sexta-feira, 30 de setembro de 2022

O que esperam os territórios ucranianos anexados pela Rússia

Com anexação ilegal de regiões no sudeste da Ucrânia após pseudorreferendos, Putin altera o destino de milhões. Lealdade a Kiev ou a Moscou, colaborar ou resistir: para os habitantes locais, uma escolha dramática.

Pseudorreferendo sobre anexação em Donetsk (Foto: Alexander Ermochenko/REUTERS)

"Para mim, o importante não são fronteiras e territórios estatais, mas o destino dos seres humanos." Esta é uma citação do presidente russo, Vladimir Putin, de uma entrevista ao jornal alemão Bild, de janeiro de 2016. Na época, tratava-se da anexação da península da Crimeia.

Por estes dias, o chefe do Kremlin volta a modificar de forma violenta as fronteiras da Ucrânia, tomando parte das regiões de Lugansk, Donetsk (ambas no Donbass), Kherson e Zaporíjia. Após seis meses de ocupação, ele agora vai anexá-las à Federação Russa, em violação do direito internacional.

Para defender seus novos territórios, Moscou ameaça empregar todo tipo de armas, inclusive nucleares. A Ucrânia e a maioria dos países declararam que não reconhecem nem a anexação, nem os "referendos" que as antecederam, nos quais uma maioria alegadamente manifestou-se a favor.

Quem são esses milhões de ucranianos do sudeste que vivem para além da frente de batalha, e o que mudará para eles?

Medo, colaboração, sentimentos pró-russos, protestos

Não se conhece o número exato de habitantes dos territórios ocupados no momento da anexação, mas se trata de vários milhões. Apesar da anexação transcorrer simultaneamente, as regiões são muito diversas. No Donbass realiza-se desde 2014 uma seleção forçada: centenas de milhares, a maioria jovens, deixaram as autodeclaradas "repúblicas populares", mudando-se ou para a Rússia ou para a Ucrânia sob controle de Kiev. Permaneceram os idosos e quem não pode partir ou apoia o separatismo.

"Para alguns vai se concretizar o que sempre desejaram. Há sempre determinadas parcelas da população que colaboram", comenta Andreas Umland, especialista do Stockholm Centre for Eastern European Studies (SCEEUS). Aparentemente esses simpatizantes são mais numerosos no leste do que no sul ucraniano, porém não há dados exatos a respeito.

No Donbass houve que apoiasse a anexação também pelo medo de ir a julgamento após um retorno do poder estatal ucraniano, sugere Serhiy Harmash, editor-chefe da revista online Ostrov. Natural de Donetsk, ele integrou o Grupo de Contanto Trilateral para a Implementação dos Acordos de Minsk.

"Esses indivíduos vão dizer que votaram 'sim', pois se o governo ucraniano retornar, precisarão fugir para alguma parte, provavelmente para a Rússia." Contudo ninguém sabe quantos eles seriam.

Também em parte das regiões de Kherson e Zaporíjia, no sul do país, houve transformações sociais nos seis meses de ocupação, embora não tão profundas. Centenas de milhares se refugiaram, porém entre os que permaneceram muitos seguem apoiando Kiev.

Prova disso foram os protestos com bandeiras ucranianas realizados nos primeiros meses meses após a invasão. "Em Kherson e Zaporíjia, muitos odeiam a Rússia. E em Donetsk e Lugansk, durante oito anos se encheram as cabeças com propaganda", relata Harmash.

Ao contrário da Crimeia, onde na época da anexação ilegal, em  2014, cerca de dois terços da população era de russos étnicos, no leste e no sul eles são menos da metade. Segundo o recenseamento mais recente, em Donetsk e Lugansk eles seriam 40%, contra 25% em Kherson e 15% em Zaporíjia.

Entre aceitar e resistir

À primeira vista, uma anexação em pouco vai alterar a vida nessas regiões, que há meio ano se encontram de fato sob administração russa. Tomando por parâmetro o procedimento na Crimeia, prevê-se que haverá uma mistura de castigo (para os dissidentes) e recompensa (para os leais).

Salários e pensões serão aumentados, e a Rússia tentará reconstruir a infraestrutura destruída. Em 29 de setembro, o diretor adjunto da administração presidencial do Kremlin, Sergeiy Kiriyenko, informou que seriam alocados 3,3 bilhões de rublos (R$ 294 milhões) para "projetos de apoio" nos novos territórios.

Tudo o que tenha a ver com a Ucrânia será gradualmente substituído por sucedâneos russos: leis, moeda, operadoras de telecomunicação, idioma, educação. Uma das metas principais é o retorno à "russificação" cultural das regiões que o Kremlin considera historicamente suas.

Os habitantes das regiões anexadas terão que decidir: ou aceitam as mudanças ou resistem a elas – sob risco de vida. "São decisões difíceis. Muitos estarão desesperados por não poder avaliar exatamente o que virá a seguir" – ou seja: quanto tempo os invasores permanecerão e quando o governo ucraniano reconquistará a área, avalia Andreas Umland, do SCEEUS. Desde já, há notícias de repressão, prisões e tortura de simpatizantes de Kiev. As vivências da Crimeia mostram que a perseguição aos dissidentes pode durar anos.

Os homens se defrontarão com uma prova especialmente difícil, pois deverão ser convocados para lutar contra a Ucrânia como parte do Exército russo. Com esse recurso, o Kremlin talvez também pretenda minorar o perigo de um movimento de resistência. Até agora ele se manifestou no sul com diversos atentados contra colaboradores das forças invasoras.

Contudo Serhiy Harmash crê que os serviços secretos ucranianos estejam por trás dos ataques, e não prevê movimentos de resistência em massa, como o ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial, também devido às atuais possibilidades tecnológicas de perseguição, como vigilância telefônica e por vídeo. "O que vemos é o trabalho de grupos organizados, liderados por serviços secretos", deduz.

Governo local ou enviados de Moscou?

No leste e no sul, se testará de diversos modos até que ponto a população é leal aos novos dirigentes. Por exemplo, na distribuição de passaportes russos – como foi o caso na Crimeia e no Donbass, onde esse processo já começou há anos. Ao contrário do que se viu na península no Mar Negro, entretanto, observadores não contam com grandes iniciativas de assentamento a partir da Rússia, pelo fato de os combates ainda estarem em curso.

"Tampouco haverá um retorno de antigos moradores de Donetsk atualmente vivendo na Rússia, onde são empregados como mão de obra. Até porque não há vagas de trabalho no Donbass, as principais empresas estão destruídas", explica Harmash. A atratividade desses territórios para a Rùssia será baixa, os russos terão medo de ter que ir embora de novo, "não vai funcionar", reforça Andreas Umland.

Em aberto está também quem poderá formar um novo poder estatal nos territórios anexados: ucranianos locais ou funcionários enviados por Moscou? Até agora, os ocupadores têm apostado em cidadãos locais, membros do pró-russo antigo Partido das Regiões, do ex-presidente Viktor Yanukovich, fugido para a Rússia em 2014.

Especula-se se agora ele, seu primeiro-ministro Mykola Azarov e outros representantes refugiados da antiga elite ucraniana do Donbass retornarão. Analistas não descartam essa possibilidade, mas não creem que esses indivíduos retomarão o poder.

Nesse ínterim formaram-se novas elites, que não estarão dispostas a renunciar, diz Harmash. Talvez a administração passe dos ucranianos para funcionários enviados pelo Kremlin, como já antecipou a imprensa russa. Em alguns níveis do governo, esse processo até já começou.

Roman Goncharenko para Deutsche Welle Brasil, em 30.09.22

Zelenski assina pedido de adesão acelerada da Ucrânia à Otan

Ato do presidente ucraniano ocorre horas após Rússia anexar ilegalmente quatro regiões da Ucrânia. Em geral, um pré-requisito para ingressar na Aliança é não estar envolvido em conflitos internacionais.


Zelenski assina um documento em um local ao ar livre. Ao lado, duas pessoas.

Pouco depois de a Rússia realizar uma cerimônia de anexação ilegal de territórios ucranianos, o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, assinou nesta sexta-feira (30/09) o pedido de adesão acelerada do país à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

"Estamos dando um passo decisivo ao assinar a candidatura da Ucrânia à adesão acelerada à Otan", disse Zelenski em um comunicado divulgado no site da Presidência ucraniana.

"Sabemos que é possível. Este ano, vimos a Finlândia e a Suécia começarem a aderir à Aliança sem um Plano de Ação para a Adesão", justificou.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, assinou nesta sexta-feira, em uma cerimônia no Kremlin, tratados para anexar quatro regiões ucranianas parcialmente ocupadas pelas forças russas. A medida – ilegal e duramente condenada pela comunidade internacional – marca uma escalada no conflito e dá início a uma fase imprevisível, sete meses após a invasão da Ucrânia por Moscou.

A anexação, que viola o direito internacional, ocorre dias depois da realização de pseudorreferendos organizados por Moscou nas regiões ucranianas de Zaporíjia, Kherson, Lugansk e Donetsk.

As autoridades pró-Rússia nesses territórios reivindicaram umavitória esmagadora do "sim" à anexação, mas o resultadonão é reconhecidopela comunidade internacional, que tachou os "referendos" de ilegais e fraudulentos. Há indícios de que eles ocorreram sob ameaça de violência e intimidação. 

Em 2014, a Rússia já havia usado o resultado de outro "referendo", realizado sob ocupação militar, para legitimar a anexação, também em violação do direito internacional, da península ucraniana da Crimeia, no Mar Negro.

Necessidade de consenso

Em geral, um pré-requisito para ingressar na Otan é que o país candidato não esteja envolvido em conflitos internacionais e disputas de fronteiras. A Ucrânia foi invadida pela Rússia em 24 de fevereiro e, desde então, vem se defendendo da guerra de agressão.

Segundo Zelenski, a Ucrânia já está, "de fato", a caminho de se tornar membro da Aliança Atlântica e demonstra compatibilidade com os padrões militares da Otan, tanto no campo de batalha quanto na interação com os aliados: "Há confiança mútua, nos ajudamos e protegemos mutuamente. Essa é a aliança."

Zelenski argumentou que a Rússia não teria parado nas fronteiras ucranianas se não tivesse sido travada por suas tropas. "Outros Estados estariam sob ataque. Os países bálticos, Polônia, Moldávia e Geórgia, Cazaquistão." O presidente disse estar ciente de que a adesão da Ucrânia, como a de qualquer outro candidato, exige o aval dos 30 Estados-membros da Otan.

"Compreendemos que é necessário chegar a esse consenso. Por conseguinte, oferecemos a implementação das nossas propostas relativas às garantias de segurança para a Ucrânia e toda a Europa, de acordo com o Pacto de Segurança de Kiev, que foi desenvolvido e apresentado aos nossos parceiros."

Zelenski assina um documento em um local ao ar livre. Ao lado, duas pessoas. Zelenski assina um documento em um local ao ar livre. Ao lado, duas pessoas. 

O chefe de Estado disse também que a Ucrânia não negociará com a Rússia enquanto Vladimir Putin estiver no poder: "Vamos negociar com o novo presidente." Nesta sexta-feira, o líder russo instou a Ucrânia a depor as armas.

Zelenski reafirmou que o "único caminho para paz" passa pelo reforço da Ucrânia e pela expulsão dos ocupantes russos de todo o seu território. "Vamos completar este caminho", prometeu.

Ele anunciou ainda que o Parlamento ucraniano vai discutir "um projeto de lei sobre a nacionalização de todos os bens russos", apelando para a sua aprovação. "Por favor, subscrevam este projeto de lei sem demora. Estamos concluindo o desmantelamento da influência russa na Ucrânia, na Europa e no mundo."

Otan condena anexação

O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, disse nesta sexta-feira que a anexação formal pela Rússia de quatro províncias ucranianas é a "escalada mais séria" desde o início da guerra na Ucrânia.

"Esta apropriação de terras é ilegal e ilegítima", disse, pedindo a todos os países do mundo que rejeitem a medida. "Donetsk é Ucrânia, Zaporíjia é Ucrânia, Lugansk é Ucrânia, Kherson é Ucrânia, assim como a Crimeia é Ucrânia. "A Otan não faz parte do conflito, mas damos apoio à Ucrânia."

Stoltenberg enfatizou que "a porta da Otan permanece aberta" e que qualquer país europeu tem o direito de se candidatar à aliança. "Nosso foco agora é fornecer apoio imediato à Ucrânia para ajudá-la a se defender contra a brutal invasão russa."

Em relação às ameaças de Putin de intensificar as ofensivas se a Ucrânia atacar os territórios que agora considera russos, o chefe da Otan rebateu que Kiev tem o direito de retomar seus territórios: "A anexação é ilegal, não muda a natureza deste conflito."

O secretário-geral acrescentou que a Otan não pode recuar após as chantagens nucleares de Moscou, caso contrário a mensagem será de que essa é uma arma viável.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 30.09.22 / le/av (AP, Reuters, Lusa)

Em "referendos", ucranianos votaram sob a mira de armas

Moscou alega participação recorde, observadores falam em resultados fraudados. À DW, moradores contam que sofreram ameaças para votar e que russos chegaram a levar urnas de porta em porta, ao lado de militares armados.

Pacientes foram forçados a votar até na cama do hospitalFoto: AFP/Getty Images

Os invasores russos na Ucrânia fizeram eleitores votarem nas ruas, em seções de votação improvisadas e até em suas próprias casas, levando urnas de porta em porta. Os relatos são de moradores das regiões ucranianas de Zaporíjia, Kherson, Lugansk e Donetsk, parcialmente ocupadas por Moscou.

Pseudorreferendos sobre a anexação desses territórios à Rússia foram realizados nos últimos dias nas quatro regiões. Recusar-se a participar da votação imposta era uma ameaça à vida, disseram os residentes locais, ressaltando que representantes dos chamados "comitês eleitorais" apareciam acompanhados de militares russos armados.

"Duas mulheres e três soldados russos com fuzis me perguntaram se eu votaria", contou a moradora de um vilarejo perto de Melitopol, em Zaporíjia. Ao questioná-los se ela tinha escolha, eles ficaram em silêncio. "Eu tive que fazer um xis onde eles apontaram [na cédula de votação] com o cano da arma."

Ela disse que, embora não quisesse votar, o fez porque temia que eles pudessem convocar seu filho de 35 anos para a guerra. "Foi bom que meu marido e meu filho estavam trabalhando no campo naquele momento. Não quero que eles levem meu filho, ele está na lista deles", afirmou, em lágrimas.

Coleta de dados sobre moradores

As listas representam uma ameaça para a população nos territórios ocupados, afirma Oleksiy Koschel, presidente da Associação de Eleitores da Ucrânia. Os invasores estão criando bases de dados porque, mesmo após seis meses de ocupação, "têm pouca informação sobre quem vive nos territórios ocupados", argumenta.

Segundo Koschel, durante os pseudorreferendos os russos também colheram dados sobre quem era pró-Ucrânia, que idioma falavam e quais homens estavam na idade de alistamento.

A população não apoia os invasores, afirma Koschel, ressaltando que é por isso que a distribuição de passaportes russos e a introdução do rublo nos territórios ocupados fracassaram.

Segundo o presidente da Associação de Eleitores da Ucrânia, os pseudorreferendos foram organizados às pressas e sem pessoal suficiente, o que tornou a votação caótica. Ele diz ainda que os russos recorreram a quaisquer métodos que pudessem inventar para falsificar o resultado.

Cidades vazias

As "votações" ocorreram durante cinco dias. Em apenas três dias, as chamadas "repúblicas populares" de Lugansk e Donetsk relataram uma participação recorde de até 87% – com mais de 1 milhão de votantes.

"Esses números são idiotas e irrealistas, porque a maioria dos moradores já deixou os territórios ocupados há muito tempo", escreveu Serhiy Haidai, chefe da administração militar de Lugansk, em mensagem no Telegram.

Ele observou que os russos chegaram a reivindicar um comparecimento às urnas de quase 50% em cidades que foram destruídas e quase completamente abandonadas no leste da Ucrânia, incluindo Lysychansk, Severodonetsk e Rubizhne.

"Os resultados foram falsificados", afirmou Haidai.

Em Kherson, no sul ucraniano, os invasores tinham a intenção de fornecer à mídia de propaganda imagens da população pró-Rússia indo em massa às urnas, disse uma moradora local que se identificou apenas como Hanna. Mas as coisas não saíram como planejado.

Às 8h da manhã, músicas soviéticas ecoaram, enquanto organizadores e militares russos esperavam pelos eleitores. "Mas nenhum eleitor apareceu, nenhuma fila se formou", conta ela. "Às 10h, eles fecharam os locais de votação e saíram batendo nas portas das casas  – "mas ninguém abriu".

Pacientes foram forçados a votar até na cama do hospitalFoto: AFP/Getty Images

Ali, os russos não conseguiram atrair a população a votar nem com ajuda humanitária. "Os únicos que vieram eram aqueles com mais de 70 anos que desejavam o retorno da União Soviética. Jovens e adultos de meia-idade ignoraram esse circo", afirma Hanna.

Segundo ela, apesar do terror e da perseguição, ainda restam na cidade moradores com mentalidade pró-ucraniana, à espera de serem libertados pelo exército de Kiev.

Uma residente de 82 anos de uma vila perto de Kherson contou que homens armados sugeriram que ela votasse "a favor de se juntar à Rússia". Quando ela recusou, eles disseram: "Vovó, você pode ganhar 10 mil rublos [cerca de 940 reais], incluindo caixas de comida. Você só precisa votar pela Rússia".

Em lágrimas, a ucraniana afirmou que não precisava nem da Rússia nem de esmolas. "Em fevereiro, eles mataram meu neto no campo de batalha."

Eleitores ameaçados

As tropas russas pressionaram e ameaçaram os eleitores durante os pseudorreferendos, garante Yaroslav Yanushevych, chefe da administração militar regional de Kherson. "Colaboradores, acompanhados de invasores armados, estão parando as pessoas nas ruas e usando ameaças para forçá-las a votar", escreveu ele no Telegram.

Em Lugansk, moradores disseram que "seções de votação" improvisadas foram instaladas em quintais de prédios residenciais e na entrada dos mercados. Um ônibus chegava, e uma urna transparente era colocada logo ao lado dele. "Não havia votação secreta, as pessoas marcavam as cédulas de joelhos", diz um residente de Lugansk.

O mesmo morador contou que colaboradores que trabalhavam para os conselhos locais eram obrigados a "votar" várias vezes em locais diferentes. "Disseram-nos que quanto mais vezes a mesma pessoa votar, melhor", afirmou uma mulher que trabalha em uma instituição educacional em Lugansk.

Ela disse ainda que todos os funcionários foram orientados a trazer cópias da carteira de identidade de estudantes que deixaram a cidade, para que pudessem votar no lugar deles. Isso foi fácil porque não havia listas de eleitores preexistentes no local da "votação", afirmou. Qualquer um que se recusasse a participar era ameaçado com cortes salariais ou com a perda total do emprego.

Isolando residentes

Segundo a Associação de Eleitores da Ucrânia e a ONG Opora, os invasores russos somente usaram listas nos pseudorreferendos que incluíam indivíduos que aceitaram voluntariamente ajuda russa, que ainda coletavam suas pensões pessoalmente nos correios, ou que eram empresários que pagavam impostos locais. Eles também usaram listas de eleitores retiradas de arquivos.

A pesidente da Opora, Olga Aivazovska, reiterou que a Rússia organizou uma votação falsa nos territórios ocupados da Ucrânia.

"Não houve expressão de vontade livre e legal", disse ela, acrescentando que o pseudorreferendo sob a mira de uma arma visa chantagear os parceiros ocidentais da Ucrânia.

Segundo Aivazovska, o primeiro a sofrer com o "voto" será o povo nos territórios ocupados – eles serão completamente isolados pela Rússia, sujeitos a uma mobilização total e forçados a aceitar passaportes russos. O terror que eles já estão vivendo só deverá aumentar, prevê ela.

Lilia Rzheutska e Anastasia Shepeleva para a Deutsche Welle,em 29.09.22

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

No fio do bigode

Lula não pode achar que está perdoado, se vencer no primeiro turno. Muitos votarão nele apenas para se livrar de Bolsonaro

Se vencer no primeiro turno, o ex-presidente Lula não pode cair na esparrela de que a maioria dos eleitores terá votado nele por sua história, por seu carisma. Assim como Bolsonaro nunca foi dono dos 58 milhões de votos que teve em 2018, também Lula não será eleito no primeiro turno, se for, porque o PT, ou mesmo ele, detém a preferência hegemônica dos cidadãos brasileiros.

Bolsonaro acabou perdendo boa parte de seu eleitorado, pelo menos 20%. Está cada vez mais próximo dos 30% que dos 40% dos votantes. O Brasil é um país cheio de paradoxos. Muitos dos que votaram em Bolsonaro em 2018 não são bolsonaristas, o escolheram para conter o petismo. Agora, buscam em Lula a saída para se livrar da tragédia que foi seu desgoverno.

Um exemplo é o jantar dos empresários com o ex-presidente. Lula foi ao PIB, que já queria há muito conversar com ele. Ele foi adiando um convite feito há muito tempo, queria deixar o encontro para o segundo turno, mas antecipou-o diante da possibilidade de ganhar no primeiro, porque quis colocar os empresários como mais um elemento indicativo de um governo de centro, sem radicalismos.

Foi um encontro de compromissos, ainda que “no fio do bigode”, não escritos, mas como um voto de confiança dos empresários, que não estão necessariamente convencidos de que a melhor solução seja a volta do PT ao governo. Simplesmente, a vitória de Lula parece estar precificada pelo mercado a esta altura. Vamos ver o que o ex-presidente fará com esse gesto dos representantes do dinheiro.

Todas as adesões que vem tendo do centro, inclusive de ex-ministros do STF que estiveram à frente do processo do mensalão, como Joaquim Barbosa, Celso de Mello ou Ayres Britto, ampliam o espectro político de que Lula precisa para ganhar a eleição. Lula terá muitos votos — os 30% que o PT sempre teve, com o acréscimo dos antibolsonaristas ou dos que se arrependeram de votar em Bolsonaro, fundamentais para sua vitória — no primeiro ou no segundo turno.

Se Lula acha que estará perdoado e que todos estarão felizes caso ganhe no primeiro turno, está enganado. Uma parcela muito grande dos que votarão nele estará no dia seguinte de olho no que fará, exigindo que cumpra o que está insinuando nesta campanha. Lula ainda não assumiu compromissos por escrito com seus eleitores, mas a esses basta seguir o líder. Os que levarão Lula eventualmente a vencer no primeiro turno ainda estão aguardando sinais mais claros que os já dados.

Geraldo Alckmin como vice, Meirelles se acercando, o voto útil atingindo boa parte da classe média por meio do apoio de intelectuais e artistas indicam que um terceiro governo Lula será mais parecido com o primeiro do que com o segundo mandato. Lula cita o que já fez nos governos anteriores para justificar que não precisa escrever nada, porque já sabemos o que fez. Sabemos, e pode ser bom ou ruim.

Um ganho imediato será no tocante ao meio ambiente. Uma vitória de Lula, com o apoio de Marina, muda imediatamente a percepção internacional a respeito do Brasil, e abrem-se caminhos para a volta de financiamentos internacionais. Pode ser ruim se, para se reaproximar do Centrão, Lula se utilizar do mesmo esquema de corrupção que marcou seus governos. O ministro Gilmar Mendes pode afirmar que Lula é inocente, a Justiça pode tecnicamente considerá-lo inocente, mas não é essa a percepção da população.

O entendimento é mais próximo do famoso “rouba, mas faz” que do “homem mais honesto do mundo”. No segundo governo, para eleger Dilma, o ex-presidente aprofundou uma política econômica heterodoxa, uma tal de “nova matriz econômica” com Guido Mantega, depois da saída de Antonio Palocci, responsável pela manutenção da política do governo Fernando Henrique. A era Mantega resultou em aumento artificial de 7,5% no PIB, mas abriu caminho para um rombo na economia que nunca foi consertado e levou o país para o buraco.

No segundo mandato, que quase perde para os tucanos, a então presidente Dilma ainda tentou dar um cavalo de pau na economia chamando para o ministério da Fazenda Joaquim Levy, mas a máquina petista colocou em seu lugar Nelson Barbosa, e a falta de apoio político no Congresso agravou o isolamento da presidente, que acabou impedida. Lula tem tentado se manter distante da gestão de Dilma, o que pode indicar que entendeu o que aconteceu.

A escolha de seu ministro da Fazenda será crucial para a manutenção de um apoio que apenas o petismo e a esquerda não lhe darão. Somente uma liderança política como Palocci poderia ter reagido às tentativas de sabotagem que os “tucanos” chamados para ajudar no governo Lula sofreram. Quem será o político que exercerá esse papel? O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha é muito citado, mas não me parece uma liderança capaz de resistir à máquina petista.

Merval Pereira para O Globo, em 29.09.22 às 04h30

A eleição começa a se despolarizar

O movimento de Lula ao centro e do centro em direção a ele criou outra dinâmica nesta eleição, enquanto Jair Bolsonaro se isola em seu radicalismo

Os candidatos a presidente Lula (PT) e Bolsonaro (PL)Os candidatos a presidente Lula (PT) e Bolsonaro (PL) Arquivo

A eleição está se despolarizando. Não é mais apenas dois grupos opostos que se enfrentam. Formou-se uma onda de declarações de voto em favor de Lula que reúne ex-ministros do Supremo, economistas de diversas tendências, cientistas sociais, ex-ministros do governo Fernando Henrique, artistas que não votariam no PT, milhões de cidadãos e cidadãs. A natureza desse movimento, que não se viu em outras campanhas, vai além do próprio Lula. É o corpo da democracia reagindo aos ataques. Foram tantos, tão constantes, estão ainda presentes no ar que, mesmo sem articulação, formou-se esse arco de autoproteção nestes dias prévios da escolha coletiva.

Escrevi aqui algumas vezes que nesta eleição nunca houve dois extremos se enfrentando. Havia e há apenas um único extremista. Jair Bolsonaro, ao longo do tempo, só confirmou essa visão com seus atos e palavras. Lula, por seu lado, fez movimentos ao centro, e o centro caminhou em direção a ele.

Muitos dos que declaram apoio não deixam de lembrar que têm, eventualmente, divergências, como acontece com os economistas, mas todos afirmam que Lula reúne as melhores condições para derrotar o projeto autoritário encarnado por Bolsonaro. O presidente alimentou esse isolamento com os seus seguidores. Mesmo nestes tempos finais, seu partido, seu entorno, os militares a ele ligados permanecem afligindo a nação com problemas inexistentes no sistema eleitoral.

Ontem, o TSE abriu a sala da totalização dos votos à visitação, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, ciceroneou os fiscalizadores e observadores que quiseram entender todos os detalhes. A primeira evidência que saltava aos olhos era que a sala era clara e transparente. O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, circulavam entre os visitantes. O notório presidente do PL admitiu que realmente não há “sala escura”, para horas depois o seu partido colocar em dúvida de novo as urnas eletrônicas, recebendo de volta uma forte nota do TSE. O general não disse nada às claras, mas continua rondando o Tribunal, como uma sombra sinistra de outros tempos.

Hoje, os candidatos estarão frente a frente no debate da TV Globo, última chance de Bolsonaro levar a disputa para o segundo turno, e Lula garantir a vitória no primeiro turno. Um por cento que se mova para um lado ou para o outro, e o resultado será diferente. Por isso, todas as atenções do país estarão voltadas para o debate. Bolsonaro terá o auxílio de um suposto padre que a lei eleitoral permite que participe. Kelmon atuou como um ajudante de ordens de Bolsonaro no debate da semana passada. Bolsonaro pode ter também a ajuda de Ciro Gomes, se o pedetista insistir na sua estratégia de atacar mais a Lula.

Bolsonaro chega ao debate com uma intenção de votos menor do que sua votação em 2018, em 14 estados e no Distrito Federal, segundo levantamento do Pulso, publicado neste jornal no último domingo. Em 11 estados, manteve ou cresceu. Está atrás de Lula em estados mais populosos. Em São Paulo, perde por 11 pontos, em Minas, por 18 pontos, no Ipec.

Lula chega ao debate em um momento surpreendente nos últimos dias com a série de declarações de votos a seu favor, um movimento que transcende a ele mesmo. Há sempre ondas de última hora, e a que se formou nesses dias favorece Lula.

Ciro chega muito menor politicamente do que já foi. Ele encerrou o primeiro turno de 2018 tendo 12%dos votos, mas a última pesquisa Ipec deu 6%. Teve 40% dos votos no Ceará, agora tem 10% das intenções de votos em seu estado. Nesta quarta campanha presidencial da qual participa, Ciro acumula derrotas.

Simone chega ao debate com o mesmo percentual de votos de Ciro, mas em um momento inteiramente diferente. É a primeira vez que se candidata, é a primeira vez que seu partido lança uma mulher, e ela tem tido excelente desempenho nos debates.

No meu livro “Democracia na Armadilha”, coletânea de colunas aqui publicadas sobre o governo Bolsonaro, há um texto sobre o discurso de posse do atual presidente em que o título foi “Dividir até na hora de somar”. Bolsonaro optou desde o começo pelo conflito. A última coluna do livro tem o título “A democracia morre no fim desse enredo”. O que a sociedade brasileira está fazendo, em tempo real, é tecendo uma rede de proteção à democracia para evitar esse final trágico.

Miriam Leitão com Alvaro Gribel (de São Paulo) para O Globo, em 29.09.22 às 04h31  

Já passou da hora de cobrar que Lula detalhe suas promessas

Eleição é para Presidente da República, não para santo

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa de ato com artistas e apoiadores em São PauloEx-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa de ato com artistas e apoiadores em São Paulo Ricardo Stuckert

Estamos a poucos dias de um voto para presidente que pode até ser definitivo, dado que as pesquisas de opinião mostram haver chance de Luiz Inácio Lula da Silva ganhar a eleição já no primeiro turno. Nos bastidores da campanha bolsonarista, o desânimo é flagrante, e até os meninos da outrora olavista Brasil Paralelo foram dar uma pinta no jantar de Lula com os empresários.

Pode até ser que nos grotões esteja acontecendo algo diferente e que Bolsonaro esteja ganhando força para virar o jogo e vencer a eleição no segundo turno. Mas o visível, agora, é que as elites do país estão se rendendo a Lula sem dificuldade nem prurido.

Para aqueles que já tinham boas relações com o petismo, o momento é de glória. Nos bastidores do jantar com os empresários, penúltimo ato da campanha lulista (o último será o debate da TV Globo, hoje), o dono do BTG, André Esteves, e o presidente do conselho do Bradesco, Luiz Trabuco, foram tratados com carinho, como velhos amigos que são.

Outros registraram presença apenas para poder dizer no futuro que nunca foram de fato antilulistas — estavam só defendendo os próprios negócios. Como um integrante do Centrão que me ligou outro dia, às gargalhadas: "Será que você poderia registrar aí que, quando Lula estava preso, eu fui dez vezes a Curitiba, incógnito, gritar 'bom dia, Lula; boa noite, Lula'?".

Quem conhece a forma como as placas tectônicas do poder se arranjam conforme a necessidade não tem por que se espantar. Há quase dois anos, Arthur Lira definiu num artigo que o Centrão é uma “força moderadora”, a “quilha da nau da democracia”. Vai ver é isso mesmo, e talvez seja o caso de comemorarmos.

Não fosse o Centrão o que é, poderíamos ter uma crise de grandes proporções com a chegada de Lula ao Planalto, uma revolta da maioria parlamentar conservadora contra um esquerdista em minoria.

Como o Centrão é o que é, muito provavelmente o que se verá em Brasília, uma vez proclamado o resultado das urnas — agora ou no segundo turno —, será uma acomodação. Para que seja razoavelmente tranquila, dependerá apenas de que se acerte quanto custará.

Não é mais novidade, nem chega a ser escandaloso. Quem assiste aos debates e entrevistas com os candidatos fica com a impressão de que é a coisa mais normal do mundo Lula se defender de acusações a respeito do mensalão retrucando que “o orçamento secreto é muito pior”.

De outro lado, quem já não ouviu aí algum bolsonarista dizer que as rachadinhas dos Bolsonaros ou a propina do Ministério da Educação depositada em pneus não chegam a ser problema porque, no petrolão dos governos petistas, a corrupção ocorria em escala muito maior?

Desinformação na reta final: Grupos bolsonaristas disseminam fake news sobre urnas ‘abertas’ em sindicato de SP

"O povo está cansado de discutir corrupção", disse um analista que ouvi no rádio outro dia. "Isso não comove mais ninguém".

É compreensível que a corrupção tenha se tornado um problema menor diante do avanço da pobreza, da debacle educacional e da deterioração institucional que temos presenciado. A desorganização no tecido social produzida pelo bolsonarismo é tão grande que muitas coisas tomaram a frente na lista de prioridades.

O que deveria preocupar é essa mesma desorganização ter geraado em setores da sociedade certo espírito bovino, que impede qualquer debate mais profundo sobre o que se pode esperar de um eventual governo Lula.

Tensão na Polícia Federal: Reta final da eleição provoca fogo cruzado entre delegados

O PT divulgou um programa cheio de compromissos genéricos, como “colocar o povo no orçamento”, fazer uma “reforma do Estado” ou voltar a investir em educação. Prometeu depois trazer um texto mais detalhado. Contudo não trouxe.

O próprio Lula explicou que não precisa fazer promessas, porque todos já sabemos como foi seu governo e conhecemos o legado que deixou. Dizer que já passaram 20 anos de sua primeira eleição e que o Brasil já mudou muito é chover no molhado, mas nem por isso deixa de ser verdade.

Eleições 2022: Brasil tem recorde de pesquisas eleitorais, mostram registros do TSE

Ainda assim, virou lugar-comum dizer que não é hora de cobrar ou de criticar Lula, porque há algo maior em jogo — restabelecer a própria democracia. Em nome da democracia, estão combinando que o Brasil dará um cheque em branco ao petista, porque cobrar ao líder nas pesquisas que detalhe suas propostas é uma atitude antidemocrática.

É bom lembrar apenas que esta não é uma eleição para santo ou para escolher um novo mito. Os problemas continuam, e o dia seguinte será duro. A esta altura, já deveríamos ter aprendido que a luta do bem contra o mal só existe nas histórias em quadrinhos ou nos vídeos toscos da extrema direita.

Os empresários que foram ao jantar com Lula sabem muito bem disso. Mas sabem se defender. A nossa democracia, talvez não.

Malu Gaspar para O Globo, em 29.09.22 às 04h30  

Aperfeiçoando os privilégios

Militares têm participado de ‘cursos de aperfeiçoamento’ não para melhor servir ao País, mas para engordar seu holerite

Um levantamento do Estadão com base em dados do Ministério da Defesa mostrou que, entre 2019 e agosto deste ano, 4.349 militares, sobretudo da Marinha, concluíram o curso de aperfeiçoamento para “Assessoria em Estado-Maior para Suboficiais”, que dura, em média, oito semanas. Desse total, 1.932 militares (44%) já se aposentaram e outros 178 (4%) estão em processo de transição para a reserva. Ou seja, quase a metade desses oficiais e suboficiais, qualificados às expensas dos contribuintes, deixou de prestar serviços ao País pouco após obter a qualificação. É lícito inferir, portanto, que muitos militares possam ter frequentado esses cursos apenas como meio para melhorar a remuneração na aposentadoria. 

A manobra está assentada na reforma da previdência dos militares, aprovada em 2019 sob os auspícios do presidente Jair Bolsonaro, político que fez carreira na defesa dos interesses das Forças Armadas. Portanto, esse acréscimo de vencimentos às portas da aposentadoria não é ilegal, mas é claramente imoral. Trata-se de inaceitável privilégio, algo que não se coaduna com a ideia de República que este jornal defende.

A respeito desse tratamento especial que as Forças Armadas recebem do governo, o Ministério da Defesa argumenta que o destino de mais recursos públicos para os militares serve para que as Forças se capacitem para melhor servir ao País. É uma contradição: afinal, os recursos extraordinários – que representam até 66% de aumento nos rendimentos desses militares – não servirão para capacitar os oficiais para seu serviço ao País, e sim para lhes garantir uma aposentadoria mais confortável, já que, diferentemente da maioria absoluta dos brasileiros, recebem o salário integral quando deixam de trabalhar.

Não se trata de um benefício isolado. Ao contrário do que ocorreu com quase todas as categorias do serviço público – sem falar nas discrepâncias em relação aos trabalhadores da iniciativa privada –, as Forças Armadas têm sido amplamente agraciadas pelo atual governo.

Desde a já referida reforma da previdência específica para a categoria, extremamente benevolente em relação às normas previstas para os demais servidores públicos, até a criação de mecanismos para permitir o pagamento de salários muito acima do teto constitucional para alguns oficiais, foram muitos os instrumentos gestados no Palácio do Planalto para privilegiar os militares. Enquanto pastas cruciais para o desenvolvimento humano, como Educação e Saúde, perderam recursos para investimentos, por exemplo, o Ministério da Defesa viu seu orçamento crescer substancialmente em relação a governos anteriores.

A crítica a esse tratamento diferenciado dado aos militares pelo atual governo não significa, por óbvio, defender o contrário, ou seja, que os militares deveriam ser simplesmente negligenciados no Orçamento. Trata-se de enfatizar que um bom governante tem discernimento para fazer boas escolhas políticas diante da escassez de recursos. Mas sabedoria e espírito público são atributos que Bolsonaro jamais teve – ou terá. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 29.09.22às 03h05

A intolerável ameaça de Bolsonaro

A poucos dias da eleição, o presidente continua ameaçando descumprir a vontade do eleitor. O País não pode ser refém do golpismo. As instituições têm os instrumentos para puni-lo

   O presidente da República, Jair Bolsonaro, manifestou mais uma vez sua disposição de não respeitar a vontade do eleitor caso esta lhe seja desfavorável. Este jornal, que considera a alternância no poder e o respeito às instituições como algumas das mais preciosas bases da democracia, entende que é inaceitável que qualquer candidato, sobretudo na condição de presidente da República, lance suspeitas infundadas sobre o processo eleitoral e sobre a lisura da Justiça Eleitoral, tentando, assim, deslegitimar o resultado das urnas. 

No Jornal da Record, quando o repórter lhe perguntou se aceitará o resultado das eleições caso seja derrotado, Bolsonaro respondeu: “Olha, eu vou esperar os resultados”. Na sequência, ainda levantou suspeitas sobre a imparcialidade da Justiça Eleitoral. Escancaram-se, assim, suas pretensões golpistas. As instituições precisam estar em alerta máximo.

Seguindo a cartilha do mau perdedor, Bolsonaro começou já em 2020 suas agressões ao sistema eleitoral, afirmando que as urnas eletrônicas eram suscetíveis de fraude. Depois, foi além, e, sem nenhum indício digno de nota, muito menos prova, disse que as eleições de 2014 e as de 2018 foram fraudadas.

Bolsonaro afirma que as urnas não são auditáveis. Mentira: elas têm 10 camadas de auditoria e seu código-fonte é aberto à inspeção das instituições. Afirma que as urnas são vulneráveis a ataques de hackers. Mentira: elas não entram em rede nem são acessíveis remotamente.

Se é lamentável que as instituições e as inúmeras demonstrações de integridade das urnas não tenham contido a estratégia sediciosa do presidente da República, é também um sinal do fracasso do bolsonarismo que ele não tenha logrado arrastar o mundo-político institucional para suas teses – e práticas – conspiratórias. Nenhum ator político relevante – nem sequer seus asseclas do Centrão –, nenhum dos Poderes da República, nenhuma instituição da sociedade civil corrobora sua desconfiança. Ainda assim, o presidente incitou o Ministério da Defesa, na tentativa de implicar as Forças Armadas, a realizar uma “apuração paralela” e flagrantemente inconstitucional das urnas. Chegou ao absurdo de convocar embaixadores internacionais para declarar que nossa democracia é fraudulenta.

É paradigmático que em 2021, quando o coronavírus ainda dizimava a vida de milhares de brasileiros e fustigava a economia do País, Bolsonaro tenha sequestrado a agenda do Congresso para uma pauta natimorta e sem nenhum clamor popular: o voto impresso. “Vai ter voto impresso em 2022 e ponto final”, disse na ocasião em mais um arroubo autoritário. “Se não tiver voto impresso, é sinal de que não vai ter eleição.” Nada exprime melhor, quase que literalmente, a cortina de fumaça ininterruptamente regurgitada pelo Palácio do Planalto para disfarçar o seu desgoverno que a fuligem preta dos blindados mobilizados por Bolsonaro para intimidar o Parlamento no dia da votação sobre o voto impresso.

A ex-presidente Dilma Rousseff exprimiu os sentimentos de muitos políticos – incluindo o do próprio clã Bolsonaro – ao afirmar que “pode fazer o diabo quando é hora das eleições”. O presidente vai além, e se mostra disposto a fazer o diabo para subvertê-las. Bolsonaro, que encerrou sua carreira militar com ameaças de bombas a quarteis, agora ameaça implodir o resultado das urnas.

É inaceitável que paire, após três décadas de redemocratização, o fantasma do golpe sobre as eleições. Ainda que Bolsonaro reedite com estonteante frequência suas acusações fraudulentas, não é tolerável normalizar esta atmosfera de exceção. 

Mas só notas de repúdio não bastam. Há meios legais para punir eventuais atentados ao processo eleitoral. Há a legislação eleitoral, há a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito e há a Lei dos Crimes de Responsabilidade. Bolsonaro já é investigado pelo TSE por difundir informações falsas sobre o processo eleitoral. A Constituição legou ao Ministério Público, à Polícia Federal, ao Judiciário e ao Congresso todos os instrumentos necessários para impedir que as ameaças de Bolsonaro à liberdade política dos brasileiros e seus crimes contra a vontade do eleitor não fiquem impunes. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 29.09.22 às 03h00

Quando se começa a normalizar o autoritarismo, fica muito difícil reverter, diz analista americano

Brian Klaas, autor do livro ‘Corruptíveis’, fala sobre os perigos à democracia vividos em países como Brasil e EUA e avalia como agem os líderes políticos desses locais

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, presidente do Brasil  Foto: Tom Brenner / Reuters

“Quando você começa a normalizar o autoritarismo, a corrupção e as violações anti-democráticas, as pessoas começam a aceitar isso e fica muito difícil reverter”. Essa frase do analista político americano Brian Klaas reflete a preocupação de muitos eleitores no Brasil e em diferentes países que passaram por testes democráticos nos últimos tempos, entre eles os Estados Unidos, que viram o Capitólio ser invadido por partidários de Donald Trump no dia 6 de janeiro, data em que o Congresso estava reunido para certificar a vitória de Joe Biden como novo presidente americano.

No livro “Corruptíveis: o que é o poder, que tipos de pessoas o conquistam e o que acontece quando chegam ao topo’', Klaas discute a necessidade de se reformar sistemas para evitar que a corrupção seja uma prática daqueles que detêm o poder. Em conversa com o Estadão, o analista avalia o cenário eleitoral brasileiro, o impacto do discurso anticorrupção e como líderes internacionais continuam colocando a democracia em xeque em seus países.

Por que decidiu escrever esse livro?

Quando eu penso em todo o progresso que fizemos em todas as áreas da sociedade, vejo o quanto avançamos. Mas quando se trata de poder, temos ainda a mesma pergunta que tinham os gregos e romanos na Antiguidade: ‘como colocamos as pessoas erradas no poder?’. Eu queria prover o máximo possível de evidências científicas sobre esse problema e mostrar que é solucionável. Alguns pensam que é um problema inerente à humanidade, mas acho que podemos reformar os sistemas e fazer com que eles funcionem e, assim, ter melhores pessoas no poder.

Mas a corrupção está presente em todos os níveis de nossa sociedade.

Quando se tem a cultura da corrupção e sistemas que permitem a corrupção, isso atrai pessoas corruptas. De maneira geral, eu digo, sistemas errados atraem pessoas erradas. As pessoas tendem a culpar o outro, mas seria muito mais útil se a gente começasse a pensar nos sistemas que criam esse outro nessas posições de poder. O ditado diz que o poder corrompe. O livro fala que isso é totalmente verdadeiro, mas acredito que há uma necessidade de reformar o sistema primeiro para que ele funcione direito. Se você não é corrupto, precisa achar esse sistema atrativo. Os políticos brasileiros modernos não parecem tão atrativos porque temos um sistema que está afetando a estrutura de poder. E essas reformas podem vir de um líder que está disposto a fazê-las ou por pressão da sociedade.

Qual é o impacto das fake news nesse processo?

A política está se tornando disfuncional porque as pessoas não concordam mais sobre o que é real e o que é falso. A democracia requer o compartilhamento de um senso de realidade, no qual temos de concordar sobre o que está acontecendo antes de descobrir como arrumar. O problema é que se a realidade está sendo questionada, a política se torna um palco para essa espécie de guerra entre discursos, um ambiente de polarização disfuncional. Ninguém quer que isso se perpetue, a não ser que seja para ter mais poder.

Quantas pessoas querem passar o dia tendo mentiras contadas sobre elas, tendo de discutir constantemente o que é verdade e o que é mentira e cercadas de gente corrupta? Esse problema volta ao ponto de que certos tipos de pessoas se colocam em determinadas situações em troca de poder. E isso é mediado pelo sistema. Então, o sistema é cheio de fake news e cria problemas piores do que os que já existem. Para os eleitores, isso é problemático porque não se consegue avaliar alguém sem saber o que é real e o que é falso.

Qual é a importância das eleições?

As eleições podem ser muito úteis se funcionarem direito. Se há um bom trabalho dos jornalistas e uma boa avaliação dos eleitores, demandando as informações que os políticos não dão, a eleição pode ser muito útil porque é a oportunidade de o público avaliar o que quer dos que estão no poder. O problema vem quando se há informações que mostram que determinada pessoa está na política apenas pelo poder, e ainda assim alguns eleitores votam por esse candidato, em parte por conta de uma lavagem cerebral e das propagandas. Vladimir Putin é genuinamente popular na Rússia, por exemplo. Mesmo se as eleições fossem livres lá, ele provavelmente ganharia.

Temos a ideia de que se mostrarmos ao povo que determinada pessoa é corrupta e só quer o poder, então ela vai perder a eleição, e isso não é verdade. Acredito que parte disso se trata de avaliarmos nós mesmos, o que significa para a nossa sociedade ver que um número razoável de eleitores continua votando por alguém, sabendo o que de errado essa pessoa está fazendo? Isso, acredito, se aplica ao Brasil. Há uma questão que é: por que tanta gente, apesar das acusações óbvias contra (Jair) Bolsonaro, continua apoiando o presidente? Aqui a resposta não é apenas a desinformação, mas também as crenças sobre para que serve o poder. E, infelizmente, muita gente na política moderna - e isso é verdade tanto nos EUA quanto no Brasil - enxerga o poder como uma forma de ir atrás do seu inimigo, e não como uma forma de alcançar metas e melhorar vidas. Quanto mais a política se tornar uma batalha entre quem vence e quem perde, e menos uma forma de realizar ações concretas, mais teremos as pessoas erradas no poder.

Como a busca por soluções fáceis e rápidas influencia a continuidade de sistemas corruptos?

Durante momentos de crise no passado, e digo na idade da pedra mesmo, era razoável se voltar ao líder e pedir que ele solucionasse o problema de uma invasão, por exemplo. Em tempos de guerra, fazia sentido se voltar para alguém fisicamente mais forte. Mas esse sentido foi se adaptando. Agora, temos a tendência de nos voltarmos para quem fala ‘vou resolver isso para você’, quando na realidade sempre que se enfrenta uma situação complexa e problemática - como a atual no Brasil - você precisa de alguém que diga ‘será difícil, haverá custos’. Mas ninguém votará por essa pessoa. Por que continuamos sendo seduzidos por quem nos vende mentiras e promessas que não serão cumpridas? Por que continuamos sendo enganados? Parte do entendimento para combater isso é compreender que o seu ímpeto inicial é achar a solução simples e a resposta imediata.

Qual é o papel da religião nesse contexto?

Depende muito da sociedade. Em algumas, a religião tem um papel muito limitado na política; em outras, tem um papel determinante. Religião é uma área que pode se tornar uma espécie de fiscalizador do poder. Por exemplo, se você vive em uma sociedade onde o líder religioso tem legitimidade política, ele tem a posição única de criticar os que estão no poder de uma forma que pessoas comuns não poderiam e a população vai escutar. O poder religioso, isso eu posso dizer, está sujeito aos mesmos problemas do poder político. Muitas vezes, as pessoas abusam do poder religioso num sistema que não está regulado minimamente.

Falando dos EUA, é possível calcular o impacto do governo Trump para a democracia?

Sim, foi um dano enorme. Primeiro porque, e aqui existe um paralelo com o Brasil, a democracia basicamente funciona de acordo com normas e Trump violou quase todas. Como resultado, ele tornou essa prática normal. Então, as novas gerações de republicanos estão fazendo as mesmas coisas, testando o sistema como ele testou e agora vemos riscos significativos ao processo democrático. O problema maior é que o partido dele, o Republicano, está se tornando autoritário e vimos isso com o episódio de 6 de janeiro. O que acho preocupante sobre isso é que quando você começa a normalizar o autoritarismo, a corrupção e as violações anti-democráticas, as pessoas começam a aceitar e fica muito difícil reverter porque vira parte do novo normal em nossa política.

Acredito que o sistema democrático dos EUA está sob risco e o país pode se tornar não democrático em anos ou décadas. Isso seria terrível para os EUA e para o mundo, porque é o país com o maior quintal democrático no mundo. É muito falho em muitos aspectos, mas um mundo liderado pela China seria muito mais negligente com as leis, em minha opinião. E aqui acredito que há um paralelo com o Bolsonaro, quando começamos a considerar que o que ele faz é aceitável como comportamento político porque ele simplesmente fez coisas que antes eram inaceitáveis.

Falando do Brasil, vemos em alguns discursos políticos que vale tudo em nome do combate à corrupção. Qual é o perigo desse discurso?

O principal a se ter em mente é que proteger o sistema da democracia é mais urgente do que qualquer outra questão que exista, mais do que a questão da corrupção. E a razão para isso é que uma vez que a democracia se vai é muito, muito difícil recuperá-la. A maioria dos países que analisei onde a democracia havia sido quebrada, ela não havia sido recuperada, os países continuam sendo autoritários ou ditaduras, uma completa bagunça. É muito mais fácil defender o que resta da democracia do que tentar trazê-la de volta após ser destruída.

A segunda coisa a se ter em mente é que pessoas que são corruptas e abusam do poder frequentemente acusam seus oponentes de serem corruptos e abusarem do poder. É uma projeção. O problema é que num ambiente de fake news, as pessoas começam a se perguntar o que realmente está acontecendo. Veja o caso Trump: os próprios republicanos acusavam os democratas de serem anti-democráticos e isso é absurdo, mas eles diziam isso e os seus seguidores acreditavam. A corrupção pode ser usada, de forma cínica, como uma arma contra os inimigos. Como o presidente Xi na China ou em países como Madagascar, um presidente diz que vai acabar com a corrupção, mas o que realmente faz é ir atrás para acabar com seus inimigos e o círculo de amigos corruptos do presidente não são investigados ou processados.

Não estou dizendo que não se deveria haver uma preocupação com a corrupção. Apenas digo que é preciso ter cuidado porque qualquer movimento anticorrupção pode ser usado para que as pessoas que estão no poder e as que estão fora sejam tratadas de forma diferente quando agem de forma corrupta.

Qual é a importância de encontros internacionais, como a Assembleia-Geral da ONU, para esse contexto político?

As formas como os líderes internacionais interagem entre eles é um sinal de legitimidade. Ser convidado para um evento internacional é algo que os líderes no poder desejam. O ponto é que há formas diferentes de interagir no cenário internacional e é mostrar que existem consequências para os líderes que tomam determinadas ações. Por exemplo, acredito que alguns líderes não deveriam ser convidados para eventos internacionais em razão de seus atos. Mohammed Bin Salman, da Arábia Saudita, está muito provavelmente envolvido na morte do jornalista Jamal Khashoggi. Ele deveria ser tratado da mesma forma que Joe Biden, Emmanuel Macron e etc? Acredito que não. O mesmo vale para Putin. Acho que ele não deveria ser convidado para eventos internacionais.

A questão difícil é como calibrar isso para alguém como Bolsonaro, que não é a pior pessoa no mundo, existem ditadores que fizeram coisas muito piores que ele, mas que claramente está levando o Brasil para uma direção errada e cometendo sérios danos à democracia. O que é importante é pensar num sistema onde haja consequências para os líderes que se comportam de forma errada. E essa resposta pode vir dos eleitores, dos jornalistas, de cortes anti-corrupção ou juízes. Mas também pode ser uma resposta internacional e pode ser tratar esses líderes como pária. Abuso de poder precisa ter consequências e, infelizmente, aqueles que abusam do poder na esfera política hoje, não enfrentam as consequências. Geralmente não perdem as eleições, não são processados - Trump é um exemplo disso, se fosse qualquer outra pessoa no país já teria ocorrido o processo.

Qual é a importância da imprensa nesse contexto?

A maioria das pessoas não pode interagir com aqueles que estão tentando chegar ao poder. As pessoas comuns no Brasil têm pouco conhecimento do que Bolsonaro realmente está disposto a fazer porque nunca o conheceram, não conhecem seu entorno. Então, esse papel de dar informação sobre as pessoas poderosas recai sobre a imprensa e, por isso, uma das primeiras coisas que os líderes autoritários fazem é atacar a imprensa, tentar calá-la. Por isso, é tão importante defender a imprensa quando um ataque desse ocorre. É uma espécie de última chance de expor o comportamento de abuso de poder porque a imprensa pode dizer coisas que ninguém mais pode.

Como você se sentiu ao entrevistar ditadores para o livro?

O impressionante é que quando se conversa com pessoas que fizeram coisas horríveis, elas não parecem horríveis. Na maior parte do tempo, elas são charmosas, engraçadas e agradáveis. Isso é estranho quando você sabe que está falando com alguém acusado de crimes de guerra, por exemplo, e mesmo assim ri de suas piadas. Mas acho que no fundo a questão é que as pessoas que fazem coisas horríveis ao redor do mundo são, geralmente, muito habilidosas em manipular, são muito boas em fazer os outros gostarem dela.

Você acredita que o contexto pós-pandemia pode facilitar processos corruptos?

As pessoas estão saindo da pandemia exaustas. Em países autoritários, a pandemia permitiu a expansão dos poderes em formas que podem ser problemáticas no futuro. Mas também acredito que a pandemia nos ensinou lições importantes, como a necessidade de cooperar, dividir informações, procurar evidências para tomar decisões. Espero que isso transpareça na política também.

Algo que tento mostrar no livro a todo momento é que a eleição de nossos líderes não é racional. E precisamos pensar com cuidado nas evidências, biografias. Agora, no pós-pandemia, precisamos colocar os holofotes em nossos líderes, até porque alguns deles ganharam poderes excepcionais com a desculpa de conter danos e eles devem devolver essa autoridade. Mas sabemos que, em alguns países, esse estado de emergência será usado para perseguir os oponentes, mesmo que a intenção original da ampliação dos poderes tenha sido dar uma resposta ao aumento da Covid.

Fernanda Simas para O Estado de S. Paulo, em 28.09.22 às 20h57

Tebet carrega histórico de choques com MDB e experiência no Legislativo e no Executivo

Senadora chega à 1ª eleição presidencial em busca de romper polarização e com rachas na coligação

Simone Tebet durante evento do MDB que confirmou seu nome para a disputa à Presidência - Pedro Ladeira - 27.jul.22/Folhapress

A senadora Simone Tebet (MDB) participa de sua primeira corrida presidencial como uma das apostas para tentar romper a polarização entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL).

Mulher considerada combativa e com experiência política tanto no Legislativo como em cargos executivos, Tebet busca convencer os eleitores de que representa o novo —apesar de integrar as filas de um dos partidos mais tradicionais da política brasileira. Ela também enfrenta o desafio de crescer em meio aos rachas internos e dissidências que marcam o MDB e sua coligação.

Chega à semana final do primeiro turno em quarto lugar, com 5% das intenções de voto na mais recente pesquisa Datafolha. Alguns aliados, porém, já consideram uma vitória se ela se tornar o emedebista com melhor desempenho em um pleito presidencial, superando os 4,74% de Ulysses Guimarães em 1988.

Nesta semana, a Folha publica textos para explicar ao leitor um pouco mais sobre as trajetórias recentes de Lula, Bolsonaro, Ciro Gomes (PDT) e Tebet —os quatro mais bem colocados nas pesquisas.

TEBET E A BIOGRAFIA

Tebet entrou na política por intermédio de seu pai, Ramez Tebet (1936-2006), político influente em Mato Grosso do Sul e que chegou à presidência do Senado. Advogada e professora universitária, ela migrou para a vida pública e ocupou quatro cargos ao longo de sua trajetória. Foi deputada estadual, prefeita de Três Lagoas (MS) por dois mandatos, vice-governadora e agora conclui seus oito anos no Senado.

Sua campanha ressalta a reeleição como prefeita, com mais de 70% dos votos, como exemplo de sua qualidade de gestão. Como senadora, foi uma das vozes a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016. Apoiou o governo de seu correligionário Michel Temer (MDB), em particular as reformas econômicas, como a implantação do teto dos gastos e a reforma trabalhista.

Tornou-se presidente da Comissão de Constituição e Justiça, a mais importante do Senado. Também enfrentou seu partido e buscou se lançar duas vezes à presidência da Casa que seu pai presidiu. Desistiu de uma delas e foi abandonada pelo MDB na segunda tentativa, derrotada por Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Mesmo sem ser membro efetivo, participou da CPI da Covid e ganhou destaque durante as audiências da comissão, apontando irregularidades em documentos, extraindo declarações comprometedoras dos depoentes e reagindo ao ataque machista do ministro Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União).

TEBET E O MDB

A senadora sempre foi filiada ao MDB. Em suas falas, ressalta a história do partido e o exemplo de nomes como Ulysses Guimarães e Franco Montoro. No entanto, tem um passado e um presente de conflitos com a legenda, tanto em seu estado como em nível nacional. Emedebistas críticos sempre destacam que ela ingressou na sigla "protegida" por ser filha de um quadro respeitado e bateu de frente com caciques.

Em 2018, Tebet se recusou a disputar o governo de Mato Grosso do Sul, após a prisão do ex-governador André Puccinelli (MDB), de quem havia sido vice. Ela pouco teria a perder, uma vez que ainda estava na metade dos seus oito anos de mandato no Senado, mas alegou problemas pessoais e declinou.

Neste ano, seu marido, o deputado estadual Eduardo Rocha (MDB), integrou o governo de Reinaldo Azambuja (PSDB), ao qual o MDB local se opõe. Não à toa, ela teve apertos com palanques em sua base.

Tebet também desafiou o senador Renan Calheiros (MDB-AL) e chegou a lançar uma candidatura avulsa à presidência do Senado em fevereiro de 2019. Depois abriu mão de concorrer para aumentar as chances de derrotar seu correligionário. Ela declarou voto em Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), que venceu a disputa.

Dois anos depois, foi a escolhida do partido para disputar a chefia da Casa. Porém, enfrentou resistência para angariar votos e foi abandonada pelo MDB, que preferiu negociar cargos na Mesa Diretora.

Agora candidata à Presidência da República, vê Renan e a ala lulista do MDB declararem apoio para o candidato do PT. Assim, passou por dificuldades com palanques nos estados. Além disso, em alguns estados o MDB também debandou para o lado de Bolsonaro.

TEBET E O EQUILIBRISMO

A candidatura de Tebet busca tirar votos dos dois polos da corrida presidencial, mas a tentativa de não desagradar os extremos virou motivo de queixas de aliados nos bastidores. Críticos avaliam que ela evita tomar posições mais contundentes em temas importantes. A equipe dela e aliados rebatem essa visão, apontando uma tentativa reducionista de discutir política e de tentar enquadrá-la em certas posições.

Sua campanha explora o fato de ela ser mulher, mas uma das principais agendas do movimento feminista, a legalização do aborto, foi tema mais tratado por Lula e principalmente por Bolsonaro durante o período eleitoral. Ela afirma ser contrária à legalização do procedimento, com exceção dos casos atualmente previstos na Constituição. Defende, entretanto, que ocorra o debate sobre o assunto.

Tebet montou uma equipe econômica de caráter extremamente liberal. Defende o teto de gastos e privatizações, com exceção da Petrobras e de bancos públicos. Tem, ainda, dificuldades para explicar como manterá benefícios sociais nessas condições. Aponta que será com o fim das emendas de relator, recursos do Orçamento distribuídos com base em acordos políticos costurados pela cúpula do Congresso.

TEBET E AS PAUTAS CONSERVADORAS

Tebet se tornou uma das principais adversárias de Bolsonaro, mas uma análise do seu histórico de votação mostra certa proximidade ideológica. Ela votou junto com o governo em praticamente todas as questões econômicas —com a exceção mais notória da privatização da Eletrobras.

A senadora cnsidera a política ambiental do presidente um desastre, mas chegou em alguns momentos a mostrar simpatia com algumas medidas. Defensora do agronegócio, agradou o ex-ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) ao afirmar a ele, numa sessão do Senado, que o "Ibama multa muito e multa mal".

Como presidente da CCJ, articulou derrotas ao governo na questão dos decretos que flexibilizam regras sobre armas. Por outro lado, defende a proposta que permite a posse em propriedades da zona rural.

TEBET E O COMBATE À CORRUPÇÃO

Tebet foi uma apoiadora da Lava Jato e segue dizendo que a operação cumpriu papel importante. Hoje afirma que houve excessos, mas usa suas descobertas para criticar a corrupção em gestões do PT.

Também defendeu a prisão em segunda instância, mas se mostrou contra uma CPI para investigar o Judiciário. Sua equipe ressalta que ela é ficha limpa e não responde por episódios de corrupção. Chegou a ser alvo de ações de improbidade durante seu mandato como prefeita, mas os casos foram arquivados.

Tebet também critica a política do "toma lá, dá cá" e a falta de transparência, mas concordou em indicar municípios para receber recursos ao combate à Covid, numa cota que o governo destinou para aliados.

Renato Machado, de Brasília - DF para a Folha de S. Paulo em 28.09.22 às 23h05

Partido de Bolsonaro questiona urnas às vésperas da eleição, e TSE chama relatório de mentiroso

Tribunal diz que conclusões são fraudulentas e cita que já cassou parlamentares por fake news

Teste Público de Segurança das urnas eletrônicas, feito em maio, em Brasília - Pedro Ladeira - 12.mai.22/Folhapress

Quatro dias antes das eleições, relatório apresentado pelo PL, partido de Jair Bolsonaro (PL), questionando a segurança das urnas eletrônicas fez o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) elevar o tom, chamar o documento de fraudulento, abrir investigação e citar que parlamentares já foram cassados por divulgar informações falsas sobre o pleito.

O TSE afirmou que as conclusões do partido são falsas, mentirosas, fraudulentas e visam tumultuar as eleições.

"Sem nenhum amparo na realidade, reunindo informações fraudulentas e atentatórias ao Estado Democrático de Direito e ao Poder Judiciário, em especial à Justiça Eleitoral, em clara tentativa de embaraçar e tumultuar o curso natural do processo eleitoral", disse o tribunal presidido por Alexandre de Moraes.

O relatório foi divulgado no momento em que Bolsonaro repete insinuações golpistas e aparece em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto a presidente, atrás de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Chamado de "resultado da auditoria de conformidade do PL no TSE", o documento apresentado pelo PL nesta quarta-feira (28) tem duas páginas e afirma que "o quadro de atraso encontrado no TSE" gera "vulnerabilidades relevantes" e pode resultar em invasão interna ou externa nos sistemas eleitorais. "Com grave impacto nos resultados das eleições", diz ainda o partido.

Em nota, o tribunal afirma que "diversos dos elementos fraudulentos" citados no documento do partido de Bolsonaro são objetos de investigações no Inquérito das Fake News, que tramita no STF (Supremo Tribunal Federal), sob relatoria de Moraes.

O tribunal ainda cita que já cassou parlamentares que divulgaram informações falsas sobre o pleito, e anunciou que enviou o documento do PL ao inquérito do Supremo e para o corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves.

"Para instauração de procedimento administrativo e apuração de responsabilidade do Partido Liberal e seus dirigentes, em eventual desvio de finalidade na utilização de recursos do Fundo Partidário", afirmou o TSE.

O relatório foi apresentado no momento em que a legenda dá sinais divergentes sobre o pleito. Enquanto Bolsonaro tem repetido ataques ao TSE, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, faz acenos à corte. Ele esteve com Alexandre de Moraes na terça-feira (27) e, no dia seguinte, disse que não há "sala secreta" de apuração dos votos, ao contrário do que afirma o mandatário.

A repercussão sobre o documento ainda marca novo episódio de atrito entre Moraes e Bolsonaro.

Na terça-feira (27), o chefe do Executivo disse que Moraes "ultrapassou todos os limites" com a decisão de quebra de sigilo bancário de seu principal ajudante de ordem, tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, por ter atingido gastos da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

Há uma série de barreiras de segurança e procedimentos de auditoria e fiscalização que permitem a terceiros, como a PF (Polícia Federal), as Forças Armadas e partidos políticos, fiscalizar a atuação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Não há nenhum caso de fraude confirmada no sistema eletrônico de votação. Ainda assim, Bolsonaro levanta uma série de teorias da conspiração sobre a urna desde antes de chegar ao Planalto.

Neste ano, Bolsonaro ainda tem usado questionamentos feitos pelas Forças Armadas como combustível para os ataques ao sistema eleitoral.

A existência do documento havia sido noticiada pela Veja. O papel foi divulgado à imprensa na tarde desta quarta-feira (28) pelo deputado Capitão Augusto (PL-SP).

Os partidos políticos podem fiscalizar as eleições. O PL contratou equipe comandada pelo engenheiro Carlos Rocha para este trabalho.

"Estes fatos recomendam à alta direção da organização [o TSE] tomar ações de precaução e a realização de auditoria independente do funcionamento da urna eletrônica, na seção eleitoral", disse Rocha à Folha. Ele afirmou que o documento é um resumo de trabalho de 130 páginas.

Questionado sobre a chance de Bolsonaro usar o documento para levantar a tese de fraude no pleito, Rocha disse que "o objetivo do PL é colaborar de forma construtiva com a Justiça Eleitoral".

"Quem audita constrói valor para a organização auditada. O objetivo do PL é colaborar de forma construtiva com a Justiça Eleitoral. Com esta intenção positiva foi marcada uma audiência com o Ministro Alexandre de Moraes ontem, para apresentar os resultados e propor uma auditoria independente do funcionamento da urna eletrônica", disse o engenheiro.

Rocha é fundador do IVL (Instituto Voto Legal), entidade que chegou a ser indicada por Bolsonaro para uma auditoria privada das eleições. Como essa fiscalização não saiu do papel, o PL contratou o engenheiro para representar o partido na análise do pleito.

O relatório foi encaminhado ao secretário-geral do TSE, José Levi Mello do Amaral Junior, no último dia 19.

No email enviado ao TSE, Rocha diz que tenta, desde 1º de agosto, uma reunião para apresentar o relatório "à alta direção do TSE". Em anexo, ele envia dois documentos, sendo que o relatório completo da auditoria ainda não foi divulgado.

"Documentos que descrevem um quadro de riscos elevados de quebra de segurança nos sistemas eleitorais que merecem atenção urgente e medidas preventivas", escreveu.

No documento já apresentado, o partido de Bolsonaro afirma que "o Relatório de Autoavaliação do TSE de 2021 apresentou sete notas zero, dadas pelos próprios servidores do tribunal", em áreas como "gestão de continuidade do negócio, gestão de incidentes de segurança da informação", entre outras.

O PL também afirma que "um grupo restrito de servidores e colaboradores" do TSE controla os códigos-fonte dos sistemas eleitorais.

O tribunal, porém, abriu este código em outubro de 2021 para análise dos partidos. Representantes do PL foram à corte, assinaram uma lista de presença, mas não fizeram a análise.

O relatório também diz que não foram encontrados mecanismos "para proteger estas pessoas expostas politicamente (PEP) [que lidam com o código] contra a coação irresistível, gerando outro risco elevado."

Auxiliares de Valdemar tentam desvincular o presidente do PL da versão de que o relatório vai servir para dar lastro às acusações golpistas de Bolsonaro. Eles afirmam que uma ala bolsonarista do partido decidiu divulgar o texto com este viés.

Valdemar conversou com Moraes sobre o relatório. O dirigente partidário teria afirmado que o espírito da fiscalização é de colaboração, não de contestação, apesar de Bolsonaro já ter citado a auditoria em tom de ameaça ao TSE.

A intenção do presidente do PL seria contribuir com o processo eleitoral, mas não questionar o resultado das urnas, dizem ainda estes interlocutores de Valdemar.

Na avaliação de integrantes do partido ligados ao dirigente, a realização da auditoria e a divulgação do resultado dela também é uma forma de o ex-deputado prestar contas a Bolsonaro e mostrar que endossa seus argumentos para evitar atritos com o mandatário.

Bolsonaro, porém, tem repetido ataques às urnas e insinuações golpistas. Ele se nega a afirmar que vai deixar o poder caso seja derrotado no pleito deste ano.

Aliados do presidente do PL, no entanto, dizem que o dirigente não pretende embarcar em questionamentos ao resultado do pleito.

Nesta quarta-feira (28), Valdemar acompanhou uma visita de representantes de presidenciáveis à sala de totalização dos votos.

"Não tem mais [sala secreta]. Agora é aberta", disse Valdemar ao visitar o setor. O espaço, porém, já era aberto aos partidos e fiscais das eleições em pleitos anteriores.

Mateus Vargas, Julia Chaib e Marianna Holanda, de Brasília - DF para a Folha de S. Paulo, em 28.09.22

As derrotas domésticas de Putin

A resistência cidadã à mobilização parcial abre uma frente interna ao Kremlin após a retirada das tropas na Ucrânia

Um homem observa um grupo de reservistas recrutados da Rússia para a guerra na Ucrânia.(Crédito: Alexey Malgavko - Reuters)

A guerra mudou de direção tanto no campo de batalha quanto na própria Rússia de Vladimir Putin. O Kremlin enfrenta hoje uma resposta interna incomum, quando dezenas de milhares de homens, nem todos jovens, estão fugindo para o exterior para escapar do recrutamento forçado que oculta a declaração de mobilização parcial de tropas na reserva. Manifestações contra a guerra proliferam em todas as grandes cidades, ataques com coquetéis molotov a centros de recrutamento e até um com arma de fogo. Os protestos e boicotes são especialmente intensos nas repúblicas federadas, onde há minorias, menos protegidas que a população russa, e submetidas de fato a uma limpeza étnica camuflada.

Com suas últimas decisões, Putin conseguiu romper um pacto implícito com as classes médias urbanas. Em troca do silêncio sobre a Ucrânia, Putin tentou garantir que a guerra não afetasse seu cotidiano e principalmente sua economia, a ponto de manter o eufemismo de uma operação técnico-militar. A severa derrota sofrida em Kharkov obrigou-o agora a uma mobilização parcial para ter literalmente bucha de canhão suficiente para sustentar a contra-ofensiva do exército ucraniano, decisão que deveria implicar a declaração explícita de guerra. Não se trata nem mesmo de ter novas tropas para recuperar o território perdido, mas apenas para evitar que o território que ainda está nas mãos dos russos fique desprotegido.

O recrutamento de mercenários e prisioneiros em troca de indultos não é mais suficiente. Putin escolheu um caminho aparentemente intermediário com o desejo de obter o mesmo resultado, ou seja, ter 300 mil homens disponíveis nos próximos meses. Esse contingente não é garantido pela convocação de reservistas com experiência de combate, e o obriga a recrutar indiscriminadamente jovens sem experiência militar, homens com idade superior à da reserva e até doentes. A população provável a ser convocada pode ser de cerca de 1,2 milhão de homens.

Embora a pressão de recrutamento seja tanto mais intensa quanto mais distante das grandes cidades e quanto mais carece de influência na Administração e quanto mais desprotegida está a população, no final a convocação acaba por produzir um efeito de desmantelamento e generalização deserção que constitui para Putin uma nova derrota, esta interna, e uma mensagem profundamente desmoralizante para seus partidários. A Rússia também é vítima da guerra de Putin. A debandada que está levando os russos ao exílio terá efeitos negativos na economia e, claro, na vitalidade da sociedade, cada vez mais empobrecida em pessoal técnico, universitário e intelectual.

A resistência cidadã que Putin está enfrentando hoje pode torná-lo mais perigoso também. Não surpreendentemente, o eventual uso de uma arma nuclear por um presidente encurralado se tornou um elemento central da conversa global sobre a Ucrânia. A anexação das quatro províncias ucranianas onde foi encenada a farsa dos referendos de autodeterminação pode ser o primeiro passo. Essas decisões também fazem parte da arrogância intimidadora de quem atualmente governa em Moscou. Os aliados de Kiev não devem se deixar intimidar por ameaças, mas também não devem cair na demonização de toda a população russa , a ponto de fechar as fronteiras para quem busca asilo político nos países vizinhos e ao mesmo tempo dificultar a manobra astuta do recrutamento parcial do falso Putin.

Editorial do EL PAÍS, em 28.09.22

Senado dos EUA aprova recomendação de romper relação com o Brasil em caso de golpe

Em sua defesa da medida, no plenário do Senado, Sanders afirmou que o texto não era favorável a qualquer candidato e sim favorável ao rompimento de relações e assistência militar entre países em caso de um golpe.

O senador americano Bernie Sanders apresentou a resolução aprovada pelo Senado dos EUA

O Senado dos Estados Unidos aprovou por unanimidade, na noite desta quinta-feira (28/9), uma resolução apresentada pelo senador Bernie Sanders e outros cinco senadores democratas para defender a democracia no Brasil.

"Não estamos tomando lado na eleição brasileira, o que estamos fazendo é expressar o consenso do Senado de que o governo dos EUA deve deixar inequivocamente claro que a continuidade da relação entre Brasil e EUA depende do compromisso do governo do Brasil com democracia e direitos humanos."

"O governo Biden deve deixar claro que os Estados Unidos não apoiam nenhum governo que chegue ao poder ao Brasil por meios não democráticos e assegurar que a assistência militar é condicional à democracia e transição pacífica de poder", afirmou Sanders.

A medida não contava com apoio declarado de nenhum republicano, mas, pelas regras da Câmara Alta, se nenhum senador objeta a um texto de resolução, ele é aprovado por unanimidade na casa.

A aprovação acontece a apenas 4 dias da eleição presidencial no Brasil e após repetidas acusações, sem provas, do presidente Jair Bolsonaro (PL) de que o sistema eleitoral brasileiro não é seguro e de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é "parcial". De acordo com as pesquisas eleitorais, Bolsonaro, que tenta a reeleição, está atualmente atrás de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"É imperativo que o Senado dos EUA deixe claro por meio desta resolução que apoiamos a democracia no Brasil", disse Sanders.

"Seria inaceitável que os EUA reconhecessem um governo que chegou ao poder de forma não democrática e enviaria uma mensagem horrível para o mundo inteiro. É importante que o povo brasileiro saiba que estamos do lado deles, do lado da democracia. Com a aprovação desta resolução, estamos enviando essa mensagem."

"É a primeira vez em muitas décadas que vemos esse tipo de resolução em relação ao Brasil. Isso não aconteceu nem mesmo durante a ditadura militar", afirmou James Green, historiador da Brown University e presidente do Washington Brazil Institute.

A resolução é a última sinalização de autoridades americanas que iniciaram há alguns meses um movimento contínuo e constante de expressar preocupação com a situação política no Brasil. Apenas esta semana houve ao menos outras duas manifestações públicas.

O presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro repetidamente coloca o sistema eleitoral brasileiro em dúvida (Crédito Reuters)

Na segunda-feira (26/9), o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, disse à BBC News Brasil que "como parceiro democrático, os EUA acompanharão as eleições de outubro com grande interesse".

"Esperamos que as eleições sejam conduzidas de maneira livre, justa e confiável, uma prova da força duradoura da democracia brasileira", acrescentou.

Na terça, apenas seis dias antes de os brasileiros irem às urnas, a porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, afirmou em coletiva de imprensa que os americanos "monitorariam" a eleição no domingo e expressou preocupação com a escalada de violência política nas ruas.

"Os EUA condenam a violência e pedem que os brasileiros façam suas vozes serem ouvidas de maneira pacífica", afirmou Jean-Pierre.

Para a cientista política e ex-assessora legislativa no Congresso dos EUA, Beatriz Rey, o movimento é "mais um endosso político para as ações que tanto a Casa Branca quanto o Departamento de Estado já vem tomando".

A expectativa é que os EUA reconheçam o resultado da urna o mais rapidamente possível após o anúncio do vencedor pelo TSE, no próximo domingo ou no dia 30 de outubro, em caso de segundo turno.

A resolução foi apresentação pelos senadores Bernie Sanders, Tim Kaine, chefe do subcomitê de Relações Exteriores do Congresso para o Hemisfério Ocidental; Patrick Leahy, Jeff Merkley, Richard Blumenthal e Elizabeth Warren.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de  Washington para a BBC News Brasil em 28.09.22. /  Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63070321

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Brasil precisa renovar seus quadros políticos

'É para rir ou chorar?', pergunta leitor sobre o exposto na coluna de Muniz Sodré. Veja mais o que dizem os leitores na seção de Cartas da Folha de S. Paulo.

Bolsonaro participa de sessão da Câmara para promulgar emenda que permite a militares-médicos acumularem função - Alan Marques - 11.fev.2014/Folhapress

Renovar

O Brasil mereceria renovar muito mais os seus quadros políticos. Ao ver a caricaturesca propaganda eleitoral, às vezes me lembro de pessoas que vi pela última vez há quatro anos, na campanha de 2018. Se eleitos, se tornarão tão invisíveis quanto Bolsonaro conseguiu ser durante 28 anos, em que aprovou apenas dois projetos de lei de sua autoria.

Ademir Valezi (São Paulo, SP)

Responsável

Em "Tiro no pé" (Opinião, 24/9), a menção ao "programa responsável" do primeiro governo de Lula aparece não só por não ter como deixar de reconhecer que os demais governos foram piores mas para induzir o leitor a associar o "responsável" ao que a Folha entende como tal. Houve privatizações nos governos Lula e Dilma, criticadas, com sinais trocados, tanto pelo PT como pelo PSDB. Ao exigir a combinação "liberalismo econômico e responsabilidade social", o ultimato da Folha esqueceu Collor, FHC e Temer. Eles atenderam, com louvor, apenaso primeiro quesito, estando, portanto, reprovados.

José Zimmermann Filho (São Paulo, SP)

Providencial o editorial "Tiro no pé". É mesmo fundamental que o Brasil saiba, e antes da votação, qual a direção e o sentido da quinta gestão petista. Não esqueçamos que as gestões anteriores mostraram, por um lado, a realização do sonho cidadão do país para todos. Por outro, uma danosa e contundente face oculta, ancorada nos vícios da política tradicional.

João Carlos Araújo Figueira (São Paulo, SP)

Economia

É espantoso como existe tanta gente ingênua ou desmemoriada, que ainda se ilude com uma sensação de melhora (temporária, eleitoreira e artificial, é bom que se diga) na economia ("Otimismo com economia bate recorde do governo Bolsonaro, diz Datafolha",Mercado, 24/9). Será que não conseguem perceber que essa melhora é passageira e aconteceu apenas por puro desespero do presidente que tenta a todo custo se reeleger? Esperem para ver os preços de combustíveis depois da eleição.

Ary Braz Luna (Sumaré, SP)

Deveres

São óbvias as inconsistências das proposições desenvolvidas por Rubens Ricupero para ilustrar seu apoio à candidatura de Lula ao Planalto ("O dever dos neutros 2", Tendências / Debates, 24/9). O diplomata tenta caracterizar o atual presidente como uma ameaça ao Estado de Direito. Essa postura é contrária à realidade, pois quem está atacando a valer o ordenamento jurídico pátrio são aqueles membros do STF que promovem ilegalidades, como o aberrativo inquérito das fake news. No Brasil de hoje, o mais significativo defensor da Lei Maior é Jair Bolsonaro.

João Paulo Zizas (São Bernardo do Campo, SP)

Rubens Ricupero no lançamento do livro "O Brasil Não Cabe no Quintal de Ninguém" - Mathilde Missioneiro - 26.set.2019/Folhapress

Perfeito o artigo do diplomata Rubens Ricupero. A escolha atual é entre a civilização e a barbárie, a democracia e a ditadura, o respeito e o desrespeito, a liberdade e a repressão.

Marcos Barbosa (Casa Branca, SP)

Com argumentos incontestáveis e sólidos, com sua história de competência e seriedade e o reconhecimento diplomático que representou quando o Brasil era respeitado internacionalmente, Rubens Ricupero faz seu alerta mais uma vez para que a cegueira não tome conta da maioria dos brasileiros no próximo domingo.

Sebastião Galinari (São Paulo, SP)


Se Lula ganhar

O artigo de Marilene Felinto neste domingo ("Se Lula ganhar", Ilustrada Ilustríssima) é importante. Esclarece para todos os que fomos vítimas do Lulo-petismo e da desgraça econômica de Dilma 2, o quanto o fanatismo petista é cego e dono de uma narrativa própria e fantasiosa sobre o famigerado golpe de uma presidente irresponsável fiscalmente e eleita com bilhões em corrupção. Nada poderia ser mais divertido, não fôssemos todos vítimas dos 13 anos de desgoverno do PT.

Tomas Cunzolo Júnior (São Paulo, SP)

Li o texto de Marilene Felinto com o coração disparado. Ali estão todas as nossas inquietações e medos. Se Lula ganhar, como reagirá a imprensa? "Vão inverter de novo o lide. Vão esconder de novo o fato, jogá-lo para o fim do texto?". Ocorrerá a "distorção da realidade pela imprensa a um governo de esquerda"? Que São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas, e todos os deuses do bom senso favoreçam os homens e mulheres da imprensa.

Ramira Pires (Araraquara, SP)

Voto útil

Comprar a narrativa de que votar no ex-presidente é "votar pela democracia", declarando apoio ao ex-presidiário já no primeiro turno das eleições, constitui, para mim, uma imperdoável desonestidade intelectual. Que a banda podre do MDB, parte do anacrônico, desmoralizado e falido PSDB e os políticos em geral (usando o pior significado de "políticos") apoiem previamente o embusteiro já era esperado. Mas ver pessoas esclarecidas e influentes apoiando o "criminoso inocentado" já no primeiro turno, alegando "defesa da democracia", é de desanimar qualquer um.

José Roberto dos Santos Vieira (São Paulo, SP)

Voto útil no primeiro turno salva vidas. Em três anos, perdemos centenas de milhares de brasileiros para as milícias e para a Covid. Enquanto isso, imóveis são pagos com dinheiro vivo, armas são distribuídas a pessoas prepotentes, violentas e preconceituosas e o orçamento secreto usurpa verba da merenda escolar, da saúde, da educação, da ciência, dos direitos humanos, do meio ambiente.

Maria da Graça Pimentel (São Carlos, SP)

Riso e choro

O artigo "Ferro-velho ao mar" (Opinião, 24/9), de Muniz Sodré, que trata de forma jocosa a compra pelo Brasil de dois porta-aviões e lembra a famosa marchinha composta por Juca Chaves, remete à (eterna?) ridícula condição de nação subdesenvolvida. E ainda deixa uma sensação incômoda: é para rir ou para chorar?

Luís Valise (São Paulo, SP)

O porta-aviões Minas Gerais - Patrícia Santos/Folhapres

Onda anti-PT de 2018 não reverteu numa onda pró-PT em 2022, a hora é de racionalidade

Bolsonaro moveu mundos e fundos, mas não conseguiu inverter as posições, nem mesmo ameaçar a liderança de Lula

Com Ipespe divulgada neste sábadio, 24, agregador Estadão Dados mostra Lula com 52% dos votos válidos, contra 36% de Bolsonaro. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação e Carla Carniel/Reuters

Reta final de campanha, nervos à flor da pele, excitação e medo, mas o fato é que a vantagem do petista Lula sobre o presidente Jair Bolsonaro vem desde 2018, atravessou todo o governo e se manteve bastante estável ao longo de toda a campanha de 2022. Bolsonaro moveu mundos e fundos, mas não conseguiu inverter as posições, nem mesmo ameaçar a liderança de Lula.

A dúvida na última semana é segundo turno ou não, porque dois fatores selaram o destino das eleições. O primeiro é a força indestrutível de Lula no Nordeste e entre os mais pobres e as mulheres, maiores eleitorados do País, com memória positiva dos dois mandatos de Lula. O segundo fator da desvantagem de Bolsonaro é Bolsonaro, incansável em gerar, ampliar e cristalizar uma ojeriza nacional contra ele.

Seus seguidores dizem que nunca houve um ataque tão sistemático contra um presidente. A realidade é que nunca houve um presidente tão obcecado em falar as coisas mais absurdas, agir de modo desmiolado, ameaçar a estabilidade nacional e corroer a imagem do Brasil no mundo. Ele não foi a vítima dos ataques, foi o autor. E atingiu um objetivo que nem o mais célebre marqueteiro do mundo conseguiria: esmaecer o antipetismo no País.

De nada adianta Bolsonaro consumir seus derradeiros programas de rádio e TV com o que todo mundo está careca de saber. Ninguém esqueceu o mensalão, a sanha contra a nossa Petrobras, as delações premiadas, os bilhões devolvidos aos cofres públicos e os conluios nos palácios. A questão é de prioridade.

Se a corrupção é devastadora sob qualquer ângulo, as maiores ameaças ao Brasil e aos brasileiros passaram a ser outras, ainda mais assustadoras: à democracia, à Justiça, aos direitos, à igualdade, à sobrevivência dos mais pobres e à própria vida.

É inacreditável que tantos sigam, mas é impossível que a maioria apoie quem defende tortura, milícias e armas fora de controle, crie caso com nações amigas, trate a cultura como inimiga, não tenha uma palavra para os miseráveis, negue a fome e a importância do meio ambiente, corte verbas dos programas mais essenciais para pobres e ache engraçado alguém morrendo sem ar (e assistência) na pandemia.

Em 2018, a onda anti-PT virou “antissistema” e liquidou candidatos experientes aos governos e ao Congresso para dar a vez a gente como Wilson Witzel e Daniel Silveira. Em 2022, não há uma onda pró-PT, mas uma lufada de racionalidade para uma união de forças que recupere o que foi destruído e princípios como democracia e humanidade, numa transição para o futuro. Com atenção máxima aos menores sinais de corrupção.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado, Rádio Jornal (PE) e do telejornal GloboNews em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.09.22