quinta-feira, 9 de junho de 2022

Mais Brasília, menos Brasil

Iniciativas como o PLP n.º 18/2022 evidenciam os riscos e instabilidades inerentes ao atual arranjo federativo brasileiro.

A alta vertiginosa dos preços dos combustíveis e as respostas do governo federal ao problema, que de fato repercute de muitas maneiras sobre a população, trazem à tona, mais uma vez, os conflitos e as contradições que permeiam o atual arranjo federativo brasileiro. É sintomático que um problema conjuntural tenha desencadeado uma disputa interminável opondo Estados e União. Seu último capítulo tem por roteiro o Projeto de Lei Complementar (PLP) n.º 18/2022, discutido no Congresso Nacional com o objetivo de reduzir o ICMS incidente sobre combustíveis: uma nova versão do mais Brasília, menos Brasil.

O mundo vem lidando com um forte aumento do preço dos combustíveis depois que o petróleo atingiu cotações vistas pela última vez em 2008. Naquele ano, os contratos futuros do barril do Brent – o petróleo extraído do Mar do Norte e comercializado na Bolsa de Londres – chegaram a custar US$ 139. Hoje, estão valendo US$ 119, só que agora num mundo pós-pandemia e em guerra. Neste contexto inflacionário, o Brasil e diversos países discutem medidas para evitar que essa alta nos preços do petróleo chegue da mesma forma aos combustíveis.

Na Europa, há países criando impostos sobre ganhos de empresas para financiar subsídios à energia, como a Finlândia. Outras nações congelam temporariamente os preços, como a França, enquanto outras promovem subsídios para famílias de baixa renda, caso do Reino Unido. Portugal chegou a criar uma espécie de voucher para compra de combustível com recursos do orçamento provenientes do aumento da arrecadação de impostos sobre combustíveis.

Nos Estados Unidos, os governos estaduais anunciam a suspensão temporária de impostos. A medida vem sendo chamada de Tax Holiday – feriado sem impostos. Ao menos cinco Estados – Nova York, Connecticut, Flórida, Geórgia e Maryland – anunciaram suspensão temporária dos impostos estaduais sobre combustíveis.

No Brasil, estamos assistindo a um conflito federativo entre a União e as demais unidades federativas. De um lado, temos parte do Congresso Nacional e o Poder Executivo federal unidos na missão de invadir a autonomia fiscal dos Estados com o objetivo de reduzir, na marra, o ICMS sobre combustíveis. Do outro lado, os governos estaduais se opõem à medida tendo em vista os impactos fiscais e os riscos de subfinanciamento dos serviços públicos nas áreas da saúde, da educação e da segurança

Para entender o problema, é importante ter claro quem faz o que no federalismo fiscal brasileiro. Os dados mostram, por um lado, que 100% do regime geral da previdência social, 95% da assistência social e 94% dos subsídios são bancados pelo orçamento federal. Por outro lado, os Estados e os municípios são responsáveis pela execução orçamentária de 67,8% da saúde, de 72% da educação e de 88,7% da segurança pública. Vale, também, dizer que 83,6% das compras governamentais são realizadas pelos governos subnacionais, gerando empregos e renda no País.

Também é preciso ter clareza da importância do ICMS na arrecadação tributária dos Estados e dos municípios. Trata-se do principal imposto do País, representando 21% da carga tributária total. Representa 80% da arrecadação tributária dos Estados, que repartem 25% da arrecadação com os municípios. Estimativas que circulam pelos corredores do Congresso mostram que o PLP 18 pode provocar perdas fiscais anuais para os Estados em torno de R$ 100 bilhões. Somente São Paulo perderia cerca de R$ 15 bilhões por ano.

O conflito federativo decorrente da crise dos combustíveis deve ser entendido nesse contexto. De um lado, a União tenta reduzir o ICMS sobre combustíveis mediante alteração de leis federais, valendo-se de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). O propósito é conter a alta de preços que alimenta a inflação, objeto de atuação do Banco Central, e afeta todos os segmentos populacionais. De outro, Estados e municípios veem sua arrecadação subitamente erodida por decisões do governo federal, com impacto direto nos setores de saúde e educação, cujo custeio é condicionado pelas receitas de ICMS.

Iniciativas como o PLP n.º 18/2022 evidenciam os riscos e instabilidades inerentes ao atual arranjo federativo brasileiro, em que questões conjunturais põem os entes em rota de colisão. Comparar, sem qualificar, o comportamento dos Estados brasileiros ao de seus congêneres americanos, que vêm reduzindo a tributação de combustíveis na crise, só confunde o debate e agrava o problema. É que, no federalismo americano, o governo federal e o Congresso Nacional não podem invadir a autonomia fiscal dos governos estaduais. Lá funciona para valer o mais América, menos Washington.

Ironicamente, vemos o Ministério da Economia abraçar a tese do “mais Brasília, menos Brasil” às vésperas das eleições deste ano, apesar de a experiência internacional mostrar que existem outros caminhos. Abandonaram a ladainha do “mais Brasil, menos Brasília” usada como mantra nas eleições de 2018, quando lá defenderam a tese da maior autonomia para Estados e municípios.

José Serra, o autor deste artigo, é Senador pelo PSDB-SP. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em  09.06.22.

O Brasil foi abandonado

Bolsonaro e seus sócios do Centrão largaram o País à própria sorte para cuidar de seus interesses eleitorais. Resultado: 33 milhões de brasileiros com fome

O País voltou a ser assombrado pelo espectro da fome em uma escala que não se via desde a década de 1990. De acordo com os dados do 2.º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, divulgados ontem, são 33,1 milhões de brasileiros que dormem e acordam todos os dias sabendo que não terão o que comer. Além desse inacreditável contingente de nossos concidadãos vivendo em condições sub-humanas, equivalente às populações da Bélgica, de Portugal e da Suécia somadas, mais da metade da população brasileira (58,7%) está submetida a algum grau de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave).

Aí está a dimensão do retrocesso patrocinado por um dos piores presidentes da história brasileira. O nome de Jair Bolsonaro estará indelevelmente ligado à degradação da dignidade de milhões de seus governados, seja por sua comprovada incapacidade moral e administrativa para o cargo, seja por sua notória aversão ao trabalho. A fome já seria inadmissível mesmo que fosse algo localizado; sendo verificada em larga escala, mesmo em um país em que há fartura de alimentos, trata-se de uma atrocidade.

Bolsonaro e seus sócios do Centrão no Congresso abandonaram o País à própria sorte porque não estão interessados no bem-estar dos brasileiros a não ser na exata medida de seus objetivos eleitoreiros. Por essa razão, há profunda desconexão entre as prioridades da atual cúpula do Estado e as da esmagadora maioria dos cidadãos – a começar pela mais primária delas, a de fazer três refeições por dia.

Um governo que fosse digno do nome, com apoio de um Legislativo igualmente cioso das necessidades mais prementes daqueles a quem cumpre representar, estaria empenhado dia e noite em garantir o bem-estar de seus governados antes de qualquer coisa, proporcionando-lhes as condições mínimas para uma vida digna por meio de políticas públicas responsáveis, bem elaboradas e implementadas. Mas não é isso o que acontece. 

Desde que assumiu o cargo, Bolsonaro só tem olhos para a reeleição. Nunca governou de fato o País nem jamais demonstrou interesse em fazê-lo. Populista, toma decisões sempre de supetão e sem qualquer planejamento, para responder a questões imediatas, deixando para depois ou simplesmente ignorando problemas de longo prazo. Assim chegamos à fome.

Os presidentes das duas Casas Legislativas, por sua vez, também parecem estar mais preocupados com a recondução aos cargos na próxima legislatura do que em aliviar o padecimento real da população. Só isso explica a chancela às teses estapafúrdias de Bolsonaro, como essa obsessão em torno dos combustíveis, como se a causa raiz para o aumento do número de brasileiros passando fome do ano passado para cá (mais 14 milhões de pessoas) fosse o preço do litro do diesel e da gasolina.

A fome que dói nesses tantos milhões de brasileiros não decorre diretamente da pandemia de covid-19, da delinquência de Vladimir Putin ao invadir a Ucrânia nem da alta dos preços dos combustíveis. A fome é o resultado mais perverso da acefalia governamental do País há quase quatro anos. É corolário desse arranjo macabro engendrado por um presidente da República extremamente fraco que, para não ser ejetado do poder, se viu obrigado a vender sua permanência no cargo a oportunistas no Congresso, franqueando-lhes nada menos que o controle sobre parte do Orçamento sem a necessidade de prestar contas.

A pusilanimidade do presidente da República, portanto, explica muita coisa. Mas, em defesa de Bolsonaro, é bom dizer não se teria chegado ao atual estado de coisas inconstitucional sem a colaboração decisiva de parte considerável da classe política, que ignora o que vem a ser interesse público. 

Conforme a Constituição, a “dignidade da pessoa humana” é fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1.º, III), e um dos objetivos dessa República é “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (artigo 3.º, III). Além disso, o artigo 6.º cita a “alimentação” como um dos direitos sociais. Para o consórcio político que sustenta o bolsonarismo, essas determinações são letra morta. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 09.06.22

A maior surpresa da guerra da Ucrânia pode cair no colo de Putin, analisa Thomas Friedman:

A guerra na Ucrânia ainda trará consequências inesperadas e poderá reduzir a fonte do poder russo

Residentes de Perechyn se ajoelham para a passagem do cortejo fúnebre do soldado ucraniano Vasyl Herych, de 31 anos, morto pelas forças russas  (Foto: Serhii Hudak/Reuters)

Aqui vai um fato surpreendente: num momento em os americanos não conseguem concordar virtualmente a respeito de nada, existe uma consistente maioria a favor de conceder ajuda econômica e militar à Ucrânia em sua luta contra o esforço de Vladimir Putin de varrer o país do mapa. Isso é duplamente surpreendente se considerarmos que a maioria dos americanos não conseguia nem sequer localizar a Ucrânia no mapa poucos meses atrás, já que se trata de um país com o qual nunca tivemos nenhuma relação especial.

Mas sustentar esse apoio será duplamente importante, já que a guerra na Ucrânia se assenta numa fase tipo “sumô” – com dois lutadores gigantes, cada um tentando empurrar o outro para fora do ringue, e nenhum deles disposto a desistir nem capaz de vencer.

Ainda que eu espere alguma erosão, à medida que as pessoas percebam o quanto esta guerra está elevando os preços da energia e dos alimentos globalmente, ainda tenho esperança de que uma maioria de americanos segurará as pontas até que a Ucrânia seja capaz de recuperar sua soberania militarmente ou de alcançar um acordo de paz decente com Putin. Meu otimismo no curto prazo não decorre da leitura de pesquisas, mas da leitura da história – em particular, do novo livro de Michael Mandelbaum The Four Ages of American Foreign Policy: Weak Power, Great Power, Superpower, Hyperpower (As quatro eras da política externa americana: potência menor, grande potência, superpotência, hiperpotência).

Mandelbaum, professor emérito de política externa americana na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins (escrevemos um livro juntos em 2011), argumenta que, apesar de as atitudes dos Estados Unidos em relação à Ucrânia poderem parecer absolutamente inesperadas e inéditas, elas não são nada disso. Consideradas no contexto do arco da política externa americana – que este livro narra de maneira envolvente pelas lentes das quatro relações de poder que os EUA mantiveram com o mundo – essas atitudes se mostram, na realidade, bastante familiares e previsíveis. Tanto que, se Putin e o presidente da China, Xi Jinping, lessem o livro, ambos se beneficiariam.

Ao longo da história americana, nosso país oscilou entre duas abordagens gerais em relação a política externa, explicou Mandelbaum em entrevista ecoando um assunto crucial em seu livro: “Uma delas dá ênfase ao poder, ao interesse nacional e à segurança – e é associada a Theodore Roosevelt. A outra coloca a tônica na promoção dos valores americanos – e identifica-se com Woodrow Wilson.”

Para autoridades americanas, está cada vez mais óbvio que o comportamento de Putin não é tão previsível quanto já foi no passado

As entrelinhas me sussurraram: ele está preocupado por ter conseguido unir novamente o Ocidente mas não ser capaz de unir novamente os EUA

Invasão da Ucrânia ecoa avanço de Hitler sobre a Europa

Invasão russa à Ucrânia virou um terremoto europeu e cada vez mais é vista como uma reprise do século 20.

Ainda que essas duas visões de mundo com frequência se rivalizem, a coisa nem sempre foi assim. E quando uma questão de política externa desafia tanto nossos interesses quanto com nossos valores, ela aciona uma resposta certeira, capaz de dispor de apoio público amplo, profundo e duradouro.

“Isso aconteceu na 2.ª Guerra e na Guerra Fria e parece estar acontecendo em relação à Ucrânia”, notou Mandel

Mas a enorme questão é: Por quanto tempo? Ninguém sabe, pois as guerras seguem rumos tão previsíveis quanto imprevisíveis.

O caminho provável em relação à Ucrânia é que, à medida que os custos se elevem, a discórdia aumentará – tanto nos EUA quanto entre nossos aliados europeus – sob a argumentação de que nossos interesses e valores estão mal equacionados na Ucrânia.

A dissidência argumentará que não somos capazes nem de arcar economicamente com o apoio à Ucrânia até o ponto em que o país vença totalmente a guerra – por exemplo, expulsando o Exército de Putin de cada centímetro da Ucrânia – nem estrategicamente, porque, afrontado por uma derrota total, Putin poderia apelar para armas nucleares.

Já foi possível detectar sinais nesse sentido no discurso do presidente da França, Emmanuel Macron, no sábado, quando o líder francês declarou que a aliança ocidental “não deve humilhar a Rússia” – uma fala que suscitou uivos de protesto da Ucrânia

Comprometido com a vitória

“Todas as guerras na história dos EUA provocaram dissidência, incluindo a Guerra de Independência, quando os que discordavam se mudaram para o Canadá”, explicou Mandelbaum. “O que nossos três maiores comandantes-chefes – George Washington, Abraham Lincoln e Franklin D. Roosevelt – tiveram em comum enquanto presidentes em tempo de guerra foi sua habilidade em manter o país comprometido com a vitória, apesar da discórdia.”

Isso será um desafio também para o presidente Joe Biden, especialmente quando não existe nenhum consenso entre os aliados, nem na Ucrânia, a respeito do que seria a “vitória” nesta guerra: será alcançar o objetivo atualmente declarado por Kiev de recuperar cada centímetro de território ocupado pela Rússia? Será possibilitar à Ucrânia, com a ajuda da Otan, aplicar um castigo tão severo ao Exército russo até que Putin seja forçado a um acordo que resulte em concessões, e ele continue ocupando território? E se Putin decidir que não quer nenhuma concessão – e, em vez disso, quiser que a Ucrânia sofra uma morte lenta e dolorosa?

Nas duas guerras mais importantes da nossa história, a Guerra Civil e a 2.ª Guerra, afirmou Mandelbaum, “nosso objetivo foi a vitória total sobre o inimigo”. “O problema para Biden e nossos aliados é que nosso objetivo não pode ser uma vitória total sobre a Rússia, pois isso poderia provocar uma guerra nuclear. Mas, ainda assim, algo parecido com uma vitória total pode ser a única maneira de impedir Putin de fazer a Ucrânia sangrar eternamente.”

O que nos leva ao imponderável: depois de mais de 100 dias de combates, ninguém é capaz de prever como esta guerra acabará. Ela começou na cabeça de Putin e provavelmente acabará apenas quando Putin disser que quer que ela acabe. Putin provavelmente sente que está dando as cartas e o tempo está ao seu lado, pois é capaz de aguentar mais castigo do que as democracias ocidentais. Mas grandes guerras são coisas estranhas. Seja qual for o modo que elas tenham começado, elas podem acabar de maneiras totalmente imprevistas.

Permitam-me oferecer um exemplo por meio de uma das citações favoritas de Mandelbaum, da biografia que Winston Churchill escreveu a respeito de seu grande ancestral, o Duque de Marlborough, publicada nos anos 30: “Grandes batalhas, vencidas ou perdidas, alteram totalmente o curso dos eventos, criam novos padrões de valores, novos humores, novos ambientes em exércitos e nações, aos quais todos têm de se conformar”.

Churchill quis dizer, segundo argumenta Mandelbaum, que “guerras são capazes de mudar o curso da história, e grandes batalhas com frequência decidem guerras. A batalha entre Rússia e Ucrânia pelo controle da região no leste ucraniano, conhecida como Donbas, tem potencial para ser essa batalha”.

E de muitas maneiras. Os 27 países da União Europeia, nossa principal aliada, constituem de fato o maior bloco econômico do mundo. Eles já se movimentaram decisivamente para romper laços comerciais e investimentos na Rússia. Em 31 de maio, a UE concordou em cortar 90% de suas importações de petróleo da Rússia até o fim de 2022. Isso não castigará apenas os russos, impingirá também um castigo severo sobre consumidores e industriais europeus, que já pagam valores astronômicos por gasolina e gás natural.

Mas tudo isso ocorre num momento em que fontes renováveis de energia, como solar e eólica, tornam-se competitivas economicamente em relação aos combustíveis fósseis – e num momento em que a indústria automobilística global eleva significativamente a escala de produção de veículos elétricos e novas baterias.

No curto prazo, nada disso é capaz de suprir a queda nos fornecimentos russos. Mas se tivermos um ou dois anos de preços astronômicos de gasolina e combustível para nos aquecer por causa da guerra na Ucrânia, “veremos uma aplicação massiva do investimento de fundos mútuos e da indústria em fabricação de veículos elétricos, melhorias em redes de transmissão de eletricidade e baterias de longo armazenamento, o que poderia livrar todo o mercado de qualquer dependência de combustíveis fósseis, em favor das fontes renováveis”, afirmou Tom Burke, diretor do Third Generation Environmentalism (E3G, ou Ambientalismo de Terceira Geração), um instituto de pesquisas ambientais. “A guerra na Ucrânia já está forçando todos os países e empresas a avançar dramaticamente com seus planos de descarbonização.”

De fato, um relatório publicado na semana passada pelo Centro para Pesquisa sobre Energia e Ar Limpo e pelo instituto Ember, que analisa o setor de energia globalmente e tem como base o Reino Unido, constatou que 19 dos 27 países da UE “elevaram significativamente suas ambições em termos de acionamento de energia renovável desde 2019, enquanto decresceram a geração planejada sobre combustíveis fósseis até 2030, para se proteger de ameaças geopolíticas”.

Um artigo publicado recentemente na revista McKinsey Quarterly notou: “As guerras navais do século 19 aceleraram a transição de embarcações movidas pelo vento para os navios movidos a carvão. A 1.ª Guerra ocasionou a transição do carvão para o petróleo. A 2.ª Guerra introduziu a energia nuclear como relevante fonte de eletricidade. Em todos esses casos, inovações de guerra fluíram diretamente para a economia civil e engendraram uma nova era. A guerra na Ucrânia é diferente no sentido de que não está ocasionando a inovação energética em si, mas está evidenciando sua necessidade. Ainda assim, o possível impacto poderia ser igualmente transformador”.

Que baita surpresa… Se esta guerra não destruir o mundo inadvertidamente, poderá inadvertidamente ajudar a preservá-lo. E, com o tempo, fazer encolher a principal fonte de dinheiro e poder de Putin. Não seria irônico? 

Thomas Friedman, o autor deste artigo, é colunista do The New York Times e vencedor de três Prêmios Pulitzer. Publicado n'O Estado de São Paulo, em 09.06.22. (Tradução de Guilherme Russo).

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Presidentes fiéis à sua história

Mais do que escolhas ideológicas, o exercício do poder parece refletir a experiência de vida de cada um.

O antigo adágio de inspiração aristotélica, operari sequitur esse (o atuar segue o ser), continua plenamente vigente na política brasileira. Ao menos em relação aos presidentes da República neste século, não há nenhum motivo para surpresa. Todos eles – Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro, até aqui – foram rigorosamente coerentes com sua história de vida prévia ao cargo. O poder não mudou nenhum deles.

Mais do que escolhas político-ideológicas, o modo como cada um exerceu o poder parece refletir, com surpreendente exatidão, sua respectiva formação profissional e humana, sua experiência de vida, sua bagagem cultural. Sociólogo, o presidente Fernando Henrique teve uma especial percepção dos temas de longo prazo do País e fez deles a prioridade de seu governo. É um perfil de governante muito necessário, cujos frutos podem ser observados décadas depois, mas raro em democracias de massa. Não é nada fácil que a maioria do eleitorado abrace uma proposta de governo não imediatista. Mais um mérito, portanto, do Plano Real: não apenas acabou com a inflação, como forneceu as condições políticas para a eleição de alguém cujo olhar tende a ver além do próprio mandato.

Líder sindical, o presidente Lula teve uma excepcional percepção das questões com impacto imediato na vida da população, bem como dos interesses políticos vigentes no período. Soube construir, tal como havia feito durante toda a sua vida sindical, um governo de composição, agregando forças políticas muito díspares. Sendo a política não apenas futuro, mas presente, com Lula, o cidadão sentiu-se cuidado pelo governo federal de uma forma nova.

Economista de matriz desenvolvimentista e com uma vida dedicada a causas políticas, a presidente Dilma manifestou um raríssimo compromisso partidário no exercício do poder. No Palácio do Planalto, fez o que sempre havia feito ao longo de sua vida: fidelidade e entrega incansáveis às ideias do estatuto do seu grupo político, sem medo das críticas e dos eventuais riscos políticos.

Professor de Direito Constitucional e com uma vida voltada à negociação política, o presidente Temer captou extraordinariamente os limites e possibilidades do cargo de presidente. E soube ampliar essas possibilidades por meio de uma estreita relação com o Legislativo. Seus dois anos e meio na Presidência da República foram estrita continuidade de sua vida política no Congresso.

De igual forma, os três anos e meio do presidente Bolsonaro podem ser vistos como fidedigna expressão do que sempre foi Jair Bolsonaro. Não há motivo para perplexidade. Suas ideias e métodos continuam exatamente os mesmos. Mudaram as circunstâncias e o alcance de suas ações.

Engana-se quem pensa em Jair Bolsonaro como um capitão do Exército. Certamente, sua vivência no meio militar, nos anos da ditadura, o influenciou, mas ele nunca atuou de fato como um militar, nem no Congresso nem durante o período em que esteve no Exército. Na avaliação de Ernesto Geisel, Jair Bolsonaro foi um “mau militar”. O paradoxo não é trivial: aquele que utilizou e utiliza politicamente o saudosismo da ditadura foi sempre desprezado pelas lideranças do regime militar.

A distância entre o comportamento das Forças Armadas e o de Jair Bolsonaro ficou nítida, por exemplo, na pandemia. Os militares entenderam os riscos da covid e atuaram em consequência. Mais do que um tema de saúde pública, Bolsonaro viu na emergência sanitária uma questão de sobrevivência política. Convicto de que a oposição usaria a pandemia para tentar derrubá-lo do poder, optou por negar a gravidade da covid. Quando isso era impossível, tratou a doença como um destino inevitável.

Esse olhar peculiar reflete a história de Jair Bolsonaro antes da Presidência da República. Mais, expressa sua identidade: ele sempre foi um lobo solitário da política. Sem recursos, sem um sobrenome conhecido e sem vínculos políticos, sua vida pública foi invariavelmente uma construção individual. Sob essa perspectiva, por mais alto que se possa chegar, nada é estável. A tensão é contínua. Não há espaço para a confiança, mesmo entre os mais próximos. A primeira alternativa é sempre o ataque.

No Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro mantém o mesmo comportamento dos anos 80 do século passado: testa ações que capturem a pauta pública e lhe deem visibilidade. Antes, anunciava que explodiria bombas em quartel; agora, ameaça o processo eleitoral. Por seguir essa tática, foi preso no Exército. Por insistir na mesma tática, chegou ao Congresso e, anos depois, ao Palácio do Planalto. Por que iria parar com ela agora, justamente quando tem mais audiência? Só a interrompe quando está no limite da sobrevivência política, como ocorreu no dia 9 de setembro de 2021.

Neste ano eleitoral, analisar a história dos possíveis candidatos – e como ela influenciou a estrutura mental de cada um – pode evitar surpresas. Também ajuda a vislumbrar, de forma um pouco mais concreta, o que nos espera nos próximos meses. Operari sequitur esse.

Nicolau da Rocha Cavalcanti, o autor deste artigo, é Advogado e Jornalsta. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 08.06.22

Gritos do presidente revelam desespero e solidão na Praça dos Três Poderes

    Bolsonaro teme que chapa da reeleição seja cassada por fake news

O ataque de fúria do presidente Jair Bolsonaro, demonstrado após a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidir manter a cassação do deputado Fernando Francischini (União Brasil-PR) por disseminação de notícias falsas contra as urnas eletrônicas, revelou a solidão do poder. Apesar do apoio do Centrão, Bolsonaro tem certeza de que seu governo está sob cerco político e vem sendo abandonado até mesmo por aliados mais próximos.

No seu diagnóstico, o Supremo quer derrubá-lo e dará munição ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para cassar sua candidatura à reeleição por fake news. A estratégia de Bolsonaro é cada vez mais desviar o foco dos problemas do governo, da inflação, do desemprego, da fome e das fake news propriamente ditas e culpar a trinca de ministros do STF e do TSE – formada por Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso – por todas as mazelas do País.

Maus perdedores não reconhecem derrotas eleitorais em ambientes polarizados

“Duvido que tenham coragem de cassar meu registro. (...) Não tem nenhum maluco querendo cancelar minha candidatura por fake news. É brincadeira”, disse o presidente há quatro dias. Na noite desta terça-feira, 7, ao ser informado do placar de 3 a 2 no julgamento que atingiu seu aliado Francischini, Bolsonaro reagiu aos gritos.

Na prática, ele já sabia que seus dois amigos no Supremo – os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça – não conseguiriam vencer o jogo na Segunda Turma da Corte, formada por cinco integrantes. Não foi pego de surpresa, mas o tom de sua retórica indignada surpreendeu os presentes na cerimônia “Brasil pela Vida e pela Família”, que transcorria no Salão Nobre do Palácio do Planalto.

Indicados por Bolsonaro, os ministros do STF Kassio Nunes Marques e André Mendonça não conseguiriam vencer o jogo na Segunda Turma da Corte

Indicados por Bolsonaro, os ministros do STF Kassio Nunes Marques e André Mendonça não conseguiriam vencer o jogo na Segunda Turma da Corte Foto: Fellipe Sampaio/STF

Bolsonaro foi na mesma linha do xingamento “Acabou, porra!”, de maio de 2020, quando, em tom exaltado, criticou uma operação da Polícia Federal que mirou seus apoiadores no inquérito das fake news. Ali também ele já dizia que “ordens absurdas não se cumprem”.

Convencido de que o TSE atua para cassar a chapa Bolsonaro-Braga Netto por difundir inverdades sobre o processo eleitoral, o presidente insulta e joga luz sobre quem classifica como algozes. Relator dos inquéritos das fake news e das milícias digitais, Alexandre de Moraes lidera essa lista e é justamente quem vai presidir o TSE a partir de meados de agosto, mês do início oficial da campanha eleitoral.

Não foi à toa que Bolsonaro apontou o dedo para Moraes ao dizer que o ministro não cumpriu o combinado para “diminuir a pressão” sobre seus aliados após os atos antidemocráticos de 7 de Setembro do ano passado. À época, Bolsonaro chamou Moraes de “canalha”, mas dois dias depois assinou uma carta – escrita pelo ex-presidente Michel Temer – na qual dizia não ter tido “nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes”.

Mas que acordo foi esse? Moraes não quis se pronunciar e Temer já negou que tenha havido “condicionantes” e acertos prévios para a assinatura da carta. A “trégua” proposta ali não virou o ano.

Estagnado nas pesquisas de intenção de voto, que indicam o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Bolsonaro está acuado e não esconde o desespero. Lança pacote de medidas para cortar impostos e reduzir o preço dos combustíveis e agrada ao Centrão com orçamento secreto. No Planalto, porém, reclama de boicote e conspiração contra o governo.

Embora marqueteiros tentem “vender” sua imagem como a de um presidente “paz e amor”, como se vê na propaganda do PL exibida na TV, todos sabem que esse enquadramento não vai funcionar. Bolsonaro pode até mesmo aparecer apertando a mão do presidente dos EUA Joe Biden na Cúpula das Américas – uma cena que certamente será exibida em seu programa eleitoral. Antes, porém, vai sondar se sua água não está envenenada ou se alguém falou mal dele. Como fez nesta terça-feira, aliás, quando, em reunião com executivos do Telegram, perguntou o que eles haviam conversado no dia anterior com Edson Fachin. Ficou sem saber.

Vera Rosa, a autora, é Repórter Especial d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 08.06.22.

PEC dos Combustíveis pode consumir todo o dinheiro da venda da Eletrobras sem pagar toda a conta

Governo estima gastar R$ 40 bi com subsídio a diesel e gás em menos de 6 meses, mas capitalização da estatal deve gerar R$ 25 bi. Petróleo e dólar podem tornar esforço fiscal inócuo na bomba

Incerteza. Diesel é afetado por demanda, cotações de petróleo e dólar. Em 10 estados e no DF, zerar imposto pode não ter efeito se houver reajuste — Foto: Pablo Jacob/Agência O GLOBO

A quatro meses da eleição presidencial, o governo anunciou um pacote para subsidiar o preço do combustível que deve consumir todos os recursos que ingressarão no caixa do Tesouro com a privatização da Eletrobras. E ainda assim, isso não será suficiente para pagar a conta.

Ao anunciar a proposta, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que poderiam ser usados recursos da capitalização. Do total que será levantado com a venda da maior empresa de energia da América Latina, R$ 25,3 bilhões iriam para o Tesouro.

Combustíveis: Pacheco diz que vai analisar PECs e não promete votação na segunda-feira

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Daslu em nova polêmica: entenda por que venda da marca por R$ 10 milhões foi parar na Justiça

O objetivo era pagar dívida. Agora, o dinheiro será usado para evitar novas altas do diesel na bomba, fator que se converteu na principal fonte de pressão na campanha à reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

Veja o que a Petrobras já vendeu e o que pretende vender

A Petrobras levantou R$ 9,6 bilhões com a privatização da BR, considerada por muito tempo como a 'joia da coroa'. A estatal ficou com 37,5% da empresaAgência O Globo

A Petrobras vendeu 90% da TAG, maior transportadora de gás natural do país, para o grupo formado pela francesa Engie e a canadense CDPQ. Embolsou R$ 33 bilhõesAgência Petrobras

Símbolo da corrupção da estatal, a Petrobras vendeu a refinaria de Pasadena, nos EUA, para a Chevron. Arrecadou R$ 1,8 bilhão com a operação, concluída em maio Richard Carson

Veja o que a Petrobras já vendeu e o que pretende vender

O problema é que a conta não fecha. O governo estima que precisará gastar R$ 40 bilhões para custear a operação. Resta definir de onde viriam os outros R$ 15 bilhões. A princípio, devem ter origem em dividendos da Petrobras ou outras receitas do setor de petróleo.

Petrobras: processo de mudança no comando completa 15 dias e longe de uma solução

Defasagem anula efeito

Além de criar uma fonte de despesa até então imprevista, especialistas afirmam que não há garantia de que a operação será bem-sucedida. Considerando dados de terça-feira, a defasagem no preço do diesel em relação às cotações internacionais chegou a 13%, o equivalente a R$ 0,77, segundo a Abicom, associação dos importadores.

Tentativa: Governadores ainda tentam alterar projeto do teto do ICMS

Isso indica que, se a Petrobras reajustasse o combustível para manter a paridade de preços, a proposta do governo de zerar o ICMS do produto deixaria de ter impacto ao consumidor final em 10 estados, como São Paulo, Rio e Minas Gerais, e no Distrito Federal.

Zerar o ICMS para o diesel, como previsto na proposta de emenda constitucional (PEC) que o governo buscará aprovar, teria impacto de, no máximo, R$ 1,006 no preço final do diesel, segundo levantamento. O valor muda de estado para estado, conforme a alíquota de ICMS praticada. Em São Paulo, o alívio seria de R$ 0,6618. Daí a conta de que,se a Petrobras fizer reajuste, a isenção tributária teria efeito nulo.

Combustíveis: Câmara aprova projeto que prevê regras de transparência no preço

Até agora, o governo tem procurado segurar preços na estatal, mas o que se espera no segundo semestre é um aumento da demanda por diesel, motivada pelo mercado internacional, fator que passa ao largo da redução de impostos. Na semana passada, o preço do petróleo superou US$ 120 por barril por causa da nova rodada de sanções ocidentais ao óleo russo após a invasão da Ucrânia.

O dólar é outro fator de pressão já que a formação do preço considera cotação internacional. Na terça-feira, a percepção de que o país pode estar diante de uma piora de sua situação fiscal com o pacote apresentado pelo governo levou a moeda americana a encerrar em alta de 1,64%, a R$ 4,87.

Os combustíveis têm parcela significativa de seu preço composto por impostos federais e estaduais, como o ICMS Foto: Luiza Moraes / Agência O Globo — Foto: Luiza Moraes / Agência O Globo

Os combustíveis têm parcela significativa de seu preço composto por impostos federais e estaduais, como o ICMS Foto: Luiza Moraes / Agência O Globo — Foto: Luiza Moraes / Agência O Globo

Para o economista-chefe da Meta Asset Management, Alexandre Póvoa, a proposta não faz sentido.

— Não faz sentido torrar os recursos da privatização. E se a Petrobras elevar os preços em 10%? Anula o subsídio — disse, lembrando que a compensação aos estados não tem fonte definida. —Nada garante que o excesso de arrecadação vai continuar.

Fontes na Petrobras — cujo comando segue em situação indefinida 15 dias após a demissão de José Mauro Coelho da presidência— dizem que o aumento no preço da gasolina no exterior começa a preocupar a empresa, já que o último reajuste foi no dia 11 de março. O diesel, por sua vez, foi elevado no dia 10 de maio.

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Fábio Nieves Barreira, sócio da área tributária do Viseu Advogados, ex-juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT) e ex-diretor jurídico da Fiesp, destaca o caráter eleitoreiro da medida e afirma que o pacote traz insegurança jurídica, já que tem prazo de validade até o fim do ano.

Grandes empresas precisam ajustar sistemas à regra, o que as leva a ficarem suscetíveis a autuações por possíveis erros.

— A confusão tributária acaba sendo maior que o benefício. E se o Supremo Tribunal Federal (STF) suspender a PEC? As empresas ficam sem saber o que fazer.

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Ainda assim, integrantes do governo tratam o pacote como uma “bala de canhão” para as eleições. Assessores têm reforçado a visão, nos bastidores, de que a alta de preços de diesel, gasolina e gás de cozinha poderia custar a reeleição. Guedes vinha sendo cobrado a entregar solução para o assunto ainda nesta semana.

E foi assim, de última hora, que nasceu a proposta de reduzir o ICMS do diesel e do gás de cozinha e dos impostos federais sobre a gasolina.

Lira: ‘Panela de pressão’

Na terça, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), disse que o pacote é importante para que o Brasil não vire “uma panela de pressão” e exploda. Lira reconheceu que as medidas foram definidas a quatro meses da eleição, mas afirmou que o assunto não devia ser politizado:

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— É num momento que está próximo das eleições? É. Nós vamos deixar o Brasil virar uma panela de pressão, e essa panela de pressão explodir para que a gente possa cuidar dos nossos vulneráveis? Não. Nós temos que cuidar deles desafogando a pressão, trabalhando em prol de saídas que tenham lastro na responsabilidade fiscal, mas olhe para o social.

O governo calculou em R$ 67 bilhões os valores relacionados à privatização da Eletrobras, mas nem tudo iria para os cofres públicos. Do total, R$ 25,3 bilhões iriam para o Tesouro para pagar as outorgas das hidrelétricas que terão contratos alterados. A ideia original era usar o recurso para abater a dívida pública.

Outros R$ 32 bilhões serão empregados para aliviar a conta de luz a partir deste ano por meio de fundo setorial, a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). Há ainda R$ 8 bilhões que vão bancar, ao longo de uma década, a revitalização de bacias hidrográficas do Rio São Francisco, de rios de Minas e de Goiás e na geração de energia limpa da Amazônia. (Colaborou Letycia Cardoso)

Manoel Ventura, Bruno Rosa, Bruno Góes e João Sorima Neto, de  Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo para O Globo, em 08.06.22

'Alô, alô, marciano!': Bolsonaro em pânico

À medida que vê o corredor à sua frente se estreitar, Jair Bolsonaro dá mais sinais de pânico mal dissimulado, roubando o diagnóstico sempre preciso de Caetano Veloso.

Todas as promessas fake que esquadrinhei neste espaço na semana passada vão caindo por terra: com cara acabrunhada, o presidente em desespero admitiu que não haverá reajuste dos servidores no final das contas. Quem sabe em 2023, pessoal?

Para tentar operar alguma mágica que baixe o preço dos combustíveis, arrancou a fórceps uma fórmula que Paulo Guedes, mais desnorteado que o chefe, não sabe se custará R$ 25 bilhões ou R$ 50 bilhões. Tudo bem, para um governo que não planeja e que já mandou às favas qualquer escrúpulo liberal que um dia tenha tido, algo custar um tanto ou seu dobro é o de menos.

A tal compensação, que ninguém sabe quanto custará aos estados que aceitem comprar um terreno na Lua — ou em Marte, já que o presidente também anda ameaçando prender marcianos por aí —, não se sabe também quando nem como será paga.

É sempre didático fazer um exercício com o (e)leitor: se fosse Guido Mantega a dizer que algo pode custar entre R$ 25 bilhões e R$ 50 bilhões, que nome isso ganharia? Populismo fiscal, heterodoxia, nova matriz econômica, pedalada. Pois é o mesmo. Guedes exercita toda essa nomenclatura todos os dias.

Se fosse Dilma que perguntasse a convidados de uma solenidade no Palácio do Planalto se ela poderia prender um marciano, isso viraria meme, figurinha, clipe no YouTube, esquete de grupos de humor.

No desespero apoplético em que se encontra, Bolsonaro é ainda mais perigoso. Na semana passada, cantou vitória diante da mãozinha que seu indicado ao Supremo Tribunal Federal (STF), Kassio Nunes Marques, deu para tentar anular uma importante jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral contra a propagação de fake news. Não quaisquer fake news: aquelas destinadas a descredenciar o processo eletrônico de votação. A decisão do TSE era de outubro de 2021. Mas a liminar de Kassio veio um dia depois de Alexandre de Moraes falar da importância da jurisprudência.

Restabelecida a decisão graças a um cerco feito pela maioria do STF, a que a dupla Nunes Marques e André Mendonça ainda tentou se opor, mas se viu vencida, Bolsonaro estrebuchou como nunca antes.

Disse que foi-se o tempo em que cumpria decisões do STF. Apenas escancarou sua real intenção ao conceder um inédito indulto individual a um aliado que atentou contra o Estado Democrático de Direito. Mais grave: deixou claro o muito que ainda é capaz de fazer daqui por diante.

O presidente não deixará que as eleições transcorram em normalidade. Tumultuará todas as fases: convenções, debates, campanha nas redes e, principalmente, votação, apuração e transição.

Agora, diante da possibilidade concreta de ser derrotado pelo ex-presidente Lula ainda no primeiro turno, lança a narrativa segundo a qual qualquer resultado que não seja sua própria vitória antecipada terá sido fraude.

Diante desses ataques cada vez mais destemperados, ministros do STF, senadores e candidatos avaliam que o período crítico de caos institucional se dará entre 2 de outubro, dia do primeiro turno, e a posse do futuro presidente.

Ninguém acredita que ele terá sucesso no golpe que delira implementar. Não haverá apoio popular ou da mídia, internacional e empresarial, essenciais em 1964, última ruptura democrática que houve no Brasil. O protagonismo militar de então ainda é uma incógnita agora. Principalmente porque os generais deverão olhar para esses outros atores ausentes da equação e entender o grau de aventura que seria dar guarida à sanha golpista de Bolsonaro.

Restará a ele tentar prender um marciano quando fracassar sua versão tropical da invasão do Capitólio.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista, apresentadora do Roda Viva, da TV Cultura. Publicado originalmente n'O Globo, em 08.06.22

Fome já atinge 33 milhões de pessoas no Brasil, mesmo número do início da década de 90, diz pesquisa

Quantidade de brasileiros que não tem o que comer subiu de 19 milhões para 33 milhões de pessoas em um ano, segundo estudo da Rede Penssan e da Oxfam

   Pesquisa mostra que 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no País, 14 milhões a mais do que no ano passado  Foto: Tiago Queiroz/Estadão 

A fome no Brasil voltou a patamares registrados pela última vez nos anos 1990, de acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, lançado nesta quarta-feira, 8. Atualmente 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no País; 14 milhões a mais do que no ano passado. A nova edição da pesquisa mostra ainda que mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderado ou grave).

Especialistas que participaram do levantamento dizem que o desmonte de políticas públicas por parte do governo, o agravamento da crise econômica, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia contribuíram para a piora do quadro. No ano passado, o número de brasileiros que não tinham o que comer era de 19 milhões. Em 2018, eram 10 milhões. A falta de acesso regular à água para beber e cozinhar, a chamada insegurança hídrica, também é um problema para 12% da população brasileira.

“Já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013 reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros (tirando o País do mapa da fome mundial)”, explica o coordenador da Rede Penssan, Renato Maluf. “As medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante do cenário de alta inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulneráveis.”

Como explica a gerente de programas da Oxfam-Brasil, Maitê Gauto, a pandemia surgiu neste contexto de agravamento da pobreza e o estado não tinha mais estruturas para responder à altura. Não por acaso, 15,9 milhões de pessoas (8,2% da população) relataram “sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento” por terem sido obrigadas a usar de meios “social e humanamente inaceitáveis para obtenção de alimentos”.

Fome

Pesquisa mostra que 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no País, 14 milhões a mais do que no ano passado  Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A pesquisa é realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), com execução em campo do Instituto Vox Populi, Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, Oxfam, entre outras instituições. Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, por meio de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios distribuídos pelos 26 estados e o Distrito Federal. A pesquisa usa a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), a mesma usada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A pesquisa anterior, de 2020, mostrava que a fome no Brasil tinha voltado a patamares equivalentes aos de 2004. Este ano, o levantamento mostra que apenas quatro em cada dez domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação; ou seja, são considerados em condição de segurança alimentar. De acordo com os pesquisadores, os números atuais são similares aos do início da década de 90, quando o Brasil tinha 32 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou uma campanha nacional contra a fome.

“O Auxílio Brasil não responde à altura do problema; embora seu valor seja maior do que o do Bolsa Família, a cobertura dele é bem menor”, explica Maitê Gauto, da Oxfam-Brasil. “Além disso, até o ano passado, um salário mínimo era suficiente para que a pessoa não entrasse em situação de fome; nesta pesquisa, isso já mudou, o valor da cesta básica já está batendo o do salário mínimo.”

A nova pesquisa mostra que a fome atinge as regiões do País de forma muito desigual. Em média, 15% dos brasileiros estão abaixo da linha da pobreza. O percentual, entretanto, chega a 25% e 21% no Norte e no Nordeste. A situação também é pior entre os negros e as mulheres.

Segundo o levantamento, 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas convivem com alguma restrição alimentar. Comparando com o primeiro inquérito, a fome saltou de 10,4% para 18,1% dos lares comandados por pretos ou pardos.

As diferenças também são expressivas na comparação entre lares chefiados por homens e por mulheres. Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%. Nos lares em que os homens são os responsáveis, o salto foi de 7,0% para 11,9%. Segundo os pesquisadores, isso ocorre por conta da desigualdade salarial entre os gêneros.

Outro dado preocupante levantado pelo estudo é que, em pouco mais de um ano, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos de idade – passando de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos de idade no grupo familiar, a fome atinge 25,7% dos lares. Já nos domicílios apenas com moradores adultos, a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional.

Praticamente não há fome nas famílias com renda superior a um salário mínimo por pessoa. Em 67% desses domicílios o acesso a alimentos é pleno e garantido. Ainda assim, 33% das famílias enfrentam algum grau de insegurança alimentar. A fome é maior nas casas em que a pessoa responsável está desempregada (36,1%), trabalha na agricultura familiar (22,4%) ou tem emprego informal (21,1).

Cerca de metade das famílias que deixaram de comprar arroz, feijão, vegetais e frutas nos últimos três meses, convivem com insegurança alimentar moderada ou grave. Entre as famílias que deixaram de comprar carne nos três meses anteriores à pesquisa, 70,4% estavam passando fome. Dados semelhantes foram encontrados nos lares onde os moradores não haviam comprado frutas (64%) e vegetais (63,6%).

“Esse é outro problema sério”, diz a professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, Rosana Salles, pesquisadora da rede. “Estamos abrindo uma janela para o aumento dos índices de doenças crônicas na população por conta da alimentação ruim.”

A segurança alimentar, por sua vez, é maior nos lares em que o chefe da família trabalha com carteira assinada (53,8%) e entre os que têm mais de oito anos de estudo (50,6%).

“Reverter essa situação é um desafio muito grande”, constata Rosana Salles. “Vai depender da reestruturação das políticas de governo, das políticas de combate à fome e à miséria, da valorização do salário mínimo, do controle dos preços da cesta básica. Além, é claro, da reestruturação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea).”

Maitê Gauto lembra ainda que medidas emergenciais devem ser tomadas o mais rapidamente possível.

“Precisamos de programas de proteção social e transferência de renda para que essas pessoas possam se manter com dignidade enquanto a recuperação econômica não acontece; precisamos garantir as condições mínimas de sobrevivência para as famílias”, diz. “É preciso também qualificar o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que também vem sendo desmontado.”

Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo, em 08.06.22

Cinco nomes e um destino

Com o Supremo e o TSE atuando de modo tão elíptico, a Justiça dá consistência à polarização com dois preferidos e os demais fantoches.

Deixando-se manejar por uma eleição flashback, o Brasil concede ao passado poder sobre o futuro. Levado pelo êxtase ou a aventura, a reflexão não tem tido prioridade entre nós. Só as pesquisas contam, como ideologia.

As pesquisas nunca gostaram de Ciro. E já desconfiam de Simone. Fingem não ver Luiz Felipe. Gostavam de Marina, até que Dilma espalhou que os verdes eram banqueiros – registraram a indignidade na margem de erro. Largaram Aécio jogando as fichas no capitalismo de cassino que produziu 2018.

Lá atrás, queriam Collor e, por odiar Brizola, ajudaram Lula a contragosto. Calado duas vezes por FHC, ele se reciclou, arrumou um guru, amigo das pesquisas, para ensaboar a fera e fazer a pedra virar flor. As pesquisas fingiram não ver Bolsonaro e escondiam que evitavam Haddad. No fundo, não queriam Ciro e botaram a culpa em Juiz de Fora. Alckmin, que é médico e afável, não visitou o esfaqueado no hospital, ajudando-o a consolidar a imagem de desprezado.

Nenhuma diferença metodológica ou técnica explica a variação dos números das pesquisas. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ajuda na confusão por só exigir o carimbo burocrático de “registrada”, dando credibilidade ao submundo da amostra. Pesquisa é ideologia, eleitor é que é utopia.

Com o Supremo e o tribunal eleitoral atuando de maneira tão elíptica, espalhando ânsias malogradas por aí, a Justiça dá consistência à polarização com dois preferidos e os demais fantoches. Sem clareza jurídica estrutural e estável, criando jurisprudência de casta, ministros concedem privilégios aristocráticos a políticos processados, produzindo este estado de coisas. Ameaçam o País com o rigor da lei – saudades de Brossard (não quero o rigor da lei, basta a lei) – e empurram o eleitor, coelho apressado de Alice, para a festa do corta-cabeça.

A vaidade unilateral de querer prevalecer sozinho cingiu o País. E o mesmo naipe arbitrário do poder monocrático se espalhou como doença. O Supremo, como instituição, precisa se proteger contra si mesmo, se não quer ver suas decisões tênues como clarão de fósforo riscado. A crise dos democratas é maior do que a da democracia.

Pesquisa como ideologia enfia o eleitor no funil de sua falta de parâmetros. Embrulha os resultados em tantos labirintos que lembram leis e linguiça, melhor não ver o processo de fabricação.

A superficialidade da eleição tira o Brasil da roda do tempo com seu baixo padrão de disputa do voto. Olhando o mar de pesquisas, é possível observar que se dirige mais aos candidatos fora da curva, que insistem no debate, contrários ao “rejeitor” – o eleitor da rejeição, não o da escolha.

O desejo de distinção pode conter mais insinceridade do que divergência. Entre Lula e Bolsonaro, notórias biografias distintas, são grandes as afinidades sobre mando, base parlamentar, gastos, guerra, papel do Estado, idolatria. Têm apoiadores sinceros que aceitam que seus governos estejam dentro de si mesmos, como efígie que fará o que quiser. Porém, insistindo em bulir com o brasileiro, podem se surpreender com a exaustão do antagonismo deste longo estímulo negativo que instiga o povo.

A semelhança de estratégia é que produz competição tão encarniçada. Borboleta e caranguejo, harmonia na bizarrice. Poderão vencer um ao outro, mas não conseguirão extrair força do voto para fazer acontecer. Terminada a apuração, a mágica evapora em governos requentados.

Ciro, Simone ou Luiz Felipe podem fazer o Brasil iniciar um novo ciclo. Com eles, a energia autêntica da novidade política retira das urnas a força constitucional de mudança e reforma.

Ciro é enfático e seguro, coerente conhecedor dos desafios, traído em sua boa-fé, não perde a fé, segue como um Robinson Crusoé. Quem luta contra a corrente parece um injustificado por não oferecer perspectivas mais cobiçáveis que tranquilizam apressados e interesseiros. Sua influência benéfica é justamente esta, não deixar o País cair na inércia do lugar-comum que o tem feito chegar sempre atrasado ao mundo civilizado.

Simone é altiva e doce e, com sua coragem, prova que o Brasil não é indigno de viver uma outra experiência estética no exercício do poder. Não é autoritária em seus valores, jovialidade autêntica, uma outra alegria mais pluralista, com a fé e não a cor de igrejas em conflito. É, também, capaz de enfrentar a overdose de moralismo ideológico, a invisibilidade das ideias no poder e o viés antiocidental em curso na campanha.

Luiz Felipe quer ser um presidente ousado e barato, pois sabe que uma boa auditoria resolveria bem muitos problemas do Estado brasileiro, abismo do dinheiro do contribuinte. Não se faz passar por pessoa que não é. Parece disposto a desafiar o blefe da mesmice e ampliar o horizonte do País.

Tomando caminhos já conhecidos, o Brasil mais se bifurca. E se a marca da eleição é a rejeição que outro caminho tomar? Lembro poesias consagradas. Diante da encruzilhada, não seja duas pessoas, uma influenciando a outra. Busque o caminho menos pisado, isso fará toda a diferença no futuro. Pense na existência, sem ironia ou cansaço, vá por onde te levem teus próprios passos.

Paulo Delgado, o autor deste artigo, é sociológo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Pailo,em 08.06.22.

‘Lava Jato não levou em conta o know how das construtoras', diz Carlos Pires, da Camargo Corrêa

Empresário de 70 anos que foi do conselho de administração da companhia diz, em sua primeira entrevista, que a experiência das empresas brasileiras na construção de grandes obras foi perdida

Caco Pires: no auge, Camargo Corrêa tinha mais de 75 mil funcionários; hoje, tem cerca de 10 mil.  Foto: Viana Fotos

Entrevista com Carlos Pires Oliveira Dias

Carlos Pires Oliveira Dias – mais conhecido como Caco Pires – concede aqui, para Cenários, a primeira entrevista em seus 70 anos de vida. E não poderia, é lógico, deixar de falar sobre a Operação Lava Jato: “Não tem como dizer que não foi traumático”, resumiu o empresário, ex-integrante do conselho de administração da Camargo Corrêa, desde Londres, de onde falou com o Estadão. Em 2015, a construtora Camargo Corrêa fechou o primeiro acordo de leniência resultante da operação, no valor de R$ 804 milhões. E a holding do grupo, que controla e tem participação em diversas empresas, vendeu a Alpargatas, sua parte na CPFL e outras para cumprir obrigações financeiras. Mudou seu nome para Mover. Migrou de um perfil empresarial puro, com presença em vários ramos de negócios – em grande parte no controle –, para um modelo de gestora de portfólio. 

O futuro imediato do Brasil foi uma das questões abordadas na conversa: quem vencer as eleições de outubro vai dividir ainda mais as águas? “Eu não tenho nenhum medo de A, B, C ou D. Alguns dizem: ‘Ah, se o presidente eleito for tal ou o outro, o Brasil vai ser isso ou aquilo...’. Não vejo assim, eu acho que as nossas instituições são sólidas.” 

Pires vem a São Paulo periodicamente, sempre arrumando um tempo para passar na sua fazenda Guariroba, comprada em 1995 e localizada em uma área de proteção ambiental. “Quando assumi, tinha gado, café e problemas com o meio ambiente. Eu não sei se você sabe, as leis ambientais brasileiras, apesar de tudo que se fala aí do desmatamento, são as mais rígidas do mundo.” O que ele fez? Convocou gente da Faculdade Luís de Queiroz, de Piracicaba, para desenvolver um projeto de 210 hectares reconstituindo a Mata Atlântica.

Como é que você está vendo hoje o Brasil? 

Passamos durante 40 anos por altos e baixos, isso não é novidade para ninguém. Várias crises políticas, crises econômicas, e no fim das contas tudo acaba dando certo. O Brasil continua sendo um País reconhecido internacionalmente, continua sendo destino de investimentos. Essas crises não me assustam, passaram a ser normais, num país em que existe uma tranquilidade no que diz respeito às suas instituições, que são muito sólidas. Nosso empresariado também é reconhecido como experiente, vamos dizer assim, em crises. Eu acredito muito no País e tenho hoje, apesar de estar aqui fora, 90% do meu patrimônio no Brasil. 

E como reage a essas frequentes brigas entre os três Poderes em Brasília? 

Existem, como nunca existiu antes, certos exageros nos discursos. Mas não há o risco de isso afetar institucionalmente o Brasil, virar golpe ou algo nesse sentido. Não há razão para ter medo. Não temos nenhum risco de ‘venezuelização’. 

Há quantos anos você mudou sua residência para fora do Brasil? 

Estou fora há mais de 10 anos. Eu já tinha 60 anos de idade, e fizemos a delegação de responsabilidades dentro do grupo Camargo Corrêa. Achei melhor me afastar sem sumir, e a melhor maneira de fazer isso era vir para fora. Minha saída não teve nada a ver com a situação do País.   

A Camargo Corrêa sofreu muitas mudanças desde a Lava Jato. Vocês foram os primeiros a assinar acordo de leniência com o governo. De que tamanho é hoje a construtora, comparado ao que era? 

Não tem como dizer que a Lava Jato não foi traumática, não só para a Camargo Corrêa, mas para todo o setor de construção pesada no Brasil, como é notório. A família, no caso da Camargo, estava afastada, vamos dizer, da área executiva da empresa por uma decisão tomada há 25 anos. Não havia, na área executiva, nenhum membro da família. E há uns 15 anos a família também resolveu profissionalizar seu conselho de administração. Isso foi feito mas, evidentemente, nós acompanhamos todo o assunto Lava Jato.

Como acionistas...

Exatamente. Foi realmente destruidor. E isso causou a liquidação de todas as empresas que tinham grande experiência em construção de hidrelétricas, em construção rodoviária, em construção ferroviária, em construção de metrô etc e tal. Isso, no Brasil de hoje, a gente pode dizer que está zerado.   

Refere-se ao know-how? 

Sim, esse know-how se foi por água abaixo. E vai levar muito tempo para ver a recuperação. Não me refiro só à Camargo. Todas as empresas de construção afetadas por essa crise praticamente desapareceram. Era um patrimônio do Brasil, um reconhecimento internacional da nossa capacidade. Aí você pode até me perguntar: ‘Bom, mas como é que poderiam ser penalizados os malfeitos?’ Eu não sei, mas o método utilizado destruiu essas empresas. Semana passada, saiu até nos jornais, uma grande empresa sofreu uma ação do governo americano, dos governos europeus, inclusive do brasileiro. Um acordo com esses governos pelos malfeitos praticados. Foram multados em mais de US$ 1 bilhão, o que deixou a empresa obviamente machucada. Mas não morreu, continua operando etc e tal. Talvez tenha faltado, antes, exatamente essa compreensão dos meios jurídicos.

Os acordos de leniência no Brasil são muito diferentes dos assinados pelo Departamento de Justiça nos EUA. Lá eles punem, promovem troca de executivos e muitas vezes “forçam” controladores a vender. Mas preservam a empresa e os empregos que ela gera. Seria esse o erro? Quantos empregados tinha a Camargo Corrêa no setor de construção e quantos tem hoje? 

No auge, a Camargo Corrêa tinha mais de 75 mil funcionários. Na época da Lava Jato, deveria somar algo como 50 mil. Hoje, não tem mais do que 10 mil. Entendeu?

A Camargo vai mesmo sair desse setor e se transformar num polo gestor de investimentos? 

Em parte, é isso mesmo, até pelo trauma criado. Hoje, existe de fato uma decisão da terceira geração, à qual está delegada a orientação estratégica do grupo, de não querer trabalhar para o governo. A ferida é gigante. Tudo bem, não quero dizer que nós não tenhamos tido culpa, mas nós fomos vítimas de um processo sistêmico.   

É o caso de perguntar quem nasceu antes, o ovo ou a galinha? 

Exatamente. Era um fato inerente à cultura brasileira, vamos chamar assim. Agora, dizer que a gente estaria se sentindo confortável com isso, nada disso, é óbvio que não estávamos nos sentindo assim. Mas os jovens que hoje estão com a responsabilidade de estabelecer a estratégia do grupo têm muita resistência a entrar nisso e voltar a ser atuantes de maneira forte nesse setor. Eles estão se concentrando em obras privadas. 

O Brasil precisa de uma melhora urgente de sua infraestrutura. Se o País conseguir recursos, existe know-how para construções grandes? 

Diria que, entre empresas brasileiras, não. Por exemplo, para uma concessão ter sucesso, o concessionário vai querer que haja tráfego mínimo para gerar recursos para ele investir e manter as estradas. E, obviamente, existe uma gama enorme de estradas no Norte, no Nordeste, no Centro-Oeste, mesmo no Sul e no Sudeste, que não tem como ser concessionada. Hoje, essas obras estão sendo feitas pelo Exército, porque falta empresa para fazer isso. Mas não posso dizer que não existe nenhuma empresa. Existem, sim, mas muito menores. Por exemplo, vamos falar aqui só de uma obra de extrema complexidade, executada e inaugurada lá pelos anos 1970 ou 1973 – a ponte Rio-Niterói. Hoje, como você vai fazer uma ponte como essa? Uma empresa brasileira não faz. Não tem grandes hidrelétricas em execução no Brasil, ao mesmo tempo que existem vários aproveitamentos hidrelétricos que ainda não foram explorados. Mais tarde ou mais cedo, eles vão ter de ser executados. Podem até ser executados em forma de concessão, mas mesmo assim a concessionária vai precisar de empresas que tenham know-how, em razão da grande complexidade. Então, não sei o que vai acontecer.

Empresas estrangeiras teriam interesse? Chineses?

Olha, seria ingenuidade da minha parte achar que não existem empresas no mundo capazes de executar. Mas posso afirmar para você: elas nunca quiseram vir para o Brasil. Nunca quiseram vir.   

Lembro da gigante americana Bechtel, a maior dos EUA e uma das maiores do mundo, que chegou aqui e foi embora rapidamente. Estou certa? 

Está. E você deve imaginar por que, né? Aqui não existia um ambiente que passasse, vamos dizer, pela questão da estratégia de operação deles. Então, não ficaram. Por que nós saímos? Nós saímos por uma questão de liquidez, nós tínhamos contas para pagar, como temos ainda, e tivemos de nos desfazer da CPFL, da Alpargatas, empresas ótimas. Tudo em função realmente dos encargos que nos impuseram pelo fato de termos feito esse acordo de leniência com os poderes públicos.   

A Camargo Corrêa é sócia da CCR, né? 

Exatamente. Nós participamos em 1997 da fundação da CCR, uma empresa que entrou com muita coragem, digamos assim, foi pioneira, nessa área de construção de infraestrutura rodoviária. E depois se expandiu para outras áreas, entre elas, a de metrô, ferroviária e também no setor de mobilidade urbana. Então, nós, via CCR, assim como outras empresas, nos aventuramos nesse setor e com muito sucesso.   

Mas quem se aventurou nas concessões do Paraná não se deu muito bem, né? As regras foram mudadas no meio do caminho... 

Você tem toda razão. Mas em São Paulo nós não tivemos problemas. A CCR teve certos problemas de adequação, vamos dizer – quando você tem uma concessão de 25, 30 anos, é muito difícil lá atrás você prever todos os acontecimentos. Agora, por exemplo, veio a pandemia, que acabou mudando muitas rotinas e afetou gravemente o tráfego das estradas. Então, tudo isso são problemas que surgem no transcorrer da experiência. 

Vocês não tiverem medo? 

O Estado do Paraná é um exemplo negativo, quebra de contrato e, até pior do que isso, teve até invasão determinada pelo governo da época, invasão e fechamento de pedágios. Estimularam a população a não pagar o pedágio, a romper a barreira. Mas isso foi superado. Bem ou mal, foi superado. Foi realmente uma crise, mas a participação do Paraná no setor da CCR era uma participação pequena e não chegou a comprometer a saúde da empresa. Agora, temos outros exemplos positivos, São Paulo sem dúvida nenhuma é um exemplo desses casos positivos. Já um outro exemplo negativo talvez tenha sido Minas Gerais. O Estado não fez concessão e, hoje, Minas ficou totalmente para trás, suas estradas são consideradas as piores do Brasil.   

Caco, você tem um outro braço de suas atividades que é o da RaiaDrogasil. Como é que vai isso? 

Vai muito bem. Quer dizer, tanto a Raia quanto a Drogasil são empresas centenárias. Eu sou, especificamente, oriundo da Drogasil, que foi uma empresa fundada pelo meu avô e que viemos mantendo há muitos anos. Demos um passo muito importante em 2011, que foi a fusão com a Raia, uma fusão que foi muito exitosa. Montamos um grupo controlador da nova empresa, do qual fazem parte a minha família e a família Galvão, do lado da Drogasil. E a família Galvão também tem sua origem lá da Drogasil de muitos e muitos anos. E do lado da Raia entrou a família Piponzzi. 

Esse é um setor que tem crescido muito, né?

Muito, muito. Foi muito bem-sucedida essa nossa fusão, até porque foi bastante complementar a união das duas empresas. Em alguns assuntos estratégicos, éramos melhores e havia outros em que a Raia era a mais forte. Então, houve uma conjugação de fatores que deu muito certo. E o principal deles, para resumir para você, foi que as duas famílias, Pires e Galvão, e a família Piponzzi tiveram a mesma estratégia empresarial, o mesmo pensamento, os mesmos princípios, a mesma cultura. Isso foi muito bem, tanto que a empresa cresceu demais. Hoje, estamos aí com mais de 2.500 farmácias no Brasil inteiro, em todos os Estados. E lideramos esse mercado com uma força muito grande – eu acho que hoje o segundo colocado no setor não tem mais de 1.400 lojas. Ou seja, temos quase o dobro disso. E o setor está indo muito bem, crescendo muito. Estamos nos adaptando bem aos novos momentos desse mercado, principalmente no que diz respeito à digitalização. Eu acho que a pandemia teve um aspecto muito educativo para nós. Mostrou que não podíamos ficar só na linha de vender remédio para o nosso cliente. Temos de cuidar da saúde dele, e é justamente isso que estamos fazendo, comprando várias startups voltadas para esse atendimento – tipo telemedicina, exames de sangue, coisas assim. 

A saúde desse cliente é mais fácil de cuidar do que a saúde do cliente de uma Camargo Corrêa construtora, né? 

Sem dúvida. Nas reuniões do conselho da RaiaDrogasil, não só porque só tem notícia boa, eu me sinto quase de férias.  

Sonia Racy, O Estado de S.Paulo, em 08.06.22

Moro indica que não vai recorrer ao TSE e deve disputar vaga ao Senado pelo Paraná

Após o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) negar a sua transferência de domicílio eleitoral para São Paulo, o ex-ministro Sergio Moro (União) afirmou a aliados que não deve recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como poderia. 

O ex-juiz Sérgio Moro (União Brasil). Foto: Alexandre Meneghini/Reuters

Ele (Moro) sinalizou que pretende disputar vaga ao Senado pelo Paraná, seu Estado de origem. Com isso, Moro pode concorrer contra um de seus principais ex-aliados, o senador Alvaro Dias (Podemos-PR), que é pré-candidato à reeleição.

Com a saída de Moro da disputa em São Paulo, o presidente da Câmara de Vereadores de São Paulo, Milton Leite (União), afirmou que mantém a sua pré-candidatura ao Senado normalmente. Moro também tentava se viabilizar ao posto, mas enfrentava resistências internas na legenda, que preferia que ele se lançasse como “puxador de votos” na eleição à Câmara dos Deputados.

Julia Lindner / O Estado de S. Paulo, em 08.06.22

MDB aceita sair da disputa no RS para apoiar Leite

 Após um impasse que se arrastou nos últimos dias, o pré-candidato ao governo do Rio Grande do Sul pelo MDB, Gabriel Souza, aceitou retirar seu nome da disputa em nome de uma aliança com o ex-governador Eduardo Leite (PSDB), segundo pessoas que acompanham as tratativas.

O acordo foi costurado nesta terça-feira pelo presidente nacional do partido, Baleia Rossi, e pela senadora Simone Tebet (MS), pré-candidata à presidência da República.

Com isso, lideranças emedebistas consideram que o PSDB “não tem mais desculpa” para adiar a formalização da aliança com o partido no âmbito nacional. O encontro dos tucanos está marcado para esta quinta-feira.

Além de Gabriel, a cúpula da legenda recebeu a garantia do presidente do MDB no Estado, Fábio Branco, e do ex-governador Germano Rigotto (MDB) de que aceitam abrir mão da candidatura própria – algo inédito até aqui para a sigla – e que o acordo poderá ser feito no RS. Rigotto e Branco também estiveram com Leite.

Houve uma ponderação, no entanto, de que o anúncio deverá ocorrer “no tempo da política local”. Não há prazo para isso ocorrer. Primeiro, será preciso acompanhar a postura do PSDB na quinta-feira para garantir que o acordo nacional vai, de fato, prosperar.

Em nota, o MDB-RS disse que a candidatura de Gabriel está mantida, mas que “segue dialogando com aqueles que desejam construir uma aliança para dar continuidade ao projeto de desenvolvimento do Estado”.

Julia Lindner / O EStado de S. Paulo, em 07.06.22

Improviso e demagogia na jogada do ICMS

Em encenação grotesca, em que levou chá de cadeira de Lira e Pacheco, Bolsonaro anuncia medidas inúteis contra alta dos combustíveis e custosas para Estados

Bem alimentado, bem alojado no Palácio do Planalto, bem assistido quando digere mal um camarão e com tempo de sobra para motociatas e passeios de jet ski, o presidente Jair Bolsonaro vem tratando os preços da gasolina e do diesel como os maiores e mais prementes problemas dos brasileiros. Têm relevância, de fato, mas quase desaparecem quando confrontados com o desemprego, a perda de renda, os preços da comida, o custo da saúde, as escolas sem banheiros, a falta de professores, a violência rotineira e as moradias em áreas de risco, para citar apenas os pesadelos mais noticiados no dia a dia. Nenhum desses problemas será resolvido com o mero corte de tributos, como o IPI e o ICMS, mas o presidente, seus ministros e seus parceiros do Centrão insistem nesse remédio – inútil, custoso e desastroso para os governos, para os serviços prestados à população e para a maioria das famílias.

Além de grotesco, foi assustador o espetáculo protagonizado pelo presidente Bolsonaro na segunda-feira à noite, quando anunciou planos de redução de impostos federais e estaduais para baratear combustíveis, energia elétrica, transportes públicos e serviços de comunicação. Reduzida a pronunciamentos de autoridades, embora devesse ter sido uma entrevista coletiva, a manifestação foi um indisfarçável evento eleitoral. Igualmente indisfarçável foi sua improvisação.

Bolsonaro e ministros chegaram em primeiro lugar e esperaram por vários minutos o aparecimento dos presidentes da Câmara e do Senado, numa inversão dos padrões protocolares. Durante a apresentação, o advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, circulou por trás das autoridades e ficou junto de ministros, durante algum tempo. Ninguém explicou sua presença no anúncio-comício. Mas o evento suscitou outras questões importantes para quem se preocupa com os aspectos mais prosaicos da administração pública.

Quanto o governo federal terá de pagar aos Estados para compensar as perdas de receita do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)? De onde virá esse dinheiro? Que garantia terão os governadores de receber essa compensação? Nenhuma resposta satisfatória foi apresentada durante as falas das autoridades. O ministro da Economia mencionou, depois dos discursos e já na saída, um possível custo de até R$ 50 bilhões.

O dinheiro poderá sair da receita de privatização da Eletrobras – uma fonte ainda incerta – ou dos dividendos da Petrobras. Esses detalhes confirmam claramente a improvisação do lance eleitoral. Além disso, a transferência da verba aos Estados implicará um rompimento do teto de gastos. Para realizar esse dispêndio, o Executivo federal dependerá da aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) – mais um fator de insegurança. A palavra improviso tem um sentido muito menos nobre, neste caso, do que quando aplicada a um lance genial de um grande jogador de futebol ou à execução de um trecho de jazz por um músico de talento notável.

Empenhados em limitar o uso do ICMS pelos governos estaduais, líderes do Centrão, como o presidente da Câmara, participam da jogada eleitoral do presidente Jair Bolsonaro. Também fazem o próprio jogo, é claro, e com isso atropelam os valores federativos e comprometem a capacidade administrativa de governadores e prefeitos (municípios têm direito a uma parte do maior tributo estadual). Podem reduzir temporariamente os preços de combustíveis e de alguns serviços, mas sem impedir novos aumentos, porque estes independem dos impostos indiretos. Quando se considera este ponto, fica ainda mais ostensiva a trapaça envolvida na manobra de Bolsonaro e de seus parceiros.

Se estivessem de fato empenhados em favorecer os mais vulneráveis, presidente e Centrão poderiam formular, por exemplo, um esquema de subsídio ao gás de cozinha ou ao transporte público. Mas, se Bolsonaro tivesse esse tipo de preocupação, o Brasil teria chegado ao quarto ano de seu mandato com desemprego muito menor, inflação mais contida e nenhum centavo consumido num orçamento secreto. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08.06.22

terça-feira, 7 de junho de 2022

STF derruba liminar que restabeleceu cassação de deputado bolsonarista pelo TSE

O julgamento foi definido com o voto do ministro Gilmar Mendes, que seguiu a divergência aberta pelo ministro Edson Fachin e acompanhada por Ricardo Lewandowski. Nunes Marques, que na última quinta-feira deu uma liminar devolvendo o mandato ao parlamentar, foi seguido apenas por André Mendonça.

Segunda turma do STF decide sobre cassação de Fernando Francischini pelo TSE — Foto: Divulgação

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou, por três votos a dois, a decisão do ministro Nunes Marques e manteve a cassação do deputado estadual bolsonarista Fernando Francischini (União-PR) por propagação de fake news contra as eleições. O parlamentar perdeu o mandato após decisão Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em outubro de 2021.

— O discurso de ataque sistemático a confiabilidade às urnas noa pode ser considerado como tolerável no estado democrático de direito, especialmente por um pretende a cargo político com larga votação. Tal conduta ostenta gravidade ímpar, que pode comprometer o pacto social em torno das eleições —, disse Gilmar.

Ao abrir a divergência, Fachin, que já havia votado pela cassação de Francischini no TSE em outubro de 2021, rechaçou os argumentos de que os ataques do deputado às urnas não teriam tido impacto capaz de levar à perda do mandato.

— Não há direito fundamental para propagação de discurso contrário à democracia. O silêncio deste STF diante desta prática configuraria em grave omissão constitucional e descumprimento de suas nobres atribuições — disse Fachin.

Argumentou ainda o ministro:

— A existência de um debate livre não compreende o salvo conduto para agir, falar ou escrever afirmações notoriamente falsas ou sabidamente sem fundamentos que só visam tumultuar o processo eleitoral. Não existe direito fundamental em atacar a democracia — afirmou.

O julgamento foi marcado nesta segunda-feira por Nunes Marques, que também é presidente da Segunda Turma, poucas horas antes do início do julgamento pelo plenário virtual de um recurso que questionava a sua decisão. Essa análise foi paralisada após um pedido de vista do ministro André Mendonça. Ambos foram indicados ao STF pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

O julgamento de Francischini foi o primeiro em que houve condenação de um parlamentar por fake news no TSE e é considerado um marco para casos parecidos. Na decisão favorável ao deputado, Nunes Marques se posicionou contra, entre outras pontos, à decisão do TSE de aplicar às redes sociais as mesmas regras previstas para uso indevido dos meios de comunicação, ponto trazido pela defesa.

O magistrado também entendeu que faltam elementos que comprovem o comprometimento da disputa eleitoral em decorrência da live do deputado, feita em 2018, na qual afirmou, sem provas, que as urnas eletrônicas estavam fraudadas para impedir a eleição de Jair Bolsonaro.

Mariana Muniz, de Brasília-DF para O Globo, em 07.06.22.

A polarização e o debate político-eleitoral deficitário

A bipolaridade mitológico-maniqueísta enfraquece a democracia e não dá conta da complexidade da nossa sociedade.

Qualquer debate sustentado numa polarização despreza a natureza complexa da realidade, que é um grande meio de campo múltiplo, diversificado e rico de possibilidades históricas. Especialmente na política, isso não dialoga com a potência do amplo leque de ideias, projetos e programas de ação que a vivacidade humana enseja e reclama para a construção da vida civilizada.

Assim, a discussão política reduzida a dois polos fica limitada em meio à constelação de alternativas, constrange, faz pouco-caso da amplitude de oportunidades de viabilizar as transformações socioeconômicas sempre tão urgentes e renovadas pelo andor da história. Como nos lembrou o saudoso geógrafo Milton Santos, a política é a “arte de pensar as mudanças e torná-las efetivas”. Desse modo, pode-se dizer que política polarizada é política deficitária.

Como alcançar a visão, as conversas abrangentes e densas requeridas pela ação política numa contingência de restrições de perspectiva e limitação de rumos à caminhada? Como, numa realidade de polarização hostil, superar as distâncias entre os polos e construir pontes que nos levem ao virtuoso caminho do meio? Como ir além da esquematização reducionista pautada pelo populismo antidemocrático, de um lado, e pelo populismo anacrônico, de outro?

Em resumo, este é o gigantesco desafio que se apresenta em ano de uma eleição vital para os destinos de nossa nação: escapar das armadilhas populistas que empobrecem o debate político-eleitoral ou, antes, o sequestram da agenda da realidade massacrante.

O populismo afeta democracias mundo afora, não é doença tropical. Mas, dadas as condições de nossa realidade, os estragos causados na cambaleante condição da vida socioeconômica e político-cultural nacional são dramáticos.

Perder a oportunidade de debates consistentes, distanciados de delírios tanto na fabulação de problemas quanto na imaginação de soluções, é algo com repercussões graves para o hoje e para o amanhã. Ao nos alienarmos da vida real, estamos pisando fundo no acelerador de históricas mazelas brasileiras, especialmente a desigualdade, o empobrecimento da população e o desperdício de oportunidades de efetivo desenvolvimento.

Com razão e emoção, os agentes políticos e a sociedade civil precisam estabelecer diálogos em torno de problemas concretos, em busca de soluções modernas e eficazes, tornando tanto o debate quanto a ação política contemporâneos do nosso tempo. Só assim passaremos a trilhar o caminho da transformação de nossos potenciais em prosperidade compartilhada.

Essa agenda, que tenho chamado de “novo início” nacional, só deslancha com a realização de reformas estruturantes. Não dá para seguirmos com um sistema tributário caótico, colocando-se como correntes que aprisionam e impõem uma letargia intolerável e incompatível às nossas possibilidades econômicas. A máquina governativa deve deixar de ser nicho de patrimonialismos e seara de ação corporativista e se atualizar aos padrões do digital.

É urgente investir na educação básica, incluindo tempo integral na escola e formação técnico-profissionalizante no ensino médio. Pela relevância do SUS na pandemia, ficou claro que é preciso reforçar o sistema público da saúde, especialmente nos aspectos gerenciais. A segurança pública é outro assunto urgente a ser tratado. É preciso reorganizar as políticas assistenciais para que sejam efetivamente uma ação de superação da vergonhosa realidade de concentração de renda no País.

São emergenciais a ampliação do mercado de trabalho e a dinamização da economia com incremento de incentivos à pesquisa científica e à inovação. A proteção e a preservação do meio ambiente, em especial a Amazônia, devem compor políticas públicas vigorosas, que incluam o combate a crimes como desmatamento, garimpo ilegal e grilagem de terra, e que ajudem a gerar renda e valor para a população da Amazônia, entre a qual muitos vivem abaixo da linha de pobreza.

Precisamos estar aptos a aproveitar as possibilidades da digitalidade, das demandas por infraestrutura (portos, ferrovias, dados/5G, rodovias, energia, saneamento, entre outros), da ampliação das interfaces econômicas do Brasil com o mundo e da extraordinária janela de oportunidade, para nós, da economia verde.

Essa monumental agenda, tanto de desafios quanto de oportunidades, hoje está sombreada por um debate político-eleitoral empobrecido, esvaziado pela polarização e imantado pelo culto ao personalismo, dia a dia alimentado e, infelizmente, ampliado pelos tentáculos de redes sociais perversamente instrumentalizadas.

O Brasil precisa ultrapassar a cilada da bipolaridade mitológico-maniqueísta, que enfraquece a democracia, não dá conta da complexidade da nossa sociedade, mascara a efetiva potência da política e só fortalece a marcha da insensatez que compromete ainda mais a nossa caminhada histórica rumo a um tempo de justiça social e inclusão econômica de verdade.

Paulo Hartung, o autor deste artigo, economista, Presidente Executivo da IBÁ, membro do Conselho Consultivo do RenovaBR, foi Governador do Estado do Espirito Santo por quatro mandatos (2003/2010 e 2018/2021). Publicado originalmente n'O REstado de São Paulo, em 07.06.22

Autoritários temem a imprensa livre

A recessão democrática está intimamente ligada às agressões à liberdade de imprensa, mas o jornalismo seguirá firme em sua missão de viabilizar a democracia

Nunca, desde a redemocratização, foi tão importante celebrar este Dia Nacional da Liberdade de Imprensa. A crise é global, mas no Brasil é particularmente aguda.

Democracia e liberdade de expressão são tão visceralmente ligadas que é impossível dizer qual é a causa e qual a consequência. Não surpreende que as instituições que as encarnam – o Estado de Direito e a imprensa independente – estejam sob pressão.

Institutos responsáveis por monitorar liberdades apontam unanimemente uma recessão da democracia no mundo. De acordo com a Freedom House, só 13% da população mundial goza de uma imprensa livre. Segundo o V-DEM, as ameaças às liberdades de expressão e imprensa respondem por 8 entre 10 indicadores em declínio no maior número de países na última década.

Superpotências totalitárias como China e Rússia multiplicam arsenais de desinformação e repressão. No Ocidente, a promessa das redes digitais de ampliar a pluralidade e a liberdade de opinião malogrou. A lógica de impulsionamento dos algoritmos favorece o sensacionalismo e a agressividade. Cresce o número de políticos que, auxiliados por tropas de robôs, usam táticas digitais para intimidar adversários e distorcer eleições.

O kit dos populistas iliberais, do México à Hungria e à Índia, inclui pressão financeira sobre a imprensa independente, privilégios a plutocratas alinhados ao regime e abuso das leis contra a desinformação. O assalto ao Congresso dos EUA mostra que a indústria da desinformação pode atingir o coração da democracia mais rica, longeva e poderosa do planeta. A pandemia mostrou que a desinformação pode ser literalmente uma questão de vida ou morte.

No Brasil, segundo o V-DEM, na última década a liberdade de imprensa, num índice de 0 a 1, se contraiu de 0,94 a 0,54. É alarmante – e sintomático – que os dois movimentos políticos que lideram as pesquisas de intenção de voto sejam os mais hostis à imprensa independente da Nova República.

Lula da Silva já disse que o “controle social da mídia” é uma de suas prioridades. Jornalistas que cobrem eventos do PT são ainda hoje hostilizados e agredidos, e não surpreende que o lulopetismo tenha consagrado a expressão “Partido da Imprensa Golpista”.

Tampouco surpreende que Jair Bolsonaro tenha dito que “o maior problema do Brasil não é com alguns órgãos, é a imprensa”. Em seu mandato, a opacidade e a hostilidade à imprensa transformaram-se em políticas de governo. O decreto de sigilos e as restrições à Lei de Acesso à Informação se multiplicaram. Diretores de órgãos de Estado que divulgam dados incômodos são sistematicamente exonerados e vilipendiados. As redes sociais bolsonaristas foram alçadas a instrumentos de consulta pública. Ao mesmo tempo, o governo editou decretos alterando abruptamente regras de publicações de editais e documentos societários assumidamente para prejudicar órgãos de imprensa. Quando o próprio presidente chega a ameaçar “encher” um jornalista de “porrada”, não surpreende que os ataques morais e físicos a jornalistas tenham aumentado.

Nem por isso a imprensa se calou. Dela veio a apuração de esquemas antirrepublicanos, como mensalões, petrolões, rachadinhas e orçamentos secretos. Na pandemia, ela foi obrigada a criar um consórcio para divulgar informações confiáveis. Para as eleições, 42 veículos se uniram no projeto Comprova para checar desinformações.

Mais do que o direito, a imprensa tem o dever de incomodar, não só os donos do poder, como os próprios leitores. Ao contrário das redes sociais, os órgãos de imprensa têm responsabilidades editoriais, acima de tudo com os fatos. Ao contrário dos influencers, os jornalistas têm a missão de lançar luz onde as pessoas não gostam e ouvir opiniões divergentes em um espaço genuinamente plural.

Como disse Hannah Arendt, “o súdito ideal não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe diferença entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o falso”. Eis o sonho de todo autoritário. A imprensa no Brasil não renunciará à missão de ser o seu pesadelo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 07.06.22

segunda-feira, 6 de junho de 2022

A morte

O Brasil vive um período delicado. Um jogo político com a morte. A sociedade não pode pactuar com tal tipo de ‘brincadeira macabra’.

A morte é o destino dos seres humanos, ao fim de um ciclo natural de vida, que se apresenta como uma espécie de enigma da condição humana. De toda maneira, as pessoas se acostumam gradativamente com essa ideia através da idade e de doenças sucessivas. Logo, passa a ser tida por normal, embora essa normalidade seja a do corpo inerte tomado por bactérias e vermes. A religião veio a ser uma forma de conforto, graças a ideias como a de “salvação”, “outro mundo” e “vida eterna”, entre outras acepções. Pascal, célebre filósofo católico, dizia que a vida era uma forma de “distração”, de “divertimento”, usufruída pelas pessoas procurando esquecer a morte inexorável.

Estados totalitários, aqui, inovaram. Tiraram a morte do seu ciclo natural e conferiram-lhe uma significação propriamente política, de poder, submetendo agrupamentos humanos por raça, religião ou mera diversidade à violência extrema. No nazismo, seres humanos, como judeus, homossexuais, ciganos e testemunhas de Jeová, considerados como “subumanos”, terminaram, por via de consequência, seus dias em câmaras de gás e nos crematórios. Extirpados da categoria dos humanos, a morte violenta lhes foi imposta.

Os comunistas não ficaram atrás, decretando a morte violenta pela fome orquestrada, imposta pela violência política a aproximadamente 3,2 milhões de ucranianos num evento que passou a ser denominado de Holodomor, morte por inação, num episódio da fome planejada pela polícia política stalinista nos anos 30 do século passado, com homens e mulheres esquálidos, cadáveres ambulantes, tendo o canibalismo como um de seus efeitos.

O processo civilizatório tem se caracterizado por prolongar a vida, por evitar a morte violenta, em sociedades que se organizam pela segurança pública, por sistemas de saúde públicos e privados, pelo avanço científico e tecnológico. As pessoas se sentem assim seguras, reconfortadas e evitam a morte, tida por uma forma arbitrária e injustificada de violência. Coisas tão simples como remédios e vacinas, além da integridade física que estaria ao abrigo do arbítrio, são manifestações deste progresso, considerado, então, como algo normal. O que ocorre, porém, se cenas de violência, patrocinadas inclusive por forças policiais, põem em xeque tal concepção?

Um cidadão normal, chamado Genivaldo, foi gasificado num porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal no Estado de Sergipe. O espetáculo do horror introduz a morte violenta patrocinada pelo Estado, cuja função – convém sempre lembrar – consiste em proteger a vida e o patrimônio dos cidadãos. Hobbes já dizia que essa é sua função essencial, sem a qual a sociedade recairia num estado de selvageria, denominado por ele de guerra de todos contra todos. A justificativa inicial utilizada pelo arbítrio foi a de um “mal súbito” sofrido pela vítima, expressão que só pode ser considerada como uma piada macabra. Mal, sim, existe, mas o de uma sociedade que começa a se acostumar com tal tipo de arbitrariedade. Súbito, sim, o descaramento e a ausência de compaixão.

A chacina no Rio de Janeiro, com forças policiais agindo impunemente, matando inocentes no máximo arbítrio, expõe essa faceta de uma sociedade que perde controle de si. A polícia, pilar da organização estatal, abandona sua função, fazendo com que pessoas pereçam pela morte violenta. A segurança dos cidadãos não é mais assegurada de uma forma aberta. Nem o disfarce é utilizado. Se o Estado não cumpre mais sua missão, o que podemos esperar, senão a irrupção da crueldade, da selvageria? Há justificativa para isso?

Em Pernambuco, mais de uma centena de pessoas foi vítima de inundações e desabamentos, em outro teatro do horror que apenas escancara o que já vem acontecendo em outras cidades. Nada disso é normal, na acepção de que seria inevitável. Calamidades naturais fazem parte do mundo, mas o que diferencia um Estado de outro são a prevenção e a forma de enfrentamento desse tipo de fenômeno. Sismógrafos foram inventados para prevenir as consequências desastrosas de terremotos, com operações de defesa civil e afastamento da população atingida para outras regiões. Habitações em zonas de risco podem ser solucionadas por políticas habitacionais e outras ações estatais. Foi mais uma vez desastroso o discurso presidencial, ao considerar as catástrofes como “naturais”. Seus efeitos não o são, se houver políticas sociais ancoradas na ciência e na tecnologia.

O Brasil vive um período particularmente delicado, pois estas formas de “morte social” passam a ser tidas por normais. Nem a compaixão se faz mais presente nas ações governamentais. Se o Estado não se impõe, protegendo os malfeitores e relegando os policiais honestos e conscientes, é porque se encaminha para formas autoritárias. Trata-se, na verdade, de um jogo político com a morte. A sociedade não pode pactuar com tal tipo de “brincadeira macabra”.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na UFRGS, Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Pubicado originalmente em 06.06.22