zerar o déficit não é precisa, porque nós estamos falando de zerar o déficit primário (que não considera receitas e despesas financeiras do governo).

O déficit (nominal) vai continuar a correr solto por um bom tempo, e isso significa que o cenário mais provável é de crescimento da relação dívida/PIB. E, dado o tamanho da nossa dívida, o prêmio de risco que o Brasil comanda, essa ao meu ver é uma estratégia arriscada, ela não tem margem de segurança.

Quanto à tributação dos mais ricos, eu escrevi a respeito, na coluna publicada recentemente na Folha (de S.Paulo), justamente pra dizer que o que está se propondo não é passar para um regime fiscal ultra-progressivo — e talvez sim, nesse caso, assustasse a investidores, sobretudo tendo em vista os riscos, em geral, que o Brasil ainda apresenta —, mas sim eliminar o que eu considero como sendo subsídios (tributários).

Eu me referi a duas frentes (no artigo). A primeira tem a ver com a taxação da renda do capital e a segunda com a taxação da renda do trabalho.

No caso da renda do capital, existem mecanismos no Brasil que permitem um diferimento em aberto dos ganhos (adiamento sem limite do imposto) e, além disso, uma alíquota de imposto marginal baixa, bem menor que a alíquota do Imposto de Renda, que tem alíquota máxima de 27,5%.

Dentro do capítulo ainda do capital, também chamou atenção o tratamento de investimentos no exterior, e a proposta do governo iguala (a tributação de) rendimentos tanto dentro do Brasil quanto fora. Não me parece nenhum exagero, nenhum absurdo.

No que diz respeito à renda do trabalho, a coisa é também complicada e merece ser revista. Eu refiro-me aos regimes especiais do Imposto de Renda que permitem com que as pessoas façam as suas empresas pessoais e paguem um imposto de renda muito baixo também, o que não faz o menor sentido.

Então, essas regras também precisam ser revistas e, em ambos os casos (na tributação da renda de investimentos e do trabalho), o Brasil não é um país de alíquotas marginais altas.

Apenas o que está se fazendo é corrigir as alíquotas hiper baixas, que é bem diferente da introdução de alíquotas mais altas, sobretudo se está em consideração uma comparação internacional.

BBC News Brasil - No caso da renda do trabalho, o senhor se refere a regimes especiais como o Simples Nacional e do lucro presumido. Se por um lado vemos o governo buscando taxar os super-ricos, esse outro tema não parece ainda estar na agenda.

Armínio Fraga - Não está.

BBC News Brasil – Parece haver uma resistência a mexer nesses regimes especiais, tanto no governo, como no Congresso. Por que isso acontece?

Armínio Fraga - Esse aspecto afeta sobretudo aos profissionais liberais que têm sabido se representar bem nessa questão. Estamos falando de advogados, médicos, todos sempre muito influentes. Mas, enfim, eu acredito que em algum momento vai haver um fator, eu diria, ético, que vai constranger esse ímpeto lobista e esse assunto vai ser retificado.

É muito absurdo isso, em algum momento vai ter que acabar. Seria natural que fosse num governo do PT. No passado o PT, por alguma razão que eu desconheço, hesitou em apresentar essa proposta com peso. Me dizem que, por achar que ia ser difícil aprovar, resolveram não fazer.

Mas acho que teriam que ter feito. Hoje seria mais fácil se essa briga tivesse sido comprada lá atrás, mesmo que pra perder, para as pessoas começarem a pensar um pouco mais sobre o assunto e pra isso ficar mais arejado pro grande público.

BBC News Brasil – Críticos à proposta de taxar os mais ricos dizem que haverá fuga de capitais. Por que não vê esse risco?

Armínio Fraga - É claro que algum impacto pode ter, mas acredito que isso não seria um grande problema. O que define quais são esses prêmios que se paga pra reter a poupança aqui tem mais a ver com outros grandes temas da nação.

Grandes incertezas macroeconômicas, às vezes políticas, incertezas quanto às regras do jogo. Então, essa situação (fatores que afetam decisões de investimentos) tem que fazer parte de um Brasil mais próspero, mais previsível, mais justo.

Se essas coisas caminharem juntas, eu não vejo razão alguma para temer fuga de capital. Mas, mesmo que não mude nada (nos outros fatores que afetam os investimentos), sair de um baita subsídio para um imposto razoável, até razoável pra baixo, para padrões internacionais, não deveria também levar a uma fuga.

BBC News Brasil – Há um senso comum no Brasil de que os impostos são muito altos. Na verdade, os impostos são baixos para alguns segmentos?

Armínio Fraga - Eu diria que os 1% mais ricos pagam menos do que os 20% mais pobres. Por quê? Porque os pobres praticamente não poupam e o consumo, a despeito (da desoneração) de cestas básicas e tudo o mais, o consumo é taxado. E, aí quando se faz a conta, a carga tributária tem essa situação invertida aqui no Brasil, que é outra vergonha, vamos usar a palavra certa.

BBC News Brasil – Onde mais o governo poderia mexer para tornar a carga tributária mais equilibrada?

Armínio Fraga - Eu acho que essas são as principais: fazer uma faxina nos subsídios e descontos indevidos. Isso traria uma carga maior no imposto de renda e menor no imposto sobre consumo. Muito poderia ser feito também do lado do gasto. Em geral, quando o gasto é bem alocado, tende a ser mais eficaz, ele cria menos distorções na economia.

Isso parece papo de economista, mas não é. É importante. É uma área que não é muito bem entendida, mas dá pra traduzir para um português mais direto: um sistema de saúde que se pretende universal, gratuito, não pode funcionar com menos que 4% do PIB, não dá.

Se você olhar pra onde vai o gasto, o Brasil precisa passar por um enorme redirecionamento. Os subsídios, que nós discutimos, são uma parte grande, são aí uns 4% do PIB, pelo menos a metade deveria desaparecer. Depois, quando se somam dois grandes blocos que são a Previdência e a folha de pagamentos, sobretudo dos governos estaduais e municipais, no Brasil isso chega a quase 80% do gasto. Isso é um número totalmente fora da curva global, é um ponto que chama atenção.

Então, nesses dois blocos, num período, vamos supor, de dez anos, deveria ser possível passar isso de 80%, pra 70%, talvez 60%, que é onde a maioria dos países está. E isso traria espaço para se redirecionar os gastos de uma maneira socialmente mais justa.

BBC News Brasil – O senhor falou sobre o gasto alto com Previdência e pessoal, citando sobretudo Estados e municípios. No entanto, sabemos que os maiores salários estão no funcionalismo federal e no Judiciário, enquanto muitas categorias estaduais e municipais têm salário baixos. Como cortar esse gasto?

Armínio Fraga – É um ponto muito importante. Eu penso que essa reforma do RH do Estado tem que lidar com questões federativas bem complicadas, mas também com cada um dos três Poderes. Em geral, a gente pensa só nos executivos federal, estaduais e municipais, mas é preciso também, claro, olhar o Judiciário e o Legislativo nos três níveis.

E existe muito absurdo. Tudo isso precisa passar por um pente fino afiado nos próximos anos. O objetivo maior não é demitir gente, acho que as regras são claras. A Constituição permite se, quando for regulamentado, que alguns absurdos sejam coibidos. Inclusive, em algumas áreas importantes do governo, eu acho que as lideranças são muito mal pagas, isso dificulta a retenção dessas pessoas, e isso é um problema. A estrutura é muito horizontal.

Então, tem muito a se fazer nessa área e isso permitiria um redirecionamento do gasto também olhando algo que é bom tanto pro ponto de vista de justiça social, quanto do crescimento.

À medida que se trabalhe na igualdade de oportunidades aqui com boa saúde, boa educação e boa infraestrutura, frequentemente públicas, nós vamos ter, no fundo, dois coelhos com uma só cajadada, porque isso é pró-igualdade e pró-crescimento.

BBC News Brasil – Qual sua opinião sobre a volta da taxação de dividendos? O senhor foi contra no passado e mudou de opinião?

Armínio Fraga - Assim, primeiro é importante notar que o capital do Brasil é taxado, porque as empresas pagam, se não puderem apelar pros regimes especiais, pagam na margem 34%, que é um número, eu diria, bastante relevante. Esse modelo, por si só, me parecia razoável, desde que a taxação da renda do capital não fosse tão cheia de furos. Então, pra mim, era um bom sistema (taxar apenas as empresas, e não os dividendos). É simples.

Se nós olharmos pra um contexto global, aí o que se tem é uma tendência à redução do imposto corporativo (o que incide sobre o ganho das empresas) por razões de concorrência, uma corrida pra baixo das alíquotas, os países ficam oferecendo vantagens, e aí isso exigiria sim que a tributação dos dividendos (voltasse)...

Assim, em última instância, um desenho que jogue para a declaração do Imposto de Renda Pessoa Física todas essas rendas resolveria bem. Aí seria totalmente possível desenhar algo integrado, e eu creio que isso vá acontecer em algum momento, mas não é certo que ocorra e nem como.

BBC News Brasil – A Câmara chegou a aprovar no governo Bolsonaro a taxação de dividendos isentando as empresas do Simples Nacional e de parte das empresas do regime do lucro presumido. Depois empacou no Senado. Na sua avaliação, não faz sentido taxar dividendo e isentar esse grupo?

Armínio Fraga - A história do Simples nasceu lá atrás de uma característica comum da América Latina que é uma enorme informalidade dos negócios, que é um tremendo redutor de produtividade na economia. Então a ideia foi criar um sistema simples pra trazer essas empresas para a formalidade, mas agora já chegou a hora de dar mais um passo.

E, no meio dessa confusão, surgiram esses regimes especiais com limites muito altos (de faturamento isento), e isso virou uma brecha que agora tem que ser tapada.

BBC News Brasil – Ex-secretários da Receita, como Everardo Maciel e Jorge Rachid, são contra a taxação de dividendos porque haveria muita sonegação. Dizem que foi adotado esse modelo de só taxar as empresas porque seria mais simples de fiscalizar. Faz sentido?

Armínio Fraga - Eu considero ousado discordar dos dois, que são dois super especialistas, mas eu creio que nesse caso eu discordo. Os sistemas hoje são mais arrumados, mais simplificados, é tudo eletrônico, isso vai casar também com o IVA, quando surgir (o imposto único após a reforma tributária). Dá pra fazer.

BBC News Brasil – O Banco Central acaba de cortar novamente os juros e indicou que deve haver novo corte na próxima reunião. Vê espaço para uma Selic menor?

Armínio Fraga - O Banco Central agiu rápido nessa crise recente e ao meu ver ele está calibrando bem as coisas. Incomoda muito, a mim também, a todo mundo no Brasil, que as taxas sejam tão altas, mas aí eu acho que o Banco Central precisa de ajuda fiscal, e institucional também (para reduzir a Selic).

Ter um ambiente um pouco mais calmo, com menos incertezas, aí os prêmios de risco vão encolher e nós vamos ter um juros mais normal. É uma meta louvável (querer reduzir a Selic), mas ela precisa ser construída, ela não pode simplesmente ser decretada por uma pernada do Banco Central.

BBC News Brasil – O senhor é sócio da re.green, empresa fundada em 2021 para atuar com reflorestamento florestal e venda de crédito de carbono. Esse é um investimento movido por uma consciência ambiental, algo mais filantrópico, ou é algo que realmente pode dar retorno financeiro?

Armínio Fraga – De filantrópico, eu fundei dois institutos que estão indo de vento em popa. A re.green não fui eu que fundei, mas eu cheguei cedo e fiz parte da primeira capitalização maior (da empresa).

É uma empresa. A ideia que ela tenha resultados trabalhando como manda o figurino, dentro da lei, da ética, no espírito até, eu diria, dos nossos tempos. Mas ela é uma empresa. E é importante que seja assim, porque ela vai buscar as melhores formas de se restaurar florestas com biodiversidade e isso pode ser útil mesmo em circunstâncias em que isso não possa ser feito com lucro, mas isso traz a força do mercado da inovação.

Para esse espaço, nós temos colegas que são super especialistas, sobretudo na área geral de clima e na área também de restauração. Pessoas da PUC, da Esalq (Escola Superior de Agricultura da USP).

E essa empresa, portanto, além de ter lucro, espera-se a que vá ser uma geradora de externalidades positivas, na medida em que ela consiga inovar. A nossa meta é super ambiciosa, (reflorestar) um milhão de hectares. Ela já está funcionando e já estamos comprando terras. Eu estou adorando fazer parte dessa empresa.

BBC News Brasil – O Congresso está discutindo a regulamentação do mercado de crédito de carbono, e o governo fará em breve a primeira venda internacional de títulos de verdes. É possível pessoas comuns investirem nesse mercado, ou apenas grandes investidores?

Armínio Fraga - Normalmente, em um primeiro momento, é mais difícil ter acesso ao varejo, mas já tem gente preparando produtos e falando em vender crédito de carbono, que não é o que nós (da re.green) fazemos.

Então, acho que vai obedecer uma sequência que é bem conhecida em outros setores. Começa com empresas que não são listadas na bolsa, às vezes são pequenas, são empresas que acadêmicos fundam. E, aí com o tempo elas vão evoluindo e massificando. No início, falta tudo: padrões de certificação, padrões dos contratos, no caso de carbono, mas que não seria a única oportunidade (nesse mercado). Se a nossa empresa der certo, estamos trabalhando para isso, é possível que ela em algum momento abra o capital.

No primeiro momento, tudo é muito complexo, muito arriscado. Fica difícil ver uma ponta de varejo assim muito rápido. O (crédito de) carbono talvez, mas vai ser uma mercadoria como outra qualquer. Vai ser um investimento altamente especulativo.

BBC News Brasil – Não entendi. A re.green não atua na venda de crédito de carbono?

Armínio Fraga - Não, é que mercado de crédito de carbono no Brasil ainda é muito novo, ele ainda é um mercado informal. Então, são negociações bilaterais entre a re.green, que vende créditos para financiar a restauração, e as empresas, que compram para compensar as suas emissões tipicamente.

BBC News Brasil - O Congresso está justamente discutindo uma regulamentação, com apoio do governo. Qual sua avaliação sobre o que está sendo proposto?

Armínio Fraga - Já vem em discussão há algum tempo. Não evoluiu na Câmara de Deputados e está agora no Senado. Os detalhes estão sendo definidos, espero eu, nos próximos meses. O que é fundamental é que esse mercado se comunique com o mercado internacional, porque hoje empresa aqui no Brasil vende seus créditos a uns US$ 20 a tonelada, e, na Europa, eles pagam US$ 100.

Claro que vai ter muita empresa que é compradora aqui dentro e vai querer criar um protecionismo qualquer para elas comprarem mais barato, mas isso não seria bom. Em geral, esses protecionismos custaram muito caro ao longo da nossa história. O Brasil ficou para trás.

BBC News Brasil – Sem a regulamentação, sua empresa não consegue vender a US$ 100 dólares para o exterior?

Armínio Fraga - Não, não é a mesma coisa. Porque no momento, um carbono comprado aqui, por mais séria e bem estruturada que seja a nossa empresa, ou outras, elas não fazendo parte do ambiente regulado europeu isso não conta. Então, tem essa segregação e é do nosso interesse encerrar isso. Se não, nós vamos estar subsidiando empresas aqui dentro. Elas vão ser subsidiadas para poluir.

BBC News Brasil - Outro problema do setor é a regularização fundiária precária no país. Isso tem afetado a re.green?

Armínio Fraga - Sim, é um problema muito sério e limita bastante o escopo das nossas compras (de terras para reflorestar).

BBC News Brasil - O que precisa ser feito? Algum avanço regulatório, mais repressão à grilagem?

Armínio Fraga - É um pouco de tudo. Isso já vinha acontecendo, mas eu diria que nós estamos longe de ter essa questão resolvida. Tem terras do governo, tem invasores para tudo que é lado, tem vizinhanças mais ou menos, assim, simpáticas. É um quadro bem complexo. Aqui dentro, nós conhecemos bem o Brasil, temos uma vantagem (em relação a empresas estrangeiras) de procurar evitar entrar em situações, vamos dizer, não interessante, mas com o tempo a expectativa é de que isso melhore. Não é fácil, mas o Brasil tem uma história de evoluir nessa área.

Mariana Schreiber, de Brasília - DF, originalmente, para a BBC News Brasil, em 25.09.23