quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Tebet promete acabar com reeleição, critica polarização e defende desmatamento zero da Amazônia

Candidata ressalta ausência de Lula e Bolsonaro em sabatina do GLOBO, Valor e CBN: 'Os dois não têm coragem por não terem proposta'

Em entrevista, Tebet promete acabar com reeleição, critica polarização e defende desmatamento zero da Amazônia Simone Tebet na sabatiba do O GLOBO, Valor e CBN Brenno Carvalho / Agência O Globo

Consolidada em quarto lugar nas pesquisas de intenção de voto, a candidata da terceira via à Presidência Simone Tebet (MDB) fez duras críticas à polarização das eleições entre Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e à ausência de ambos na sabatina promovida, nesta quinta-feira, pelo GLOBO, Valor e CBN.

Na entrevista, Tebet garantiu ainda que, caso eleita, vai acabar com a reeleição. Ela condenou os governos do PT que fizeram de tudo para continuar no poder, citando casos como o mensalão e o petrolão.

— Quero apresentar propostas reais e acabar com essa polarização que está levando o Brasil para um populismo. Os dois que mais pontuam não estão tendo coragem de se apresentar ao Brasil, porque não têm proposta. Eles têm projeto de poder, não de país — disse a candidata.

Entre suas bandeiras para conquistar o eleitor que ainda está indeciso, Tebet destacou a proposta de desmatamento ilegal zero da Amazônia, a defesa do investimento em Ciência, Tecnologia e Inovação fora do teto de gastos e a manutenção de estatais importantes e superavitárias, como a Petrobras.

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A candidata manteve um discurso mais conservador ao tratar de aborto — só é a favor dos casos previstos em lei — e feminismo. Tebet reafirmou que a legalização ampla do aborto não tem condições de passar no Congresso.

Confira os principais momentos da entrevista:

'Sou liberal na economia, mas não sou fiscalista sem alma'

Apesar de ser a favor do teto de gastos implementado nos últimos governos, Tebet pretende tratar Ciência, Tecnologia e Inovação como investimento. Segundo a candidata, esse setor não pode ser considerado gasto.

— O Brasil precisa voltar a crescer. Brasil não cresce sem indústria. Nos últimos 15 anos, tivemos decréscimo da participação da indústria. Temos que investir muito em agenda de tecnologia e produtividade. Garantindo ensino médio de qualidade para que o jovem esteja preparado para produzir bem e receber melhores salários. E por outro lado, garantir minimamente condições para que indústria possa produzir. É possível enxugar a máquina sem furar o teto, a única questão é a Ciência, Tecnologia e Inovação. Não podemos aceitar que isso seja custo, é investimento, isso é muito claro — declarou.

Candidata a presidente, Simone Tebet é entrevistada no GLOBO — Foto: Brenno Carvalho/Agência O Globo

A senadora também se posicionou contra a privatização da Petrobras e criticou o ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes:

— Sou liberal na economia, mas não sou nem fiscalista sem alma e muito menos me aproximo desse pseudo liberalismo do atual ministro da economia — criticou.

Simone Tebet na sabatiba do O GLOBO, Valor e CBN — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Tebet explicou que são necessários critérios no processo de privatização de estatais, destacando que há as deficitárias e as superavitárias.

— Temos mais ou menos 49 estatais, mais de 100 subsidiárias. Queremos critérios, não é privatizar por privatizar. Não é Estado mínimo ou máximo, é aquilo que ele se propõe a fazer: regular o mercado, fiscalizar e controlar, mas o grande papel do Estado é prestar serviço de qualidade à população. Qual é a grande responsabilidade do Estado? Garantir futuro do Brasil com uma segurança de qualidade, investir em saúde pública, habitação, em segurança pública. As deficitárias, que não são de estratégia nacional, vamos privatizar — disse.

Terceira via

Mesmo com o baixo percentual de intenção de votos nas pesquisas atuais, Simone Tebet afirmou acreditar haver espaço para uma candidatura fora do atual cenário polarizado entre Lula e Bolsonaro, principalmente pelo alto número de indecisos.

— Um terço do eleitor ainda não fez sua escolha. Essa é uma campanha curta, mas é uma campanha sim polarizada. Estamos com medo votando em um para não ter o outro. É uma campanha do ódio, da segregação, da polarização e do extremismo. Uma campanha hoje em que os dois mais rejeitados se despontam e é ai que nós vamos nos apresentar — disse.

A senadora criticou a desistência de outras candidaturas tidas como terceira via ainda no ano passado.

— No desespero, jogaram a toalha muito cedo em relação à terceira via. Tínhamos oito pré-candidatos, todos com grandes nomes e eu era café com leite, era a "azarona", o azarão do processo. Não aceito o Brasil na maior crise do país ter que escolher o menos pior. Isso não vai dar certo. Qualquer um que ganhar vai arrastar o segundo turno para o dia 31 de dezembro de 2026. Não passa reforma, tudo vai ser difícil — argumenta.

'Sou contra invasão de qualquer lado'

Sobre as invasões em áreas indígenas demarcadas e não demarcadas na Amazônia, Tebet foi taxativa:

— Sou contra invasão de qualquer lado. Tanto a invasão na Amazônia de áreas públicas de grileiros, mineradores ilegais, invasores de áreas públicas que desmatam a Amazônia. E, portanto, no meu governo, vai ser desmatamento ilegal zero da Amazônia e dos biomas brasileiros porque venho do Pantanal e sei o que está acontecendo inclusive no meu bioma. Tudo se resolve dentro da lei, com diálogo,moderação e equilíbrio. Sou a favor de toda demarcação de terra indígena, mas sou contra toda invasão dessas áreas antes, seja por um lado, seja por outro — disse a senadora.

Com relação ao meio ambiente, Tebet afirma que é possível colocar de pé o projeto do desmatamento ilegal zero da Amazônia e justifica a ausência do Cerrado em seu plano de governo. Esse é o bioma mais afetado pelo desmatamento na região Norte e Centro-Oeste do país.

— O desmatamento ilegal é zero. Só isso já resolve o problema com o Acordo de Paris. Se é ilegal, não pode servir para o Cerrado, para a Caatinga, para os Pampas gaúchos, para nada. Temos que fazer duas distinções: o desmatamento ilegal é responsável por praticamente 98% dos problemas, inclusive de emissão de CO2. Esse é o objetivo central. A partir daí é uma discussão com o Congresso Nacional de legislação. Meio ambiente é vida, ou entendemos isso ou as portas se fecham para o Brasil — justificou.

Projetos para educação

Tebet destacou a reforma feita pelo ex-presidente Michel Temer no ensino médio, e que não foi totalmente implementada. Ainda prometeu garantir período integral aos jovens.

— No ensino médio, é colocar para funcionar a reforma do ensino médio. Toda escola estadual que garantir período integral para os nosso jovens, vai ter R$ 2 mil reais por aluno pago para o estado. Isso não é ideia minha, está lá (na reforma do ensino médio). A história vai reconhecer a maior reforma que o presidente Temer fez, que foi a reforma do ensino médio no Brasil, que vai ser implementada pelo nosso governo no ano que vem — garante.

No projeto de governo, a candidata ressaltou ainda a poupança jovem que será de responsabilidade do governo.

— Vamos depositar, todo final do ano, um dinheiro para cada ano que jovem concluir no Ensino Médio: o primeiro ano, o segundo e o terceiro. No final, ele vai tirar esse dinheiro para comprar um celular novo, para dar entrada em uma moto ou para fazer a viagem que ele quiser, mas é para estudar. Nós já temos recursos, não tem a ver com o teto, o dinheiro da educação está fora do teto. Isso está muito bem organizado pelos melhores economistas liberais do Brasil. Acredito que a gente consiga chegar, em três anos, a algo em torno dos R$ 4,5 mil. Estando na poupança, a gente não sabe o que renderia, mas é um valor para fazer o que ele quiser — afirmou.

Orçamento secreto

Questionada sobre o orçamento secreto, Tebet prometeu dar mais transparência e detalhar as aplicações dos valores destinados. Porém, não pretende acabar com as emendas de relator.

— Temos que dar transparência. O político só tem medo de uma coisa: o povo, o que o povo vai dizer. Quando você der a transparência, com uma canetada, para o orçamento secreto, você vai ver quem é que realmente levou esse dinheiro mas foi bem aplicado, sem problemas, mas a maioria desses recursos foi para os rincões mais distantes do Nordeste onde o serviço não foi executado — propõe.

'Sou vítima de misoginia e violência política quase todo dia'

Apesar de sofrer com a misoginia na política, Tebet não considerou misógino o comportamento dos seus correligionários em relação a sua aparência no lançamento de candidatura. Na ocasião, alguns políticos disseram ter prestado atenção na forma como ela e sua vice, Mara Gabrilli (PSDB), se produziram para o evento.

A candidata, inclusive, relembrou que o lema da sua campanha é "Com amor e com coragem", afirmando que o Brasil precisa de uma mulher para "arrumar a casa".

— Não tive problema em relação a isso, embora eu combata qualquer forma de misoginia. Me senti muito bem acolhida por eles porque foram os primeiros a entender o dever de haver uma chama 100% feminina. Eles podem ter exagerado sim (nos comentários), mas foram extremamente corretos na condução. Mas o que falaram sobre o amor, eles tem razão. Ninguém ama como uma mulher, ninguém ama como uma mãe. E é disso que o Brasil tá precisando, de uma mãe ou uma mulher para arrumar a casa. Mas sou vítima de misoginia e de violência política quase todo dia — falou.

Tebet aproveitou para alfinetar a postura do presidente Jair Bolsonaro para destacar a falta de cuidado dele com a população.

— Nunca imaginei que no momento que o Brasil mais precisasse do seu presidente, que ele virasse as costas para o seu povo, fazendo brincadeira com a dor alheia, com os momentos de falta de ar de alguém acometido pela Covid. Atrasando 45 dias a copra de vacinas, querendo comprar uma vacina que não era eficiente com suspeitas gravíssimas de corrupção. Se quiser me processa de novo, fui processada por (falar) isso. Eu estou do lado da verdade. Essa falta de sensibilidade, essa falta empatia foi uma das razões que me moveu a sair candidata à Presidência da República — disse.

'Não sou candidata à reeleição'

A candidata garantiu que não irá se candidatar à reeleição caso seja eleita. Tebet afirmou que irá levar um documento ao TSE se comprometendo com o fim da reeleição. A senadora afirmou que era favorável ao segundo mandato, mas mudou de ideia após os governos do PT:

— Eu era a favor da reeleição. Até entender que o Lula criou o mensalão para se reeleger, depois o petrolão... A Dilma quase quebrou uma estatal. Agora, o presidente Bolsonaro e sua trupe, o orçamento secreto. É uma ganância de poder, numa escalada de corrupção virando as costas para o povo brasileiro. Aí me veio a luz quando Temer assumiu. Ele fez, em dois anos, as reformas que ninguém tinha feito. Não é porque ele é melhor, e ele é um grande estadista. Não havia uma perspectiva no Congresso Nacional de que ele ia continuar — afirma.

Ameaça de golpe e segurança das urnas

Tebet afirmou que não acredita na possibilidade de um golpe por parte do presidente Jair Bolsonaro, caso ele não vença as eleições.

— Todos nós temos que cumprir a Constituição, fizemos um juramento quando entramos na vida pública. Eu estou pronta para isso, sou escudo em qualquer momento. Ninguém mais vai fechar o Congresso Nacional, ninguém mais vai fechar a casa mais democrática do Brasil, caixa de ressonância da população brasileira. Eu acredito nas instituições, que elas estão fortes — avalia.

Anos atrás, Tebet também questionou a segurança das urnas eletrônicas. Porém, mudou de opinião e diz ser a primeira a defender o processo eleitoral.

— Em 2015, todos nós estávamos dizendo isso. Naquele momento, falhou uma interlocução com o próprio TSE. Sou da época analógica, não sabia naquela época sequer que as urnas não estavam ligadas na internet, mas não tenho compromisso com erros. Dos 81 senadores, se não me engano, 50 votaram assim, não foi qualquer coisa. É evolução, somos da geração da fita cassete. Hoje sou a primeira a defender. Foi feita auditagem, colocaram hackers para tentar furar a segurança das urnas, não conseguiram. O TSE esteve no Congresso Nacional, as urnas são absolutamente seguras — ponderou.

Aborto só nos casos previstos na lei

Auto-declarada progressista, Tebet foi questionada a respeito da sua posição contrária à legalização do aborto. Em entrevista recente, a candidata afirmou que o Brasil não está pronto para discutir o tema profundamente.

— Conhecendo o Congresso Nacional, um projeto de legalização do aborto não passa, inclusive porque a bancada feminina no Senado, hoje, não aceita. Sou contra o aborto a não ser nos casos previstos na legislação. A porta do SUS tem que estar aberta para toda mulher que foi estuprada e que tem o direito a abortar, assim como todo criança que sofreu pedofilia ou toda mãe, que em situação de risco à própria vida, opte por abortar do que perder a própria vida. Nos casos legais, tivemos retrocessos neste governo. A política pública tem que estar aberta para cumprir a lei. E vai ter absoluta certeza que a saúde pública, o SUS do Brasil, estará aberto para dar condições igualitárias para as mulheres ricas, para as mulheres humildes, a terem o seu direito previsto na Constituição e no Código Penal Brasil — explicou.

Sabatinas

Na sexta-feira, será a vez da sabatina com o candidato Ciro Gomes (PDT), que será conduzida por alguns dos mais importantes jornalistas do país, colunistas dos três veículos: Lauro Jardim, Merval Pereira, Vera Magalhães, Milton Jung, Maria Cristina Fernandes e Fernando Exman. Foram convidados para as sabatinas os cinco candidatos melhor posicionados na última pesquisa Datafolha, com pontuação mínima de 1%. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) não confirmaram presença. Na quarta-feira, Vera Lúcia (PSTU) foi a entrevistada; na quinta-feira, Simone Tebet (PDT).

As duas próximas semanas serão dedicadas às sabatinas relativas aos governos do Rio, com participação também do jornal EXTRA, e de Minas Gerais. No dia 29 de agosto, segunda-feira, Rodrigo Neves (PDT) será o primeiro candidato da corrida fluminense, seguido na terça-feira por Marcelo Freixo (PSB) e por Cláudio Castro (PL), na quarta-feira.

No dia 5 de setembro, os jornais entrevistam Alexandre Kalil (PSD), seguido de Romeu Zema (Novo), na terça-feira, 6. Em função do Dia da Independência, a sabatina com Carlos Viana (PL) será na quinta-feira, dia 8.

Também já foram realizadas sabatinas com os candidatos ao governo de São Paulo. Rodrigo Garcia (PSDB) foi ouvido no dia 15 de agosto, Tarcísio de Freitas (Republicanos) no dia 16 e Fernando Haddad (PT) no dia 17.

Debates

Em setembro, O GLOBO, Valor e CBN também promoverão debates aos governos de Minas Gerais (15/9), São Paulo (20/9) e Rio (22/9), este último também com participação do jornal EXTRA. Os eventos, que começarão às 10h, serão transmitidos pela rádio e pelas páginas e redes sociais dos veículos.

Para eles, estão convidados todos os candidatos cujas coligações tenham mais de cinco congressistas: Romeu Zema, Alexandre Kalil, Carlos Viana, Marcus Pestana (PSDB) e Lorene Figueiredo (PSOL), em Minas Gerais; Fernando Haddad, Tarcísio Freitas, Rodrigo Garcia, Elvis César (PDT) e Vinícius Poit (Novo), em São Paulo; e Cláudio Castro, Marcelo Freixo, Rodrigo Neves e Paulo Ganime (Novo), no Rio.

O Globo / Matéria da redação. Publicada orieginalmente em 25.08.22, às 16h30

Por que a defesa da democracia não basta?

Permaneceremos reféns de uma casta financeira de 'homens bons' intocáveis e inimputáveis?

O Latinobarómetro de 2021, a mais importante medição da satisfação dos latino-americanos com a democracia, evidenciou um amplo descontentamento da população.

O relatório mostrou que na região há um repúdio generalizado ao desempenho das elites (70% estão insatisfeitos com a atual gestão de seu país), apenas 22% afirmam que seus governantes se preocupam com os demais, e só 17% acreditam que a distribuição de riquezas de seus países é justa.

A pesquisa também evidenciou a deterioração democrática do Brasil sob a presidência de Jair Bolsonaro. Contra as ameaças golpistas de Bolsonaro e seus partidários, diferentes setores da sociedade têm se manifestado publicamente em defesa da democracia brasileira, sinalizando, inclusive, na direção de um voto plebiscitário já no primeiro turno das eleições presidenciais de outubro. Embora importante e necessária, trata-se de uma agenda defensiva, limitada aos contornos de um debate público pautado pela agenda destrutiva de Bolsonaro.

Trata-se de uma defesa da democracia que não se mostra capaz de dialogar com o desejo da população de mudanças profundas no país, incapaz de expor a farsa antissistêmica do bolsonarismo. E por quê?

Porque, simplesmente, não expõe e tampouco atinge os que, de fato, concentram o poder e sequestram qualquer possibilidade de mudança em favor das maiorias. Leia-se, a oligarquia financeira que drena cada vez maiores parcelas da renda da população, valendo-se, mais recentemente, das políticas ultra neoliberais de Bolsonaro.

Não por acaso, tais oligarquias, apoiadoras do governo Bolsonaro, são também hoje signatárias de manifestos e pronunciamentos públicos em favor da democracia. No debate atual, entre democratas e bolsonaristas, as oligarquias financeiras estão não apenas à salvo, como são, muitas vezes, protagonistas. Levando o argumento um pouco mais longe, a defesa da democracia, sem que se ponha em questão a hipertrofia do poder de tais oligarquias, corre o risco de se revelar, tal qual a defesa antissistêmica de Bolsonaro, uma farsa.

O ponto aqui não é o de fulanizar a oligarquia financeira. Nem tampouco de relembrar, conforme o relatório "A distância que nos une" da Oxfam de 2017, que seis brasileiros têm uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país e que os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos demais 95%.

No âmbito global, nas duas décadas do século XXI, a dominância financeira no interior da dinâmica capitalista vem ganhando uma magnitude sem precedentes, algo que se acelerou no pós-crise de 2008.

De fato, relatório de 2021 do Conselho de Estabilidade Financeira, criado pelo G20 para acompanhar o sistema financeiro internacional no pós-crise, revela que o valor total dos ativos financeiros globais saltou de 230, em 2009, para mais de 400 trilhões de dólares, em 2019, alcançando quase cinco vezes o PIB mundial daquele ano.

Considerada por liberais, mais ou menos ortodoxos, apenas um excesso ou uma falha de mercado, tal lógica rentista-financeira tem dominado, igualmente, a dinâmica do nosso capitalismo periférico e feito avançar a concentração da propriedade e renda. Estudo recente do Fonacate mostra que no Brasil, em 2020, de cada um real alocado em investimento ou formação bruta de capital, existem mais de seis reais aplicados em ativos financeiros (títulos de dívida pública ou privada, ações de empresas, contratos de câmbio e commodities).

É PRECISO DEMOCRATIZAR A ECONOMIA E AS FINANÇAS

Mas de onde os agentes financeiros extraem a sua enorme rentabilidade? Em 2021, 60% do estoque total de ativos financeiros no Brasil estavam aplicados em títulos da dívida pública. Algo que, certamente, explica a razão de termos a maior taxa de juros real da economia global, a dita autonomia do Banco Central e o estrangulamento dos gastos sociais com o "teto de gastos". Um assalto à poupança pública acompanhado da precarização de direitos.

Por outra parte, estes mesmos agentes financeiros buscam avançar seus "investimentos" em políticas sociais (previdência, saúde, educação, energia e saneamento). Na privatização da Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro), ocorrida em abril de 2021, a grande vitoriosa do leilão foi a Águas do Rio, que pertence à AEGEA, que, por sua vez, é controlada por instituições financeiras, a exemplo do Banco Itaú e Fundo Soberano de Cingapura.

Mais recentemente, com a privatização da Eletrobras, o maior controlador privado da empresa passou a ser a 3G Capital, do Jorge Paulo Lemann, o brasileiro mais rico segundo a Forbes. Não haverá melhor forma de lastrear a rentabilidade financeira do que acessando serviços públicos tarifados, capturando também por aí a renda do trabalho.

Tal lógica financeira, especulativa, que tem seus operadores privilegiados nos grandes bancos e fundos de investimento, comanda hoje também os grandes grupos privados não financeiros, mas que possuem na sua estrutura societária instituições financeiras – como no caso da mineradora Vale, que tem o Banco Bradesco como um dos seus controladores. Assim, grandes corporações têm parte significativa dos seus lucros voltada ao pagamento de dividendos aos seus acionistas, à recompra de ações da própria empresa e às aplicações financeiras.

Tais comportamentos desestimulam o investimento produtivo e alteram as práticas de gestão em favor da alocação e rentabilização financeiras, redundando em pressão dos acionistas, proprietários, por uma extração máxima de valor do trabalho e espoliação da natureza. Daí a legalização do trabalho precário, pela reforma trabalhista de Michel Temer, e as pressões, diuturnas, por flexibilização do direito ambiental e dos povos indígenas.

Com a renda comprimida, destituída de direitos e com uma reprodução cada vez mais a cargo do setor privado, a maioria da população se vê refém do endividamento, que já atinge mais de 77% das famílias brasileiras. Dívidas que alimentam ainda mais a predação usurária, especulativa, dos rentistas.

A oligarquia financeira, que vem posando hoje de democrata é a mesma que opera e se beneficia das políticas macroeconômicas, fiscais, previdenciárias, trabalhistas e de privatização dos últimos governos, verdadeiras máquinas de moer gente.

Antes da independência brasileira, havia os chamados "homens bons", grandes proprietários de terra e gentes que cuidavam da administração local. Será que, após 200 anos, permaneceremos reféns, agora de uma casta financeira, de "novos homens bons" a comandarem toda a República, uma espécie de intocáveis, inimputáveis?

João Roberto Lopes Pinto, o autor deste artigo, é Professor de ciência política da Unirio e da PUC-Rio, e coordenador do Instituto Mais Democracia. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 25.08.22, às 8h00.

Bolsonaro critica ação da PF por medo de faltar patrocínio a atos golpistas

O presidente da República saiu, nesta quarta (24) em defesa de empresários bolsonaristas que foram alvo de operação da Polícia Federal, autorizada pelo STF, em meio à investigação do financiamento de ataques à democracia. 

Mostra-se, assim, preocupado com o patrocínio às micaretas golpistas que ele planeja para o 7 de Setembro.

Para tanto, cutucou os signatários da carta e do manifesto pela democracia e em defesa do sistema eleitoral brasileiro, que foram lançados na Faculdade de Direito da USP, em 11 de agosto, reunindo sociedade civil, acadêmicos e empresários.

"Somos ainda um país livre. Eu pergunto a vocês: 'O que aconteceu no tocante aos empresários agora?' Esses oito empresários. Dois eu tenho contato com eles, o Luciano Hang [Havan] e o Meyer Nigri [Tecnisa]. Cadê essa turminha da carta pela democracia? A gente sabe que, época de campanha, continuam lobos em pele de cordeiro. Acreditar que eles são democratas e nós não somos? Cadê a turminha da carta pela democracia?", afirmou em comício em Betim (MG).

Como escrevi aqui, nesta terça, a operação da PF é fundamental para entender se há ricos empresários apoiando ações antidemocráticas a serem realizadas no Bicentenário da Independência da mesma forma que houve aqueles que as bancaram no 7 de Setembro do ano passado. De aluguel de ônibus para transporte de manifestantes, fornecimento de carros de som e produção de material de divulgação - além de impulsionamento dos convites em redes sociais.

Vale ressaltar que golpismo deve ser investigado e, caso detectado, desarticulado no momento em que está sendo construído. Da última vez, isso não foi feito, e tivemos uma noite que durou 21 anos.

Por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF, além de mandados de busca e apreensão, também ocorreram o bloqueio de contas bancárias, a suspensão de contas em rede sociais, a quebra de sigilo bancário e a tomada de depoimentos.

Entre os alvos da operação, além de Hang e Nigri, estão José Isaac Peres (Multiplan), Ivan Wrobel (W3), José Koury (Barra World Shopping), André Tissot (Grupo Seerra), Marco Aurélio Raimundo (Mormai) e Afrânio Barreira (Coco Bambu).

A série de reportagens de Guilherme Amado, Bruna Lima e Edoardo Ghirotto, no portal Metrópoles, mostrou as entranhas do grupo "Empresários & Política", confirmando que uma parte da elite econômica está agarrada ao capitão não apenas para garantir vantagens econômicas, mas por cumplicidade ideológica. No grupo, houve de tudo, de defesa de golpe de Estado até sugestão de compra de votos.

A pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, Moraes arquivou o inquérito dos atos antidemocráticos que corria no Supremo, em 2021, e atingia em cheio apoiadores e aliados do presidente Jair Bolsonaro, inclusive empresários. Mas determinou a abertura de uma outra investigação sobre a existência de uma organização criminosa que opera na disseminação de notícias falsas na forma de milícias digitais.

As ações contra os empresários beberam nesse inquérito e também devem subsidiá-lo. Caso a investigação descubra que houve transferência de recursos ou pagamento de fornecedores, os empresários devem ser corresponsabilizados pela violência gerada. A ação, em si, contudo, já tem poder de reduzir o financiamento a um 7 de Setembro golpista.

Aras, amigo de Nigri e aliado de Bolsonaro, entrou em embate público com Moraes por conta da operação da PF.

É pitoresco, por fim, que o presidente da República chame "a turminha da carta pela democracia" para ajuda-lo no momento em que seus aliados empresários são investigados por atacar a democracia. Convoca, assim, quem defende a tolerância para ajudar a garantir tolerância à intolerância.

Basicamente apela para o "paradoxo da tolerância". O problema é que se uma sociedade tolerante aceita a intolerância como parte da liberdade de expressão ela pode vir a ser destruída pelos intolerantes. Como analisou o filósofo Karl Popper, a liberdade irrestrita leva ao fim da liberdade da mesma forma que a tolerância irrestrita pode levar ao fim da tolerância.

E defesa de golpe e de golpistas é algo que não pode ser tolerado, pelo bem da tolerância e da democracia.

Leonardo Sakamoto, o autor deste artigo, é colunista do UOL. Publicado originalmente em 24.08.22. às 18h17. Atualizado em 25.08.22, às 07h15.


Horário eleitoral vai de coadjuvante em 2018 a decisivo na eleição de 2022, avaliam campanhas

Marqueteiros desenvolvem estratégias para cativar eleitores indecisos, que, segundo analistas, recorrem menos às redes sociais; programação começa nesta sexta-feira no rádio e na TV

Simone Tebet aposta em imagem de uma chapa 100% feminina no horário eleitoral  Foto: MDB / Divulgação

Após chegar ao segundo turno em 2018 com um tempo irrisório de exposição no horário eleitoral gratuito na TV e no rádio - 8 segundos contra 5mins32 de Geraldo Alckmin, então no PSDB -, o presidente Jair Bolsonaro (PL) aposta agora todas as suas fichas nos 207 comerciais que serão distribuídos na programação das emissoras de sinal aberto para reduzir a vantagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com quem espera estar no 2° turno da disputa presidencial.

Apesar da ampliação do alcance das redes sociais, a TV e o rádio ainda são considerados por especialistas, políticos e marqueteiros de todas as campanhas os instrumentos mais poderosos do processo eleitoral, e por isso estão no centro das estratégias. O horário eleitoral estreia nesta sexta-feira, 26, com a divulgação da propaganda regional; no sábado, inicia a propaganda dos candidatos a presidente. Que, aliás, pode abrir com a participação de um candidato em prisão domiciliar.

Em conversas reservadas, os bolsonaristas admitem que o fato de Lula ter cerca de 80 inserções a mais no cômputo geral que o presidente é um ativo importante. A coligação Brasil da Esperança, de Lula, terá 3min39s em cada bloco e 286 inserções, segundo dados do TSE. Bolsonaro terá 2mins38s e 207 inserções.

Bolsonaristas admitem que Lula ter mais tempo de propaganda na TV é ativo importante Foto: Miguel SCHINCARIOL

“A TV vai decidir a eleição. Os indecisos que não votam nem em Lula nem em Bolsonaro se informam pela TV. Os eleitores que têm o voto mais consolidado é que recorrem às redes sociais”, disse o pesquisador Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, especialista em aferir a classe C.

Estratégias


Bolsonaristas admitem que Lula ter mais tempo de propaganda na TV é ativo importante Foto: Miguel SCHINCARIOL

No horário eleitoral, a campanha de Bolsonaro vai investir na imagem da primeira dama, Michelle Bolsonaro, e puxar o tema da economia para o centro do debate, além de reforçar o antagonismo com Lula, os valores da família e o patriotismo.

Marqueteiro da senadora Simone Tebet (MS), candidata do MDB à presidência, Felipe Soutello avalia que a TV foi decisiva em 2018, quando a facada em Bolsonaro em Juiz de Fora (MG) empurrou toda a mídia para o saguão do hospital onde estava o candidato.

Essa exposição, segundo ele, transformou Alckmin, dono do maior espaço na TV após fechar um acordo com o Centrão, em um nanico. “A exposição na mídia espontânea para o Bolsonaro foi enorme após a facada em 2018″, disse o publicitário.

A campanha de Simone Tebet aposta todas as suas fichas nas 184 inserções que ela terá direito na programação da TV aberta. Nesse caso, a estratégia é basicamente torná-la conhecida e reforçar a identidade de uma chapa 100% feminina - já que a senadora Mara Gabrilli (PSDB) é a candidata a vice.

Para Renato Meirelles, o fato de Lula ter mais inserções que Bolsonaro na TV pode fazer a diferença em uma disputa acirrada. “Vão ser comerciais onde o PT pode usar imagens de Bolsonaro e testar a lembrança afetiva do eleitor, além de mostrar o Alckmin como uma apólice de seguros do Lula, uma nova carta aos brasileiros”, disse o pesquisador.

Marqueteiro de João Doria em 2016, na disputa pela prefeitura, e de Alckmin em 2018, na eleição presidencial, o publicitário Lula Guimarães assumiu em 2022 a campanha de Soraya Thronicke (UB) à Presidência.

Sabatinas

Políticos afirmam que entrevista do presidente teve mais intervenções e ele, consequentemente, menos tempo de fala dentro dos 40 minutos do telejornal

Sem espaço nas sabatinas, entre elas a do Jornal Nacional, a candidata que chegou na última hora para substituir Luciano Bivar teve que montar uma estrutura de campanha em cima da hora.

Para o União Brasil, a TV, que deve consumir a maior parte dos R$ 60 milhões destinados para Soraya, é a única chance de a candidata se tornar conhecida. “A TV é o único veículo capaz de alcançar o Brasil inteiro em todos os segmentos. As redes sociais se tornaram bolhas”, disse Lula Guimarães.

Bate e assopra

Líder nas pesquisas, o ex-presidente Lula vai evitar o confronto no horário eleitoral, em um primeiro momento. Vale a regra comum entre os marqueteiros de campanha de que quem bate também ganha mais rejeição.

Por isso, o petista não deve lançar mão de uma artilharia mais pesada contra o presidente Bolsonaro em menções a escândalos do governo e o caso das “rachadinhas” investigado pelo Ministério Público do Rio.

Mesmo assim, as provocações não vão ficar de fora, apesar de sutis. Como mostrou a colunista Vera Rosa, o petista deve fazer menções mais discretas inclusive ao escândalo dos pastores no Ministério da Educação. Mesmo este gesto preocupa petistas, que preferem evitar o confronto.

Segundo um petista, deve passar uma “mensagem de esperança”. Nos bastidores, Lula, a direção do PT e o marqueteiro Sidônio Palmeira têm preferido focar a superação de problemas como a fome e o desemprego. Para isso, também vão recorrer a períodos de maior estabilidade dos dois primeiros governos petistas.

Há, dentro do partido, dúvidas sobre qual seria hoje o peso do horário eleitoral, se comparado à internet. Até hoje, petistas afirmam que o disparo de mensagens com notícias falsas teve peso relevante na derrota de Fernando Haddad (PT) para Bolsonaro.

Atualmente dividindo o comando da comunicação da campanha com o prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT), o ex-presidente do partido, Rui Falcão (PT) diz ao Estadão que a “TV tem grande importância, até porque também está conectada com as redes”. A respeito da mensagem que Lula deve passar na campanha, Falcão diz não ser “o caso de passar “spoilers””.

Em São Paulo o candidato do PSDB, o governador Rodrigo Garcia, deve ter a maior fatia do tempo de TV e aposta nisso para se consolidar como o adversário do ex-prefeito Haddad no 2° turno.

“A poluição das redes e as fake news fazem com que a sociedade cada vez mais se informe pelos canais tradicionais de comunicação. Pela imprensa, jornais e o programa eleitoral de TV. Acredito que com o horário eleitoral gratuito vai haver um interesse maior da sociedade para a campanha” , disse Garcia ao Estadão.

O ex-ministro Tarcísio de Freitas (Republicanos), candidato de Bolsonaro, rebate. “Tem um misto de TV e redes sociais, que terão uma importância muito grande. As pessoas estão muito conectadas na rede. O engajamento será muito grande. A diferença do Rodrigo será neutralizada pela capilaridade que temos nas redes sociais e a capacidade de mobilização, que é bem maior que a dele”.

Pedro Venceslau e Luiz Vassallo para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 25.08.22.

A herança maldita de R$ 430 bilhões

Medido em estudo da FGV, eis o tamanho do descalabro fiscal que Bolsonaro deixará para próximo governo; com isso, ganha força necessidade de licença temporária para aumentar gastos

O descalabro fiscal que o governo Jair Bolsonaro deixará como herança para quem vencer as eleições pode atingir inacreditáveis R$ 430 bilhões em 2023, o equivalente a 4,3% do Produto Interno Bruto (PIB). A estimativa foi calculada pelos economistas Braulio Borges e Manoel Pires e consta da edição de agosto do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). O número inclui despesas não cobertas no Orçamento e que colocam em dúvida o cumprimento do teto de gastos; propostas que reduzem a arrecadação e afetam o superávit primário; eventos com impacto financeiro negativo e que pioram o déficit nominal; e incertezas com o potencial de produzir impactos relevantes caso sejam materializadas. A manutenção do piso do Auxílio Brasil em R$ 600, o reajuste dos salários do funcionalismo público e a revisão das despesas discricionárias devem ultrapassar R$ 120 bilhões, valor para o qual não há cobertura e que exigirá uma sétima mudança no teto e na Constituição para que seja viabilizado. Tudo indica que o enterro do atual arcabouço fiscal é uma questão de tempo, independentemente do presidente que vier a ser eleito.

Nesse contexto, tem ganhado força a tese segundo a qual será necessário permitir uma licença temporária para aumentar o gasto público no ano que vem enquanto a equipe do futuro presidente elabora um novo regime fiscal, um entendimento que tem reverberado mesmo entre economistas que não costumam concordar em praticamente nada. Se há divergências a respeito da âncora a ser adotada, não restam dúvidas de que o teto deixou de servir como uma referência de austeridade para as contas nacionais. Eis um legado positivo – e por isso mesmo inesperado – gerado pelo atual governo: seu ímpeto destrutivo extrapolou todos os limites, a ponto de unir o País na busca de consensos para tirá-lo do buraco.

Como mostrou o Estadão, representantes de bancos e de fundos de investimento estão dispostos a aceitar uma ampliação do gasto público de até R$ 70 bilhões em 2023. O “Grupo dos Seis”, formado pelos economistas Bernard Appy, Pérsio Arida, Francisco Gaetani e Marcelo Medeiros, pelo advogado Carlos Ari Sundfeld e pelo cientista político Sérgio Fausto, sugeriu algo semelhante, mas limitado a R$ 100 bilhões, o equivalente a cerca de 1% do PIB. Técnicos do Tesouro Nacional propuseram a adoção de um regime de metas para a dívida bruta, a exemplo do sistema de bandas inflacionárias que orienta o trabalho do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC). Já o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa defendeu a definição de uma meta para o crescimento real do gasto primário – em vez de fixar um objetivo para o saldo entre receitas e despesas, excluídos os juros da dívida. Independentemente da âncora que vier a ser escolhida, fato é que ela precisa sinalizar um compromisso verdadeiro com a credibilidade fiscal no médio e longo prazos. O boletim da FGV Ibre faz um alerta: “Se esse for o caminho a ser seguido, é importante que se chegue a um bom acordo político porque o cenário de juros e inflação ainda requer muito cuidado”.

Um debate sério sobre a âncora fiscal merece ser tratado com prioridade na campanha eleitoral. Adotar políticas públicas que proporcionem dignidade e uma porta de saída a milhões de famílias vulneráveis e que garantam qualidade para a educação e a saúde passa necessariamente pelo resgate da responsabilidade fiscal, sem a qual o financiamento dessas ações se torna impossível. Um aspecto a ser considerado nas discussões é a construção de um arcabouço perene, que possa ser seguido pelo governo eleito em outubro e pelos que vierem a suceder-lhe no futuro, e que simbolize o abandono de manobras contábeis que não enganam ninguém. Superávits primários pontuais, gerados a partir de receitas extraordinárias, de calote nos precatórios e do efeito da inflação na arrecadação, não têm nenhum impacto na redução dos juros. Produzir uma deflação temporária e concentrada em preços administrados não convence nem o eleitor nem o mercado.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 25.08.22

Tchutchuca: ontologia e faniquito

De que modo podemos entender as fontes pulsionais de tamanho siricutico presidencial na saída do Palácio da Alvorada, na quinta-feira passada?

Na manhã de quinta-feira passada, um jovem ativista digital de direita, Wilker Leão, foi até a portaria do Palácio da Alvorada e xingou o presidente da República de “Tchutchuca do Centrão”. (A rima em “ão” não há de ser em vão.) O que veio na sequência foi uma arruaça lastimável, que todo mundo já viu no celular ou nos telejornais.

O presidente saía de sua residência para o expediente diário. O provocador, que se define nas redes como um “adepto do militarismo”, gritava repetidamente a palavra esdrúxula, tentando se aproximar do carro oficial do chefe de Estado. De celular em punho, filmava tudo. No muque, os seguranças procuravam contê-lo.

Enquanto transcorria o empurra-empurra, o governante ouviu a alcunha que lhe dirigiam e se irritou. Mandou parar o automóvel, saiu furibundo pela porta de trás e avançou na direção de Leão. Com uma das mãos, tentou agarrar o moço pelos colarinhos, mas não havia colarinho nenhum – a vítima vestia uma reles camiseta do São Paulo Futebol Clube, em cuja gola a iracunda autoridade fechou os dedos. Com a outra mão, o mandatário buscava arrancar o celular do são-paulino, intento no qual fracassou.

Não foi difícil de perceber que o governante estava possesso. Depois de contidos os ânimos de um e outro, é verdade, os dois até trocaram palavras duras entre si, sem se estapear, mas, naquele primeiro ato, quando irrompeu do veículo em estado colérico, o homem deu um chilique histórico.

Por que será? Já o chamaram de negacionista, de fascista, de genocida e ele apenas faz cara feia e resmunga, quando muito. Desta vez foi diferente. Por que um estrilo tão desmedido? De que modo podemos entender as fontes pulsionais de tamanho siricutico presidencial?

Essas perguntas nos conduzem necessariamente a uma reflexão acerca da essência do ente misterioso que responde pelo nome de – você já sabe – “tchutchuca”. O que define esse estranho ser? Em outras palavras, qual a sua natureza ôntica?

Na cultura funk, em que o termo se fixou para depois se popularizar, o ente foi consagrado por um hit, lançado há anos pelo grupo carioca denominado Bonde do Tigrão. A letra tem um jeito nada sublime de traduzir a afeição do poeta por sua musa: “Vem, vem, tchutchuca / Vem aqui pro seu tigrão / Vou te jogar na cama / E te dar muita pressão”. (Não, a rima em “ão” não há de ser em vão.) Tangendo sua lira de pancadão, o menestrel diz, então, que quer “um rala quente” e pede à sua amada que escute o “refrão”.

Já se falou bastante sobre o caráter onomatopaico do substantivo em questão. Sua sonoridade, sua prosódia, evoca o verbo “chuchar”, que é onomatopeia pura, sugerindo que o amor dos corpos é como um cilindro que suga um pistão. (Agora, a rima virá em profusão.) Essa metáfora mecânica de motor a combustão faz uma espécie de exaltação de uma forma de dominação que o macho exerce ao dar “pressão”, certo de que a mulher, tomada de paixão, sente prazer na servidão. O nome do macho é “tigrão”.

A “tchutchuca”, por definição, se deleita na submissão. Sua feminilidade reside na plena concessão, na aceitação, na passividade com sofreguidão, na objetificação sem restrição. Vai daí que o presidente aceitaria ser xingado de tudo, mas disso, não. Disso, nunca. Para piorar sua situação, a ofensa lhe soou ainda mais grave quando ele ouviu o complemento: “do Centrão”. Aí não.

Nesse ponto, é preciso ter em conta o peso insuportável do aumentativo masculino, em “ão”, para conferir um signo de hombridade ao que quer que seja. Especialmente na política. O Partido Comunista Brasileiro, por exemplo, o velho PCB, começou a ser chamado lá pelas tantas de “Partidão”. O apelido o tornou mais másculo, mais irrecorrível. O mesmo princípio linguístico valeu para a corrupção: um mensalinho seria suportável, mais ou menos como um chopinho, um torresminho – não um mensalão. Tendo sido chamado de mensalão, pelo simples sufixo, o episódio adquiriu algo de tenebroso, de apocalíptico, de escandalosão. Em matéria de perversidade, ou de perversão, perdeu apenas para o petrolão.

Para pesadelo do inquilino do Alvorada, o Centrão se chama Centrão, de modo retumbante, feito maldição, e, neste namoro, o dele com o Centrão, o papel que lhe cabe não é bem o de Tigrão. Haja danação.

Com isso, chegamos ao final da nossa brevíssima investigação ontológica. Resulta mais do que evidente que o xingamento dirigido ao sujeito que passava no automóvel é, antes de uma ofensa a ele, uma ofensa à condição feminina. A carga semântica do substantivo que deu título a este modesto artigo já traz, sem que se diga mais nada, um preconceito atávico de todo tamanho, um preconceitão: mulher é um ser subalterno, heterônomo, que se derrete ao sentir a pressão do machão.

Pois foi em nome do mesmo preconceito que veio o faniquito, como se o tal se pusesse em brios: “O quê? Você está me xingando de mulher? Vem cá, seu bestalhão!” Nesse instante mágico, a extrema-direita caiu na armadilha da extrema-direita. De supetão. Que serviço Leão prestou para a Nação.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista e Professor da Escola de Comunicações e Artes - ECA da Universidade de S. Paulo - USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.08.22

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Ação sobre empresários visa estrangular financiamento ao 7 de Setembro

Em grupo, empresários associavam união do 'povo' e dos 'militares' a caminho para contestar eleições

A ação autorizada pelo ministro Alexandre deMoraes e executada pela Polícia Federal teve como intuito principal estrangular o financiamento de empresários bolsonaristas a atos antidemocráticos que vêm sendo convocados pelo presidente Jair Bolsonaro e por sua rede de apoiadores para o 7 de Setembro e cujo principal tema é a contestação à Justiça Eleitoral e às urnas eletrônicas.

Investigações em curso nos inquéritos das fake news e das milícias digitais já comprovaram que existe uma rede de empresários de diversos setores que bancaram, na campanha de 2018 e ao longo de 2020 e 2021 atos em apoio a Bolsonaro e que tiveram pregações de golpe militar, a defesa do AI-5, palavras de ordem pela deposição de ministros do STF e o fechamento da Corte e do Congresso, entre outras temáticas antidemocráticas.

Alguns desses atos contaram com a convocação, a presença e até discursos do próprio Bolsonaro, como foi o caso de manifestações realizadas em Brasília no auge da pandemia e, de forma mais ostensiva e agressiva, no Sete de Setembro do ano passado.

Monitoramento da Justiça e da PF em redes sociais e aplicativos de mensagens mostra que a mobilização para que, de novo, o feriado da Independência, este ano o de seu Bicentenário, virasse um ato de incentivo a que o resultado das eleições não seja aceito, que as Forças Armadas sejam chamadas a realizar apuração paralela de votos e todas as demais pregações golpistas de Bolsonaro.

No grupo de empresários em que alguns disseram preferir um golpe de Estado a uma volta do PT ao poder, cujas mensagens foram tornadas públicas pelo colunista Guilherme Amado, do portal Metrópoles, o que levou à ação da PF e de Moraes não foram nem essas mensagens, mas aquelas em que vários empresários associam um ato unindo o "povo" e os "militares" no 7 de Setembro em Copacabana seriam o motor de alguma reação contra o que eles classificam como evidência de que o Judiciário estaria agindo para favorecer fraudes nas eleições.

A ação é classificada, na PF e no STF, como preventiva. As referências, de novo, são os atos já realizados e também o que ocorreu no Capitólio, em Washington, após a derrota de Donald Trump. Lá como aqui, as ações se desdobraram em duas frentes: uma mais visível, da exortação do próprio Trump à não aceitação do resultado das urnas e reação de seus apoiadores e, no submundo, o apoio logístico, ideológico e, sobretudo, financeiro ao que está sendo investigado como crime de conspiração.

No Brasil, admitem procuradores, delegados da PF, advogados e ministros com os quais venho conversando sobre a complexa tarefa de defender a democracia diante de ameaças cada vez mais explícitas, mas inéditas em termos de enfrentamento, faltam instrumentos claros nas leis para definir quais as iniciativas cabíveis e em que casos.

Por isso, pessoas próximas a Alexandre de Moraes dizem que ele não determinaria ações tão imediatas e incisivas se não houvesse da parte da PF elementos a apontar para a organização de novos atos antidemocráticos. Essas pessoas lembram que, em seu discurso de posse no TSE, o próprio Moraes avisou que não seriam tolerados pela Justiça atos e discursos dessa natureza.

"Ficou mais difícil financiar atos golpistas no próximo Sete de Setembro", resumiu uma pessoa próxima às investigações.

Os elementos que justificaram as ações estão sendo mantidos em sigilo justamente para evitar que os alvos da operação consigam destruir provas ou se precaver para evitar que conexões com atos antidemocráticos sejam detectadas pela PF.

Ministros colegas de Moraes estão convencidos de que, quando o sigilo for levantado, as conexões com os atos anteriores e a maquinação para a repetição de manifestações com aluguel de caminhões de som, palco, confecção de material impresso e pagamento de passagem e hospedagem para militantes, entre outras estratégicas, ficarão evidenciadas.

Outras medidas estão sendo adotadas para garantir a segurança de autoridades, candidatos, prédios públicos e cidadãos não apenas no 7 de Setembro, mas também na campanha e, sobretudo, nos dias de votação. Esse é o sentido, por exemplo, de reuniões realizadas entre Moraes e o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, e os comandantes das Polícias Militares -- inédita reunião de um comandante da Justiça Eleitoral com os comandos das PMs, aliás. Os relatos das corporações é de que tanto a PF quanto as PMs estão fechadas contra a ideia de atos golpistas daqui até o fim de outubro.

Bolsonaro tem insistido em convocar as pessoas às ruas no 7 de Setembro, embora o prefeito Eduardo Paes tenha cortado na raiz a ideia de misturar a celebração oficial do Bicentenário da Independência com militantes radicais do bolsonarismo tendo Copacabana como palco. Os próprios militares, diga-se, caíram fora da ideia.

O presidente vem sendo aconselhado pela ala política do governo e da campanha a não repetir os xingamentos a ministros e a pregação anti-urnas nos eventos do 7 de Setembro. Se vai seguir ou não, dizem esses mesmo aliados, é outra coisa. Mas a operação da PF e do STF tem sido um argumento a mais usado por eles -- ao mesmo tempo em que também inflamou a veia revoltada e inconformada de Bolsonaro, que tem exortado os empresários a reagirem e apontado o "extremismo" das buscas e dos bloqueios determinados contra os empresários.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é jornalista. Apresentadora do Roda Viva da TV Cultura e colunista de assuntos políticos n'O Globo. Publicado originalmente, em 24.08.22 às 16h37


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O voto é exercício de liberdade

As grandes taxas de rejeição de Lula e Bolsonaro expõem os imensos problemas envolvendo as duas candidaturas. É tempo de o eleitor conhecer bem os outros candidatos e suas propostas

Conforme mostrou o Estadão, grande parte do eleitorado diz ter medo da volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder e da reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). Os dois candidatos à frente nas pesquisas de intenção de voto têm grandes taxas de rejeição: 45% dos eleitores têm medo da continuidade do atual governo e 40% temem um novo mandato de Lula.

Tais rejeições não se baseiam em fake news. O eleitor tem motivos de sobra para temer ambos os candidatos. Assim, esse sentimento de temor não é necessariamente algo ruim para o exercício dos direitos políticos. Antes, representa a democracia em seu normal funcionamento, com o eleitor sabendo identificar, na prática, o que faz mal ao País.

Segundo as pesquisas de opinião, os motivos do medo a Lula e a Bolsonaro relacionam-se com fatos concretos das trajetórias dos dois candidatos. O eleitor teme que, com o retorno do PT ao poder, voltem a corrupção, o alinhamento internacional com ditaduras de esquerda e o fortalecimento de pautas minoritárias, como a descriminalização do aborto e das drogas. Com eventual reeleição de Bolsonaro, o medo é de aumento da pobreza, acirramento do discurso de ódio, isolamento internacional, incompetência na gestão pública e, no limite, uma ruptura com a ordem constitucional democrática.

Tal cenário revela que cerca de metade da população tem uma apreciação realista de quem é Lula e do que representa a volta do PT ao poder. E que a outra metade da população, que rejeita o bolsonarismo, entendeu bem o que significa Jair Bolsonaro na Presidência da República. Ao contrário do que às vezes se diz, o eleitor não está inteiramente desinformado – e não tem uma memória assim tão curta.

Perante essa situação de amplas taxas de rejeição aos dois primeiros colocados nas pesquisas de opinião, duas conclusões se impõem. A primeira é a de que escolher um candidato simplesmente por rejeição ao outro pode ser um grande equívoco, uma vez que tanto Lula como Bolsonaro têm grandes problemas – que são percebidos e temidos por grandes parcelas da população. Os erros de um não tornam o outro uma boa solução para o País.


A segunda conclusão refere-se a um aspecto fundamental do regime democrático e do exercício dos direitos políticos. O eleitor não precisa escolher unicamente entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informou que recebeu, neste ano, 12 pedidos de registro de candidatura para a eleição presidencial. Além dos candidatos do PL e do PT, há Simone Tebet (MDB), Sofia Manzano (PCB), Soraya Thronicke (União Brasil), Vera Lúcia (PSTU), Ciro Gomes (PDT), Felipe D’Avila (Novo), Léo Péricles (Unidade Popular), Pablo Marçal (PROS) e Roberto Jefferson (PTB).

As grandes taxas de rejeição de Lula e de Bolsonaro devem ser um estímulo para a população conhecer a fundo, durante o período de campanha eleitoral, os demais candidatos, suas trajetórias e suas propostas. Há um regime de pluripartidarismo, com múltiplos candidatos. Nada obriga o eleitor a limitar sua escolha entre duas opções ruins, que despertam grandes e fundados temores. É precisamente para assegurar a mais ampla possível liberdade de escolha que a Constituição de 1988 prevê a possibilidade de dois turnos, em caso de um candidato não alcançar, no primeiro escrutínio, a maioria absoluta dos votos válidos nas eleições para presidente da República, governador e prefeito (nos municípios com mais de 200 mil eleitores).

Não há nenhum problema no chamado “voto útil”, quando o eleitor antecipa, no primeiro turno, sua definição última de prioridades e rejeições. O problema está quando o voto, seja no primeiro ou no segundo turno, é definido por simples medo, sem atentar para as reais qualidades e deficiências do candidato no qual se vota. E é sempre bom lembrar: até o dia das eleições, nenhum candidato tem um voto sequer. Todos estão na mesma situação. Que o eleitor possa escolher livre e responsavelmente quem ele considera ser a melhor opção para o País.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 24.08.22

Primeira-ministra da Finlândia se emociona e defende direito de ir a festas

Sanna Marin dá depoimento com voz embargada em ato de desagravo organizado por seu partido

A primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin, se emociona em discurso durante evento do Partido Social-Democrata em seu apoio em Lahti - Heikki Saukkomaa - 24.ago.22/Lehtikuva/AFP

Em tom emocionado, a primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, defendeu nesta quarta-feira (24) seu "direito à alegria e à vida", em uma tentativa de resposta definitiva a uma onda de críticas envolvendo vídeos e fotos publicadas nas redes sociais de festas com sua presença.

"Sou um ser humano. Às vezes também busco alegria, luz e prazer em meio a essas nuvens escuras", declarou, com a voz embargada e os olhos marejados, durante uma espécie de ato de desagravo organizado por sua legenda, o Partido Social-Democrata (SPD), em Lahti, no sul da Finlândia. "Isso é algo privado, é alegria e vida. Mas eu não faltei a um único dia de trabalho".

Na semana passada, circularam nas redes vídeos da chefe de governo dançando em uma festa com amigos e influenciadores digitais. O episódio motivou acusações de que Marin teria se comportado de forma inadequada para o cargo que ocupa; muitos comentários tinham teor misógino, ressaltando o fato de a primeira-ministra ser casada e usando palavras chulas para se referir a ela.

Outras pessoas, porém, vieram a público para defender o direito de ela desfrutar de eventos e combinar uma vida privada com a carreira política de alto nível. Após a repercussão inicial dos vídeos, mulheres de vários países postaram registros de si próprias dançando, acompanhados de frases como "deveríamos dançar um pouco mais" e "continue dançando, Sanna Marin".

No começo da semana, para "dissipar qualquer suspeita" de uso de drogas nos eventos que levaram à controvérsia, a primeira-ministra se submeteu voluntariamente a um exame toxicológico, que deu negativo.

Quando anunciou que faria o teste, Marin afirmou que nunca usou drogas ilegais —nem quando era mais jovem, antes de entrar para a política—, que sua capacidade de desempenhar as funções oficiais permaneceu intacta nas noites em questão e que ela teria deixado a festa se precisasse trabalhar.

"Quero que as pessoas observam o que fazemos enquanto trabalhamos, não o que fazemos em nosso tempo livre", declarou nesta quarta, afirmando que os últimos dias foram muito difíceis. Nesta terça, a controvérsia foi renovada com Marin se vendo obrigada a pedir desculpas por outra foto, tirada na residência oficial em julho.

Na imagem, divulgada pela mídia finlandesa, duas mulheres são vistas se beijando e levantando a blusa, cobrindo os seios com uma placa que diz "Finlândia". A fotografia havia sido publicada inicialmente no TikTok de uma delas, que ainda escreveu "Kesärata" na publicação —o nome da residência oficial da primeira-ministra é Kesäranta.

"Acho que a foto é inadequada, peço desculpas. Esta foto não deveria ter sido tirada", disse Marin.

De acordo com o relato da primeira-ministra, o registro foi feito durante uma festa privada depois de um festival de música. "Fizemos sauna, nadamos e passamos um tempo juntos. Esse tipo de foto não deveria ter sido tirada, mas, fora isso, nada de extraordinário aconteceu no encontro."

A Finlândia compartilha uma longa fronteira terrestre com a Rússia e, num momento em que a Europa vive instabilidade em diferentes partes em razão da Guerra da Ucrânia, a primeira-ministra foi alvo de críticas de que a participação em festas poderia interferir em sua capacidade de cumprir rapidamente as funções caso uma crise repentina atingisse seu país.

Marin, 36, se tornou em 2019 a líder de governo mais jovem do mundo e, desde então, nunca escondeu seu gosto por festas. Em janeiro, a política alegou à agência de notícias Reuters que ela e suas ministras são alvos de machismo.

Em dezembro de 2021, sua participação em outro evento também causou críticas. Na ocasião, foi filmada em uma boate pouco depois de ter tido contato com uma pessoa infectada pelo coronavírus. A primeira-ministra pediu desculpas à população, dizendo que agiu errado e que "deveria ter avaliado a situação com mais cuidado".

Agência France Press/ AFP, de Helsinque, Finlândia. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 24.08.22, às 15h49

Disparos sobre plano fake para barrar Bolsonaro crescem e indicam nova investida contra TSE

Cenário foi detectado pelo Observador Folha/Quaest, que monitora 1.218 grupos públicos de WhatsApp

Uma mensagem que cita um trio de pessoas em Brasília que deseja impugnar a chapa de Jair Bolsonaro (PL) e uma pesquisa "interna não falsa" dizendo que o ex-presidente Lula (PT) tem só 17% dos votos foi enviada mais de 92 mil vezes a grupos de WhatsApp em um período de 20 dias.

Ela inclui ainda a convocação para atos no 7 de Setembro, data usada por Bolsonaro e apoiadores no ano passado para atacar ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e ir às ruas pedir o que chamam de "voto auditável", iniciativa que deve se repetir neste ano pelo presidente e por seus aliados. O texto diz também que "roubar na apuração está difícil", porque as Forças Armadas "estão em cima".

O envio massivo dessa mensagem sobre uma possível impugnação da chapa indica que parte do bolsonarismo busca, por meio dos militares, afastar o discurso de fraude na urna eletrônica. Mas isso sem diminuir a desconfiança a membros do STF e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), já que o Judiciário tem sido a principal barreira aos retrocessos empreendidos por Bolsonaro ao longo de seu mandato.

A ampla distribuição das mensagens foi detectada pelo Observador Folha/Quaest, que monitora 1.218 grupos públicos de WhatsApp e que atualmente tem na amostra 42% dos grupos ligados à direita, 14% à esquerda e 44% indeterminados.

Há indicativo de envio coordenado. Ao todo, o texto foi enviado para 228 grupos e teve alcance estimado, apenas dentro do universo pesquisado, de 42,6 mil integrantes —com base na média de 187 usuários por grupo. Nos cinco grupos em que a mensagem mais foi compartilhada, ela apareceu cerca de 900 vezes.

A narrativa disseminada diz que Bolsonaro tem 62% dos votos e ganharia no primeiro turno da eleição, o que é falso, já que pesquisas recentes mostram Lula com mais de 10 pontos à frente do atual presidente.

Ainda segundo essa conspiração, haveria apenas dois caminhos para reverter esse cenário: "Matar Bolsonaro ou impugnar a chapa". As Forças Armadas também são lembradas no texto: "Roubar na apuração está difícil porque as FFAA estão em cima".

A primeira mensagem foi identificada em 3 de agosto, estendendo-se até 22 de agosto, último dia da análise. Na primeira versão que circulou nos grupos, não havia menção aos atos de 7 de Setembro ou ao comunismo. Ela foi sofrendo pequenas alterações e chegou a circular em ao menos 13 formatos.

A metodologia da Quaest inclui grupos de conversa alinhados a todos os espectros. Os links dos convites públicos de WhatsApp foram obtidos em rede sociais como Twitter, Instagram, Facebook, Reddit e Gettr.

A maioria dos compartilhamentos foi feita em grupos bolsonaristas (91%), contra 3% em grupos lulistas e 6% em grupos classificados como indeterminados.

Apesar do compartilhamento massivo, a quantidade de telefones responsáveis por fazer a mensagem circular não é tão alta. Ao todo, foram 540 números diferentes, um dos quais realizou 438 envios —o segundo número com mais disparos enviou a mensagem 385 vezes. Não parece, contudo, que a narrativa seja homogênea, já que em parte dos grupos bolsonaristas monitorados a mensagem não apareceu.

Desde antes de ser eleito, Bolsonaro fomenta a desconfiança nas urnas em discursos recheados de mentiras. Ele já chegou a colocar a própria realização do pleito em dúvida.

Em entrevista ao Jornal Nacional na segunda (22), o presidente foi cobrado pelos apresentadores a assumir um compromisso de que respeitará o resultado das eleições. Bolsonaro, entretanto, colocou como condição que elas "sejam limpas" e na sequência citou o envolvimento dos militares como determinante. "E quem vai decidir essa questão de transparência ou não serão, em parte, as Forças Armadas, que foram convidadas a participar da comissão de transparência eleitoral."

O Ministério da Defesa foi chamado pelo TSE para participar de uma comissão de transparência das eleições e tem questionado a corte em alinhamento ao discurso do presidente.

No fim de julho, a pasta designou 10 militares das três Forças para participar da fiscalização das eleições. Recentemente pediram, com carimbo de "urgentíssimo", para inspecionar o código-fonte da urna que estava disponível para análise desde outubro do ano passado.

Os militares insistem em mudanças no processo eleitoral e, nesta terça-feira (23), o ministro da Defesa teve uma reunião com o atual presidente do TSE, Alexandre de Moraes.

"BOMBA EM BRASÍLIA: O TRIO QUER IMPUGNAR A CHAPA DE BOLSONARO" é o início da mensagem disparada nos grupos. As três pessoas à frente de tal estratégia não são explicitadas nominalmente. De acordo com o texto, elas estariam sendo pressionadas por "Lula, Zé Dirceu e PCC".

Também no Telegram e em grupos de Facebook a narrativa de que haveria um movimento para impedir Bolsonaro de concorrer foi compartilhada em diferentes variações desde o dia 4 de agosto.

Em parte delas o trio é nomeado: "O TRIO (FACHIN, BARROSO E XANDINHO DO PCC) QUER IMPUGNAR A CHAPA DE BOLSONARO", conforme postagens em grupos públicos no Facebook.

Além de Moraes, que estará à frente da corte durante a eleição, seus antecessores, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, tornaram-se alvos preferenciais de Bolsonaro em seus discursos de cunho golpista contra as urnas eletrônicas e de questionamento da Justiça Eleitoral.

Em sua posse na corte, no dia 16, a que Bolsonaro esteve presente, o ministro deu fortes recados ao chefe do Executivo, assim como fez na sessão em que foi julgada a cassação da chapa Bolsonaro Mourão.

Nessas eleições, o PDT move dois processos para impugnar a chapa de Bolsonaro e Braga Netto, usando como motivação o evento com embaixadores em que o presidente atacou as urnas e uma live do presidente com pedido de votos a aliados. Já o PT não chegou a apresentar nenhuma ação com pedido de derrubada da chapa da campanha atual. Por outro lado, nesta semana, o partido recorreu ao TSE em ação sobre disparos em massa no WhatsApp na campanha de 2018.

Os advogados apontam que haveria contradições no julgamento feito pelo TSE e solicitam que o presidente fique inelegível. Embora o julgamento tenha sido concluído em 2021, os acórdãos, documentos que contêm o teor da decisão e os votos do plenário da corte, só foram publicados na semana passada.

No texto distribuído no WhatsApp, também a construção do temor do que relacionam como "Bloco Comunista da América Latina" é utilizado para mobilizar apoiadores do presidente a comparecerem às manifestações do 7 de Setembro, que foram convocadas por Bolsonaro.

Atras nas pesquisas e com um cenário desfavorável na economia, Bolsonaro tem reembalado, ao longo do ano, a imagem de que o pleito seria uma "luta do bem contra o mal". "POVO NAS RUAS DIA 7 DE SETEMBRO EM MASSA!!!", diz o final do texto compartilhado. "Será a nossa decisão de sermos a próxima Argentina, Venezuela, Cuba, etc…Ou não…O futuro dos nossos filhos e famílias está nas nossas mãos!!!"

No primeiro ato oficial de campanha, Bolsonaro voltou a Juiz de Fora (MG), onde sofreu um atentado em 2018, e associou governos anteriores ao socialismo. "O Brasil estava à beira de um colapso, com problemas éticos, morais e econômicos, e marchava a passos largos para o socialismo", disse na ocasião.

Renata Galf e Paula Soprana para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 24.08.22, às 12h03

Lorotas em tela

Hostil ao jornalismo, Bolsonaro renova aposta na confusão em entrevista ao JN

Dada a belicosidade com que Jair Bolsonaro (PL) trata a imprensa desde sua chegada à Presidência da República, temeu-se o pior em sua entrevista à bancada do Jornal Nacional, na noite de segunda (22).

No entanto, em lugar do valentão que insulta repórteres nas ruas, o que se viu na televisão foi um político acuado —capaz de exercer algum autocontrole, mas despreparado para um tipo de embate que evitou por três anos e meio.

Bolsonaro mentiu mais uma vez sobre suas ações na pandemia, seu descaso com as vítimas da Covid-19 e sua negligência com as vacinas. Desmentido pelos jornalistas, insistiu em lorotas que se desmancham no ar com um clique na internet.

Quando tentou negar as ofensas que dirigiu a ministros do Supremo Tribunal Federal repetidamente nos últimos meses, a dificuldade de sustentar a patranha ficou tão evidente que o mandatário se desconcertou e mudou de assunto.

Questionado sobre o que fará se perder as eleições, Bolsonaro disse que aceitará o resultado se elas forem limpas. Como não há razão para achar que não serão, a fórmula sibilina só serviu para manter acesa sua campanha de descrédito contra as urnas eletrônicas.

O presidente chegou a sugerir que uma decisão sobre a validade do pleito dependerá das Forças Armadas, que participam da fiscalização do processo a convite da Justiça Eleitoral. Mas não existe nada nas atribuições dos militares que permita tal interpretação.

Indiferente ao repúdio que suas ameaças golpistas receberam da sociedade e da política nas últimas semanas, Bolsonaro saiu em defesa dos apoiadores que pregam contra a ordem democrática, e disse que não cabe a ele desautorizá-los.

É possível que o presidente acredite que essa é mesmo a melhor estratégia para sua campanha à reeleição: investir na tensão entre as instituições para manter mobilizados seus seguidores mais fiéis.

Ele ganhou pontos nas últimas pesquisas, mas ainda está longe do primeiro colocado, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os números indicam que essa distância só diminuirá se ele conquistar eleitores que hoje descartam seu nome.

Os 40 minutos da entrevista, no telejornal de maior audiência da televisão brasileira, eram uma oportunidade, mas não houve aceno na direção dessas pessoas.

Indagado sobre as dificuldades econômicas que o país enfrenta e seus planos para um eventual segundo mandato, Bolsonaro foi incapaz de dar uma resposta objetiva, que oferecesse ao menos uma pista sobre o que pretende fazer.

Se a entrevista serviu para mostrar que a aposta na confusão continua sua opção preferencial, ficaram visíveis também as dificuldades que ele enfrenta na disputa.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 23.08.22 às 21h30/ editoriais@grupofolha.com.br

Bolsonaro precisa que a ameaça do golpismo continue circulando

Presidente usa risco como arma política, mesmo quando finge amenizar as próprias bravatas

Parecia até que o presidente havia sido tomado por mais um pressentimento. Horas antes de a Polícia Federal bater na porta de oito empresários que discutiam casualmente um golpe de Estado, Jair Bolsonaro dizia para 43 milhões de brasileiros que defender o fechamento do STF não era "nada de mais". "Para mim, isso daí faz parte da democracia", afirmou, no Jornal Nacional.

A afinidade de Bolsonaro com a ideia de uma ruptura democrática não é nenhuma novidade. Mas é interessante observar como o presidente emite um tipo de salvo-conduto e estimula o golpismo entre seus seguidores mesmo quando ele próprio age estrategicamente para reduzir o volume dessas bravatas.

Bolsonaro insiste na circulação da ameaça porque explora o fantasma do golpe como arma política. Em primeiro lugar, a retórica da ruptura ajuda o presidente a se vender como líder de uma guerra contra "o sistema" e manter o engajamento de seus apoiadores mesmo nos momentos em que ele parece frágil.

O capitão também usa esse risco numa espécie de extorsão. Em nome de uma suposta pacificação, aliados espalham pelos tribunais a versão de que o presidente vai abandonar os ataques à democracia e a postura conflituosa caso determinadas exigências sejam cumpridas. A negociação nunca se concretiza porque o único beneficiário da história é o próprio Bolsonaro.

No fundo, o presidente ainda alimenta a hipótese de um golpe porque parece acreditar verdadeiramente nesse caminho. Mantendo a possibilidade no ar, ele tenta calcular a adesão a um processo de ruptura liderado por ele, incluindo setores sensíveis como as Forças Armadas e o empresariado.

O presidente só consegue sustentar esse risco graças à boa vontade de instituições como o Congresso e a Procuradoria-Geral da República. Augusto Aras, aliás, não escondeu de aliados a contrariedade com a ação da PF que mirou empresários golpistas. Se dependesse dele, haveria mais gente falando de golpe por aí..

Bruno Boghossian, o autor deste artigo, é  Jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 23.08.22, às 20h08 

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Vergonha brasileira

O caso do menino que ligou para a polícia pedindo ajuda, pois a família não tinha o que comer, deveria vexar todo o País, sobretudo quem tem poder de acabar com a fome, e não o faz

Com voz firme e clareza incomum para a idade, o menino Miguel, de 11 anos, assombrou o País por sua coragem e maturidade ao ligar para a polícia e pedir ajuda para ele e a família, que passavam fome. Foi no dia 2 de agosto, na região metropolitana de Belo Horizonte, mas poderia ser em qualquer dia e em qualquer um dos muitos lugares em que sobrevivem os milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar. 

A fome, que costuma surgir somente em razão de catástrofes naturais ou de guerras, aparentemente começa a tornar-se parte do cotidiano do Brasil, um país que não sofreu nenhuma catástrofe natural recente nem está em guerra. Aos poucos, os brasileiros parecem se acostumar com essa tragédia, e a vida segue – até que um menino de 11 anos decide fustigar a consciência do País.

“Ô seu policial, aqui, é por causa que aqui em casa não tem nada pra gente comer e eu tô com fome. Minha mãe só tem farinha e fubá pra comer”, disse o menino em seu telefonema desesperado para o serviço 190 da Polícia Militar. Desconfiados de que se tratava de maus-tratos, os policiais foram à casa do menino e lá se chocaram com a realidade. A família passava fome havia pelo menos três dias. “Minha mãe estava chorando”, explicou o menino mais tarde, em entrevistas nas quais contou por que tomou a iniciativa de ligar para a polícia.

Naquele instante, a fome ganhou rosto e voz de criança – em quem se costumam depositar as esperanças de uma nação. Se uma criança passa fome, e se essa criança deve ela mesma tomar a iniciativa de procurar ajuda, significa que a nação fracassou em todos os aspectos. Em países decentes, as crianças nem passam fome nem precisam amadurecer antes do tempo para encontrar maneiras de sobreviver. Em países decentes, governos e sociedades investem tudo o que podem no desenvolvimento de suas crianças, tratando-as, em primeiro lugar, como sujeitos de direitos. Em países decentes, as autoridades não dormem tranquilamente se houver crianças com fome.

O Brasil, dono de uma das maiores economias do mundo, e orgulhoso de sua imensa capacidade de produzir alimentos, deveria considerar inaceitável que um único menino brasileiro não tenha o que comer. No entanto, a despeito dos vergonhosos números da insegurança alimentar, o País parece mais empenhado em discutir o preço dos combustíveis, a confiabilidade das urnas eletrônicas e o papel dos militares nas eleições. Ademais, enquanto poucos políticos se dedicam a enfrentar o drama da fome, e quando o fazem é quase sempre de maneira calculista, não faltam interessados no rateio das bilionárias verbas do orçamento secreto para seus redutos eleitorais. Em meio à balbúrdia estéril daqueles que fazem três refeições por dia e só deixam de comer quando estão de dieta, o telefonema de um menino de 11 anos pedindo socorro à polícia porque estava com fome é um tapa na cara.

A eleição de outubro deveria ser a oportunidade para discutir mecanismos de curto e médio prazos para enfrentar essa calamidade. Os candidatos deveriam se sentir obrigados a detalhar o que pretendem fazer imediatamente, a partir do instante da posse como presidente, a respeito disso, pois nada pode ser considerado mais prioritário. E os candidatos deveriam ser obrigados a dizer o que pretendem fazer para que essa situação jamais volte a ocorrer. Ou seja: não merecem o voto aqueles candidatos que se orgulham de investir em programas de ajuda aos mais pobres que apenas se prestam a alimentar uma clientela eleitoral, sem mudar substancialmente a realidade. Por outro lado, candidatos que propuserem uma sólida política de inclusão, que não se limite a transferir renda para evitar a miséria e que invista em educação pública como prioridade real do País, deveriam ter a atenção do eleitor.

É preciso, portanto, que o País, se tem verdadeiro apreço por si mesmo, não fique indiferente ao pedido de socorro do menino Miguel, pois essa criança, como tantas outras em situação semelhante, não pode ser privada do mais básico da vida em sociedade. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 23.08.22

Uma decisão prudente

Exército acertou ao cancelar desfile do 7 de Setembro no Rio, em razão de ameaças de violência e de uso político-partidário

O Exército foi prudente ao decidir não participar dos atos programados para a orla de Copacabana por ocasião do 7 de Setembro. O presidente Jair Bolsonaro queria contar com a presença dos militares, vontade esta que representava uma nítida tentativa de uso político-partidário das Forças Armadas. A presença das tropas e de seus blindados na Avenida Atlântica, em meio a apoiadores da reeleição do presidente, podia ser equivocadamente entendida como apoio dos militares a um determinado candidato ou partido.

Diante da tentativa bolsonarista de exploração política de uma festa cívica, o Exército cancelou também a tradicional parada militar na Avenida Presidente Vargas, no centro da capital fluminense. Agora, está prevista uma cerimônia militar sem público ou desfile para as comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil.

A decisão por essa participação mais discreta dos militares foi motivada não apenas pelo risco de exploração político-partidária da data nacional. O setor de inteligência do Exército detectou indícios de preparação material de atos de violência por parte de radicais bolsonaristas. Esses apoiadores de Jair Bolsonaro pretendiam se infiltrar nas manifestações em Copacabana para provocar tumultos que, no limite, levassem a uma intervenção militar por meio de decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ou, ao menos, criassem um clima no País para discussões dessa natureza, totalmente descabidas. Definitivamente, um militar ferido ou morto durante esses atos é o que de menos o País precisa neste momento. Campanha eleitoral é tempo de paz, não de bagunça, violência ou uso político-partidário das instituições de Estado.

A insistência de Jair Bolsonaro para levar a principal celebração do Bicentenário para o Rio de Janeiro, e especificamente para a orla de Copacabana, onde já ocorreram manifestações favoráveis ao presidente, não foi aleatória. No Rio concentra-se o maior número de radicais bolsonaristas. Neste sentido, toda prudência das autoridades é bem-vinda.

A decisão do Exército de cancelar o desfile do 7 de Setembro no Rio de Janeiro é um triste sintoma dos tempos estranhos que o País atravessa. É lamentável que uma celebração cívica tão importante, como é o Bicentenário da Independência do Brasil, tenha de ser alterada por ameaças de uso político-eleitoral e de risco de atos de violência. Definitivamente, o governo de Jair Bolsonaro não apenas é incapaz de promover a paz, a ordem e a civilidade, como estimula o exato contrário.

É preciso investigar rigorosamente os indícios detectados pelo Exército a respeito da preparação material de atos de violência por parte de radicais bolsonaristas. O País não pode ficar refém de baderneiros autoritários e fora da lei, que querem impor seus delírios sobre o restante da população. O 7 de Setembro é data de celebração cívica do País, de sua história e de suas instituições. Não pode ser convertido em tempo de ameaça ou de medo, antíteses da cidadania e da liberdade.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 23.08.22

Resposta de Kirchner às acusações na Argentina é parecida com a de Lula na Lava Jato, diz analista

Vice-presidente acusa Justiça de perseguição política e tenta impugnar processo por supostas ilegalidades; sociólogo compara resposta a do ex-presidente brasileiro

Foto: Celso Junior/ AE - 07/09/2008

As acusações da Promotoria da Argentina contra a vice-presidente Cristina Kirchner e o pedido de sentença de prisão e anulação dos direitos políticos têm uma repercussão política que se assemelha a um episódio brasileiro recente: o caso Lula e a Lava Jato, segundo a avaliação de um analista político argentino. Na segunda-feira, 22, Kirchner e seus apoiadores consideraram o processo judicial contra ela um “pelotão de fuzilamento midiático-judicial” e acusaram se tratar de uma perseguição. “O melhor exemplo que se toma disso é justamente o Lula”, declarou o sociólogo Carlos de Angelis, professor da Universidade de Buenos Aires (UBA).

De acordo com Angelis, as semelhanças residem principalmente na resposta dos dois líderes aos processos. Assim como Lula, Kirchner acusa a promotoria e juízes de atuarem juntos e ferirem os direitos de defesa. Poucos minutos depois do promotor Diego Luciani acusá-la de chefiar um esquema de associação ilícita e fraude ao Estado.

Em um discurso em seu próprio gabinete no Senado, transmitido em redes sociais, Cristina acusou o Ministério Público de agir motivado por uma “feroz campanha política e midiática” e disse que a “a sentença já estava escrita” quando promotoria pediu sua condenação na segunda-feira. “Os promotores puderam ler seu roteiro durante nove dias. Eu gostaria de ter falado em frente ao tribunal”, disse Cristina. “Não deveria me surpreender, porque, como disse na época, a sentença já estava escrita”, acrescentou.

Apoiador de Cristina Kirchner carrega cartaz em apoio à vice-presidente durante protesto na segunda-feira, 22. Foto: Juan Mabromata/ AFP

Durante o discurso, a vice-presidente argumentou que não há provas contra ela e que nenhum dos convocados para testemunhar durante o julgamento apoiou a versão dos promotores, que segundo ela adotam o “roteiro” de veículos de imprensa e da oposição ao governo.

Em uma publicação nas redes sociais na segunda-feira, Cristina já havia comparado o tribunal a um “pelotão de fuzilamento”. “Se faltou algo para confirmar que não estou perante um tribunal da Constituição, mas sim perante um pelotão de fuzilamento midiático-judicial, é me impedir de exercer o direito de defesa perante questionamentos que nunca apareceram na acusação do Ministério Público a que assisti por 5 dias em maio de 2019″, declarou.

As menções aos processos enfrentados por Lula na Operação Lava-Jato foram feitas pelos próprios apoiadores de Kirchner e membros do governo. “A extrema direita na América Latina é antidemocrática. O fizeram com Perón e, recentemente, com líderes populares da região como Evo Morales e Lula. Mas nossos povos são justos: não abandonam os que apostaram por eles”, escreveu o ministro das Relações Exteriores, Santiago Cafiero, em sua conta no Twitter.

Longe de significar uma prisão num futuro próximo, as acusações contra Kirchner aumentam a crise política de um país que precisa lidar com o caos econômico. Um sinal disso ficou evidente nesta segunda-feira, com manifestações pró e contra diante da residência dela em Buenos Aires – finalizadas com conflitos com a polícia.

Segundo Angelis, o caso Lula deve ser muito discutido na Argentina nos próximos meses e anos porque Kirchner acusa Diego Luciani de ter relações pessoais com o juiz Rodrígo Giménez Uriburu, um dos três magistrados que a julgará. Há alguns dias, uma imagem se espalhou mostrando os dois juntos em uma partida de futebol amador organizada pelo ex-presidente Mauricio Macri, adversário político de Kirchner. Ela pediu que os dois fossem afastados do processo, mas não obteve êxito.

“Seguramente, há alguns elementos que Cristina vai pôr na mesa para impugnar o processo, pelo menos a legitimidade dele”, declarou Angelis. “Por isso, creio que o caso Lula deve ser muito discutido e difundido na Argentina”.

O paralelo com o ex-presidente Lula acontece devido às alegações de ilegalidades feitas pela defesa do ex-presidente nos quatro processos criminais da Operação Lava Jato contra ele que tramitaram na 13ª Vara Federal de Curitiba, que resultaram na anulação das condenações no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021. Em um dos processos, referente ao caso do Triplex do Guarujá, a Segunda Turma do STF decidiu que o ex-juiz Sérgio Moro foi parcial no julgamento.

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O petista, assim como Kirchner faz neste momento, mobilizou durante todo o processo os seus apoiadores a saírem em sua defesa difundindo a tese de perseguição.

Outra semelhança está nos direitos políticos. Caso seja condenada a sentença solicitada nesta segunda-feira, que pede 12 anos de prisão e anulação perpétua dos direitos políticos, Kirchner terá a sua carreira na política institucional, na qual ela foi presidente em dois mandatos, encerrada. “Foi o que aconteceu com Lula em 2018, quando perdeu os direitos políticos e não pode disputar as eleições que Jair Bolsonaro ganhou. Agora, ele pode. Creio que é uma discussão que também vai crescer na Argentina”, declarou Angelis.

Consequências políticas imediatas

Kirchner só deve ser julgada em dezembro por um tribunal da primeira instância e o caso deve ser apelado à Corte Superior do país, estendendo-se por anos. Por isso, o pedido de sentença feito nesta segunda-feira está longe de significar a prisão dela em um futuro próximo. A principal consequência é, segundo os analistas, o aumento da crise política em um país que lida com o caos econômico.

“Isso é um pouco mais do mesmo: o Kirchnerismo denuncia perseguição política, como está fazendo, e a oposição faz a campanha com o argumento da corrupção”, disse a cientista política María Lourdes Puente, diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina.

“Não vejo que há um procedimento possível de detenção efetiva (com as acusações desta segunda-feira), somente uma agitação do vespeiro político”, acrescentou.

Manifestante se veste de presidiária para pedir prisão de Cristina Kirchner. Foto: Magali Druscovich/ REUTERS

A vice-presidente também se vale do foro privilegiado concedido pelo cargo para não ser presa. Com eleições marcadas para o ano que vem é provável que ela seja candidata ao Senado – o que manteria a imunidade até 2029, caso consiga a provável vitória. Nesse contexto, ela ainda teria que passar por um processo de impeachment no Congresso Nacional da Argentina para perder o cargo. E, para isso, seriam necessários dois terços dos votos dos senadores e deputados a favor da sua saída.

Dentro deste jogo, no qual há um conflito de anos entre a esquerda e a direita argentina, uma pergunta ainda sem resposta é como o governo de Alberto Fernandez vai lidar com as acusações – e como as acusações respingam nele. O atual presidente e Cristina racharam politicamente durante o governo e não se falam, mas isso não o impediu de também chamar as acusações contra ela de perseguição. “Transmito o meu mais profundo afeto e solidariedade a Cristina”, escreveu no Twitter,

Na avaliação de Carlos de Angelis, entretanto, a resposta é limitada. Por um lado, o governo não possui muitos recursos para defender Cristina em uma outra esfera de poder. Por outro, precisa centrar forças para lidar com a crise econômica, que atingiu 71% no ano, o pior número em 30 anos. “O governo está mais envolvido nos problemas econômicos na nova gestão de Sergio Massa”, declarou Angelis.

Resposta da oposição

Um fator é visto como crucial pelos analistas para livrar Alberto Fernández da pressão causada pelo processo de Cristina Kirchner: a resposta contida da oposição. De acordo com o analista político Sergio Berensztein, presidente da agência International Press Service (IPS) para América Latina, os políticos opositores não devem inflamar mais o cenário para não fortalecer a narrativa de perseguição de Cristina Kirchner. “Se a oposição usar as acusações contra Cristina, elas serão vistas como politizadas e parte dessa perseguição”, declarou Berensztein.

“O governo de Fernández está muito debilitado politicamente pela crise política. Fernández não tem credibilidade e está afastado de Cristina Kirchner, que tem uma liderança política muito forte. A crise econômica deve continuar sendo o maior motivo de pressão sobre ele neste momento”, acrescentou o analista.

A pressão poderia recair em Fernández caso Kirchner fosse condenada e recebesse um indulto político. Isso, entretanto, é improvável pelo tempo que o processo pode durar.

Segundo os analistas, isso não significa que as acusações não serão utilizadas politicamente contra Kirchner. Elas devem ser o tema central da campanha eleitoral no ano que vem, quando Cristina deve se candidatar ao Senado. “Eles vão usar, com certeza na campanha eleitoral vai ser uma questão central, por mais que não haja condenação firme para aquele momento”, concluiu Angelis.

Luiz Henrique Gomes para o Estado de S. Paulo online. Publicado originalmente em 23.08.22 às 10h16