sexta-feira, 1 de julho de 2022

A conivência de Bolsonaro

Acumulam-se escândalos no primeiro escalão do governo. Em nenhum deles, Bolsonaro defendeu o cumprimento da lei, facilitou a transparência ou colaborou com a Justiça

Os casos de suspeitas de crimes envolvendo o primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro apresentam uma grande – e preocupante – similaridade. Em todos, não foram os órgãos de controle da administração federal que trouxeram o problema à tona. Em todos, o presidente da República, sempre tão radical no discurso contra o crime, amenizou, em detrimento da defesa da lei, a conduta dos amigos. Em todos, descobriu-se que o governo sabia previamente da existência de indícios, mas optou por não agir. E sempre, entre os envolvidos nos diversos escândalos, havia gente muito próxima ao presidente da República.

O caso mais recente é escandaloso. Acusado por diversas funcionárias da Caixa Econômica Federal de todo tipo de assédio sexual, Pedro Guimarães era uma das pessoas mais vistas ao lado do presidente da República. Participou de várias lives de Bolsonaro. Acompanhou o presidente em diversas viagens. Era parte do núcleo íntimo presidencial. As suspeitas precisam ser investigadas, mas desde já dois fatos são significativos: (i) ninguém que acompanha o dia a dia do poder em Brasília ficou surpreso com as denúncias; e (ii) a Caixa já tinha conhecimento de suspeitas de crime. Conforme o próprio banco informou, o canal interno de denúncias da Caixa havia recebido relatos de assédio por parte de Pedro Guimarães.

No entanto, apesar de tudo isso, o caso tornou-se inaceitável para o governo Bolsonaro apenas quando foi revelado pela imprensa. Até então, era um não problema, com Pedro Guimarães desfrutando de toda a confiança de Bolsonaro, sendo inclusive um dos cotados para ser o vice na chapa de Bolsonaro à reeleição. Diante disso, e do silêncio de Bolsonaro, incapaz de condenar toda forma de assédio sexual e de afastar o amigão Pedro Guimarães, é lícito supor que o indigitado não teria perdido o emprego se não estivéssemos em ano eleitoral.

Esse caso, que por si só já é altamente constrangedor, não é o único em que Jair Bolsonaro adotou uma atitude de conivência com as suspeitas de crime. No ano passado, o presidente da República teve seu então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, investigado por corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando, em razão de suspeitas de facilitação de exportação ilegal de madeira para os Estados Unidos e a Europa. Em nenhum momento, Bolsonaro defendeu o cumprimento da lei ambiental brasileira. Limitou-se apenas, quando a permanência de Ricardo Salles se tornou politicamente inviável, a aceitar o pedido de demissão.

Durante a CPI da Pandemia, várias suspeitas de mau uso de dinheiro público no Ministério da Saúde vieram à tona. Em vez de se colocar em defesa da lei, Bolsonaro sempre se pôs ao lado dos amigos. No caso relativo às negociações para a compra da vacina Covaxin, tal foi a passividade do presidente que um inquérito foi aberto para investigar possível crime de prevaricação. Depois, a investigação foi encerrada, mas não porque se concluiu que Bolsonaro atuou na defesa da lei, e sim porque a Procuradoria-Geral da República, sempre tão camarada com Bolsonaro, entendeu que o presidente da República não tinha o dever de agir naquela situação.

No caso do Ministério da Educação, o comportamento foi o mesmo. Diante das graves suspeitas reveladas pela imprensa, em vez de assegurar condições para uma investigação isenta, Bolsonaro disse que colocava “a cara no fogo” pelo então ministro da Educação. Depois, quando a operação da Polícia Federal foi deflagrada, alegou que tinha exagerado na defesa do pastor. Mas ainda teve o descaramento de dizer que tráfico de influência, crime previsto no Código Penal pelo qual Milton Ribeiro é investigado, era algo comum, sem maior importância.

Em todos os casos, Bolsonaro teve a mesma reação. Em nenhum deles defendeu o cumprimento da lei, facilitou a transparência ou colaborou com a Justiça. Sua resposta foi sempre negar os indícios, desqualificar o trabalho de quem não se subordina a seus interesses e desviar o tema com outras pautas. Vale lembrar que, até hoje, o presidente da República não esclareceu os 21 cheques de Fabrício Queiroz na conta de sua mulher.

Não se combate a corrupção, ou qualquer outro crime, dessa forma. Agir assim é preparar o terreno para novos escândalos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 01.07.22

Brasil ocupa último lugar em educação, entre 63 países

A atual miséria educacional brasileira é possivelmente sem precedentes. Mas não se deve só à incompetência do governo Bolsonaro: o desprezo pela educação está profundamente arraigado na sociedade – e compromete o futuro.

Muitos jovens brasileiros chegam ao fim do ensino médio como analfabetos funcionais (Foto: Leandro Ferreira/ Fotoarena /imago images

Desde 1989 o International Institute for Management Development (IMD), sediado na Suíça, publica um ranking anual de competitividade. Para tal, o IMD World Competitiveness Center entrevista empresária/os, investidora/es e gerentes de 63 países sobre diversos critérios.

No relatório mais recente, a América Latina se saiu especialmente mal. Excetuado o Chile, todos os demais seis grandes Estados ocupam os últimos postos entre as economias examinadas. O Brasil está em 59º lugar; numa das rubricas – relativa à educação de crianças e adolescentes e à formação profissional – aparece até mesmo na última posição.

Isso é uma catástrofe que não se limita à miséria educacional sob Jair Bolsonaro. O governo do populista de direita não está interessado em melhorar o nível dos escolares e universitários brasileiros. Os sucessivos ministros da Educação – até agora quatro – são notórios principalmente por suas excentricidades e seu óbvio desconhecimento da área.

O ex-ministro Milton Ribeiro chegou a ser preso preventivamente por corrupção – e acabou solto no dia seguinte. Abraham Weintraub só se salvou do mesmo destino graças à transferência para o exterior, a serviço do Banco Mundial. Um ministro nomeado não pôde assumir por ter alegado ter um título de doutor que não possuía. O atual ministro, ninguém conhece.

Futuro sem capital humano

No entanto, as consequências da miséria educacional, que o IMD provou tão claramente agora, vão muito além da política insuficiente do governo no ensino: elas estão profundamente enraizadas na sociedade brasileira. Sejam ricos ou pobres, em todas as camadas do Brasil a educação é considerada secundária, algo mais ou menos supérfluo, que é nice to have.

Muitos pobres não entendem que a educação possa ser uma possibilidade de ascensão social, pois praticamente não conhecem ninguém que tenha conseguido. As escolas públicas são tão ruins que até mesmo os mais pobres, se podem, enviam seus filhos para as particulares. Mas os diplomas só valem no papel.

"No Brasil, a educação se resume a uma situação em que uns fingem que ensinam, outros fingem que aprendem, e tudo termina em diploma", disse recentemente o filósofo Eduardo Giannetti em entrevista ao jornal Valor Econômico.

Grande parte dos jovens de classe média não possui a qualificação em matemática e português atestada em seu certificado de ensino médio, como têm mostrado repetidamente os estudos Pisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países industrializados desenvolvidos. Muitos são lançados como analfabetos funcionais e sem domínio das operações aritméticas básicas no mundo do trabalho, onde são proporcionalmente mal pagos.

Contudo, muitos brasileiros de classe média a alta também pensam que, ao colocar seus filhos em escolas caras, já fizeram o suficiente por sua formação. Não se ensina a pensar, mas a aprender de cor. Um indício é que no Brasil não se leem nem presenteiam livros. Também nas casas dos que poderiam comprá-los, livros são artigo raro. Onde há aula de música na escola? Que crianças ou adolescentes já foram a um museu ou exposição?

Para o Brasil, esse último lugar em relação ao nível educacional da população é um mau presságio, pois compromete seu futuro. Giannetti explica: "Porque a formação de capital humano é o que define a vida de um país. Nenhum local prospera, encontra o seu melhor, se não der a cada cidadão a capacidade de desenvolver o seu potencial humano. E o Brasil está muito longe de alcançar essa realidade."

A isso, não há nada mais a acrescentar.

O autor deste artigo, o  jornalista Alexander Busch , há mais de 25 anos é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Publicado originalmente na Deutsche Welle, em 29.06.22 /https://www.dw.com/pt-br/brasil-ocupa-%C3%BAltimo-lugar-em-educa%C3%A7%C3%A3o-entre-63-pa%C3%ADses/a-62304023 

Senado aprova PEC que amplia Auxílio Brasil em ano eleitoral

Proposta institui estado de emergência, oficializa quebra do teto de gastos e viabiliza programas sociais, a poucos meses das eleições. Medidas poderão custar até 41,2 bilhões de reais aos cofres públicos.


Senado da República é o que está aí nessa cumbuca emborcada, à esquerda

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que institui um estado de emergência no país e cria e ampliabenefícios sociais a poucos meses das eleições foi aprovada em dois turnos no Senado nesta quinta-feira (30/06). O texto foi enviado à Câmara dos Deputados, onde também deverá ser colocado em votação em dois turnos.

A medida permite que o governo ignore regras fiscais e fure o teto de gastos para ampliar o programa social Auxílio Brasil, e avance na criação de um benefício temporário de mil reais para caminhoneiros, além do Vale Gás e outras medidas que serão válidas até o final do ano.

A PEC, que permite o aumento de gastos por parte do governo sem as restrições normalmente impostas pela lei eleitoral, poderá custar até 41,2 bilhões de reais aos cofres públicos. 

Está previsto na PEC o aumento das parcelas do Auxílio Brasil de 400 para 600 reais, a criação de um voucher de mil reais para os caminhoneiros e a ampliação do chamado Vale Gás. 

O texto inclui ainda um auxílio para taxistas, um repasse de até 3,8 bilhões de reais para a manutenção da competitividade do etanol em relação à gasolina, e outro no valor de 500 milhões de reais para o programa Alimenta Brasil.

Os senadores aprovaram a proposta por 72 votos a 1 no primeiro turno, e 67 a 1 no segundo. Para a aprovação, eram necessários 49 votos. O senador José Serra (PSDB-SP) foi o único a votar contra, por discordar do caráter eleitoreiro da proposta.

Oposição vota a favor

Os senadores da oposição também votaram a favor da PEC, ressaltando a necessidade de fornecer ajuda às populações mais carentes. Alguns porém, lamentaram que as medidas possam beneficiar diretamente a campanha para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. A PEC agora segue para a Câmara dos Deputados.

A criação do estado de emergência, como forma de permitir ao governo furar o teto de gastos, foi fortemente criticada. O governo justificou a medida em razão do impacto gerado pela guerra na Ucrânia, que resultou em uma alta global no preço dos combustíveis e uma crise alimentícia global.

A legislação eleitoral brasileira proíbe a criação de novos benefícios sociais em ano de eleições. As únicas exceções são a manutenção de programas que já estejam em andamento, e em caso de calamidade pública ou estado de emergência.

O relator da PEC, senador Fernando Bezerra (MDB-PE), argumentou que o estado de emergência valeria apenas para os benefícios previstos na proposta, e que não se trata de passar um "cheque em branco" ao governo.

A proposta veio em substituição à chamada PEC dos Combustíveis, que previa uma compensação aos estados que zerassem o ICMS na tentativa de reduzir os preços ao consumidor.

Mas, após uma série de questionamentos à efetividade da proposta, Bezerra apresentou o substitutivo que prevê o conjunto de benefícios sociais.

Deutsche Welle, em 30.06.22. Publicado originalmente em https://www.dw.com/pt-br/senado-aprova-pec-que-amplia-benef%C3%ADcios-em-pleno-ano-eleitoral/a-62321898

PEC que amplia Auxílio Brasil em ano eleitoral é 'passar a perna na lei', diz especialista

A legislação eleitoral proíbe a criação de benefícios em ano de eleição, com exceção de casos de calamidade pública e estado de emergência.

O texto da PEC, que está sendo analisado a três meses das eleições presidenciais, institui um "estado de emergência" sob a justificativa do elevado aumento no preço dos combustíveis.

Auxílio para o gás é elevado de R$ 60 para R$ 120 no bimestre de acordo com PEC que amplia benefícios sociais (Getty Images)

"Se o governo federal conseguir aprovar essa medida, ele deixa um rombo orçamentário enorme para o próximo governo que pode ser ele próprio. Dessa forma, o Brasil retroage no tempo para antes da lei de responsabilidade fiscal, um período em que um governo saía e deixava o rombo orçamentário para o governo seguinte."

A votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que cria e amplia benefícios sociais em ano eleitoral foi remarcada para as 16h desta quinta-feira (30/06) pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, após colegas de Casa pedirem mais tempo para análise. A base governista tentou a aprovação do texto na noite de quarta.

Estado de emergência: por que PEC que libera gastos em ano eleitoral é tão polêmica?

Apelidada nos bastidores do Congresso de "PEC kamikaze", pelo impacto de R$ 38,75 bilhões além do teto de gastos do governo, a medida prevê o lançamento de um "voucher" no valor de R$ 1.000 para caminhoneiros e eleva os valores do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 e do auxílio para o gás de R$ 60 para R$ 120 no bimestre.

Eleições 2022: Quais são as propostas dos pré-candidatos?

Há também uma compensação pelo transporte gratuito de idosos, com custo estimado de R$ 2,5 bilhões, e repasses para desoneração do etanol com valor total de R$ 3,8 bilhões.

A legislação eleitoral proíbe a criação de benefícios em ano de eleição, com exceção de casos de calamidade pública e estado de emergência.

O texto da PEC, que está sendo analisado a três meses das eleições presidenciais, institui um "estado de emergência" sob a justificativa do elevado aumento no preço dos combustíveis.

Para entrar em vigor, a PEC precisa ser aprovada em dois turnos tanto pelo Senado quanto pela Câmara dos Deputados e ter três quintos dos votos dos parlamentares nas duas casas. Após a aprovação, ela é promulgada automaticamente, sem necessidade de sanção presidencial.

O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, que está em viagem à Turquia, declarou "não conhecer a PEC". À BBC News Brasil, limitou-se a dizer que "bondade em ano de eleições gerais é complicado. O cenário promete. Com a palavra, o TSE [Tribunal Superior Eleitoral]".

Para Marilda Silveira, professora de Direito Eleitoral no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), "a pretensão veiculada na PEC, se concretizada, tem uma conduta que é expressamente vedada na lei 9.504, artigo 73, parágrafo 10. Há uma vedação expressa de distribuição de qualquer tipo de benesse que não tenha autorização expressa na lei e que não esteja em execução no ano anterior".

"Essa emenda constitucional nasce com desvio de finalidade", diz Alberto Rollo, especialista em direito eleitoral.

"É uma forma jurídica de tentar passar por cima dessas vedações. A intenção é maliciosamente passar a perna na lei", afirma. "É uma mágica jurídica que estão querendo fazer e um precedente perigoso."

Justificativa para estado de emergência

O senador e ex-líder do governo Fernando Bezerra articulou a mudança da PEC dos Combustíveis, que compensava os estados por zerar tributos sobre combustíveis, para um projeto que cria e amplia benefícios sociais em ano eleitoral

O relator da matéria, o senador e ex-líder do governo Fernando Bezerra (MDB-PE) menciona a Guerra na Ucrânia e o impacto sobre os combustíveis para pedir o reconhecimento do estado de emergência.

"É essencial reconhecer que o país passa por uma situação de emergência provocada pelo forte aumento no preço dos combustíveis, com seus impactos diretos sobre o custo de vida, e indiretos, via efeitos de segunda ordem sobre a inflação", diz um trecho do parecer.

"A PEC perigosamente caracteriza o estado de emergência para que esses benefícios possam ser concedidos", afirma Gabriel Quintanilha, professor convidado da FGV Direito Rio.

Para Alberto Rollo, "estado de emergência é uma situação de exceção. Uma situação de exceção não pode ser criada artificialmente".

Marilda Silveira analisa que a intenção da PEC "é tentar constitucionalizar uma emergência. Mas emergência é uma questão de fato, não é uma questão jurídica".

"A competência é do presidente para decretar casos de calamidade como foi feito na pandemia. Se estão fazendo por PEC é porque eles sabem que tem fragilidade no argumento", diz ela.

Segundo Quintanilha, "a justificativa é muito frágil porque não há nenhum envolvimento direto do país com a guerra. Portanto, há o risco de que até mesmo no Tribunal de Contas seja reconhecido como não sendo um fundamento razoável."

"Se o governo federal conseguir aprovar essa medida, ele deixa um rombo orçamentário enorme para o próximo governo que pode ser ele próprio. Dessa forma, o Brasil retroage no tempo para antes da lei de responsabilidade fiscal, um período em que um governo saía e deixava o rombo orçamentário para o governo seguinte."

Shin Suzuki da BBC News Brasil em São Paulo, em 30.06.22. Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61992544, em 30.06.22

quinta-feira, 30 de junho de 2022

A verdadeira herança maldita

Não se sabe quem será o próximo presidente, mas isso não é importante para os que trabalham neste momento para manter o orçamento secreto intacto e sob controle do Centrão

Quem suceder a Jair Bolsonaro na Presidência da República encontrará um rastro de destruição em áreas essenciais da administração pública federal, como economia, saúde, educação, cultura, relações exteriores e meio ambiente. Mas poucos legados do atual mandatário terão sido tão nefastos para o futuro próximo do País quanto a entrega, pelo Poder Executivo, da responsabilidade que lhe cabe na gestão do Orçamento a um grupo de parlamentares oportunistas, que viram na debilidade moral, política e administrativa de Bolsonaro o ensejo para cobrarem do presidente um alto preço por sua permanência no cargo, malgrado a miríade de crimes de responsabilidade que ele cometeu – e segue cometendo.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), é figura de proa na arquitetura e na execução desse arranjo inconstitucional. Sob suas ordens diretas está a destinação da maior parte dos bilionários recursos que compõem o chamado orçamento secreto. Poucos políticos detiveram tanto poder em suas mãos na história recente do País como Arthur Lira detém hoje. E o presidente da Câmara sabe disso. Tanto que, à luz do dia, manobra para conservar não apenas o próprio orçamento secreto, mas, sobretudo, o seu papel central no esquema, seja quem for o vencedor da eleição presidencial em outubro.

Como revelou o Estadão no domingo passado, Lira pretende incluir um dispositivo na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023 – ou criá-lo por meio de uma resolução do Congresso – que torne obrigatórias as assinaturas do presidente da Comissão Mista de Orçamento (CMO) e do relator da LDO para as indicações das emendas do orçamento secreto, em conjunto com a anuência do relator-geral do Orçamento, que hoje é quem detém essa “prerrogativa”, chamemos assim, com exclusividade.

Até aqui, a ordem das coisas tem atendido bem aos interesses de Arthur Lira e seu grupo político. Os relatores-gerais do Orçamento nos últimos dois anos foram aliados do presidente da Câmara. Mas Lira, não é de hoje, já está com os olhos voltados para 2023, pensando não só em sua reeleição como presidente da Casa, como também em maneiras de conservar seu poder pessoal de direcionar a distribuição das emendas do orçamento secreto, que no ano que vem deverão somar R$ 19 bilhões. A estratégia eleitoral de Lira para seguir à frente da Câmara na próxima legislatura está umbilicalmente ligada à renovação de seu mandato pelos alagoanos, por óbvio, e ao seu poder de distribuir dinheiro entre os pares.

O relator-geral do Orçamento de 2023 será o senador Marcelo Castro (MDB-PI), um parlamentar que não faz parte do grupo político de Arthur Lira. Já o presidente da CMO será o deputado Celso Sabino (União-PA), aliado de Bolsonaro e escolhido pessoalmente pelo presidente da Câmara para chefiar a comissão. Por fim, o senador Marcos Do Val (Podemos-ES) será o relator da LDO. Do Val, como os brasileiros puderam acompanhar durante a CPI da Pandemia, tem forte inclinação governista.

O que funcionou até aqui com relatores-gerais do Orçamento aliados de Arthur Lira pode não funcionar da mesma forma em 2023, quando a relatoria-geral estará a cargo de um parlamentar cuja atuação o presidente da Câmara pode não ter como controlar. É vital para Lira, portanto, diluir o poder de Marcelo Castro entre seus aliados na presidência da CMO e na relatoria da LDO e tornar o pagamento das emendas RP-9 impositivo, como é para as emendas individuais e de bancada. Já para o País, vital é acabar com o orçamento secreto.

O próximo presidente da República haverá de empreender um grande esforço para recuperar o controle do Orçamento que foi perdido durante o governo de Jair Bolsonaro. E recuperar esse controle não apenas para cumprir a transparência inscrita na Constituição, razão fundamental por si só e já ordenada pelo Supremo Tribunal Federal, mas para também reconciliar o Orçamento com as grandes prioridades nacionais, que são muito distintas dos interesses paroquiais dos parlamentares que hoje se esbaldam com recursos públicos sem prestar contas a ninguém. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.06.22

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Justiça digital como 'veneno-remédio'

Experiência compulsória de modelo online agora exige debates e ajustes

Brad Smith, presidente da Microsoft e advogado, alerta sobre a tecnologia servir tanto para resolver todo tipo de problema quanto para criar novos. O equilíbrio entre vida física e digital seria, para ele, a chave para evitar os perigos do uso mal planejado ou excessivo da tecnologia.

A Justiça brasileira melhorou com o processo eletrônico e, nos últimos anos, o Judiciário retomava o uso de novas tecnologias quando surgiu o novo coronavírus. O isolamento forçou a imediata realização dos atos judiciários em meio digital. Não houve tempo para reflexão sobre o nosso modelo de justiça digital e sua adaptação à realidade normativa e material.

Houve rápida adesão dos juízes à realização de todos os atos por videoconferência, revertendo a resistência da magistratura à gravação de audiências —reivindicação antiga e não atendida da advocacia. Audiências e julgamentos online foram regulamentados em provimentos de tribunais e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Valendo-se da emergência, surgiu um arsenal de normas de gabinete, formuladas sem debate público e sem a participação dos demais atores do sistema de Justiça.

As regras de audiências e julgamentos online estão sendo definidas conforme entendimento exclusivo da burocracia judiciária e, por vezes, servem para distanciar a advocacia e os cidadãos do Judiciário. Antes de avaliar a funcionalidade, as prioridades parecem ser a conveniência do serviço interno e uma produtividade restrita a critérios quantitativos. A realização de Justiça, contudo, é mais ligada à forma com que ela se produz do que com números.

A justiça digital que nasce da pandemia transferiu ônus excessivos para a advocacia: partes e testemunhas, sem recursos ou locais adequados, dependem dos nossos escritórios para participar de atos judiciais, que se transformaram em extensão dos fóruns, especialmente diante da demora na retomada de audiências naqueles locais públicos.

O ingresso livre nos tribunais foi substituído por horas em "salas de espera" virtuais; o botão de "mudo" virou arma para cassar a palavra de advogados. A publicidade dos julgamentos desapareceu. Há pessoas que serão julgadas por um juiz com quem nunca tiveram contato.

Advogados e jurisdicionados, milhares sem meios adequados, participam de audiências com juiz, promotor, partes e testemunhas, pela tela de smartphones, em condições indignas de trabalho e sem segurança para a produção de provas.

É necessário preservar o espaço público e presencial para realização de alguns atos judiciais: audiências de instrução e de custódia, depoimentos sensíveis, reconhecimentos, acareações, júri. Há formalidades que reforçam a seriedade do ato e comunicam às pessoas que ali está se produzindo Justiça, o que não acontece quanto tudo ocorre por vídeo, com perda de percepções pessoais, de interação, de comunicação não verbal e da mediação direta dos profissionais do direito entre si e com jurisdicionados.

Temos hoje um modelo de justiça digital eclodido, não projetado e tampouco fruto de debate público. A advocacia vem alertando para os riscos de piora no acesso à Justiça. No final dos anos 1990, desenvolveu-se o conceito de justiça de proximidade. As audiências e julgamentos online e o regime perene de teletrabalho nos fóruns estão substituindo-o pela justiça de distanciamento.

Para reverter esse processo e usar bem a tecnologia, é preciso regular a justiça digital em lei, pois o Parlamento é a arena adequada ao debate republicano —ou, pelo menos, que o CNJ promova uma discussão com a participação de todos.

Tal regulação deve definir: 1 - quais atos judiciais serão exclusivamente online; 2 - quais atos não poderão ser realizados online; e 3 - quais poderão ser praticados em meio digital apenas com concordância das partes. Após dois anos de experiência compulsória, participando como espectadora, a advocacia está pronta para, conforme sua missão constitucional, integrar-se ao processo de definição do nosso modelo de justiça digital.

Patricia Vanzolini e Leonardo Sica, autores deste artigo, são respectivamente, presidente e vice-presidente da OAB-SP. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 28 de;06.22

Simone Tebet vai invocar esperança contra ‘desencanto’ e ‘pessimismo’ de eleitor

Angústia e decepção são sentimentos de eleitores indecisos captados por pesquisa qualitativa feita a pedido do MDB


Senadora Simone Tebet pré-candidata do MDB/PSDB e CIDADANIA à Presidencia da República (Foto: Adraino Machado / Reuters)

O comando da pré-campanha da senadora Simone Tebet (MDB) à Presidência da República vai invocar a mensagem da esperança diante do atual cenário de desalento do País. A estratégia será adotada para dar tração ao nome da chamada terceira via e tentar romper a polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL).

Uma pesquisa qualitativa encomendada pela Executiva Nacional do MDB identificou no eleitorado os sentimentos de decepção e angústia, algo mais marcante do que o registrado nas últimas disputas ao Palácio do Planalto. Associado principalmente ao aumento do custo de vida e a constantes ameaças de desemprego, o pessimismo agora aparece ao lado de sensações como solidão, instabilidade e abandono.

A quinta rodada da pesquisa do Instituto FSB Pesquisa, encomendada pelo BTG Pactual e divulgada nesta segunda-feira, 27, mostrou Simone Tebet (MDB) com 3% de intenção de votos.

O desencanto com a situação do Brasil e o seu impacto no cotidiano surgiram em observações de grupos de eleitores indecisos. O quadro de incerteza e frustração de sonhos e projetos, com aumento da miséria e da desigualdade social, impressionou o marqueteiro Felipe Soutello, da pré-campanha de Simone. “Desde os anos 1990 não vemos tanta tristeza e decepção em viver no Brasil, além de falta de expectativa de futuro. São as piores qualitativas em décadas”, disse Soutello.

Para a maioria dos entrevistados, a responsabilidade pela crise não é somente da pandemia de covid-19, mas, sim, do chefe do Executivo. Feita recentemente, a pesquisa teve o objetivo de mensurar impressões de homens e mulheres de todas as regiões que ainda não têm certeza sobre quem escolher para o comando do País e podem mudar o voto.

A aliança em torno de Simone reúne o MDB, o PSDB e o Cidadania, grupo que se autointitula “centro democrático”. Ainda desconhecida, a senadora passou de 2% para 1% das intenções de voto na mais recente pesquisa Datafolha, divulgada na semana passada.

A cúpula do MDB afirmou que, quando começar o horário eleitoral na TV e no rádio, a partir de agosto, Simone pode crescer. Eleitores sem convicção do voto buscam um candidato que represente uma novidade, mas não querem um “outsider” na política e temem um aventureiro. 

A alternativa, para eles, é um nome com experiência, sem suspeitas de corrupção, que transmita confiança e capacidade de unificar o País.

O MDB identificou que ter lançado uma candidata foi percebido como um diferencial, mas que ser mulher não basta. Parte dos eleitores procura um nome que demonstre competência para administrar, reduzir as desigualdades sociais e resolver problemas, como alta da inflação e desemprego. Não foi à toa que, em um dos comerciais do MDB, Simone disse que era necessário promover o acesso à “comida barata”.

Fadiga

Estrategistas de outras campanhas ao Planalto também notaram o sentimento de fadiga por parte da população e tentam calibrar o discurso dos presidenciáveis. Segundo marqueteiros consultados pelo Estadão, foi possível notar nas propagandas do PL uma tentativa de mostrar Bolsonaro ao lado do povo, como alguém próximo das pessoas, e de vinculá-lo ao Auxílio Brasil.

Lula, por sua vez, aposta em mensagens como “cuidar de gente”, em tom messiânico. Ciro Gomes (PDT) destaca ainda mais as críticas ao modelo econômico e ao “voo de galinha” do Brasil, que, na sua avaliação, impede a geração de empregos de qualidade e provoca aumento da pobreza.

Hoje, 33 milhões de pessoas passam fome no País. A inflação se mostra resistente. Já são dez meses com o IPCA-15, a prévia do índice oficial, acima de dois dígitos. Números divulgados pelo IBGE na sexta-feira passada marcam 12,04%. “

Os dados (da qualitativa) são plausíveis. A maior parte dos indecisos está na faixa de zero a dois salários mínimos, um contingente mais vulnerável à inflação em alta, que reduz o seu já muito limitado poder aquisitivo”, disse o cientista político Antônio Lavareda.

Felipe Frazão / O Estado de S. Paulo, em 29.06.22

Politicagem na política externa

PEC que permite a parlamentar assumir embaixada mantendo o mandato mistura questões de Estado com política miúda

Um grupo de senadores liderados por Davi Alcolumbre (União-AP) busca aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) permitindo que parlamentares ocupem cargos de embaixador sem renunciar ao mandato. Isso em nada tem a ver com os interesses da política externa. É apenas mais uma tentativa de congressistas clientelistas, no fim de feira em que se transformou o governo Jair Bolsonaro, de ampliar seu balcão de negócios com novas mercadorias.

Diplomatas são funcionários concursados de carreira ligados ao quadro de profissionais do Itamaraty. A lei já prevê a nomeação excepcional de brasileiros reputados por mérito e experiência. Não é incomum, no Brasil e em outros países, que chefias de missões permanentes sejam exercidas por juristas e mesmo políticos. Incomum é que os políticos exerçam essa função mantendo seu mandato.

Alcolumbre argumenta que é uma “afronta ao bom senso” o fato de um congressista poder exercer o cargo de ministro das Relações Exteriores sem a obrigatoriedade de renunciar, mas ter essa “amarra” para ser embaixador. A prevalecer esse entendimento, não só os cargos diplomáticos, mas todos os cargos exercidos por profissionais de carreira em quaisquer ministérios estariam sujeitos a ser ocupados por parlamentares.

É justamente a garantia de que os ministros exercerão suas funções políticas sobre um quadro de profissionais técnico e isento que assegura o equilíbrio entre as vontades do governo e os interesses do Estado. Os riscos de conflito com a PEC são evidentes. Os interesses de Estado, nacionais, poderiam ser sobrepostos pelos interesses regionais e partidários dos congressistas. 

A politização da diplomacia ameaça uma das ilhas de excelência do serviço público do Estado brasileiro. “Isso é o princípio da destruição da carreira diplomática como tal”, disse a embaixadora aposentada Maria Celina de Azevedo Rodrigues, presidente da Associação de Diplomatas Brasileiros. “Você acha que jovens vão entrar no Itamaraty para disputar no par ou ímpar com deputado ou senador, em troca de voto político?”

Alcolumbre sabe perfeitamente bem as razões dos constituintes. Na justificativa da PEC se diz que até agora prevaleceu o entendimento de que “a possibilidade de indicação de deputados e senadores para a ocupação de cargos de chefia de missão diplomática permanente representaria o sequestro da política internacional pela política miúda, fisiológica, em troca de apoio ao chefe do Poder Executivo”. Mas, segundo ele, “a restrição consistia em discriminação odiosa aos parlamentares”. O senador argumenta que “o mundo mudou significativamente nos últimos 33 anos”.

O mundo mudou. Mas os princípios que em 200 anos de regime constitucional garantiram a qualidade dos quadros diplomáticos brasileiros e o equilíbrio entre os Poderes da República não mudaram. Tampouco mudou o apetite de certas alas políticas por cargos e comissões de Estado a serviço de seus interesses paroquiais. O constituinte sempre soube que isso não mudaria e por isso estabeleceu os limites que agora estão ameaçados.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.06.22

Vera Rosa: 'Dependência de Bolsonaro cresce a cada dia e a crise da vez é a CPI do MEC'

Há uma nova queda de braço na praça. Enquanto os holofotes se voltam para as eleições de outubro e as crises do governo de Jair Bolsonaro, envolvido em intermináveis brigas com o Supremo Tribunal Federal, o Centrão atua no Congresso para manter o poder. 

No pacote idealizado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, o grupo continuará dando as cartas da República seja qual for o resultado das urnas.


Foto: Evaristo SA/AFP

Lira está em campanha por mais um mandato à frente da Casa, a partir de fevereiro de 2023. Certo de que será reconduzido ao cargo, prevê até mesmo comandar um “novo Centrão”, ao sabor das conveniências políticas no day after eleitoral.

Diante do favoritismo do ex-presidente Lula nas pesquisas e da estagnação de Bolsonaro, o Centrão vislumbra agora oportunidades para se mostrar ainda mais indispensável ao Planalto. É Lira que está por trás de propostas de emenda à Constituição que vão do semipresidencialismo à permissão para que deputados e senadores possam revisar decisões do Supremo.

A dependência do Planalto cresceu após os aumentos da gasolina e, agora, com o agravamento da crise que expôs o balcão de negócios no MEC, revelado pelo Estadão em março. A pressão do governo para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, engavetar o pedido de CPI protocolado ontem é grande. E lá está o Centrão para dar mais esse auxílio emergencial a Bolsonaro e cobrar a fatura.

Em estratégia combinada com o chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, Lira também quer mudar a Lei das Estatais. Mesmo sob os protestos do ministro da Economia, Paulo Guedes, as alterações são defendidas com o argumento de que só assim será possível facilitar trocas na cúpula da Petrobras. Mas e o loteamento político?

“Ponha na sua cabecinha que nenhum de nós, nem Centrão, nem centrinho, nem centrado, quer mexer com indicações de cargos na Petrobras”, disse Lira.

Aliados de Bolsonaro afirmam que o maior interesse, hoje, reside no orçamento secreto. Com receio de que o arranjo acabe em eventual novo governo, Lira age para tornar obrigatório o pagamento das emendas de relator, que irrigam redutos de parlamentares e podem passar para R$ 19 bilhões em 2023. É o dinheiro dessas emendas, também usado em articulações por sua reeleição, que turbina o Fundo da Educação e autarquias como Codevasf e Dnocs. Tudo, é claro, nas mãos do Centrão.

Embora Lula diga que, se vencer, não apoiará a recondução de Lira à presidência da Câmara, muitos no Congresso acham que o PT evitará correr o risco de produzir outro Eduardo Cunha, com a caneta a postos para autorizar um processo de impeachment. O dote do Centrão é Lira. Em qualquer governo. 

Vera Rosa, a autora deste artigo, é repórter especial d'O Estado de S. Paulo, em Brasilia - DF. Publicado originalmente em 29.06.22

Controladoria instaura quatro frentes para investigação no FNDE

CGU apura compra de carros de luxo pela direção, moto dada a funcionário, sobrepreço em ônibus e atuação irregular de servidor


Foto: Jefferson Rudy / Ag. Senado

Enquanto o Congresso discute a instalação de uma CPI para apurar o “gabinete paralelo” no Ministério da Educação, outra frente de investigação mira o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão que concentra a maior parte dos recursos da área distribuídos a prefeituras. Comandado por Marcelo Ponte – apadrinhado pelo ministro da Casa Civil Ciro Nogueira, um dos líderes do Centrão – o fundo é alvo de ao menos quatro investigações deflagradas a partir de reportagens publicadas pelo Estadão sobre o suposto esquema comandado pelos pastores Gilmar Santos e Arilton Moura, com aval do então ministro Milton Ribeiro.

Uma delas trata do suposto suborno pago a João Elício Terto, ex-assessor da presidência do FNDE, que teria sido presenteado por Moura com uma moto elétrica. O servidor foi nomeado por Ponte em julho de 2020. A investigação está em curso na Controladoria-Geral da União (CGU).

Ao Estadão, a mulher de Terto disse que ele não recebeu qualquer presente e que adquiriu a moto com recursos próprios, conforme documentos apresentados à CGU. Procurado, o ex-assessor, demitido do FNDE em março, não quis falar.

Ônibus

Formalmente, o presidente do FNDE não é investigado, mas tem relação direta com casos que são objeto de auditoria na CGU, como a tentativa de superfaturamento na aquisição de ônibus escolares, em abril deste ano.

Como mostrou o Estadão, diretores do FNDE ignoraram recomendações da área técnica e tentaram elevar o preço máximo aceitável por ônibus escolares. O valor máximo admitido para a compra sofreu aumento de 55% – ou R$ 732 milhões. Após a divulgação do caso, o fundo reduziu o valor dos veículos.

A lista inclui ainda a compra de veículos por diretores do FNDE e o caso do consultor do órgão que também atuava em nome de prefeituras do Maranhão interessadas em obter recursos públicos da autarquia.

Procurado, o FNDE afirmou que, no caso da moto, Ponte avisou o ministro da Educação, e o servidor foi exonerado. O fundo afirmou que aguarda conclusão das investigações.

André Shalders e Julia Affonso para o Estado de S. Paulo, em 29.06.22

Explícita compra de votos

Ao distribuir dinheiro a caminhoneiros e famílias pobres, sem planejamento e a menos de 100 dias das eleições, Bolsonaro dá argumentos para nulidade de sua candidatura

O presidente Jair Bolsonaro aparentemente não está satisfeito somente em legar ao País a destruição de políticas públicas consolidadas. O Executivo pretende agora ignorar as restrições legais e, às vésperas das eleições, criar um novo programa para ajudar caminhoneiros autônomos com o pagamento mensal de mil reais para a compra de diesel. O fato de não haver uma base de dados atualizada sobre o setor ou qualquer estudo sobre as dificuldades dos motoristas não será um empecilho. Como mostrou o Estadão, quem constar de um cadastro genérico e desatualizado da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) estará apto a receber o benefício. Ou seja, não há preocupação nem com o foco do programa nem com eventuais fraudes. Para Bolsonaro, só interessa o potencial eleitoral da distribuição de dinheiro. A tentativa de compra de votos é tão explícita que será difícil, para a Justiça Eleitoral, encontrar argumentos para ignorar o crime que está para ser cometido.

Criado por lei em 2007 para servir como referência da estrutura logística do País, o Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTRC) inclui caminhoneiros, mas também motoristas de furgões e de vans. Como a inserção de dados não exige revalidação, basta fazer o cadastro pela internet, o que pode ser realizado tanto pelo profissional quanto pelo sindicato que o representa. De acordo com a ANTT, haveria 872.320 transportadores autônomos de cargas no País em 2017, um cenário que sofreu mudanças drásticas após a greve de 2018, quando empresas passaram a operar com frota própria e a contratar transportadoras que formalizam motoristas como empregados.

A frouxidão do controle sobre os beneficiários de programas sociais é um padrão do governo Bolsonaro. Começou com o Auxílio Emergencial, quando o ministro Paulo Guedes alegou ter descoberto milhões de “invisíveis” na pandemia de covid-19 em 2020, ignorando as informações reunidas em mais de 20 anos de existência do Cadastro Único dos programas sociais. À época, a União aceitou pagar R$ 600 para cada um que passasse pelos parcos controles do programa. Ao todo, 67,9 milhões de pessoas, quase um terço da população, foram beneficiadas – quem precisava e quem não precisava. Sabe-se que pelo menos 3,02 milhões de pessoas receberam indevidamente R$ 1,072 bilhão em recursos públicos, segundo relatório da Controladoria-Geral da União (CGU).

Foi no período de vigência do Auxílio Emergencial que Bolsonaro registrou seus melhores índices de aprovação. Logo, no raciocínio oportunista que predomina hoje no Palácio do Planalto, a única maneira de impulsionar as chances eleitorais de Bolsonaro seria injetar “dinheiro na veia do povo”, como classificou em 2020, a propósito do Auxílio Emergencial, o ministro da Economia, Paulo Guedes, outrora liberal e hoje completamente alinhado ao populismo ordinário do presidente.

Se o foco do governo estivesse no resgate das famílias mais vulneráveis, como deveria ser, o correto seria investir para zerar a fila de beneficiários do Auxílio Brasil, estimada em 2,78 milhões de famílias, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), e diminuir o longo tempo de espera para agendar um atendimento nos Centros de Referência da Assistência Social (Cras). Combater a fome será tarefa impossível sem socorrer os que mais precisam.

Mas a necropolítica bolsonarista não se importa se há brasileiros sem ter o que comer. Hoje, como sempre, Bolsonaro só usa a poderosa caneta presidencial para viabilizar o pagamento do “bolsa-eleição”. Com esse objetivo, o governo cogita até inventar um “estado de emergência” para liberar gastos em ano eleitoral e fora do teto fiscal, algo escandalosamente ilegal. Ou seja, Bolsonaro dá de bandeja argumentos para a nulidade de sua candidatura, mas não parece preocupado com isso, pois talvez aposte na impunidade. Assim, roga-se que as autoridades eleitorais e judiciais do País não fiquem inertes diante de tal afronta às leis vigentes, especialmente as que determinam igualdade de condições entre os candidatos e as que impõem limites cristalinos aos gastos públicos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.06.22

Gustavo Petro: "A verdade não pode ser espaço de vingança"

O presidente eleito da Colômbia falou pela primeira vez diante dos cidadãos após sua vitória ao receber as recomendações da Comissão da Verdade

Francisco de Roux, presidente da Comissão Colombiana da Verdade, abraçado pelo presidente eleito, Gustavo Petro, durante a apresentação do relatório final da Comissão, em Bogotá, em 28 de junho. (DANIEL MUNOZ - AFP)

O presidente eleito Gustavo Petro recebeu nesta terça-feira, no centro de Bogotá, o relatório da Comissão da Verdade que dá recomendações ao novo governo para interromper o conflito de seis décadas na Colômbia e reconhecer as causas da guerra. Petro, que participou do evento com a vice-presidente eleita Francia Márquez, foi aplaudido pelo público no Teatro Jorge Eliecer Gaitán, onde foi apresentado o relatório da Comissão. O presidente em exercício, Iván Duque, foi vaiado no evento por sua ausência. "A aproximação da verdade não pode ser considerada como um espaço de vingança, como se fosse uma extensão de armas", disse Petro perante os comissários e vítimas que compareceram ao evento. A verdade, prosseguiu, deve ter como objetivo “a reconciliação, a convivência nacional e social”.

Petro se referiu à vitória de seu projeto há uma semana como um sinal a favor do acordo de paz que foi assinado em 2016 entre o governo de Juan Manuel Santos e o extinto guerrilheiro das FARC. "Há expectativas de paz, de uma grande paz", disse o presidente eleito. Uma paz duradoura não é apenas "fechar alguns conflitos para que novos conflitos armados comecem, mas também para que o uso de armas desapareça como instrumento que desmente as possibilidades do Acordo, como instrumento de vingança". As sociedades sempre terão conflitos, divergências, acrescentou o próximo presidente, "mas conflito não pode ser sinônimo de morte, conflito deve ser sinônimo de vida".

O dia é simbólico para Petro por vários motivos. Por um lado, porque vários dos que lhe permitiram vencer no segundo turno presidencial são os eleitores dos municípios que mais sofreram com o conflito armado e que votaram a favor do referendo de 2016 para aprovar o Acordo de Paz. Petro faz parte de um processo de paz no final dos anos oitenta, além disso, como ex-membro da guerrilha M-19 que mais tarde ingressou na política.

Mas também porque várias das recomendações da Comissão da Verdade, que foram entregues ao Petro na terça-feira, estão alinhadas ao seu programa de governo, como a urgência de uma reforma agrária abrangente, cumprindo a reforma política solicitada pelo Acordo, ou reforma as forças policiais que reprimiram violentamente o protesto social.

"Alguém disse que a violência é a parteira da história", disse Petro em suas palavras no Teatro Colón. A frase é de Karl Marx, o historiador e filósofo que no final do século XIX viu na revolução a possibilidade de acabar com o sistema capitalista, assim como a violência da revolução francesa acabou com a monarquia. Mas o desejo de revolução da guerrilha colombiana, no entanto, nunca trouxe mudanças, mas sim vários ciclos de violência.

"Um aglomerado de violência", disse Petro . “Quantos processos de paz assinamos em nossa história republicana e quantas vezes voltamos à violência?” perguntou o presidente que assinou um desses vários processos de paz que foram assinados no século XX. A violência, acrescentou, não é algo que se carrega nos genes, e a verdade não é um guia para a vingança, mas para a reconciliação.

Petro lembrou uma das polêmicas durante a campanha, quando falou de um possível "indulto social" com pessoas condenadas por vários crimes na prisão La Picota, em Bogotá. "O que segue a verdade, no fundo, e depende das vítimas e de mais ninguém na Colômbia, é a possibilidade de perdão social", disse. “A possibilidade de outra história”.

Em seguida, Petro fez referência ao conto mais famoso da Colômbia, os Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez, livro que termina com a famosa frase “porque as linhagens condenadas a cem anos de solidão não tiveram uma segunda chance em terra”. O presidente eleito se autodenominou em homenagem a um dos personagens da novela, Aureliano, quando estava na guerrilha M-19. Petro disse em seu discurso hoje que a Colômbia deveria falar de 200 anos de solidão, não de 100 anos: desde a independência colombiana da colônia espanhola, dois séculos em que ocorreram várias guerras em ciclo, uma após a outra.

"As gerações de 200 anos de solidão têm uma segunda chance na terra", concluiu Petro, otimista, e recebendo as recomendações da Comissão da Verdade que ouviu cerca de 30.000 pessoas que viveram a guerra.

Camila Osório, de Bogotá para o EL PAÍS, em 28.06.22

UE condena ataque russo "hediondo" a shopping na Ucrânia

Chefe da diplomacia europeia diz que ataque, que deixou pelo menos 18 mortos, equivale a um "crime de guerra" e que Rússia será "responsabilizada" por "atos de agressão"

O chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, condenou nesta terça-feira (28/06) em nome do bloco o ataque a um shopping center na cidade de Kremenchuk, na área central da Ucrânia, classificando a ação como "hedionda" e responsabilizando a Rússia pelo "ato de agressão". 

O centro comercial foi atingido por um míssil no dia anterior. O ataque deixou pelo menos 18 mortos e 59 feridos - mas os serviços de emergência ucranianos temem que os números possam aumentar enquanto prosseguem os trabalhos de resgate.

"Este é mais um ato hediondo em uma série de ataques a civis e à infraestrutura civil pelas Forças Armadas russas, que incluem ataques recentes com uso de mísseis a edifícios e infraestrutura civil em Kiev e outras regiões. O bombardeio contínuo contra civis e infraestrutura civil é repreensível e totalmente inaceitável e equivale a um crime de guerra", afirmou Borrel, em comunicado.

"A Rússia tem total responsabilidade por esses atos de agressão e por toda a destruição e perda de vidas que está causando. [A Rússia] Será responsabilizado por eles", completou o chefe da diplomacia da UE.

Repúdio do G7 e de Zelenski

Na terça-feira, o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, disse que o centro de compras não representava qualquer ameaça aos russos, e "não tinha valor estratégico algum". Ele acusou Moscou de sabotar "as tentativas das pessoas de levar uma vida normal, algo que irrita tanto os invasores".

"A Rússia continua a descontar sua impotência nos cidadãos comuns. É inútil esperar por decência e humanidade da parte deles", afirmou Zelenski.

Os líderes do G7, reunidos em cúpula na Alemanha, também divulgaram um comunicado classificando o ataque como um crime de guerra. “Ataques indiscriminados contra civis inocentes constituem um crime de guerra. O presidente russo Putin e os responsáveis ​​serão responsabilizados”, escreveram em nota conjunta tuitado pela presidência alemã do G7.

Bombeiros buscavam nos escombros nesta terça-feira cerca de 30 desaparecidos após ataque (Foto: Efrem Lukatsky/AP Photo/picture alliance)

Rússia nega ataque

Após permanecer em silêncio nas horas seguintes ao ataque, o Ministério da Defesa da Rússia negou nesta terça-feira ter atacado o shopping center, afirmando que os militares do país atingiram um depósito de armas e que uma subsequente explosão de munição provocou um incêndio no centro comercial próximo.

O ministério, em comunicado divulgado pelo Telegram, também afirmou que o shopping "estava desativado". No entanto, tal afirmação é desmentida pelo relato de funcionários e clientes que estavam no local. 

Ainda nesta terça-feira, o vice-embaixador da Rússia nas Nações Unidas, Dmitry Polyanskiy, escreveu no Twitter, sem apresentar provas, que o ataque foi uma “provocação ucraniana”.

"Exatamente o que o regime de Kiev precisa para manter o foco da atenção na Ucrânia antes da Cúpula da Otan", disse ele, referindo-se à reunião de cúpula da aliança ocidental prevista para ocorrer na Espanha na terça-feira.

Desde que o regime de Vladimir Putin lançou sua guerra de agressão contra a Ucrânia, em fevereiro, ataques russos já atingiram teatros, jardins de infância, prédios residenciais. Um dos bombardeios contra alvos civis mais marcantes atingiu uma maternidade em Mariupol, no sul da Ucrânia, em meados de março. 

Outro ataque sangrento russo contra civis atingiu um teatro em Mariupol no dia 16 de março, matando civis que se refugiavam no prédio. Do lado de fora da construção havia um aviso escrito em letras grandes no chão, indicando a presença de crianças no lugar.

Em praticamente todos os casos, a reação russa ao repúdio causado pelos ataques seguiu o mesmo roteiro: negar ter atingido deliberadamente civis ou afirmar, sem provas, que os alvos na verdade camuflavam instalações militares ucranianas ou ainda acusar, novamente sem provas, os ucranianos de encenarem a destruição. 

Míssil partiu do território russo, diz Ucrânia

Ucrânia disse que shopping foi atingido diretamente por mísseis russos e que cerca de mil pessoas estavam dentro do prédio no momento do bombardeio.

Os esforços de resgate continuavam nesta terça-feira para encontrar possíveis sobreviventes sob os escombros do edifício, que ficou em grande parte destruído.

De acordo com a Força Aérea Ucraniana, mísseis ar-terra X-22 foram usados ​​no ataque. Ainda segundo os ucranianos, eles foram disparados por aviões bombardeiros de longo alcance Tu-22 da região russa de Kursk. O secretário do Conselho de Segurança, Oleksiy Danilov, disse que um segundo míssil atingiu um estádio esportivo local.

A Ucrânia tem relatado um forte aumento dos ataques russos nos dias recentes.

No domingo, um prédio residencial na capital, Kiev, foi atingido, no primeiro ataque à capital desde o início de junho.

Além do centro comercial, a Ucrânia disse que mísseis russos também atingiram nesta segunda-feira as cidades de Kharkiv e Lysychansk, no leste do país em um dos dias mais sangrentos para vítimas civis em semanas.x

Deutsche Welle, em 27.06.22 (https://www.dw.com/pt-br/ue-condena-ataque-russo-hediondo-a-shopping-na-ucr%C3%A2nia/a-62290351)

A importância da Crimeia para a Ucrânia e a Rússia

O objetivo da Ucrânia é expulsar as tropas russas de seu próprio território, inclusive da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014. Quão realista é a possibilidade de retomada da península?

A ponte de 18 quilômetros de extensão que liga a disputada península da Crimeia à Rússia é de extrema importância para o abastecimento russo. Após a anexação da península, em 2014, Moscou a planejou e a construiu em tempo bastante curto. A ponte abriga uma rodovia de quatro faixas e uma linha de trem. Sua construção teve prioridade sobre quase todos os outros grandes projetos de infraestrutura de transporte russos. Desde 2018, ela conecta a cidade de Kerch, no extremo leste da Crimeia, com a península russa de Taman.

A ponte é de grande importância estratégica para a Rússia, pois assegura o abastecimento das tropas russas na península e em todo o sul da Ucrânia. Esta é uma das razões pelas quais ela tem sido um espinho na carne do Exército ucraniano. Até agora, no entanto, a ponte tem estado fora de seu alcance. Mas isso pode mudar. Se a Ucrânia logo receber as armas necessárias, disse o general ucraniano Dmytro Marchenko, a destruição da ponte seria o "objetivo número 1".

Mapa mostra a localização da CrimeiaMapa mostra a localização da Crimeia

Perigo de escalada

Moscou já ameaçou com severas represálias neste caso e até mesmo ameaçou com uma retomada dos ataques aéreos contra Kiev.

Para a Rússia, bombardear alvos na Crimeia teria um significado diferente do que a guerra no Donbass ou no resto da Ucrânia. Moscou considera a península, que foi anexada em 2014 em violação ao direito internacional, como seu próprio território e, após um referendo internacionalmente não reconhecido, como parte da Federação Russa. De acordo com a interpretação russa, a guerra seria assim estendida ao território russo − ameaçando uma nova escalada do conflito.

No entanto, a Ucrânia também continua considerando a Crimeia como parte de seu território.  "Libertaremos todos os nossos territórios, realmente todos eles, incluindo a Crimeia", disse o ministro da Defesa ucraniano, Olexiy Resnikov, à emissora americana CNN, apesar de seu assessor Yuri Sak ter dito que "o mínimo realista" seja que as forças russas se retirem para as fronteiras válidas antes de 24 de fevereiro de 2022, quando começou a invasão da Ucrânia.

Mapa mostra tropas russas no leste da UcrâniaMapa mostra tropas russas no leste da Ucrânia

Disputa de longa data

A forte reação do Kremlin tem suas razões: para Moscou, a Crimeia tem um valor mais alto do que o resto da Ucrânia. Por mais de dois séculos, a Crimeia pertenceu à Rússia. Já nos séculos 18 e 19, os czares cada vez mais assentaram ali russos étnicos. Stalin continuou essa política. Como resultado, a maioria da população ainda hoje é pró-russa.

Somente em 1954 a Crimeia foi anexada à então República Socialista Soviética da Ucrânia, sob circunstâncias não completamente explicadas até hoje, por ordem do então secretário-geral soviético, Nikita Khrushchev.

A razão pode ter sido que o próprio Khrushchev era um ucraniano nativo. Após o colapso da União Soviética, a Crimeia permaneceu oficialmente território ucraniano, embora Kiev nunca tenha sido capaz de afirmar adequadamente a reivindicação ao poder sobre a Crimeia e a população tenha permanecido em grande parte pró-Rússia. Assim, Kiev concedeu à península o status de autônoma e concluiu arrendamentos com a Rússia, por exemplo, sobre o porto estrategicamente importante de Sebastopol.

O navio de guerra russo Almirante Makarov da Frota Russa do Mar Negro diante da cidade portuária de Sebastopol (Foto: Ulf Mauder/dpa/picture alliance)

Mesmo nos tempos soviéticos, a sede da Frota Russa do Mar Negro estava localizada ali, e Sebastopol é o único porto russo significativo que permanece livre de gelo durante todo o ano. Sob o ponto de vista militar, ele proporciona acesso ao Mar Negro, e sob o ponto de vista econômico, possibilita a entrada de bens importantes. Até 2014, esse acordo entre a Ucrânia e a Rússia não representava um grande problema.

Mas então veio a Euromaidan − a Primavera Ucraniana −, uma onda de manifestações e agitação civil na Ucrânia entre 2013 e 2014. O presidente pró-Rússia Viktor Yanukovytch foi derrubado e teve que fugir para Moscou. Temendo uma aproximação da Ucrânia com o Ocidente e especialmente com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o Kremlin viu o perigo de a longo prazo perder o porto de Sebastopol e toda a Crimeia para a aliança de defesa ocidental e decidiu pela anexação, mesmo sendo uma violação ao direito internacional.

Criação de fatos consumados

Na guerra atual, a Rússia tenta consolidar sua presença na região. Além de conquistar o Donbass, o Kremlin declarou a criação de um corredor terrestre ocupado pelos russos dali até a Crimeia como um de seus objetivos de guerra mais importantes.

De fato, sem a ponte sobre o Estreito de Kerch, a península era anteriormente inacessível por terra a partir do território russo. Todo o abastecimento dos cerca de 2,3 milhões de habitantes vem pelo mar ou através dessa ponte.

Com novas conquistas no sul da Ucrânia, Putin também criaria mais fatos consumados: um retorno ao status anterior à anexação se tornaria praticamente impossível.

A Ucrânia ficaria completamente sem acesso ao Mar de Azov e, com a Crimeia se projetando para o Mar Negro como uma cunha gigante, a Rússia também seria capaz de controlar e cortar todo o tráfego marítimo com destino a Odessa, o último porto restante da Ucrânia no Mar Negro. A luta feroz pela pequena Ilha das Serpentes, na costa romena, mostra que este também é um objetivo de guerra russo.

 Odessa é o último porto ucraniano no Mar Negro (Foto: Wang Qing/Xinhua News Agency/picture alliance)

Retomada é realista?

Na Ucrânia, no entanto, há indefinição sobre até onde se iria para trazer a Crimeia de volta ao controle ucraniano. O retorno da península é "uma questão que precisa ser negociada diplomaticamente", disse Sak, assessor do governo.

Militarmente, o presidente Volodimir Zelenski também está ciente de que uma reconquista seria impossível. "Acho que isso significaria centenas de milhares de baixas do nosso lado", disse Zelenski ao portal de notícias americano Axios.

No entanto, como uma devolução da Crimeia ao jugo ucraniano poderia ser alcançado por meios diplomáticos é até agora completamente incerto. Devido à atual relação de forças entre Rússia e Ucrânia e à importância estratégica da Crimeia, mas também por causa da clara lealdade da grande maioria de seus habitantes à Rússia, isso parece pouco realista no momento.

Thomas Latschan para a Deutsche Welle, em 24.06.22 (https://www.dw.com/pt-br/a-import%C3%A2ncia-da-crimeia-para-a-ucr%C3%A2nia-e-a-r%C3%BAssia/a-62247352)

terça-feira, 28 de junho de 2022

Brasil, um gigante anêmico

Atual presidente é culpado por recente queda em ranking de competitividade, mas não é o único: há décadas o País escolheu o caminho populista que conduz ao atraso

Maior economia do Hemisfério Sul e uma das 10 ou 12 maiores do mundo, o Brasil ocupou apenas o 25.º lugar, no ano passado, entre os exportadores de mercadorias, com vendas externas de US$ 280,8 bilhões. Só faturou, portanto, 1,2% do valor das exportações mundiais, US$ 22,3 trilhões, enquanto o pequeno Vietnã arrecadou 1,4%. Apesar do tamanho e da diversificação de sua indústria, o País só exibe eficiência e poder de competição na agropecuária, uma das mais fortes do mundo. Somados os dois setores, a economia brasileira ficou na 59.ª posição, em 2021, no ranking de competitividade elaborado periodicamente pela escola de negócios suíça IMD.

Usada internacionalmente como referência, essa classificação abrangeu 63 países. O Brasil só ficou à frente de África do Sul, Mongólia, Argentina e Venezuela. Os cinco primeiros colocados foram Dinamarca, Suíça, Cingapura, Suécia e Hong Kong. As quatro maiores economias do mundo apareceram a partir da 10.ª posição, ocupada pelos Estados Unidos. A Alemanha ficou no 15.º lugar, a China ocupou o 17.º e o Japão apareceu no 34.º. Esses países são também os maiores exportadores.

Há muito tempo o Brasil é mal colocado em classificações de competitividade elaboradas por várias instituições. Durante anos foi muito mal avaliado em estudos do Fórum Econômico Mundial. Além disso, tem piorado no cenário global das exportações e na capacidade competitiva. Em 2021 apareceu em 57.º lugar no ranking IMD. Durante dez anos, até 2020, o País ficou em penúltimo lugar no conjunto de 18 economias analisadas pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

As ênfases podem variar, mas os comentários sobre o baixo poder de competição do Brasil destacam geralmente alguns fatores: tributação disfuncional, excesso de burocracia pública, insegurança jurídica, financiamento inadequado, atraso tecnológico, inovação insuficiente, infraestrutura deficiente, despreparo da mão de obra e baixa integração nas cadeias produtivas globais. A discussão envolve a taxa de investimento fixo muito modesta, raramente igual ou superior a 20% do Produto Interno Bruto (PIB), o pouco estímulo à pesquisa e as falhas da política educacional.

O baixo poder de competição reflete, portanto, deficiências ou erros em todos os setores da gestão pública e das políticas oficiais. O investimento insuficiente e mal administrado em logística, energia e sistemas de água e saneamento indica falhas de planejamento, uso ineficiente de recursos públicos, baixa coordenação de ações públicas e privadas e, com frequência, corrupção.

Também o setor privado investe menos que o necessário em máquinas, equipamentos, tecnologia e inovação. Isso se explica em parte pela escassez e pelo custo do capital. Mas é preciso levar em conta os casos de proteção excessiva contra a concorrência externa e os erros de escolha das prioridades oficiais.

Erros desse tipo são bem exemplificados pela desastrosa política, no período petista, dos campeões nacionais. A essa política se acrescentou a exagerada preferência pela integração com economias em desenvolvimento, enquanto outras potências emergentes buscavam acordos promissores com os mercados do mundo rico.

Todas essas deficiências foram agravadas a partir de 2019, quando se instalou em Brasília uma administração sem planejamento e sem objetivos claros de crescimento e de modernização. Do lado institucional, nada se fez de importante, além de uma reforma da Previdência já discutida e amadurecida na gestão anterior. As mudanças tributária e administrativa propostas pela equipe econômica passaram longe dos problemas de funcionalidade dos impostos e de eficiência da gestão pública. Enquanto a equipe falhava nesses pontos, o presidente Jair Bolsonaro renegava a ciência e devastava o Ministério da Educação e se envolvia, em parceria com o Centrão, na conversão do Orçamento Federal em instrumento de ações paroquiais e eleitoreiras. Não se cria competitividade nem com esse tipo de gestão nem – é importante lembrar – com populismo de esquerda.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.06.22

Bolsonaro deve explicações ao País

Bolsonaro parece cada vez mais envolvido no escândalo do MEC, seja no caso em si, seja na aparente interferência na condução da investigação pela PF, e deve ser investigado

Desde a deflagração da Operação Acesso Pago, que investiga indícios de crimes no Ministério da Educação (MEC) e levou à prisão do ex-ministro e pastor Milton Ribeiro – suspensa depois por decisão de um desembargador –, os desdobramentos envolveram ainda mais o presidente da República no escândalo. Jair Bolsonaro tem muito a explicar sobre o caso em si – pastores negociando verbas da Educação sob as bênçãos do Palácio do Planalto – e também sobre a independência da Polícia Federal (PF). São graves as suspeitas de interferência de Jair Bolsonaro na corporação.

Na sexta-feira, foi divulgado um áudio no qual Milton Ribeiro relata, em ligação telefônica com a filha, ter sido avisado por Jair Bolsonaro a respeito da possibilidade de medidas investigativas contra o pastor. “Hoje o presidente me ligou. (...) Ele acha que vão fazer uma busca e apreensão em casa”, diz o ex-ministro da Educação.

O áudio é muito grave. Significa que o presidente da República teria repassado a um investigado informações sobre os passos futuros de um caso que envolve o próprio governo. Se confirmado, é um explícito abuso da função pública, pondo em risco a investigação da PF. 

O episódio recorda a denúncia de Sergio Moro em abril de 2020, quando o ex-ministro da Justiça relatou ao País que Jair Bolsonaro “queria ter (na PF) uma pessoa de contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, colher informações, relatórios de inteligência, seja o diretor, seja o superintendente”. Para ilustrar a gravidade do problema, Moro fez a seguinte comparação: “Imaginem se, durante a Lava Jato, ministros, ou a então presidente Dilma e o ex-presidente Lula, ficassem ligando na superintendência de Curitiba para colher informações sobre investigações em andamento?”. Imaginem.

Corretamente, o juiz Renato Coelho Borelli, da 15.ª Vara Federal Criminal, devolveu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o inquérito da Operação Acesso Pago. Não há como tapar o sol com peneira: há suspeitas de envolvimento do presidente da República no caso, razão pela qual Bolsonaro tem de ser investigado.

Além do áudio do pastor, causou perplexidade a resistência da PF em cumprir integralmente a ordem judicial sobre o local para o qual deveria ser levado o ex-ministro da Educação. Em vez da Superintendência da PF em Brasília, como ordenara o juiz de primeira instância, o pastor foi conduzido para a carceragem da corporação em São Paulo, sob a ridícula alegação de falta de recursos. Segundo o delegado Bruno Calandrini, responsável pela operação, a recusa da PF foi uma “demonstração de interferência na condução da investigação”, o que parece óbvio.

Essa situação coloca ainda mais dúvidas sobre a independência da PF no governo de Jair Bolsonaro. Pelo que se viu, em determinados andares da PF, ordem judicial que desagrada ao Palácio do Planalto recebe tratamento diferenciado. 

O fato é que, quando se trata dos amigos de Bolsonaro, a lei não vale, muito menos a moralidade. Para o presidente, seu ex-ministro pode ter se envolvido apenas em “tráfico de influência”, o que, segundo ele, é “comum”. Ora, tráfico de influência pode ser “comum” no indecoroso mundo bolsonarista, mas no Brasil é crime, conforme o artigo 332 do Código Penal – “solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função” –, com pena de dois a cinco anos de reclusão.

Ademais, para Bolsonaro, o escândalo do MEC “não foi corrupção da forma que se via em governos anteriores”. Ou seja, na pervertida régua moral do bolsonarismo, seu governo, em vez de ser acusado, deveria ser louvado porque esse caso de corrupção aparentemente não tem a mesma dimensão dos crimes cometidos nos governos petistas.

Mas sejamos realistas: de Bolsonaro e do Centrão não se esperava outra coisa senão uma constrangedora tentativa de negar ou relativizar o que a esta altura está à vista de todos. Por essa razão, é preciso que as autoridades ainda não contaminadas pelo cinismo bolsonarista investiguem esse caso a fundo e punam quem deve ser punido – não importa que cargo ocupe.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.06.22

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Corrupção paralisa, agride e mata

A governança do roubo e da delinquência será um suicídio político e empresarial. Cabe a nós, jornalistas, assumir o papel de memória da cidadania.

   Criminosos e seu principal líder, punidos pelo trabalho saneador da Operação Lava Jato e, posteriormente, anistiados por aqueles que teriam o dever de proteger a sociedade, tentam construir narrativas com a finalidade de apagar os fatos, recriar a história e transformar delinquentes em modelos de virtudes e exemplos de boa política.

Argumentam, armados de um cinismo cortante, que a Operação Lava Jato, “com sua sanha punitiva”, destruiu empresas, criminalizou a política e condenou inocentes. Como se não existissem confissões documentadas, provas robustas e milhões devolvidos aos cofres como resultado de acordos. Quem devolve, por óbvio, reconhece o roubo. Para essa gente, no entanto, tudo isso precisa ser apagado com a pedagogia do mestre Goebbels, nazista cruel e braço direito de Hitler: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Mentem. Compulsivamente. Mentem com voz melíflua, sem ruborizar e mover um músculo do rosto. São exímios na arte do engodo.

Têm aliados importantes nas instituições da República. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, ao se referir à decisão que beneficiou o ex-presidente Lula, deixou claro que não significou uma absolvição, mas algo puramente formal. O crime ocorreu, sim. Trata-se do pensamento explícito do presidente da Corte, que, de resto, sempre manifestou uma posição de aberto apoio ao trabalho da Lava Jato no combate à corrupção. Mas uma andorinha só não faz verão. Infelizmente.

O ministro Fachin, misteriosa e surpreendentemente, tratou de ressuscitar argumentos já analisados (e rebatidos) à exaustão sobre a competência da 13.ª Vara de Curitiba para julgar as ações contra Lula. Questões formais e bastante discutíveis promoveram, na prática, a higienização da ficha suja de Lula e abriram as portas para um condenado por crime de corrupção disputar a Presidência da República. Eis a verdade. O resto é retórica vazia.

Na verdade, quando o assunto é combate à corrupção, o Brasil está em queda livre. Na edição do Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2021, o País sofreu a maior queda entre as 15 nações da América Latina analisadas. “O Brasil tem apresentado uma das trajetórias mais preocupantes entre os países da América Latina”, sublinhou Thomaz Favaro, diretor da Control Risks.

Desanima? Certamente. Otimista por natureza, embora duramente testado nos últimos tempos, ainda acredito na capacidade de reação da sociedade. O mal não tem a última palavra. Os brasileiros ficaram trancados em casa por causa da pandemia. Mas ela vai passar. Se Deus quiser. E, então, senhores políticos e autoridades, apertem os cintos e revisitem as imagens das imensas passeatas da cidadania que sacudiram o País. Não eram iniciativas convocadas por partidos políticos. Eram famílias, gente normal e pacífica, mas cansada do sequestro do seu presente e da condenação do seu futuro.

O combate à corrupção é uma das demandas mais fortes da sociedade. A corrupção algema a sociedade. A corrupção desvia para o ralo da bandidagem recursos que podiam ser investidos em saúde, educação, segurança pública, etc. A corrupção empurra crianças famintas para a catástrofe da prostituição infantil. O Brasil não vai mais contemporizar.

Cabe a nós, jornalistas e formadores de opinião, assumir o papel de memória da cidadania. Não podemos deixar cair a peteca. Revisitaremos todos os meandros daquele que já foi definido como o maior escândalo de corrupção da história do mundo, o petrolão, um esquema bilionário de corrupção na Petrobras durante os governos Lula e Dilma, que envolvia cobrança de propina das empreiteiras. Trata-se de um dever ético inescapável.

Mas, para além das trincheiras internas, a guerra contra a corrupção brasileira ganhou dimensão internacional. Como salientou a promotora Luciana Asper, em entrevista exclusiva que me concedeu, a irrefutável gravidade dos impactos da corrupção para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil, a certeza de que as estratégias de enfrentamento da corrupção estão globalizadas, a notoriedade internacional do Brasil como país de elevada percepção da corrupção, a aplicação prática dos tratados e cooperações internacionais para o combate à corrupção e a imposição da cultura da integridade pública mudam, por completo, o paradigma de fazer negócios no Brasil e com o Brasil. Resistir a essa verdade e não se adaptar é o mesmo que receber o diagnóstico de uma doença grave e acreditar que ela vai desaparecer sem o devido tratamento.

Resumo da ópera: diante da dicotomia entre as reiteradas tentativas internas de estabelecer caminhos para a impunidade e as iniciativas internacionais de avançar com os tratados e cooperações para o combate à corrupção global, os Poderes públicos brasileiros vão ser forçados a mudar.

A corrupção como modelo de negócio está com seus dias contados. A governança do roubo e da delinquência será um suicídio político e empresarial. Nós, jornalistas e formadores de opinião, temos o dever profissional e ético de jogar muita luz nas trevas da corrupção. Trata-se de um crime que paralisa, agride e mata.

Carlos Alberto Di Franco, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 27.06.22

Enquanto Bolsonaro ataca a Petrobras

Da inadimplência à turbulência das startups, o Brasil dá sinais de que a crise é mais profunda do que o presidente, concentrado em criar factoides palanqueiros, faz crer

Inadimplência recorde, inflação disparada, startups em crise e redução do superávit comercial ocupam o noticiário como fatos separados, mas são indicadores de um desarranjo ignorado por um presidente empenhado, com apoio de aliados no Congresso, em sujeitar a Petrobras a seus interesses eleitorais. Sem poder legal para intervir diretamente na gestão da empresa, a equipe do Palácio do Planalto pode tentar uma alteração da Lei das Estatais, aprovada em 2016 como desdobramento da Operação Lava Jato. Consumada, a alteração dessa lei será um enorme retrocesso, mas a preservação de avanços políticos, administrativos e econômicos nunca se destacou entre as prioridades do Executivo nos últimos três anos em que um sombrio pano de fundo, os desajustes da economia compõem o dia a dia de um país negligenciado pelo poder central. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro reclama dos preços dos combustíveis e troca dirigentes da Petrobras, investidores fogem do Brasil, o dólar encarece, empregos são destruídos, a atividade emperra e as famílias empobrecem. Em abril, os consumidores inadimplentes chegaram a 66,13 milhões, um número recorde, segundo o levantamento periódico da Serasa Experian. Houve um aumento de 2,1 milhões em relação ao total encontrado em dezembro.

Empobrecidas pelo desemprego, pela redução dos ganhos mensais e pela alta de preços, as famílias têm dificuldades maiores, a cada mês, para pagar as contas. Pior que isso, têm dificuldades crescentes para pagar o aluguel, para comprar alimentos e até para cozinhar a comida. Gasolina e diesel são importantes, mas, para as pessoas mais vulneráveis, é mais crucial dispor do gás necessário para cozinhar.

O poder central diminuiria o sofrimento de milhões se garantisse, de fato, um amplo subsídio ao gás de cozinha, mas a estratégia eleitoral do presidente aponta outras prioridades. O auxílio adicional, segundo se informa em Brasília, deve sair, mas o atraso é claramente injustificável. No entanto, a dificuldade para cozinhar é um dado menos escandaloso que a existência de mais de 30 milhões de pessoas famintas e de 125 milhões em condições de insegurança alimentar num país capaz, segundo o presidente Bolsonaro, de nutrir 1 bilhão de indivíduos.

Enquanto o presidente acusa a Petrobras de agir contra os brasileiros, importadores correm ao mercado externo para comprar petróleo e derivados, como diesel e naftas, além de fertilizantes. As importações de petróleo e derivados, em maio, foram 109% maiores que as de um ano antes, em valor. Normalmente superavitário, o saldo comercial desses produtos declinou de US$ 2,8 bilhões em fevereiro para US$ 88 milhões em maio.

“Os importadores, com receio da conjuntura internacional e com as turbulências que vêm ocorrendo no mercado de petróleo do Brasil, podem ter antecipado suas compras”, sugere a análise publicada pela Fundação Getulio Vargas (FGV). A linguagem é cautelosa, mas a insegurança nos mercados, diante do conflito entre a Presidência da República e a Petrobras, é bastante clara e tem-se refletido também nas oscilações da bolsa de valores e do câmbio.

As condições da economia brasileira sintetizam os desequilíbrios externos e internos. O País tem sido afetado pelas consequências da invasão da Ucrânia, pelos efeitos do combate aos novos casos de covid na China, pela inflação e pelo aperto monetário nos Estados Unidos e pelos muitos desarranjos domésticos, associados em grande parte à insegurança gerada pelas escolhas do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados.

Mas esse conjunto de problemas tem sido normalmente negligenciado pelo presidente, concentrado em alguns poucos objetivos. Sem outros agentes mobilizados contra a inflação, o Banco Central enfrenta sozinho a tarefa, recorrendo a seu principal instrumento, elevando os juros e impondo um freio a mais ao crescimento econômico e à criação de empregos, enquanto o presidente – vale a pena repetir – briga com a Petrobras, como se os preços dos combustíveis fossem a fonte de todos os problemas.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.06.22

O revanchismo contra a Constituição de 88

O bolsonarismo antagoniza o STF porque a Corte representa a defesa dos princípios constitucionais que protegem minorias e impedem desvarios autoritários da extrema direita

A campanha de Jair Bolsonaro contra o Supremo Tribunal Federal (STF) é tática diversionista. É muito mais cômodo criticar decisão da Corte constitucional do que resolver os problemas nacionais e governar com responsabilidade. Mas o enfrentamento com o Supremo, que o bolsonarismo alçou à categoria de prioridade máxima, tem raízes mais profundas do que simples oportunismo político. Na realidade, o inimigo de Jair Bolsonaro não é a Corte, tampouco seus integrantes. Seu inimigo é a Constituição de 1988. E é dessa relação de oposição que nasce o antagonismo do bolsonarismo com o STF, cujo papel é defender a Constituição.

Toda a vida política de Jair Bolsonaro, que se inicia em fevereiro de 1989 como vereador da cidade do Rio de Janeiro, está marcada por uma constante fundamental: o revanchismo contra a Constituição de 1988. Nessa seara, o aspecto que chama mais a atenção é a sua indignação com o fim da ditadura militar e a restauração do regime democrático. Nessas três décadas e meia de vigência da Constituição, Jair Bolsonaro é, sem sombra de dúvida, uma das pessoas públicas que mais fizeram apologia do regime militar.

No entanto – e aqui é o ponto que se deseja frisar –, a discordância de Jair Bolsonaro com a Constituição de 1988 vai muito além da questão, importantíssima obviamente, referente ao regime democrático. A proposta política do bolsonarismo é a antítese exata de tudo o que foi estabelecido na Assembleia Constituinte. Era simplesmente impossível, portanto, que o governo de Jair Bolsonaro não colidisse frontal e decisivamente com o STF, zelador da Constituição.

Por exemplo, a defesa que o bolsonarismo faz do Ato Institucional n.º 5 (AI-5) não é mera provocação. Há uma profunda identificação de Jair Bolsonaro e seus seguidores com o decreto da ditadura que (i) deu poder ao presidente da República para decretar o recesso do Congresso e a intervenção nos Estados e Municípios e (ii) suspendeu a garantia de habeas corpus, ação judicial que protege a liberdade individual contra prisões ilegais. Ora, todo o art. 5.º da Constituição de 1988, sobre os direitos e garantias fundamentais, foi construído precisamente à luz do que o AI-5 produziu de arbítrio, censura, repressão e cerceamento das liberdades civis e direitos individuais.

A liberdade é outro ponto paradigmático de dissensão entre o bolsonarismo e a Assembleia Constituinte. Generosa na concessão e na proteção das liberdades individuais, a Constituição de 1988 não flerta em nenhum momento com a concepção bolsonarista de liberdade: uma liberdade absoluta, entendida como autorização irrestrita para cada um, de maneira irresponsável e impune, fazer o que bem entender, sem respeitar os outros e seus direitos. Tendo sempre feito troça dos direitos humanos, Jair Bolsonaro é diametralmente oposto à estrutura fundamental da Constituição de 1988, cujo primeiro alicerce é o princípio da dignidade da pessoa humana.

Por rejeitar o equilíbrio entre dignidade humana e liberdade estabelecido pela Constituição de 1988, que será depois o fundamento dos direitos sociais, o bolsonarismo é contrário à função social da propriedade rural (art. 186) e do espaço urbano (art. 182). Não por outra razão, em 2019, o senador Flávio Bolsonaro apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para alterar os dois artigos. É a face desumana e reacionária do bolsonarismo a revelar-se sem pudores.

A Constituição de 1988 tem muitos defeitos. No entanto, o bolsonarismo volta-se, eis o grave retrocesso, contra as suas qualidades. Na campanha de 2018, Jair Bolsonaro colocou-se como o anti-Lula. Na Presidência da República, dedica-se a ser visto como o anti-STF. Mas tudo isso é circunstancial. Jair Bolsonaro é, com todo o rigor, anticonstituição. Ao longo de sua carreira política, ele tem representado e verbalizado a voz dos perdedores de 1988, aqueles que se opuseram e continuam a se opor ao Estado Democrático de Direito. Daí que sua batalha atual seja contra as eleições e as urnas. Tudo integra o mesmo pacote autoritário e antirrepublicano.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.06.22

domingo, 26 de junho de 2022

Reformar a democracia

Seminário da USP mostra que é urgente reverter o círculo vicioso de um sistema representativo degradado que alimenta a degeneração da cultura política

As manifestações de 2013 expuseram um abismo entre as ruas e as instituições, entre eleitores e eleitos, que só aumentou. Quais as suas causas e como saná-las? Foram questões debatidas no recente seminário “Fortalecer a Democracia Representativa”, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

A crise é global. Uma pesquisa do Pew Research mostrou que a insatisfação aumenta sobretudo por três percepções: que as eleições trazem poucas mudanças; que os políticos são corruptos; e que os tribunais não tratam todos de forma justa.

O Brasil tem especificidades. Há um paradoxo, que revela um círculo vicioso. A Constituição prestigiou os direitos coletivos e a população espera cada vez mais que o Estado os satisfaça. Ao mesmo tempo, a política é vista como uma seara de oportunistas. A descrença se traduz em uma apatia generalizada (apolítica) contraposta por militâncias minoritárias que advogam salvacionismos (antipolíticos).

No seminário, Patricia Blanco, do Instituto Palavra Aberta, enfatizou a importância da educação. Não se trata de exumar a letra morta da educação “moral e cívica”, mas de reviver o seu espírito em uma formação ética e republicana que contemple os direitos e deveres de cada um e a compreensão dos princípios democráticos encarnados nas instituições.

O fato novo é o ambiente digital. Se ele abriu espaço para grupos marginalizados se expressarem, ampliou também a possibilidade de manipular as massas com base não em fatos, mas em ideologias. Os algoritmos das redes são indiferentes à verdade, mas respondem ao potencial de viralização dos discursos de ódio e mentiras. O extremismo prevalece e a maioria moderada se afasta. Uma agenda de letramento digital e regulação das redes é crucial.

Ao mesmo tempo, o Brasil perpetua um sistema que amplia a distância entre a sociedade e seus representantes. Desde a redemocratização, os partidos se multiplicaram e o financiamento público a eles também, enquanto o número de afiliados encolheu, bem como o retorno à sociedade na forma de investimentos públicos.

Fechados em si, subvencionados pelo Estado, os partidos se veem desobrigados de disputar os corações e mentes dos cidadãos, restringindo-se a bombardeá-los com sua artilharia marqueteira a cada dois anos, no intervalo dos quais negociam interesses patrimonialistas e corporativistas.

Como apontou o cientista político José A. Guilhon, a legislação eleitoral e o sistema presidencialista atual tornam a relação entre eleitos e eleitores opaca. O voto proporcional impede que se criem laços. Em São Paulo, por exemplo, só 25% dos deputados federais são eleitos com seus votos. Já o presidencialismo de coalizão obriga o Executivo a formar maiorias, que, num Congresso fragmentado, são instáveis e amorfas.

Vem tomando corpo a ideia de um semipresidencialismo em que o presidente mantenha as prerrogativas de chefe de Estado, mas o governo seja conduzido por um primeiro-ministro à frente de uma maioria parlamentar estável. Independentemente de a proposta prosperar, uma precondição para viabilizá-la ou para sanar as disfuncionalidades do atual sistema é reduzir o número de partidos e fortalecer sua conexão com o eleitor.

Melhorias, como o fim das doações empresariais, a cláusula de barreira e a proibição das coligações, começam a surtir efeitos. Mas ainda é preciso acabar com os fundos partidário e eleitoral, e substituir, ou ao menos temperar, o sistema proporcional com o distrital.

A resistência do sistema político a ser reformado só será vencida por uma mobilização civil. Segundo a Constituição, o poder do povo se exerce por representantes ou diretamente. Não se trata de substituir a democracia representativa pela direta, mas de forçá-la a empregar mecanismos como o plebiscito e o referendo para aprimorar o modelo de representação.

Há hoje um sistema representativo degradado que nutre a degeneração da cultura política e vice-versa. Mais cedo ou mais tarde, o povo precisará ser consultado sobre o sistema político e eleitoral que deseja. Do contrário, o abismo entre ele e seus representantes crescerá.

Editorial / Notas & Inofmrações, O Estado de S. Paulo, em 26.06.22