terça-feira, 28 de junho de 2022

Brasil, um gigante anêmico

Atual presidente é culpado por recente queda em ranking de competitividade, mas não é o único: há décadas o País escolheu o caminho populista que conduz ao atraso

Maior economia do Hemisfério Sul e uma das 10 ou 12 maiores do mundo, o Brasil ocupou apenas o 25.º lugar, no ano passado, entre os exportadores de mercadorias, com vendas externas de US$ 280,8 bilhões. Só faturou, portanto, 1,2% do valor das exportações mundiais, US$ 22,3 trilhões, enquanto o pequeno Vietnã arrecadou 1,4%. Apesar do tamanho e da diversificação de sua indústria, o País só exibe eficiência e poder de competição na agropecuária, uma das mais fortes do mundo. Somados os dois setores, a economia brasileira ficou na 59.ª posição, em 2021, no ranking de competitividade elaborado periodicamente pela escola de negócios suíça IMD.

Usada internacionalmente como referência, essa classificação abrangeu 63 países. O Brasil só ficou à frente de África do Sul, Mongólia, Argentina e Venezuela. Os cinco primeiros colocados foram Dinamarca, Suíça, Cingapura, Suécia e Hong Kong. As quatro maiores economias do mundo apareceram a partir da 10.ª posição, ocupada pelos Estados Unidos. A Alemanha ficou no 15.º lugar, a China ocupou o 17.º e o Japão apareceu no 34.º. Esses países são também os maiores exportadores.

Há muito tempo o Brasil é mal colocado em classificações de competitividade elaboradas por várias instituições. Durante anos foi muito mal avaliado em estudos do Fórum Econômico Mundial. Além disso, tem piorado no cenário global das exportações e na capacidade competitiva. Em 2021 apareceu em 57.º lugar no ranking IMD. Durante dez anos, até 2020, o País ficou em penúltimo lugar no conjunto de 18 economias analisadas pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

As ênfases podem variar, mas os comentários sobre o baixo poder de competição do Brasil destacam geralmente alguns fatores: tributação disfuncional, excesso de burocracia pública, insegurança jurídica, financiamento inadequado, atraso tecnológico, inovação insuficiente, infraestrutura deficiente, despreparo da mão de obra e baixa integração nas cadeias produtivas globais. A discussão envolve a taxa de investimento fixo muito modesta, raramente igual ou superior a 20% do Produto Interno Bruto (PIB), o pouco estímulo à pesquisa e as falhas da política educacional.

O baixo poder de competição reflete, portanto, deficiências ou erros em todos os setores da gestão pública e das políticas oficiais. O investimento insuficiente e mal administrado em logística, energia e sistemas de água e saneamento indica falhas de planejamento, uso ineficiente de recursos públicos, baixa coordenação de ações públicas e privadas e, com frequência, corrupção.

Também o setor privado investe menos que o necessário em máquinas, equipamentos, tecnologia e inovação. Isso se explica em parte pela escassez e pelo custo do capital. Mas é preciso levar em conta os casos de proteção excessiva contra a concorrência externa e os erros de escolha das prioridades oficiais.

Erros desse tipo são bem exemplificados pela desastrosa política, no período petista, dos campeões nacionais. A essa política se acrescentou a exagerada preferência pela integração com economias em desenvolvimento, enquanto outras potências emergentes buscavam acordos promissores com os mercados do mundo rico.

Todas essas deficiências foram agravadas a partir de 2019, quando se instalou em Brasília uma administração sem planejamento e sem objetivos claros de crescimento e de modernização. Do lado institucional, nada se fez de importante, além de uma reforma da Previdência já discutida e amadurecida na gestão anterior. As mudanças tributária e administrativa propostas pela equipe econômica passaram longe dos problemas de funcionalidade dos impostos e de eficiência da gestão pública. Enquanto a equipe falhava nesses pontos, o presidente Jair Bolsonaro renegava a ciência e devastava o Ministério da Educação e se envolvia, em parceria com o Centrão, na conversão do Orçamento Federal em instrumento de ações paroquiais e eleitoreiras. Não se cria competitividade nem com esse tipo de gestão nem – é importante lembrar – com populismo de esquerda.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.06.22

Bolsonaro deve explicações ao País

Bolsonaro parece cada vez mais envolvido no escândalo do MEC, seja no caso em si, seja na aparente interferência na condução da investigação pela PF, e deve ser investigado

Desde a deflagração da Operação Acesso Pago, que investiga indícios de crimes no Ministério da Educação (MEC) e levou à prisão do ex-ministro e pastor Milton Ribeiro – suspensa depois por decisão de um desembargador –, os desdobramentos envolveram ainda mais o presidente da República no escândalo. Jair Bolsonaro tem muito a explicar sobre o caso em si – pastores negociando verbas da Educação sob as bênçãos do Palácio do Planalto – e também sobre a independência da Polícia Federal (PF). São graves as suspeitas de interferência de Jair Bolsonaro na corporação.

Na sexta-feira, foi divulgado um áudio no qual Milton Ribeiro relata, em ligação telefônica com a filha, ter sido avisado por Jair Bolsonaro a respeito da possibilidade de medidas investigativas contra o pastor. “Hoje o presidente me ligou. (...) Ele acha que vão fazer uma busca e apreensão em casa”, diz o ex-ministro da Educação.

O áudio é muito grave. Significa que o presidente da República teria repassado a um investigado informações sobre os passos futuros de um caso que envolve o próprio governo. Se confirmado, é um explícito abuso da função pública, pondo em risco a investigação da PF. 

O episódio recorda a denúncia de Sergio Moro em abril de 2020, quando o ex-ministro da Justiça relatou ao País que Jair Bolsonaro “queria ter (na PF) uma pessoa de contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, colher informações, relatórios de inteligência, seja o diretor, seja o superintendente”. Para ilustrar a gravidade do problema, Moro fez a seguinte comparação: “Imaginem se, durante a Lava Jato, ministros, ou a então presidente Dilma e o ex-presidente Lula, ficassem ligando na superintendência de Curitiba para colher informações sobre investigações em andamento?”. Imaginem.

Corretamente, o juiz Renato Coelho Borelli, da 15.ª Vara Federal Criminal, devolveu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o inquérito da Operação Acesso Pago. Não há como tapar o sol com peneira: há suspeitas de envolvimento do presidente da República no caso, razão pela qual Bolsonaro tem de ser investigado.

Além do áudio do pastor, causou perplexidade a resistência da PF em cumprir integralmente a ordem judicial sobre o local para o qual deveria ser levado o ex-ministro da Educação. Em vez da Superintendência da PF em Brasília, como ordenara o juiz de primeira instância, o pastor foi conduzido para a carceragem da corporação em São Paulo, sob a ridícula alegação de falta de recursos. Segundo o delegado Bruno Calandrini, responsável pela operação, a recusa da PF foi uma “demonstração de interferência na condução da investigação”, o que parece óbvio.

Essa situação coloca ainda mais dúvidas sobre a independência da PF no governo de Jair Bolsonaro. Pelo que se viu, em determinados andares da PF, ordem judicial que desagrada ao Palácio do Planalto recebe tratamento diferenciado. 

O fato é que, quando se trata dos amigos de Bolsonaro, a lei não vale, muito menos a moralidade. Para o presidente, seu ex-ministro pode ter se envolvido apenas em “tráfico de influência”, o que, segundo ele, é “comum”. Ora, tráfico de influência pode ser “comum” no indecoroso mundo bolsonarista, mas no Brasil é crime, conforme o artigo 332 do Código Penal – “solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função” –, com pena de dois a cinco anos de reclusão.

Ademais, para Bolsonaro, o escândalo do MEC “não foi corrupção da forma que se via em governos anteriores”. Ou seja, na pervertida régua moral do bolsonarismo, seu governo, em vez de ser acusado, deveria ser louvado porque esse caso de corrupção aparentemente não tem a mesma dimensão dos crimes cometidos nos governos petistas.

Mas sejamos realistas: de Bolsonaro e do Centrão não se esperava outra coisa senão uma constrangedora tentativa de negar ou relativizar o que a esta altura está à vista de todos. Por essa razão, é preciso que as autoridades ainda não contaminadas pelo cinismo bolsonarista investiguem esse caso a fundo e punam quem deve ser punido – não importa que cargo ocupe.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 28.06.22

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Corrupção paralisa, agride e mata

A governança do roubo e da delinquência será um suicídio político e empresarial. Cabe a nós, jornalistas, assumir o papel de memória da cidadania.

   Criminosos e seu principal líder, punidos pelo trabalho saneador da Operação Lava Jato e, posteriormente, anistiados por aqueles que teriam o dever de proteger a sociedade, tentam construir narrativas com a finalidade de apagar os fatos, recriar a história e transformar delinquentes em modelos de virtudes e exemplos de boa política.

Argumentam, armados de um cinismo cortante, que a Operação Lava Jato, “com sua sanha punitiva”, destruiu empresas, criminalizou a política e condenou inocentes. Como se não existissem confissões documentadas, provas robustas e milhões devolvidos aos cofres como resultado de acordos. Quem devolve, por óbvio, reconhece o roubo. Para essa gente, no entanto, tudo isso precisa ser apagado com a pedagogia do mestre Goebbels, nazista cruel e braço direito de Hitler: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Mentem. Compulsivamente. Mentem com voz melíflua, sem ruborizar e mover um músculo do rosto. São exímios na arte do engodo.

Têm aliados importantes nas instituições da República. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, ao se referir à decisão que beneficiou o ex-presidente Lula, deixou claro que não significou uma absolvição, mas algo puramente formal. O crime ocorreu, sim. Trata-se do pensamento explícito do presidente da Corte, que, de resto, sempre manifestou uma posição de aberto apoio ao trabalho da Lava Jato no combate à corrupção. Mas uma andorinha só não faz verão. Infelizmente.

O ministro Fachin, misteriosa e surpreendentemente, tratou de ressuscitar argumentos já analisados (e rebatidos) à exaustão sobre a competência da 13.ª Vara de Curitiba para julgar as ações contra Lula. Questões formais e bastante discutíveis promoveram, na prática, a higienização da ficha suja de Lula e abriram as portas para um condenado por crime de corrupção disputar a Presidência da República. Eis a verdade. O resto é retórica vazia.

Na verdade, quando o assunto é combate à corrupção, o Brasil está em queda livre. Na edição do Índice de Capacidade de Combate à Corrupção 2021, o País sofreu a maior queda entre as 15 nações da América Latina analisadas. “O Brasil tem apresentado uma das trajetórias mais preocupantes entre os países da América Latina”, sublinhou Thomaz Favaro, diretor da Control Risks.

Desanima? Certamente. Otimista por natureza, embora duramente testado nos últimos tempos, ainda acredito na capacidade de reação da sociedade. O mal não tem a última palavra. Os brasileiros ficaram trancados em casa por causa da pandemia. Mas ela vai passar. Se Deus quiser. E, então, senhores políticos e autoridades, apertem os cintos e revisitem as imagens das imensas passeatas da cidadania que sacudiram o País. Não eram iniciativas convocadas por partidos políticos. Eram famílias, gente normal e pacífica, mas cansada do sequestro do seu presente e da condenação do seu futuro.

O combate à corrupção é uma das demandas mais fortes da sociedade. A corrupção algema a sociedade. A corrupção desvia para o ralo da bandidagem recursos que podiam ser investidos em saúde, educação, segurança pública, etc. A corrupção empurra crianças famintas para a catástrofe da prostituição infantil. O Brasil não vai mais contemporizar.

Cabe a nós, jornalistas e formadores de opinião, assumir o papel de memória da cidadania. Não podemos deixar cair a peteca. Revisitaremos todos os meandros daquele que já foi definido como o maior escândalo de corrupção da história do mundo, o petrolão, um esquema bilionário de corrupção na Petrobras durante os governos Lula e Dilma, que envolvia cobrança de propina das empreiteiras. Trata-se de um dever ético inescapável.

Mas, para além das trincheiras internas, a guerra contra a corrupção brasileira ganhou dimensão internacional. Como salientou a promotora Luciana Asper, em entrevista exclusiva que me concedeu, a irrefutável gravidade dos impactos da corrupção para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil, a certeza de que as estratégias de enfrentamento da corrupção estão globalizadas, a notoriedade internacional do Brasil como país de elevada percepção da corrupção, a aplicação prática dos tratados e cooperações internacionais para o combate à corrupção e a imposição da cultura da integridade pública mudam, por completo, o paradigma de fazer negócios no Brasil e com o Brasil. Resistir a essa verdade e não se adaptar é o mesmo que receber o diagnóstico de uma doença grave e acreditar que ela vai desaparecer sem o devido tratamento.

Resumo da ópera: diante da dicotomia entre as reiteradas tentativas internas de estabelecer caminhos para a impunidade e as iniciativas internacionais de avançar com os tratados e cooperações para o combate à corrupção global, os Poderes públicos brasileiros vão ser forçados a mudar.

A corrupção como modelo de negócio está com seus dias contados. A governança do roubo e da delinquência será um suicídio político e empresarial. Nós, jornalistas e formadores de opinião, temos o dever profissional e ético de jogar muita luz nas trevas da corrupção. Trata-se de um crime que paralisa, agride e mata.

Carlos Alberto Di Franco, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 27.06.22

Enquanto Bolsonaro ataca a Petrobras

Da inadimplência à turbulência das startups, o Brasil dá sinais de que a crise é mais profunda do que o presidente, concentrado em criar factoides palanqueiros, faz crer

Inadimplência recorde, inflação disparada, startups em crise e redução do superávit comercial ocupam o noticiário como fatos separados, mas são indicadores de um desarranjo ignorado por um presidente empenhado, com apoio de aliados no Congresso, em sujeitar a Petrobras a seus interesses eleitorais. Sem poder legal para intervir diretamente na gestão da empresa, a equipe do Palácio do Planalto pode tentar uma alteração da Lei das Estatais, aprovada em 2016 como desdobramento da Operação Lava Jato. Consumada, a alteração dessa lei será um enorme retrocesso, mas a preservação de avanços políticos, administrativos e econômicos nunca se destacou entre as prioridades do Executivo nos últimos três anos em que um sombrio pano de fundo, os desajustes da economia compõem o dia a dia de um país negligenciado pelo poder central. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro reclama dos preços dos combustíveis e troca dirigentes da Petrobras, investidores fogem do Brasil, o dólar encarece, empregos são destruídos, a atividade emperra e as famílias empobrecem. Em abril, os consumidores inadimplentes chegaram a 66,13 milhões, um número recorde, segundo o levantamento periódico da Serasa Experian. Houve um aumento de 2,1 milhões em relação ao total encontrado em dezembro.

Empobrecidas pelo desemprego, pela redução dos ganhos mensais e pela alta de preços, as famílias têm dificuldades maiores, a cada mês, para pagar as contas. Pior que isso, têm dificuldades crescentes para pagar o aluguel, para comprar alimentos e até para cozinhar a comida. Gasolina e diesel são importantes, mas, para as pessoas mais vulneráveis, é mais crucial dispor do gás necessário para cozinhar.

O poder central diminuiria o sofrimento de milhões se garantisse, de fato, um amplo subsídio ao gás de cozinha, mas a estratégia eleitoral do presidente aponta outras prioridades. O auxílio adicional, segundo se informa em Brasília, deve sair, mas o atraso é claramente injustificável. No entanto, a dificuldade para cozinhar é um dado menos escandaloso que a existência de mais de 30 milhões de pessoas famintas e de 125 milhões em condições de insegurança alimentar num país capaz, segundo o presidente Bolsonaro, de nutrir 1 bilhão de indivíduos.

Enquanto o presidente acusa a Petrobras de agir contra os brasileiros, importadores correm ao mercado externo para comprar petróleo e derivados, como diesel e naftas, além de fertilizantes. As importações de petróleo e derivados, em maio, foram 109% maiores que as de um ano antes, em valor. Normalmente superavitário, o saldo comercial desses produtos declinou de US$ 2,8 bilhões em fevereiro para US$ 88 milhões em maio.

“Os importadores, com receio da conjuntura internacional e com as turbulências que vêm ocorrendo no mercado de petróleo do Brasil, podem ter antecipado suas compras”, sugere a análise publicada pela Fundação Getulio Vargas (FGV). A linguagem é cautelosa, mas a insegurança nos mercados, diante do conflito entre a Presidência da República e a Petrobras, é bastante clara e tem-se refletido também nas oscilações da bolsa de valores e do câmbio.

As condições da economia brasileira sintetizam os desequilíbrios externos e internos. O País tem sido afetado pelas consequências da invasão da Ucrânia, pelos efeitos do combate aos novos casos de covid na China, pela inflação e pelo aperto monetário nos Estados Unidos e pelos muitos desarranjos domésticos, associados em grande parte à insegurança gerada pelas escolhas do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados.

Mas esse conjunto de problemas tem sido normalmente negligenciado pelo presidente, concentrado em alguns poucos objetivos. Sem outros agentes mobilizados contra a inflação, o Banco Central enfrenta sozinho a tarefa, recorrendo a seu principal instrumento, elevando os juros e impondo um freio a mais ao crescimento econômico e à criação de empregos, enquanto o presidente – vale a pena repetir – briga com a Petrobras, como se os preços dos combustíveis fossem a fonte de todos os problemas.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.06.22

O revanchismo contra a Constituição de 88

O bolsonarismo antagoniza o STF porque a Corte representa a defesa dos princípios constitucionais que protegem minorias e impedem desvarios autoritários da extrema direita

A campanha de Jair Bolsonaro contra o Supremo Tribunal Federal (STF) é tática diversionista. É muito mais cômodo criticar decisão da Corte constitucional do que resolver os problemas nacionais e governar com responsabilidade. Mas o enfrentamento com o Supremo, que o bolsonarismo alçou à categoria de prioridade máxima, tem raízes mais profundas do que simples oportunismo político. Na realidade, o inimigo de Jair Bolsonaro não é a Corte, tampouco seus integrantes. Seu inimigo é a Constituição de 1988. E é dessa relação de oposição que nasce o antagonismo do bolsonarismo com o STF, cujo papel é defender a Constituição.

Toda a vida política de Jair Bolsonaro, que se inicia em fevereiro de 1989 como vereador da cidade do Rio de Janeiro, está marcada por uma constante fundamental: o revanchismo contra a Constituição de 1988. Nessa seara, o aspecto que chama mais a atenção é a sua indignação com o fim da ditadura militar e a restauração do regime democrático. Nessas três décadas e meia de vigência da Constituição, Jair Bolsonaro é, sem sombra de dúvida, uma das pessoas públicas que mais fizeram apologia do regime militar.

No entanto – e aqui é o ponto que se deseja frisar –, a discordância de Jair Bolsonaro com a Constituição de 1988 vai muito além da questão, importantíssima obviamente, referente ao regime democrático. A proposta política do bolsonarismo é a antítese exata de tudo o que foi estabelecido na Assembleia Constituinte. Era simplesmente impossível, portanto, que o governo de Jair Bolsonaro não colidisse frontal e decisivamente com o STF, zelador da Constituição.

Por exemplo, a defesa que o bolsonarismo faz do Ato Institucional n.º 5 (AI-5) não é mera provocação. Há uma profunda identificação de Jair Bolsonaro e seus seguidores com o decreto da ditadura que (i) deu poder ao presidente da República para decretar o recesso do Congresso e a intervenção nos Estados e Municípios e (ii) suspendeu a garantia de habeas corpus, ação judicial que protege a liberdade individual contra prisões ilegais. Ora, todo o art. 5.º da Constituição de 1988, sobre os direitos e garantias fundamentais, foi construído precisamente à luz do que o AI-5 produziu de arbítrio, censura, repressão e cerceamento das liberdades civis e direitos individuais.

A liberdade é outro ponto paradigmático de dissensão entre o bolsonarismo e a Assembleia Constituinte. Generosa na concessão e na proteção das liberdades individuais, a Constituição de 1988 não flerta em nenhum momento com a concepção bolsonarista de liberdade: uma liberdade absoluta, entendida como autorização irrestrita para cada um, de maneira irresponsável e impune, fazer o que bem entender, sem respeitar os outros e seus direitos. Tendo sempre feito troça dos direitos humanos, Jair Bolsonaro é diametralmente oposto à estrutura fundamental da Constituição de 1988, cujo primeiro alicerce é o princípio da dignidade da pessoa humana.

Por rejeitar o equilíbrio entre dignidade humana e liberdade estabelecido pela Constituição de 1988, que será depois o fundamento dos direitos sociais, o bolsonarismo é contrário à função social da propriedade rural (art. 186) e do espaço urbano (art. 182). Não por outra razão, em 2019, o senador Flávio Bolsonaro apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para alterar os dois artigos. É a face desumana e reacionária do bolsonarismo a revelar-se sem pudores.

A Constituição de 1988 tem muitos defeitos. No entanto, o bolsonarismo volta-se, eis o grave retrocesso, contra as suas qualidades. Na campanha de 2018, Jair Bolsonaro colocou-se como o anti-Lula. Na Presidência da República, dedica-se a ser visto como o anti-STF. Mas tudo isso é circunstancial. Jair Bolsonaro é, com todo o rigor, anticonstituição. Ao longo de sua carreira política, ele tem representado e verbalizado a voz dos perdedores de 1988, aqueles que se opuseram e continuam a se opor ao Estado Democrático de Direito. Daí que sua batalha atual seja contra as eleições e as urnas. Tudo integra o mesmo pacote autoritário e antirrepublicano.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.06.22

domingo, 26 de junho de 2022

Reformar a democracia

Seminário da USP mostra que é urgente reverter o círculo vicioso de um sistema representativo degradado que alimenta a degeneração da cultura política

As manifestações de 2013 expuseram um abismo entre as ruas e as instituições, entre eleitores e eleitos, que só aumentou. Quais as suas causas e como saná-las? Foram questões debatidas no recente seminário “Fortalecer a Democracia Representativa”, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

A crise é global. Uma pesquisa do Pew Research mostrou que a insatisfação aumenta sobretudo por três percepções: que as eleições trazem poucas mudanças; que os políticos são corruptos; e que os tribunais não tratam todos de forma justa.

O Brasil tem especificidades. Há um paradoxo, que revela um círculo vicioso. A Constituição prestigiou os direitos coletivos e a população espera cada vez mais que o Estado os satisfaça. Ao mesmo tempo, a política é vista como uma seara de oportunistas. A descrença se traduz em uma apatia generalizada (apolítica) contraposta por militâncias minoritárias que advogam salvacionismos (antipolíticos).

No seminário, Patricia Blanco, do Instituto Palavra Aberta, enfatizou a importância da educação. Não se trata de exumar a letra morta da educação “moral e cívica”, mas de reviver o seu espírito em uma formação ética e republicana que contemple os direitos e deveres de cada um e a compreensão dos princípios democráticos encarnados nas instituições.

O fato novo é o ambiente digital. Se ele abriu espaço para grupos marginalizados se expressarem, ampliou também a possibilidade de manipular as massas com base não em fatos, mas em ideologias. Os algoritmos das redes são indiferentes à verdade, mas respondem ao potencial de viralização dos discursos de ódio e mentiras. O extremismo prevalece e a maioria moderada se afasta. Uma agenda de letramento digital e regulação das redes é crucial.

Ao mesmo tempo, o Brasil perpetua um sistema que amplia a distância entre a sociedade e seus representantes. Desde a redemocratização, os partidos se multiplicaram e o financiamento público a eles também, enquanto o número de afiliados encolheu, bem como o retorno à sociedade na forma de investimentos públicos.

Fechados em si, subvencionados pelo Estado, os partidos se veem desobrigados de disputar os corações e mentes dos cidadãos, restringindo-se a bombardeá-los com sua artilharia marqueteira a cada dois anos, no intervalo dos quais negociam interesses patrimonialistas e corporativistas.

Como apontou o cientista político José A. Guilhon, a legislação eleitoral e o sistema presidencialista atual tornam a relação entre eleitos e eleitores opaca. O voto proporcional impede que se criem laços. Em São Paulo, por exemplo, só 25% dos deputados federais são eleitos com seus votos. Já o presidencialismo de coalizão obriga o Executivo a formar maiorias, que, num Congresso fragmentado, são instáveis e amorfas.

Vem tomando corpo a ideia de um semipresidencialismo em que o presidente mantenha as prerrogativas de chefe de Estado, mas o governo seja conduzido por um primeiro-ministro à frente de uma maioria parlamentar estável. Independentemente de a proposta prosperar, uma precondição para viabilizá-la ou para sanar as disfuncionalidades do atual sistema é reduzir o número de partidos e fortalecer sua conexão com o eleitor.

Melhorias, como o fim das doações empresariais, a cláusula de barreira e a proibição das coligações, começam a surtir efeitos. Mas ainda é preciso acabar com os fundos partidário e eleitoral, e substituir, ou ao menos temperar, o sistema proporcional com o distrital.

A resistência do sistema político a ser reformado só será vencida por uma mobilização civil. Segundo a Constituição, o poder do povo se exerce por representantes ou diretamente. Não se trata de substituir a democracia representativa pela direta, mas de forçá-la a empregar mecanismos como o plebiscito e o referendo para aprimorar o modelo de representação.

Há hoje um sistema representativo degradado que nutre a degeneração da cultura política e vice-versa. Mais cedo ou mais tarde, o povo precisará ser consultado sobre o sistema político e eleitoral que deseja. Do contrário, o abismo entre ele e seus representantes crescerá.

Editorial / Notas & Inofmrações, O Estado de S. Paulo, em 26.06.22

Um novo patamar de descaramento

Com Bolsonaro, as restrições de ano eleitoral são tratadas como matéria suscetível de discussão e alteração, ou mesmo de descarado desrespeito. E a oposição consente

Em ano eleitoral, há uma série de restrições constitucionais e legais que impedem o uso do poder estatal para beneficiar eleitoralmente quem está no poder, o que geraria uma situação de desequilíbrio entre os candidatos. Trata-se de aspecto fundamental das regras do jogo de um regime democrático, que, por mais que desagrade e limite a atuação dos ocupantes de cargos públicos, era acolhido e respeitado de forma pacífica pelos partidos e políticos. Esse conjunto de limitações era algo que não estava em discussão. Fazia parte do consenso democrático.

Infelizmente, esse consenso – o respeito pacífico às regras do jogo – é coisa do passado. No Brasil de Jair Bolsonaro, as restrições de ano eleitoral são tratadas como matéria suscetível de discussão e alteração, ou mesmo de descarado desrespeito. Por mais que seja violação explícita das regras vigentes, estuda-se e debate-se abertamente o que o governo deve fazer para turbinar benefícios sociais, incluindo a criação de uma bolsa-caminhoneiro de até mil reais por mês.

A legislação eleitoral é cristalina. No ano em que se realizam as eleições, é proibida a distribuição gratuita de bens ou benefícios pela administração pública. As únicas exceções são programas sociais que já estejam em funcionamento. No entanto, o governo Bolsonaro e aliados tratam essas limitações como se fossem supérfluas ou dispensáveis. 

A política brasileira nunca foi um ambiente de especial probidade, mas havia limites. Agora, vê-se instalar um novo patamar de descaramento. Por exemplo, segundo o líder do governo no Senado, Carlos Portinho (PL-RJ), o Executivo federal pode criar benefícios sociais em ano eleitoral, bastando, para tanto, alegar situação emergencial internacional causada pela guerra da Rússia com a Ucrânia. É esse o nível de consideração com a legislação que protege o equilíbrio das eleições.

Para que a absurda manobra seja aceita com menos resistência, o governo aventa a possibilidade de criar a bolsa-caminhoneiro por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Com isso, desrespeitam-se não apenas as regras do jogo das eleições, mas a própria Constituição, numa tresloucada inversão de sentido e funções. A Constituição dispõe de um grau hierárquico maior sobre todo o restante da legislação precisamente por ser fundamento e limite de toda a ordem jurídica, de forma a assegurar respeito às questões essenciais do Estado Democrático de Direito. No entanto, o governo Bolsonaro quer valer-se da hierarquia da Constituição em sentido inverso: para que violações ao Estado Democrático de Direito não sejam questionadas.

Como Jair Bolsonaro não tem limites quando o assunto é eleições, fala-se também na possibilidade de o governo publicar um decreto de “estado de calamidade pública” ou de “situação de emergência”, como forma de escapar das restrições da legislação eleitoral. É realmente um quadro preocupante. Em vez de prover planejamento e propostas responsáveis para enfrentar a crise social e econômica, o governo Bolsonaro é uma usina geradora de manobras para burlar as regras do jogo. 

Eis mais uma consequência de Jair Bolsonaro na Presidência da República. Não bastassem as omissões em áreas fundamentais, conflitos com outros Poderes, escândalos de corrupção nas pastas da Saúde e da Educação, desorganização e desmoronamento da estrutura administrativa federal, tentativas de dificultar a transparência e encabrestar os órgãos de controle, o governo ameaça abertamente as normas eleitorais, tentando de tudo para usar ainda mais a máquina pública em benefício eleitoral.

É bom que se diga que Bolsonaro não teria ido tão longe se a oposição não tivesse sido conivente com tais manobras, seja porque não deseja parecer contrária à criação e à ampliação de benefícios sociais, seja porque também lhe interessa o desmonte dessas restrições próprias de ano eleitoral. É uma grave irresponsabilidade, que enfraquece a democracia no que esse regime tem de mais precioso: o respeito de todos à lei e ao pacto constitucional.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.06.22

sábado, 25 de junho de 2022

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato 

Começo com o Papa Francisco numa cadeira de rodas.

O papa e a artrite

O bêbado entrou no ônibus aos tombos. Malvestido, sujo, tossindo, tropeçando, tremendo, com um jornal na mão, sentou-se ao lado de um padre. A cada arranco do ônibus, tombava para o lado do padre, que, irritado, o empurrava sem piedade ou indulgência, e com nojo. O bêbado abriu o jornal, tentou ler, mas não conseguia porque tremia muito, bateu no braço do padre:

– Padre, o que é artrite?

– É uma doença muito ruim, muito triste, muito feia, muito nojenta, que dá nas pessoas que bebem muito.

– E mata, padre?

– Mata, sim, e mata rápido. Ou o doente para de beber ou morre logo.

– Padre, o senhor jura que não está me enganando não?

– Juro por essa cruz que está aqui no meu peito. Não estou enganando. E tem coisa pior. Quem morre de artrite, porque não parou de beber, não vai para o céu, nem mesmo para o purgatório. Vai direto para o fogo do inferno.

– Coitadinho do argentino, padre.

– Dele, quem?

– Do Papa, padre. O jornal está dizendo aqui que o Papa Francisco está com artrite.

O padre se levantou, trocou de lugar, e foi lá pra frente.

(Historinha de Sebastião Nery, adaptada para a atualidade por este escriba).

A imagem do Brasil

No fundo do poço. O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês, Dom Philips, no Vale do Javari, Amazonas, devasta ainda mais a imagem do Brasil na paisagem internacional. Soma-se ao rol de coisas ruins que as Nações enxergam em nossas plagas, a partir do desmatamento da floresta, do garimpo ilegal, da exploração de minérios, enfim, do descaso ao qual foi relegada a região amazônica pelo governo.

Infere-se que...

O presidente Bolsonaro se depara com mais um obstáculo a ultrapassar em sua corrida para voltar a sentar na cadeira presidencial. A morte de Bruno e Dom abre mais espaço na mídia nacional (e internacional), com sobras de tiros em direção a um governo que acolhe bárbaros que devassam a região. Sob uma política complacente. Ou seja, esse episódio afasta muitos eleitores que poderiam votar em Bolsonaro. Recuam ante a escalada de violência e brutalidade que assolam o Brasil no atual ciclo político.

A banalização do mal

O mal está banalizado aqui e alhures na esteira das práticas que o alimentam. A famosa tese de Hannah Arendt sobre o tema, com foco no assassinato em massa, comandado pelo coronel nazista Adolf Eichmann ao jogar milhões de judeus nas câmaras de gás dos campos de concentração. O Álbum de Auschwitz mostra a chegada dos trens, o processo de seleção e o lugar para onde eram levados os pertences dos assassinados — conhecido como Canadá... "mulheres, crianças, idosos não sabiam o destino que os esperava; nós, porém, sabemos o que ia acontecer em minutos ou horas: seu destino eram as câmaras de gás... Entre a primavera e o início do verão de 1944, Auschwitz chegou ao limite de sua capacidade de extermínio e o superou no mais horrível e frenético período de assassinatos que o campo viveria". O criminoso cumpria ordens. Sem piedade. Um burocrata dando vazão ao sistema. A banalização do mal.

A natureza do mal

O  mal tem origens. Nasce, por exemplo, da inação de governantes que fecham os olhos para práticas imorais, perversas, estúpidas, calamitosas. A semente do mal viceja na seara da ignorância. Massas sem acesso à educação ensejam a multiplicação de grupos, máfias, milícias. Em suma, a morte do indigenista e do jornalista inglês no Amazonas se ancora no desmando de uma administração que deixa a floresta ser devastada por "novos povoadores", os cultores do uso da bala, que emergem como "bandeirantes bárbaros" das reservas indígenas. Sob o olhar de um governo que considera a destruição do espaço amazônico um impulso ao desenvolvimento do país.

Os três macaquinhos

Parcela do eleitorado que votará em Lula deve fazer o gesto dos três macaquinhos - que fecham os olhos, os ouvidos e a boca. Não veem, não ouvem e não sentem o clima que envolverá sua decisão nas urnas. Votarão em Lula para evitar Bolsonaro. Hipótese que também vale para o mandatário-mor. A opção de votar nele é, para muitos, uma tentativa de deixar longe do poder o lulopetismo. Parcela ponderável do eleitorado tenta enxergar luz no fim do túnel. Quem vai segurar o farol?

Programa petista

Volto a lembrar. O programa de Luiz Inácio, vazado pela mídia na semana passada, mostra que o ex-metalúrgico não esquece temas que causam pesadelo junto a segmentos importantes: a revogação da reforma trabalhista, o aborto, a regulação da mídia (com cheiro de censura), a tributação dos endinheirados, entre outros itens. E, ainda, ele concorda com o uso da caneta para definir os rumos da Petrobras e, assim, abrir o ciclo de maior intervenção do Estado na economia.

Lula no meio? Uma ficção

O comandante petista tem se posicionado no meio do arco ideológico. É sua expressão junto aos setores produtivos. Mas, vez ou outra, o velho Lula reaparece em discursos inflamados. Geraldo Alckmin tem sido usado como colchão amortecedor junto aos setores produtivos. Um drible que poderá quebrar as pernas do jogador. O tempo provará essa hipótese. Esperemos.

Em suma

Jair tem apoio de 25% a 30% dos eleitores que consideram seu governo bom ou ótimo. Mesmo não sendo popular, Bolsonaro tem razoável apoio entre os padrões da América Latina. Com esse índice, ainda está na disputa. Já a rejeição a Lula tende a subir, o que tornaria a eleição competitiva. Se Bolsonaro conseguir recuperar popularidade, a eleição será apertada.

Simone Tebet

Toda a expectativa do grupo nem-nem se volta para Simone Tebet. Julho é seu deadline, o fim de linha. Passou o mês sem sinais de subida, será improvável permanecer no páreo. Este analista acha que haverá um pouco de pista para ela decolar

Doria, adeus

João Doria diz adeus à vida pública. "A ser verdade", este analista registra algumas conclusões: 1. João fez bem à democracia brasileira; 2. O ex-governador paulista deixa marca forte no Estado mais poderoso da Federação; 3. Seu governo não ganhou o reconhecimento que merece; 4. Foi impossível ao ex-governador diminuir índices de rejeição; 5. A rejeição abriga componentes relacionados à índole de João (elite, autossuficiência, representação da cara do poderio paulista (elemento muito rejeitado pelo eleitor), imposição, pouco propenso ao diálogo, entre outros pontos.

Verdade

Este analista escreveu acima – "a ser verdade". A observação é para lembrar que há sempre um caminho de volta. Se as circunstâncias, no dia de amanhã, abrirem espaço para sua volta, quem garante que ele não montará no cavalo selado diante de sua porta? Minha querida e saudosa mãe sempre me dizia: "meu filho, nunca diga – desta água não beberei". Acrescento: aprendi com o filósofo Heráclito, de Éfeso, que a travessia do rio duas vezes no mesmo lugar por uma pessoa não se repete, pois as águas e a própria pessoa estarão modificadas; aprendi, também, que a pessoa pode atravessar o rio noutro momento, sob novas circunstâncias. O rio e a pessoa serão outros.

A menor distância

A propósito, a menor distância entre dois pontos, na geometria euclidiana, é uma reta. Tenho dito e repetido este bordão: Na política, porém, a menor distância entre dois pontos pode ser uma curva. Lembro: Fernando Henrique perdeu a eleição municipal para Jânio Quadros e, a seguir, ganhou a presidência da República.

Queda da bolsa

O mercado financeiro enfrenta momentos nervosos no mundo e por aqui. Bolsas fechando em baixa. O pessimismo é reflexo de preocupações generalizadas com a inflação, que está acelerando sobretudo nos EUA.

Recessão mundial

Anotem a inferência. O mundo deverá entrar, um pouco mais adiante, em um processo de refluxo nas economias. A partir da recessão que deve ocorrer nos Estados Unidos, a maior potência econômica. Senhoras e senhores investidores: refaçam seus prumos...e rumos. Paisagem que desenho a partir de minhas leituras. Um dos movimentos para a desvalorização do real é o estímulo à fuga de investidores do Brasil com a iminente nova elevação dos juros americanos. Os investidores retiram seus recursos da renda variável...

Ucrânia

Está perdendo a guerra. Rússia vitoriosa aumentará as tensões na Europa. A OTAN se dispõe a abrigar novos países. Putin irado. Sinais de paz se apagam.

Os Gomes

Quem deverá voltar à iniciativa privada, no próximo ano, é o presidenciável Ciro Gomes. Um perfil qualificado. Um grande conhecedor do nosso país. A propósito: os irmãos Ferreira Gomes deram um passo adiante no sistema educacional de Sobral, Ceará. Depoimento de uma figura mais que prestigiada....o homem mais rico do Brasil: Jorge Paulo Lemann.

A propósito do Ceará...

Junho é um mês histórico na minha trajetória. Nesse momento em que se fala da indicação de Tasso Jereissati para compor a chapa de Simone Tebet (MDB-MS) talvez seja interessante lembrar os tempos em que Tasso abriu sua jornada política.

O início

Há 36 anos, em 24 de junho de 1986, indicado por Fernando César Mesquita, assessor de imprensa do presidente José Sarney, cheguei à Fortaleza, Ceará, para ajudar na campanha de Tasso Jereissati ao governo do Estado. Do hotel Esplanada, onde me hospedei, fui a uma noite de São João. Tasso Jereissati, convidado por Barros Pinho, deputado estadual do MDB, dirige-se a um clube de bairro popular de Fortaleza. Primeira experiência no meio do povo. Candidato a governador do Ceará, sua missão: presidir um júri que vai julgar fantasias juninas de adolescentes.

Peixe fora d'água...

Estava ao seu lado como conselheiro e profissional de campanhas políticas (hoje chamados de marqueteiros). Tasso circula de mesa em mesa, apresentando-se. Encabulado. A seguir, preside o evento. Não sabe o que fazer. Ou dizer. Era muito conhecido no bairro de classe média alta, Aldeota, mas sem acesso às massas. Na época, tinha 2% de intenção de voto.

"Tô fora"...

Depois do evento, angustiado, ele, Sérgio Machado, na época braço direito, e este escriba, dirigem-se a um restaurante na praia para degustar uma lagosta. Logo no início da conversa, Tasso desabafa : "desisto, amigos; se política for isso, assistir a batizado, casamento, velório, festa junina, não contem comigo. Tô fora". Transtornado e disposto a abandonar a candidatura. No Hotel, dia seguinte, em uma pequena máquina de datilografia, Lettera 22, esbocei o planejamento de sua campanha.

O moderno contra o arcaico

O novo contra o velho. O moderno contra o arcaico. O lema que orientou a campanha. Fui à MPM, em Brasília, para que esta agência criasse o visual. Fizemos a apresentação. Mas a Propeg, de Fernando Barros, Salvador/Bahia, sob o mesmo lema, acabou sendo a agência escolhida. Fui coordenar a campanha de Freitas Neto (PFL-PI). Acompanhando o que ocorria no CE. Resumo: Tasso deu um banho nos três coronéis que comandavam a política cearense, Virgílio Távora, César Cals e Adauto Bezerra. Ganhou de Adauto Bezerra, obtendo quase 1,5 milhão de votos. Fez um governo mudancista. Hoje, senador do PSDB, é um quadro respeitado em todos os segmentos da política.

Fecho com o Ceará.

Com "SEU LUNGA", o famoso casca dura de Juazeiro do Norte, vendedor de sucatas, pai de 13 filhos, quase analfabeto, que ganhou fama pela língua solta e afiada.

No copo?

Seu Lunga descansava na rede. Manda o sobrinho trazer-lhe um pouco de leite. O garoto pergunta:

– No copo?

Ele responde:

– Não. Bota no chão e vem empurrando com o rodo, imbecil.

A promissória

O funcionário do banco veio avisar:

– Seu Lunga, a promissória venceu.

– Meu filho, pra mim podia ter perdido ou empatado. Não torço por nenhuma promissória.

Tá doente?

Seu Lunga vai saindo da farmácia, quando alguém pergunta:

– Tá doente?

– Quer dizer que se eu fosse saindo do cemitério, eu tava morto?

Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.

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Guzzo: Educação pública é assaltada por quadrilhas de corruptos

É uma tragédia; o Brasil está produzindo analfabetos, quando necessita desesperadamente fazer o exato contrário - dar à população ensino de melhor qualidade

A educação pública no Brasil vive possivelmente os piores momentos que já teve em muitos anos; está entre as mais infames do mundo e, além disso, como se vê agora, é assaltada por quadrilhas de corruptos. A polícia investiga a exigência e o pagamento de propinas, numa operação de tráfico de influência na distribuição de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para as escolas municipais. O ex-ministro Milton Ribeiro foi preso, por suspeitas de envolvimento no esquema. Treze mandados judiciais de busca e apreensão estão sendo cumpridos, em quatro Estados. Pastores evangélicos são denunciados por sua participação no roubo. É um fundo de poço – se fosse possível saber se este poço tem fundo.

Tudo o que o Brasil não precisa neste momento é exatamente isso que está acontecendo. Com as escolas fechadas durante dois anos, por conta dos “lockdown” anti-covid, o número de crianças de seis e sete anos de idade que não sabem ler nem escrever aumentou de 1,4 milhão, em 2019, para 2,4 milhões em 2021. É uma tragédia. O Brasil está produzindo analfabetos, quando necessita desesperadamente fazer o exato contrário: dar à população ensino de melhor qualidade, com a transmissão dos conhecimentos hoje indispensáveis para que os jovens possam aspirar à uma vida profissional mais digna e contribuir com o bem-estar da sociedade. O país está imensamente atrasado nessa área – fica, a cada pesquisa internacional sobre situação do ensino, entre os piores do planeta.

Que esperança de progresso real se pode ter, em pleno século XXI, quando o número de analfabetos aumenta? Não se trata, aí, dos casos já perdidos - adultos que não aprenderam o suficiente e agora não tem condições de recuperar o conhecimento perdido. Trata-se, isto sim, de fabricar crianças analfabetas, uma garantia de que nunca estarão qualificadas para a execução dos trabalhos melhor remunerados, menos primitivos e mais promissores profissionalmente. É uma agressão direta à cidadania – e uma das atitudes mais eficazes que uma sociedade poderia tomar para aumentar a concentração de renda, agravar as desigualdades e produzir pobreza.

O Brasil já tem as escolas fechadas por conta da covid – dois anos de pura perda, que não pode mais ser “reposta”. Tem professores sem capacidade para ensinar. Tem uma distribuição insana dos recursos públicos destinados à educação, com bilhões de reais desviados para um ensino superior de péssima qualidade, aparelhado por professores, políticos e funcionários, e inútil na transmissão de conhecimentos capazes de ajudar a uma sociedade moderna. Em cima disso tudo, agora, vem a corrupção. É uma situação de xeque-mate. Não há como dar certo.

José Roberto Guzzo, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 22.06.22

Pesquisa Datafolha: Quase 30% dos eleitores admitem mudar voto para presidente até outubro

Índice dos eleitores que cogitam trocar de candidato chega a 34% entre as mulheres; pesquisa mostra que a maioria só conhece Lula, Bolsonaro e Ciro Gomes; 77% não sabem quem é Simone Tebet


Lula, Bolsonaro, Ciro, Simone, Janones e Bivar são seis dos principais pré-candidatos à Presidência em 2022. 

A mais recente pesquisa eleitoral divulgada pelo instituto Datafolha aponta que 70% dos brasileiros estão decididos sobre o voto para presidente no primeiro turno, marcado para 2 de outubro. Os demais, quase 30%, admitem trocar de candidato nestes cerca de cem dias que antecedem a eleição. Entre as mulheres, o índice de indecisos é de 34%. Já entre os homens, 24% afirmam que podem mudar o voto para o Palácio do Planalto.

Entre o eleitorado mais jovem, da faixa dos 16 aos 24 anos, chega a 39% o percentual dos afirmam que a escolha para o Planalto ainda pode mudar. O mesmo índice cai para 32% entre as pessoas de 25 a 34 anos; para 28% dos 35 aos 44 anos; para 25% dos 45 aos 49 e para 27% entre os brasileiros de 60 anos ou mais ouvidos pelo Datafolha.

Os primeiros dados da pesquisa, que no primeiro turno apontam vantagem de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de 19 pontos sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL), com 47% a 28%, foram divulgados nesta quinta-feira, 23.

Agregador calcula cenário mais provável da corrida eleitoral com metodologia própria; gráfico mostra todas as pesquisas divulgadas nos últimos seis meses, inclusive a mais recente, do instituto Datafolha

Se considerada a renda familiar mensal dos eleitores consultados, o percentual de indecisos é de exatos 30% entre quem vive com até dois salários mínimos e também entre os que vivem com dois a cinco salários. E cai para 26% entre os eleitores com renda familiar de cinco salários ou mais, inclusive os que afirmam ter renda superior a 10 salários.

Desconhecimento dos pré-candidatos

Dos 2.556 brasileiros que responderam à pesquisa do Datafolha, 2% disseram não conhecer Lula. Já Bolsonaro é desconhecido para 4%. E Ciro Gomes (PDT), que está em terceiro lugar nos mais recentes levantamentos, não é conhecido por 14% dos entrevistados.

Os pré-candidatos que disputam a quarta colocação na preferência do eleitorado são desconhecidos da maioria, de acordo com a pesquisa. O índice dos que dizem não conhecer a senadora Simone Tebet (MDB-MS) é de 77%; o do deputado federal André Janones (Avante-MG) é de 75%; o do deputado federal Luciano Bivar (União Brasil-PE) é de 81%; e mesmo o nome do ex-ministro General Santos Cruz (Podemos) é desconhecido por 84%.

O ex-deputado José Maria Eymael (DC) é desconhecido por 67% dos consultados. Vera Lúcia (PSTU), que como Eymael já foi candidata ao Planalto, é desconhecida por 79%.

Luiz Felipe d’Ávila (Novo), Pablo Marçal (Pros), Leonardo Péricles (UP), e Sofia Manzano (PCB), que também integram a lista de pré-candidatos à Presidência, não são conhecidos por 81% a 93% dos brasileiros ouvidos pelo Datafolha. A pesquisa foi feita nos dias 22 e 23 de junho.

O Estado de S. Paulo, em 24.06.22

Uma oportunidade a mais

Candidatos como Tebet e Ciro cumprem papel fundamental: dão chance a que o debate se qualifique e o centro político se mostre mais progressista. Marco Aurélio Nogueira n'O Estado de S; Paulo hoje.

Há duas maneiras de avaliar a candidatura presidencial de Simone Tebet (MDB), apresentada semanas atrás por uma coligação entre seu partido, o PSDB e o Cidadania.

A primeira é negativa. Seus adversários são, em parte, ativistas de uma das duas candidaturas postas desde o ano passado, Lula e Bolsonaro, para quem o ideal é que não se mexa no quadro atual, que já estaria favoravelmente definido para eles. Outra parte é composta por céticos radicais, para quem Simone chegou tarde demais e não tem fôlego para competir com os candidatos mais bem posicionados nas pesquisas eleitorais. É um ceticismo que se combina com a descrença no potencial de crescimento de Simone e com alguma dúvida sobre sua capacidade de pensar o País e propor soluções para o combate às suas mazelas.

Ao lado dessa rejeição, argumenta-se que Simone – assim como Ciro Gomes – impede que a eleição seja resolvida no primeiro turno, o que seria fundamental para a completa deslegitimação de Bolsonaro e a desmontagem de seus planos golpistas.

Nesse argumento, dorme um ceticismo pragmático, que não desmerece Simone, mas a vê como um fator de perturbação daquilo que é tido como estratégico: a derrota do autoritarismo. A ideia seria concentrar esforços para um desfecho logo na primeira rodada eleitoral, em outubro. Dado que o fundamental é derrotar o autoritarismo, não valeria a pena cogitar do fortalecimento de polos alternativos, que poderiam promover uma perigosa dispersão de votos e reforçar o polo bolsonarista, como aconteceu em 2018.

Esse ceticismo pragmático tem uma lógica respeitável, deve ser considerado com atenção. Afinal, não temos hoje uma disputa eleitoral simples, na qual o representante do autoritarismo esteja preliminarmente derrotado, tantos são os desacertos e os crimes cometidos por seu governo. Uma caneta na mão pode muito. E o perigo mora atrás da porta. Não devemos perder de vista o que há de risco de ruptura democrática no País. A candidatura Lula-Alckmin precisa ganhar mais musculatura, e Bolsonaro precisa continuar a ser constrangido a partir de múltiplas frentes.

Numa disputa polarizada como a que se desenha em 2022, a tendência é de uma forte magnetização dos polos, que tenderiam não só a atrair o eleitorado, como, sobretudo, a pautar o debate eleitoral, fazendo-o se concentrar na destruição recíproca dos adversários, mediante a utilização intensiva de recursos de marketing, ataques, denúncias e acusações do pior tipo. A dinâmica da disputa leva os polos a se agarrarem no contraste entre eles, fechando-se para temas substantivos. A decorrência é que não haveria debate político, ou ele ficaria dramaticamente empobrecido, com o que a incerteza sobre o futuro se ampliaria. Como e com quem governará o vitorioso? Que Brasil ele carrega no peito e na cabeça? O que promete fazer para reerguer o País? Suas promessas são factíveis, realistas, viáveis? Com qual programa econômico e com quais políticas públicas enfrentará os problemas nacionais? Como projetará o lugar do Brasil no sistema internacional?

Sem uma discussão eleitoral consistente e de qualidade, tudo ficará no campo das incógnitas. Nada saberemos sobre política econômica, reforma social, política, cultural, educacional, sanitária. O que mais se necessita em disputas polarizadas é de vozes alternativas, que furem os bloqueios derivados da polarização e forcem os polos a se posicionarem.

Candidatos como Simone Tebet e Ciro Gomes – cada qual a seu modo – cumprem um papel fundamental: representam uma oportunidade a mais para que o debate público se qualifique e o centro político se mostre mais progressista.

Isso não significa, evidentemente, que Simone e Ciro conseguirão crescer vitoriosamente. Ambos têm problemas de afirmação. Ciro é conhecido pelo destempero, Simone tem o tempo como adversário. Ciro está mais adiantado na formulação programática, Simone ainda não apresentou propostas consistentes. Terá de trabalhar dobrado para conquistar terreno.

A seu favor, Simone conta com baixa rejeição e com uma imagem positiva como parlamentar, ativa integrante da bancada feminina e da CPI da pandemia. Nas entrevistas que vem concedendo desde a sua indicação, demonstra conhecer o País e deixa claro que sabe discutir temas complexos com serenidade e tolerância, sem ocultar a indignação com a fome, a miséria, a exclusão, o desmatamento, o maltrato aos indígenas, o descaso governamental. Passa a impressão de que dispõe de garra, coragem e energia para olhar nos olhos do Brasil profundo, decifrá-lo e ajudar a reconstruí-lo. Pode não bastar para fazê-la crescer, mas é um trunfo e tanto. Se conseguir, por exemplo, deslocar Bolsonaro e passar para o segundo turno, a democracia ganhará alento.

Ainda temos cem longos dias pela frente antes de outubro. É um tempo estreito quando está em marcha uma dinâmica eleitoral com forte viés de cristalização. Mas hoje, no mundo complexo e acelerado em que vivemos, o tempo já não se dobra aos ponteiros do relógio, escapa deles e sempre se abre para surpresas desconcertantes.

Marco Aurélio Nogueira, o autor deste artigo, é Professor Titular de Teoria Política na Universidade Estadual de São Paulo / UNESP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.06.22


As afinidades entre PT e Centrão

Ataque à Lei das Estatais, que impede o loteamento político de cargos, une partidos que, embora estejam em lados ideológicos opostos, se identificam na hostilidade à boa governança

A deputada e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, subiu à tribuna da Câmara para atacar a Lei das Estatais justamente naquilo que a torna fundamental para a moralidade pública e a boa governança: o veto à nomeação de políticos para a direção dessas empresas. Não por acaso, a causa de Gleisi é a mesma do Centrão, também ansioso por restaurar a possibilidade de lotear cargos nas estatais – em particular na Petrobras.

O PT, na imortal definição de Anthony Garotinho, é o “partido da boquinha”, característica que, malgrado as diferenças ideológicas aparentes, o torna tão parecido com os partidos do Centrão, desde sempre movido por sinecuras e prebendas. A diferença é que os petistas avançam sobre cargos para aparelhar o Estado e fazê-lo trabalhar para seu projeto de poder, enquanto o Centrão se contenta com o acesso a benesses pecuniárias e eleitorais. Para o País, não faz diferença: em ambos os casos, dilapida-se a administração pública em favor de interesses particulares.

O alvo preferencial do PT e do Centrão é obviamente a Petrobras, tratada, tanto por Lula da Silva quanto pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, como o demônio. Essa turma não gostou nem um pouco da Lei das Estatais porque esta estabeleceu que a Petrobras deveria ser administrada por profissionais do ramo do petróleo, e não do ramo da pilhagem.

Em seu discurso na Câmara, Gleisi Hoffmann disse, ora vejam, que a Lei das Estatais “criminaliza a política”. Ora, não foi a Lei das Estatais que criminalizou a política, e sim os partidos que tomaram a Petrobras de assalto durante o mandarinato lulopetista. A Lei das Estatais é justamente uma resposta civilizada à barbárie do petrolão e do descarado uso político da Petrobras para fins eleitorais, que quase arruinaram a empresa.

O alvo do PT e do Centrão são os artigos 16 e 17 da Lei 13.303/2016. O artigo 17 exige experiência profissional de executivos e veda a ocupação de cargos por ministros, dirigentes partidários, sindicalistas e detentores de mandato no Legislativo, além de pessoas com conflito de interesses. Para o PT, impor parâmetros mínimos para a escolha de diretores e conselheiros de estatais é uma atitude discriminatória – mesmo depois que anos de administrações petistas levaram a Petrobras a reconhecer uma baixa contábil de R$ 6,2 bilhões por corrupção e a consumir R$ 100 bilhões segurando reajustes de combustíveis.

O artigo 16, por sua vez, sujeitou o administrador de empresas públicas às normas de governança do setor privado. Ao incorporá-lo ao estatuto, a Petrobras deixou explícito que membros do Conselho de Administração e da diretoria respondem, individual e solidariamente, pelos atos que praticarem e pelos prejuízos que deles decorrerem. Isso significa que os executivos podem ter de pagar o custo de uma gestão temerária com o próprio bolso. Não por acaso, tornou-se um dos dispositivos mais eficazes para impedir o saque das estatais: é muito fácil torrar dinheiro dos outros quando há garantia de impunidade. Por esse motivo, os três últimos presidentes da Petrobras escolhidos por Jair Bolsonaro, quando pressionados a adotarem uma política intervencionista em nome de sua reeleição, preferiram a demissão.

A Lei das Estatais é um marco na história do País. Representou o resgate da moralidade das empresas públicas e trouxe resultados inegáveis – 2015 foi o último ano em que o conjunto de estatais federais registrou prejuízo. Empresas lucrativas geram impostos que podem ser usados para melhorar a vida da população, aumentar investimentos e impulsionar o crescimento. Companhias mal administradas, ao contrário, disputam o escasso espaço fiscal do Orçamento por aportes para sobreviver. A realidade dos fatos, porém, não importa para quem só pensa em arrumar um discurso eleitoral minimamente convincente, como Bolsonaro; para quem quer lotear o aparato do Estado entre os amigos, como o PT; ou para quem só pensa em garantir nacos de poder independentemente de quem esteja na Presidência a partir de 2023, como o Centrão.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.06.22

A despudorada ‘bolsa-eleição’

Com o improviso irresponsável de sempre, Bolsonaro se dispõe a driblar as leis eleitorais e os limites fiscais, torrando bilhões de que não dispõe, na esperança de somar pontos nas pesquisas

No desespero para tirar sua candidatura da estagnação, o presidente Jair Bolsonaro está disposto a torrar bilhões do Orçamento e driblar regras eleitorais e limites fiscais para impulsionar sua campanha. Sem qualquer estudo prévio, de olho apenas nas pesquisas e a menos de 100 dias da disputa presidencial, o Executivo pretende aumentar o valor mínimo do Auxílio Brasil dos atuais R$ 400 para R$ 600, dobrar o Auxílio-Gás, hoje em R$ 53, e criar um vale de mil reais mensais para caminhoneiros autônomos. Ainda não há cálculo sobre o custo das medidas, mas as primeiras estimativas apontam para R$ 50 bilhões até o fim deste ano.

Tudo se dará por meio de mais uma alteração na Constituição. Para tentar reduzir – sem sucesso – os preços dos combustíveis, o governo havia conseguido impor uma perda de mais de R$ 100 bilhões aos Estados, ao fixar, sem compensação, um teto de 17% a 18% para o ICMS de bens essenciais. Não satisfeito, apostou em uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para indenizar, com quase R$ 30 bilhões, aqueles Estados que aceitassem reduzir a zero o ICMS sobre o diesel e o gás de cozinha. É bem provável que o Executivo finalmente tenha se dado conta de que nenhum governador aceitaria saltar nesse abismo; assim, encontrou outro fim para um dinheiro que não tem.

Com a fome atingindo milhões de pessoas e o avanço implacável da inflação – o IPCA-15 acumula alta de 12,04% em 12 meses até junho –, evidentemente é papel do governo ajudar as famílias mais vulneráveis a sobreviver. A questão é a forma como isso deve ser feito, e Bolsonaro não poderia ter escolhido caminho pior. Devastando as bases do Bolsa Família e eliminando todas as suas contrapartidas, como a exigência de presença escolar e o cumprimento do calendário vacinal, o Executivo colocou em seu lugar um programa de viés eleitoral e que trata desiguais da mesma forma, o oposto do que preconizam as melhores políticas públicas. Sua malfadada cria, o Auxílio Brasil, desconsidera a quantidade e a idade dos filhos e incentiva que pessoas que dividem a mesma casa se cadastrem como se morassem separadas para receber R$ 800.

Insistindo na existência de “invisíveis”, o governo optou por jogar no lixo todo o legado de 21 anos de dados do Cadastro Único para Programas Sociais, mas nem assim conseguiu zerar a fila de beneficiários à espera de serem contemplados – já são 2,78 milhões, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). E para criar o voucher para caminhoneiros e não ser vítima das mesmas greves que irresponsavelmente incentivou em 2018, Bolsonaro está disposto a atropelar o teto de gastos e todas as restrições da Lei das Eleições, da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias. E, se preciso for, usará a guerra na Ucrânia como desculpa esfarrapada para lançar mão de um decreto para declarar estado de emergência ou de calamidade.

Nem se disfarça mais que tudo se pauta pelo horizonte de outubro. Todas as benesses terão validade até dezembro, deixando claro que se trata não de uma política séria, mas de uma descarada exploração política dos brasileiros mais necessitados. Na mais recente pesquisa Datafolha, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem 47% das intenções de voto, ante 28% de Bolsonaro, mas a vantagem do petista se amplia entre aqueles que ganham até dois salários mínimos. Este grupo, que representa pouco mais da metade da população, não esconde preferir Lula (56%) a Bolsonaro (22%), e 60% de seus membros dizem que não votariam no presidente de jeito nenhum. O motivo é óbvio: a inflação atinge todos, mas prejudica, sobretudo, os mais pobres. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, sabe disso. Em entrevista ao jornal Valor, admitiu que o avanço dos preços é o maior problema da campanha de Bolsonaro, mas negou que o governo esteja fazendo estelionato eleitoral. Questionado sobre as chances de recuperação da candidatura do chefe, disse que o jogo das eleições “ainda não começou”, algo que deve ser encarado quase como uma ameaça. Se tal partida ainda nem se iniciou na avaliação do governo, nem se imagina o custo que a bolsa-eleição terá quando ela tiver fim.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.06.22

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Gabeira: o combustível da insensatez

Desespero de Bolsonaro o leva a se perder em iniciativas estúpidas como a de uma CPI da Petrobras. A oposição não pode acompanhá-lo nesse abismo.

O desejo de conquistar eleitores produziu um psicodrama político em busca de soluções para conter o preço da gasolina. Tudo indica que os atores reconhecem seu fracasso, mas se esforçam para mostrar que deram tudo para evitar a derrota.

Talvez, lá atrás, tenha havido uma modesta saída, a formação de um fundo com os dividendos do governo, sócio majoritário da Petrobras, destinado a suavizar o aumento dos preços, determinado pela conjuntura internacional. Agora, é tarde, e as tentativas de última hora parecem cenas de um teatro do absurdo.

Durante duas semanas, o Congresso Nacional se dedicou a aprovar uma redução de ICMS para baixar os preços. Todos sabiam que eles estavam defasados e que, no primeiro movimento de atualização, a Petrobras neutralizaria com um novo aumento qualquer variação de ICMS. Resultado: Congresso funcionando custa dinheiro, Estados com menos recursos para educação, saúde e segurança, e, em termos de preço na bomba, resultado nulo.

No fim de semana, Bolsonaro levantou a hipótese mais fantástica: uma CPI da Petrobras. No seu discurso, intimidava os sócios minoritários com um prejuízo de R$ 30 bilhões, como se alguma CPI mágica pudesse produzir perdas para os minoritários sem atingir o sócio majoritário, que é o Estado.

Bolsonaro anunciava orgulhosamente um movimento para atingir o próprio governo que dirige – algo inédito.

Alguns analistas acharam que a oposição também apoiaria o governo para atingir a Petrobras. Felizmente, isso não aconteceu. Seria algo mais extraordinário ainda: governo e oposição juntos tentando liquidar uma empresa pública.

As tentativas não param por aí. Líderes reunidos tentam aumentar o imposto de exportação para estimular o refino no interior do País. Mas e as refinarias que faltam? Será que brotariam de agora até o momento das eleições? Pergunta inútil porque, na verdade, o resultado não interessa, mas apenas o movimento, a encenação que transmite ao eleitor a falsa ideia de que seu desejo será satisfeito.

Por mais que o governo se lance contra dirigentes que ele próprio indicou para a Petrobras, por mais que se crie a confusão, será muito difícil de escapar do desgaste provocado pela gravidade da crise econômica, da qual o preço do combustível é apenas um importante componente.

Interessante observar como nos debatemos neste labirinto no momento em que a Colômbia troca de governo e o presidente eleito, Gustavo Petro, se dispõe exatamente a reduzir a dependência de combustíveis fósseis e caminhar para uma economia de baixo carbono.

E a Colômbia é logo ali: de Tabatinga (AM) a Leticia basta andar alguns metros. As preocupações, no entanto, distam milhares de quilômetros.

Seria, é claro, inadmissível não tratar do preço dos combustíveis neste momento. Todos os governos o fizeram. Mas o ideal é que isso fosse discutido com base técnica e com uma visão realista. Talvez por esse caminho se atenuasse o impacto no bolso de todos, principalmente os mais vulneráveis. Mas, num ano de eleição, além deste necessário movimento imediato, é preciso olhar para a frente.

Não podemos continuar agindo como se a gasolina fosse um combustível eterno. Nem acreditar que as estradas rodoviárias são as únicas que podem escoar produtos.

Está mais do que na hora de combinar esforços fundamentados para reduzir os preços, mas também as medidas de transição para um futuro de baixo carbono, em sintonia com os esforços para viabilizar a vida humana no planeta.

Limitar-se a neutralizar o preço da gasolina, com recursos limitados, é uma batalha de Sísifo. Hoje, o preço está alto porque há uma guerra; amanhã, se terminar a guerra, o preço pode aumentar porque crescerá o otimismo econômico. Sem contar com o fato de que bilhões de dólares estão sendo investidos numa economia menos poluente e qualquer estímulo ao uso do petróleo servirá, também, para neutralizar o que se gastou até agora.

Verdade é que a guerra embaralhou um pouco as tentativas de progresso. Há um impulso para produzir mais petróleo fora da Rússia; e a redução do gás que os alemães importavam os faz retroceder ao consumo de carvão.

Mas a janela que se abriu com governos voltados para o futuro, como é o caso do Chile e o da Colômbia, pode indicar uma etapa na América Latina.

No caso colombiano, o esforço de realizar a transição para a economia de baixo carbono pode abrir possibilidades de cooperação continental.

Sem contar o fato de que, ao lado da questão energética, um outro tema nos aproxima não só dos colombianos, como de outros vizinhos: a Amazônia, com seus grandes desafios de preservação, sustentabilidade e segurança, diante do poderio do crime organizado.

Tanto a economia de transição para o baixo carbono como o desenvolvimento sustentável da Amazônia são grandes avenidas de oportunidade. Temas bem maiores do que um único e, até o momento, inútil esforço para baixar o preço do petróleo.

O desespero de Bolsonaro o leva a se perder em iniciativas tão estúpidas como a de uma CPI da Petrobras. A oposição não pode acompanhá-lo nesse abismo.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo,  em 24.06.22


Bolsonaro quer controlar as eleições

Ministérios da Defesa e da Justiça reivindicam autoridade para fiscalizar eleições, atribuição exclusiva da Justiça Eleitoral; ingerência desse tipo é motivo para impeachment

É absolutamente inaceitável a campanha de Jair Bolsonaro contra as eleições. Ele não apenas difunde inverdades contra o processo eleitoral, como vai colocando as instituições, uma a uma, a serviço do seu intento de difamação das urnas eletrônicas e da Justiça Eleitoral. Antes, envolveu o Ministério da Defesa. Agora, incluiu o Ministério da Justiça e a Polícia Federal.

Segundo a Constituição, as eleições são assunto da Justiça Eleitoral. Tal é a importância para o regime democrático dessa exclusividade de competência que o texto constitucional traz uma disposição drástica: “São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), salvo as que contrariarem esta Constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança”. Ou seja, a Justiça Eleitoral tem a última palavra, salvo em caso de matéria constitucional, a cargo do Supremo Tribunal Federal (STF).

No entanto, Jair Bolsonaro quer ter a última palavra sobre as eleições. Quer ditar não apenas as regras do sistema de votação – competência do Congresso –, como também o resultado eleitoral – definido pelo eleitor nas urnas e contabilizado pela Justiça Eleitoral. Em seu intento antidemocrático, vale-se da disseminação da desconfiança, numa tática escandalosamente golpista.

As Forças Armadas sempre colaboraram com a Justiça Eleitoral, tanto na logística e segurança das eleições como em questões técnicas. Por exemplo, o desenvolvimento da urna eletrônica contou com o auxílio de militares. No entanto, até o governo de Jair Bolsonaro, era impensável – uma vez que rigorosamente inconstitucional – que as Forças Armadas fizessem demandas públicas sobre a Justiça Eleitoral. Ou, como Jair Bolsonaro aventou em maio, pudessem realizar uma contabilidade paralela dos votos.

Em vez da colaboração cordial com a Justiça Eleitoral, o governo de Jair Bolsonaro deseja impor uma dinâmica de confronto entre Ministério da Defesa e TSE. Convidadas, as Forças Armadas não quiseram participar de um teste público de segurança da urna eletrônica. Na reunião da Comissão de Transparência do TSE, o representante do Ministério da Defesa nem sequer abriu a câmera. No entanto, o titular da pasta, general Paulo Sérgio Nogueira, enviou no dia 20 de junho um inusitado e inconstitucional ofício ao TSE comunicando que encaminhará técnicos militares para atuarem como representantes das Forças Armadas na fiscalização das urnas eletrônicas. Não cabe às Forças Armadas fiscalizar eleições, como também não lhes cabe fiscalizar o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo. Não é demais lembrar que o Código Penal e a Lei do Impeachment definem como crime ações de ingerência no processo eleitoral.

Para piorar, o governo Bolsonaro envolveu o Ministério da Justiça e a Polícia Federal na sua campanha contra as eleições, conforme revelou o jornal O Globo. No dia 17, o ministro da Justiça, Anderson Torres, comunicou ao TSE que participará, por meio da Polícia Federal, de todas as etapas de fiscalização e auditoria das urnas eletrônicas e de “sistemas e programas computacionais eleitorais”. Mais uma vez, o bolsonarismo tenta inaugurar uma relação de conflito onde até agora havia colaboração harmoniosa. A Polícia Federal sempre auxiliou a Justiça Eleitoral nos testes de segurança das urnas e dos softwares empregados. No ano passado, uma investigação da Polícia Federal concluiu que, desde a implantação das urnas eletrônicas, não houve ocorrência de fraude.

O ofício de Anderson Torres é ilegal e inconstitucional. Não está entre as atribuições do Ministério da Justiça confrontar o TSE, tampouco realizar auditoria independente das eleições, como se estivesse acima da Justiça Eleitoral. Certamente, Jair Bolsonaro tem todo o interesse em controlar o sistema eleitoral, por meio da pasta da Justiça ou da Defesa. Mas, como é lógico, em países democráticos, as eleições não ficam a cargo do Executivo.

Os limites foram ultrapassados por Bolsonaro há muito tempo. Ministério Público, Legislativo e Judiciário não podem se omitir na defesa da Constituição e das eleições.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 24.06.22

Hackers russos atacaram 42 países desde início da guerra

Segundo relatório da Microsoft, ataques miraram 128 organizações, e principais alvos foram computadores de governos da Otan e aliados de Kiev. Quase 30% das invasões cibernéticas foram bem-sucedidas.

Desde o início da guerra na Ucrânia, hackers russos lançaram ataques cibernéticos contra 42 países que apoiam os ucranianos, como Estados Unidos, Polônia e as nações bálticas, revelou nesta quarta-feira (22/06) um relatório divulgado pela gigante de tecnologia Microsoft. Ao todo, 128 organizações foram atacadas.

De acordo com a empresa sediada no estado americano de Washington, os hackers tiveram como alvo principalmente computadores governamentais de países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Os Estados Unidos são o país mais afetado pelas tentativas de ataques cibernéticos.

A Microsoft não divulgou a lista completa dos 42 países afetados, mas indicou alguns, como os EUA, Polônia, Estônia, Letônia, Lituânia, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Suécia e Turquia.

Segundo o presidente da Microsoft, Brad Smith, as agências de inteligência russas aumentaram as tentativas de invasão de redes e atividades de espionagem contra países aliados da Ucrânia, desde o início da guerra, em 24 de fevereiro.

Ataques bem-sucedidos em quase um terço das tentativas

Metade das organizações visadas pelos hackers russos são agências governamentais. Os ataques também incluem think tanks, ONGs, empresas de serviços de tecnologias de informação, empresas de energia e outros fornecedores importantes de infraestrutura, destaca a Microsoft.

De todas as tentativas de ataque identificadas pela Microsoft desde o início da guerra, 29% foram bem-sucedidas, e em alguns casos os hackers obtiveram informações confidenciais das organizações visadas.

Segundo a empresa criadora do Windows, a estratégia russa no campo cibernético no âmbito da invasão da Ucrânia está sustentada em três pilares: ataques cibernéticos destrutivos contra países vizinhos, invasão de redes e espionagem fora do território ucraniano, e operações digitais para ganhar influência em todo o mundo.

O relatório também indicou que, no início da guerra, a Rússia realizou ataques cibernéticos contra a infraestrutura digital do governo da Ucrânia. Kiev conseguiu, porém, impedir esses ataques graças principalmente a medidas de precaução. Uma semana antes da invasão, a Ucrânia deixou de armazenar seus dados localmente em servidores nos prédios governamentais e optou por salvá-los na nuvem.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 23.06.22 (https://www.dw.com/pt-br/hackers-russos-atacaram-42-pa%C3%ADses-desde-in%C3%ADcio-da-guerra-na-ucr%C3%A2nia/a-62228862) cn/lf (AP, DPA, Lusa, ots)

Caso Milton Ribeiro é expressão genuína do bolsonarismo

Corrupção e nepotismo estão presentes em todas as esferas do bolsonarismo, inclusive no círculo íntimo do presidente. Prisão do ex-ministro só surpreende por ser a primeira. Bolsonaro e aliados pensam estar acima da lei.

Investigado por suspeita de corrupção passiva e tráfico de influência, Ribeiro foi preso pela PFFoto: Isac Nobrega/Planalto Presidencia/dpa/picture alliance

O bolsonarismo baseia sua legitimidade em narrativas que nada têm a ver com a realidade.

Há a alegação de que o bolsonarismo combate o comunismo. Qualquer pessoa com sentido político se questiona: que comunismo? Não há nenhum forte movimento comunista ou socialista no Brasil. O PT é um partido social-democrata, que não quer eliminar o capitalismo, mas restringir seus excessos negativos.

A segunda narrativa afirma que o bolsonarismo defende os valores cristãos. Aqui resta apenas a pergunta: a quais valores pregados por Cristo eles se referem? O direito ao porte de armas? O direito à tortura? O direito de ofender e ameaçar quem tem uma opinião diferente? Ou o direito de destruir o meio ambiente, ou seja, a criação de Deus?

O terceiro pilar do movimento foi, desde o início, a história de que eles estavam combatendo a corrupção. Bolsonaro e seus apologistas alegavam que não havia corrupção no seu governo. Essa era talvez a alegação mais atrevida, porque ela contradizia tão evidentemente a realidade. Já era possível se dar conta disso muito antes da prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, que é investigado por suspeita de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência.

Também não foi nenhuma surpresa Ribeiro ser um pastor evangélico e estar envolvido em negócios ilícitos do Ministério da Educação com outros pastores evangélicos. As grandes igrejas evangélicas – todas apoiadoras de Bolsonaro – são um refúgio de falsidade e manipulação. Elas apoiam Bolsonaro porque ele lhes garante privilégios como isenção de impostos, por exemplo. Não surpreende o fato de terem sido registradas dezenas de visitas dos pastores que foram presos agora ao Palácio do Planalto.

Primeira prisão tardia

A prisão de Ribeiro é surpreendente apenas devido ao fato de a Polícia Federal (PF) não ter batido à porta de um ministro de Bolsonaro muito antes – do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, por exemplo. O general foi responsável pelo caos na crise da covid-19 e pelos escândalos de corrupção na compra de vacinas contra o coronavírus. Com Pazuello, a promessa de uma atuação técnica dos militares no governo foi de vitrine à vidraça. Ao menos sete militares que estavam no comando de cargos-chave da Saúde foram citados na CPI da Pandemia por suposto envolvimento em irregularidades.

Quando Bolsonaro fala de seu governo "livre de corrupção", ele parece sempre se esquecer de seus filhos, que cumprem tarefas dentro do governo. Os três mais velhos estavam e estão na mira do Ministério Público, e agora o mais novo também é investigado. Embora Bolsonaro enfatize que seus filhos devem responder por seus próprios erros, ele mandou trocar a Superintendência da PF no Rio de Janeiro devido às investigações contra eles.

Em agosto de 2021, o governo até decretou sigilo centenário de informações sobre o presidente e seus filhos após pedidos feitos pela imprensa. Essa medida se somava a outras ações adotadas por Bolsonaro para reduzir a transparência pública. Só faz isso um governo que tem algo a esconder, e não um que combate a corrupção.

A interferência de Bolsonaro na PF levou à renúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Até sua renúncia, os bolsonaristas consideravam Moro um herói na luta contra a corrupção. Desde então, ele passou a ser um "traidor". O bolsonarismo nunca foi sobre a luta contra a corrupção, mas um projeto nepotista de poder e de destruição do Estado. Uma pediatra bolsonarista me disse há pouco tempo que Moro tinha simplesmente muita ambição.

Com a mesma facilidade, bolsonaristas defendem o casamento com o Centrão – a personificação de corrupção, desvio de recursos públicos e, principalmente, estagnação política. Fica claro que o bolsonarismo é um movimento sem princípios. Quem proclama mudar o sistema político corrupto do Brasil, mas em seguida abraça Fernando Collor e deixa passar um monte de emendas secretas para garantir a reeleição de deputados do Centrão, trai os próprios eleitores.

Irregularidades por todos os lados

Casos de nepotismo e irregularidades pautam este governo. Um outro exemplo? O caso Queiroguinha. O filho do atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, atuou em processos destinados à liberação de recursos públicos do Ministério da Saúde. Queiroga agora pode ser investigado por suspeita de improbidade administrativa e infração à legislação eleitoral.

Há, além de tudo isso, o aumento dos gastos com o cartão corporativo do presidente às vésperas da eleição, que atingiram o valor de R$ 1,2 milhão por mês. Desde 2019, ano do início do governo Bolsonaro, as faturas mensais têm ficado cada vez mais altas. Isso parece um uso responsável do dinheiro dos contribuintes, ou já é peculato?

O bolsonarismo, cujo lema é lei e ordem, é um movimento que acredita estar acima da lei. Isso começa pelos garimpeiros e madeireiros ilegais na Amazônia, que justificam suas atividades literalmente afirmando que o presidente permitiu e, até mesmo, exigiu. (Bolsonaro mostrou a eles como se faz, quando em 2010 foi pego pescando em uma área de proteção e recebeu do Ibama uma multa de mais de R$ 10 mil. A reação do presidente foi exonerar o servidor que lhe tinha multado e nunca pagou a multa.)

A coisa toda continua com tipos como Daniel Silveira, que simplesmente ignora o STF e desrespeita a lei sem precisar realmente prestar contas por isso. E termina no gabinete e no clã Bolsonaro, que parece achar ser imune à Justiça por o presidente ter colocado em posições decisivas do aparelho de segurança pessoas de sua confiança.

Espera-se que o caso Milton Ribeiro mude essa postura. Senão há de fato que se temer que Bolsonaro e seu movimento não reconheçam sua derrota nas eleições em outubro. Eles simplesmente não se sentem sujeitos às regras.

Philipp Lichterbeck, o autor deste artigo, queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.Philipp Lichterbeck Colunista e correspondente da DW Brasil.@Lichterbeck_Rio. O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW. (Publicado originalmente em https://www.dw.com/pt-br/caso-milton-ribeiro-%C3%A9-express%C3%A3o-genu%C3%ADna-do-bolsonarismo/a-62238201 - 23.06.22).

"Fomos enganados", dizem militares russos detidos na Ucrânia

Russos capturados aguardam eventual troca por soldados ucranianos. Em entrevista à DW, eles contam sobre como foram parar no front, suas impressões da guerra, as condições na prisão e as esperanças de voltar para casa.

Num centro de detenção na Ucrânia, o segundo andar é reservado aos presos de guerra russos. Eles são mantidos separados dos demais "para sua própria proteção", segundo consta.

Após uma solicitação jornalística ao Serviço Penal Nacional ucraniano, a DW recebeu permissão para conversar com os detentos, como primeira representante da mídia, sob a condição de não revelar sua localização exata nem mostrar seus rostos, por motivos de segurança.

As filmagens no local foram exclusivas e só foi possível falar com os russos que não sejam acusados de crimes de guerra nem estejam respondendo por nenhuma ação judicial. Para entrevistá-los, seria necessária uma autorização adicional dos investigadores ou da Promotoria Pública.

"Fomos enganados"

Numa das celas estão sete homens de diversas idades. A visita de jornalistas não os surpreende: segundo eles, representantes das Nações Unidas ou da Cruz Vermelha passam por lá todas as semanas.

Durante a entrevista, funcionários do presídio acompanharam a equipe de reportagem, que pôde escolher seus interlocutores. Os quatro prisioneiros que concordaram em ser entrevistados afirmaram ser soldados profissionais e nada ter a esconder.

"Sinceramente: nós fomos enganados", comenta Roman, da cidade de Vyborg. "De início nos disseram que íamos cuidar de coisas humanitárias. Mas eu fui imediatamente jogado no front." Em combates na região de Kharkiv ele foi ferido, o exército ucraniano o levou consigo e lhe prestou cuidados médicos.

Artyom, em contrapartida, frisa que participou por vontade própria da "operação militar especial" – na terminologia adotada oficialmente por Vladimir Putin – contra a Ucrânia. Atendendo a um anúncio na internet, ele foi mobilizado para a província de Donetsk, sob controle de separatistas pró-russos.

Em poucos dias aprendeu a dirigir um tanque blindado T-72, sendo então enviado em direção a Zaporíjia. No entanto seu veículo foi destruído e ele, capturado pelo ucraniano Batalhão Azov. Lá recebeu comida e cigarros, "fascistas, não vi nenhum", comenta.

Indagado por que foi para a Ucrânia, Artyom explica: "Na televisão contam que supostamente lutamos por uma boa causa, mas na verdade não é nada disso. Meus olhos só se abriram aqui." Ele considera o exército russo "saqueadores e assassinos".

Condições de cárcere são aparentemente brandas, com saídas e acesso a livros (Foto: Anna Fil/DW)

"Ninguém nos disse para onde estávamos indo"

A cela dos russos está equipada com móveis antigos, é estreita, mas limpa. Pratos de plástico estão sobre a mesa comum, cada um tem o seu. As colheres e garfos, contudo, são de metal. Segundo os guardas, para os presos normais também os talheres são de plástico, mas com os de guerra é mais fácil, eles não são agressivos e só estão esperando por uma troca de prisioneiros.

Um detento ucraniano serve o almoço, sob observação de um vigia. Borscht e pirão de trigo-sarraceno são servidos através de aberturas nas portas de cada cela. O desjejum foi angu de milho com carne. Segundo o cardápio pendurado no corredor, são servidas três refeições por dia. Além disso, os internos podem passear e diariamente tomar banho.

As mentiras que viralizaram sobre a guerra na Ucrânia

Numa outra cela encontram-se três jovens, por volta dos 20 anos de idade. Na mesa ao lado das camas está uma pilha de livros. Eles dizem gostar de ler histórias policiais e romances. Dmitri, de 20 anos, diz não ter sabido que em 24 de fevereiro iria de Belgorod, na Rússia, para a Ucrânia.

"Ninguém nos disse para onde estávamos indo. Só quando já estávamos em território ucraniano e vimos letreiros e bandeiras, é que entendemos. Eu perguntei ao comandante o que a gente estava fazendo ali, e a resposta foi que não era para fazer perguntas inúteis." Quando, em 27 de fevereiro, seu tanque foi bombardeado, próximo a Pryluky, na região de Chernihiv, Dmitri se rendeu aos ucranianos.

"Vocês não têm nada que fazer aqui!"

Durante a entrevista com ele e dois outros, estavam presentes um vigia, um psicólogo da instituição penal e outros prisioneiros de guerra. A impressão pessoal dos jornalistas foi que a presença dos funcionários não influenciava a narrativa dos entrevistados, nem sua vontade de falar. Os vigias não ficavam escutando: mantiveram a distância e não fizeram qualquer pressão.

Com Oleg, da Carélia, a DW conversou a dois, numa sala separada. Ele contou que prorrogara em março seu contrato com as Forças Armadas russas. "Eu acreditei nas notícias na TV de que a gente viria para ajudar, de que aqui havia nacionalistas matando e torturando seu próprio povo."

Mas quando as tropas russas entraram na região de Kharkiv, ele não viu um único nacionalista: "Quando chegamos nos lugarejos, as pessoas nos diziam, bem diretamente: 'Vão embora! Vocês não têm nada que fazer aqui!'"

Quando Oleg assinou o contrato, lhe prometeram um treinamento, mas também que ele não seria mobilizado para o front avançado. Após três dias, contudo, foi enviado para o cerco à metrópole de Kharkiv.

Sua esquadra tentou retornar à Rússia, diz ele, mas os comandantes proibiram. Contudo o contato com o comando se rompeu, e pouco mais tarde a unidade foi capturada pelo exército ucraniano.

Entrevistados se dizem todos soldados profissionais (Foto: Anna Fil/DW)

Pode-se confiar nos prisioneiros de guerra?

Todos os prisioneiros russos com que a DW conseguiu falar afirmam lamentar ter participado da invasão, e que não atiraram em residentes pacíficos de lugarejos e cidades. Até agora os investigadores ucranianos não apresentaram provas de que eles tenham cometido crimes de guerra, e eles já se submeteram a exame com um detetor de mentiras.

Os funcionários do presídio contam que só perante o detetor de mentiras o soldado russo Vadim Shishimarin, que também ficou detido no local, confessou ter atirado e matado um civil na região de Sumy. Em 23 de maio, um tribunal ucraniano o condenou à prisão perpétua, no primeiro processo contra um prisioneiro de guerra russo no país.

Na conversa com a DW, nenhum dos detentos se queixou de más condições de prisão ou de tratamento desumano. "Todo dia nos perguntam se precisamos de alguma coisa. Se é possível, nos dão. A comida é equilibrada", relata Roman.

Segundo o Ministério da Justiça da Ucrânia, cada prisioneiro custa por mês cerca de 3 mil grívnias (95 euros ou R$ 517), em alimentos, roupas, artigos de higiene, além de água e eletricidade. A estes se acrescentam medicamentos e equipamento médico, além de custos com pessoal.

A vice-ministra da Justiça Olena Vysotska assegurou à DW que esses gastos são justificados, já que as condições de prisão devem obedecer a Convenção de Genebra. Além disso, precisa-se de prisioneiros de guerra vivos e saudáveis para trocar com os ucranianos capturados pela Rússia.

Maus tratos contra militares ucranianos e russos

Segundo a diretora da comissão da Organização das Nações Unidas para os direitos humanos na Ucrânia, Matilda Bogner, em geral as condições de cárcere para os presos de guerra russos observadores são satisfatórias. Porém observadores da ONU receberam informações de que soldados foram maltratados e torturados após a captura.

Há também indicações de que militares ucranianos presos na Rùssia e nos territórios sob controle russo seriam torturados logo após sua captura. "Faltam alimentos e higiene, o tratamento por parte dos guardas é bruto", explica Bogner. A ONU insta ambos os lados a tratarem com humanidade seus prisioneiros de guerra e a investigarem imediata e eficazmente todos os supostos casos de tortura e maus tratos.

Não há dados oficiais sobre quantos soldados russos estão detidos na Ucrânia: seu número muda constantemente, devido às trocas regulares. "A esperança é a última que morre", consola-se Dmitri, que também espera ser trocado. Depois de três meses, o rapaz de 20 anos só quer voltar para casa, e não pretende nunca mais servir o Exército.

Anna Fil para a Deutsche Welle Brasil. Publicado originalmente em 22.06.22 (https://www.dw.com/pt-br/fomos-enganados-dizem-militares-russos-detidos-na-ucr%C3%A2nia/a-62222574)