quarta-feira, 4 de maio de 2022

Múltiplos vícios de inconstitucionalidade no decreto de indulto de Bolsonaro

Celso de Mello, Ministro aposentado e ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, analisa a graça do Presidente da República na condenação do deputado bolsonarista

Só posso apoiar e concordar, integralmente, com o que a comunidade jurídica tem dito e enfatizado por intermédio de juristas eminentes, em manifestações agora reforçadas pelo brilhante e primoroso parecer do professor Lenio Streck, relator da matéria na Comissão de Estudos Constitucionais da OAB Federal, que se pronunciou, com substanciosa (e inatacável) fundamentação, pela inconstitucionalidade do decreto de indulto individual (ou de graça em sentido estrito) editado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Nesse ato presidencial, vislumbram-se múltiplos vícios de inconstitucionalidade, como ofensas patentes aos princípios da impessoalidade, da separação de poderes, da moralidade, da proteção penal insuficiente (dimensão negativa do postulado da proporcionalidade), tudo a por em evidência o claro (e censurável) desvio de finalidade que contamina e transgride o coeficiente de validade desse decreto juridicamente imprestável!!! Não se pode desconhecer que o desvio de finalidade qualifica-se como vício gravíssimo apto a contaminar a validade jurídica do ato estatal, mesmo quando fundado no poder discricionário do agente público (no caso, o presidente da República) , inquinando-o de nulidade, tal como adverte o magistério de eminentes doutrinadores (HELY LOPES MEIRELLES, "Direito Administrativo Brasileiro", p. 176, item n. 1.2.2, 42a ed., 2016, Malheiros; FERNANDA MARINELA, "Direito Administrativo", p. 341/342, item n. 3.5, 10a ed., 2016, Impetus; MÁRCIO PESTANA, "Direito Administrativo Brasileiro", p. 273, item n. 9.4.5, 2a ed., 2010, Campus Jurídico; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, "Curso de Direito Administrativo”, p. 203/204, item n. 5.1.4, 9a ed., 2008, Malheiros; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, "Direito Administrativo", p. 216/217, item n. 7.7.4, 25a ed., 2012, Atlas; MARÇAL JUSTEN FILHO, "Curso de Direito Administrativo", p. 431/434, item n. 7.15.4.5, 11a ed., 2015, RT; EDIMUR FERREIRA DE FARIA, "Curso de Direito Administrativo Positivo", p. 263/264, item n. 7.4, 6a ed., 2007, DelRey; DIOGENES GASPARINI, "Direito Administrativo", p. 44/45, item nº 4, 1989, Saraiva; CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, "Curso de Direito Administrativo", p. 410, item n. 46, 29a ed., 2012, Malheiros; RAQUEL MELO URBANO DE CARVALHO, "Curso de Direito Administrativo: Parte geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração", p. 383/389, item n. 2.5, 2008, JusPODIVM, v.g.).

A configuração desse grave vício jurídico, que recai sobre um dos elementos constitutivos do ato administrativo, pressupõe a intenção deliberada, por parte do administrador público, de atingir objetivo vedado pela ordem jurídica ou divorciado do interesse público, tal como tive o ensejo de advertir em decisão proferida no Supremo Tribunal Federal, apoiando-me, para tanto, em importante magistério doutrinário  (JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, "Manual de Direito Administrativo", p. 118/119, item n. 5, 25a. ed. 2012, Atlas. v.g.).

A prática desviante de conduta ilegítima, como essa em que Bolsonaro incidiu, revela-se , no caso desse inconstitucional decreto presidencial, pela prova inequívoca de que o Chefe de Estado, não obstante editando ato revestido de aparente legalidade, valeu-se desse comportamento político-administrativo para perseguir e realizar fins completamente desvinculados do interesse público! Advirta-se, finalmente, que, mesmo atos de perfil discricionário , estão sujeitos ao controle jurisdicional quanto à sua legitimidade constitucional.

O antijudiciarismo que nega a possibilidade de fiscalização jurisdicional dos atos em geral, inclusive os de natureza estatal, nada mais reflete senão típica característica de regimes autocráticos, que temem o controle de seu comportamento por juízes e Tribunais independentes! A inafastabilidade do judicial review constitui, como lembra o saudoso publicista espanhol García de Enterría, "o parágrafo régio do Estado de Direito" fundado em bases eminentemente democráticas!

É plena (e legítima) a sindicabilidade jurisdicional de qualquer ato estatal, ainda que discricionário e impregnado de índole política, se houver incidido em transgressão à ordem constitucional! Essa orientação, além de antiga e correta, traduz posição consagrada pela jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, como o revela julgado da nossa Corte Suprema proferido no final do governo do Marechal Hermes da Fonseca, ocasião em que o STF, em 23 de maio de 1914, assim se pronunciou:  "(….) Desde que uma questão [de governo ou de natureza política — observação minha] está subordinada a textos expressos na Constituição, deixa de ser questão exclusivamente política" e, em consequência, expõe-se ao controle do Poder Judiciário!!!"

José Celso de Mello Filho, o autor deste artigo, foi Presidente do Supremo Tribunal Federal e decano da Corte. Publicado originamente pelo Consultor Juridico, em 04.05.22.

Vendilhões da democracia

É estarrecedor que membros de MDB e PSDB, partidos ligados às lutas democráticas, sejam coniventes com Bolsonaro. Por benefícios de curto prazo, transigem com princípios inegociáveis

É triste constatar que a maioria do MDB, partido cuja história está diretamente vinculada à restauração da democracia no País e à Constituição de 1988, não veja problemas em aderir ao bolsonarismo. Segundo revelou o Estadão, se o MDB declinar da decisão de ter candidatura própria ao Palácio do Planalto, a maioria do partido inclina-se por apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro. Os dados são de uma sondagem feita pelo MDB entre seus prefeitos, bancadas e delegados eleitos pelos diretórios estaduais.

Ainda que não diminua sua responsabilidade, é preciso reconhecer que o MDB não está sozinho nessa proximidade com o presidente da República que afronta as instituições, põe em dúvida o processo eleitoral e tenta envolver as Forças Armadas em devaneios golpistas. Também parte significativa do PSDB, especialmente na Câmara dos Deputados, não vê empecilhos em alinhar-se ao bolsonarismo. Citam-se os dois partidos por seu histórico de defesa do regime democrático, mas há também outras legendas que tratam Jair Bolsonaro como um útil parceiro.

Observa-se, assim, um nítido decaimento da consciência cívica não apenas em parte da população – há, por exemplo, quem saia à rua para pedir o fechamento da Corte constitucional –, mas da própria classe política. É um nível de retrocesso ainda mais preocupante, pois se dá em pessoas que, pela própria trajetória profissional, deveriam ser especialmente cuidadosas com o regime democrático e as suas instituições. Como um deputado, por exemplo, pode apoiar um presidente da República que questiona, sem nenhuma prova, a lisura das eleições? Como um parlamentar pode apoiar um movimento político que, entre suas causas, defende o AI-5, pede o fechamento do Congresso e postula o retorno da ditadura militar?

É constrangedor, deve-se admitir, que parte da população defenda essas barbaridades, numa imitação irrefletida do que Jair Bolsonaro defendeu ao longo de sua carreira política. Nenhuma das bandeiras antidemocráticas do bolsonarismo ajuda a resolver, por mínimo que seja, algum dos problemas e desafios nacionais. Além disso, não faz sentido que alguém que se considere defensor das liberdades de expressão e de opinião manifeste apoio à reedição do AI-5. Agir assim expressa profunda ignorância histórica, constitui evidente manipulação política.

Mas ainda mais chocante e constrangedor é constatar que partidos políticos que, de uma forma ou de outra, participaram da luta pela redemocratização – o PSDB, por exemplo, nasceu do MDB, que era oposição ao governo militar – sejam coniventes com a agenda bolsonarista. Nessa indignação aqui não há nenhuma ingenuidade. É notório que esses partidos, especialmente os seus grupos mais próximos ao bolsonarismo, estão sendo fartamente alimentados pelo governo federal por meio das mais variadas emendas e de outras verbas públicas. Ninguém esconde isso, nem mesmo Jair Bolsonaro. Com sua falta de modos, o bolsonarismo instaurou em Brasília um ambiente de escárnio em relação à compra de apoio político. Tudo é respondido com um “e daí?”.

O grande problema, para o qual os partidos perigosamente fazem vista grossa, é que o bolsonarismo não é apenas um governo fraco e omisso, com o qual políticos hábeis podem lucrar muito no curto prazo. Jair Bolsonaro ameaça o livre funcionamento das instituições, a começar pela Justiça Eleitoral. Ou seja, ele coloca em risco a própria continuidade dos partidos. Na contagem paralela de votos do bolsonarismo, quem garante que os votos dados para o MDB e o PSDB irão mesmo para os dois partidos? No sonho bolsonarista de ter um Judiciário refém do Executivo, não há espaço para demandas contrárias aos interesses de Jair Bolsonaro.

A conivência dos partidos, especialmente MDB e PSDB, com o golpismo de Jair Bolsonaro é muito perigosa. Tolera-se o intolerável. Normaliza-se um antirrepublicano e inconstitucional exercício do poder. E tudo isso vindo de legendas que, como se viu nas eleições de 2020, não precisam de Jair Bolsonaro para ser competitivas nas urnas.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 04 de maio de 2022 | 03h00

Militares fazem 88 questionamentos ao TSE e repetem discurso de Bolsonaro

General que representa Forças Armadas em comissão do tribunal levanta dúvidas sobre votação e apuração; em resposta, Corte diz que já garantiu segurança do sistema eleitoral

Os militares enviaram uma sequência de cinco ofícios sigilosos assinados pelo general de Divisão do Exército Heber Garcia Portella, que participa da Comissão de Transparência do TSE. Foto: Wilton Junior/Estadão

As Forças Armadas enviaram 88 questionamentos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nos últimos oito meses sobre supostos riscos e fragilidades que, na visão dos militares, podem expor a vulnerabilidade do processo eleitoral. A maioria das perguntas reproduz o discurso eleitoral do presidente Jair Bolsonaro, que tem colocado em dúvida a segurança das urnas eletrônicas e mantido a própria atuação da Corte sob suspeita.

Os militares enviaram uma sequência de cinco ofícios sigilosos assinados pelo general de Divisão do Exército Heber Garcia Portella, que participa da Comissão de Transparência do TSE. Foto: Wilton Junior/Estadão

As desconfianças foram levantadas apesar de os órgãos de investigação nunca terem detectado fraudes no sistema eletrônico de votação. Ao contrário. No ano passado, a Polícia Federal vasculhou inquéritos abertos desde que as urnas eletrônicas passaram a ser usadas, na década de 1990, e não encontrou sinais de vulnerabilidade do equipamento. Os registros de irregularidades ocorreram, na realidade, quando a votação ainda era em cédula de papel. Depois da adoção das urnas eletrônicas, o TSE passou a submeter o equipamento a teste por hackers e não houve constatação de riscos. 

Os militares enviaram uma sequência de cinco ofícios sigilosos assinados pelo general de Divisão do Exército Heber Garcia Portella, que participa da Comissão de Transparência do TSE. Quatro deles já receberam respostas, e um ainda aguarda pela manifestação da Corte. Portella foi indicado para a missão pelo então ministro da Defesa, Walter Braga Netto, hoje cotado para vice na chapa de Bolsonaro. Procurado, o Ministério da Defesa não se manifestou.

Na escalada dos embates com o Judiciário, o presidente expôs um dos temas remetidos pelos militares ao TSE, cujo conteúdo ainda não foi divulgado: a montagem de uma sala de apuração paralela que pudesse ser monitorada pelas Forças Armadas. Hoje, existe um espaço no tribunal onde fica o centro nervoso da totalização dos votos. No dia 27, Bolsonaro defendeu a instalação de “um computador das Forças Armadas, para contar os votos no Brasil”. 

A lista de inquirições apresentadas pelos militares nos últimos meses pode ser dividida em cinco grupos: questionamentos sobre o teste de integridade das urnas eletrônicas; perguntas sobre o nível de confiança nos sistemas de votação e apuração dos votos; solicitação de documentos, listagens, relatórios e outras informações sobre as políticas do tribunal; indagações gerais sobre o funcionamento das urnas; e propostas de aperfeiçoamento da transparência da Corte.

Por meio do general, as Forças Armadas chegaram a questionar o TSE sobre os procedimentos que a área de tecnologia da informação do tribunal usa em caso de invasão aos sistemas. Outra pergunta sensível tratou da frequência com que a Corte verifica se há programas de “invasores” no sistema operacional das urnas. 

Os militares ainda levantaram a hipótese de a eleição ser decidida por um número de votos menor do que o eventualmente registrado em urnas que viessem a entrar em pane. Eles questionaram até mesmo o fato de o novo modelo da urna eletrônica, fabricado em 2020, ter uma porta de acesso para pen drive. 

Entre as questões está a cobrança para que a Corte adote medidas para prever e divulgar antecipadamente “as consequências para o processo eleitoral, caso seja identificada alguma irregularidade”. O TSE respondeu a cada um dos questionamentos com o detalhamento das soluções previstas na legislação eleitoral e apontou haver soluções até mesmo nos cenários mais remotos.

O papel mais ativo dos militares no processo eleitoral vem sendo defendido pelo presidente desde o ano passado. Em julho de 2021, o Estadão mostrou que Braga Netto, ainda como superior hierárquico do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, enviou recado para a cúpula do Congresso de que não haveria eleição sem o voto impresso.

Sem obter sucesso nessa investida, Bolsonaro passou a atribuir aos militares a função de garantidores da lisura das eleições, missão que vem sendo contestada no TSE e também no Congresso. Partiu da Corte eleitoral, no entanto, a iniciativa de convidar os militares para participar de uma comissão com a possibilidade de contribuir com sugestões para dar ainda mais transparência ao processo eleitoral.

Diante da pressão de Bolsonaro por maior protagonismo dos militares, o ex-presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso expôs seu descontentamento em uma palestra a estudantes na Alemanha. Ele afirmou que havia tentativa de usar as Forças Armadas para pressionar o processo eleitoral. Em resposta, Bolsonaro subiu o tom contra o Judiciário e passou a defender a apuração paralela.

Das 88 indagações, 81 constavam de um documento sigiloso elaborado pelas Forças Armadas, mas que foi vazado em fevereiro deste ano. A Corte, então, decidiu divulgar os questionamentos e chegou a emitir uma nota com esclarecimentos. O vazamento foi usado politicamente por Bolsonaro, que acusou o tribunal de ignorar as recomendações dos militares, o que foi desmentido pela Corte.

Outras sete manifestações dos militares ainda não foram formalmente divulgadas. Segundo o TSE, isso ocorreu porque chegaram após a conclusão do “Plano de Ação Para Ampliação da Transparência Eleitoral” – que prevê melhorias nos processos da instância superior da Justiça Eleitoral. Em nota encaminhada ao Estadão, a Corte afirmou que “tais questionamentos ainda estão em análise e serão incorporados ao relatório e divulgados em breve”.

Procurado, o Ministério da Defesa não se manifestou.

Weslley Galzo, O Estado de S.Paulo, em 04 de maio de 2022 | 05h00

segunda-feira, 2 de maio de 2022

S.O.S. democracia do Brasil

Qualquer caminho político precisa passar, necessariamente, pela recuperação da terra arrasada no campo anticorrupção.

Em todos os governos, inclusive no atual, há corrupção. E sempre haverá. Ela é inextinguível. Mas deve ser (e não está sendo) controlada – verdade nua e crua, que as marquetagens tentam encobrir. Nas eleições de 2020, bom termômetro destes tempos, um ex-prefeito de Cocal (PI) se autoproclamou honestíssimo, por roubar menos que o atual, indicando, pelo caráter amplo e geral da análise, que há algo de podre no reino da República Federativa do Brasil, parafraseando Shakespeare.

Domamos a inflação e lidamos com os traumas de dois impeachments e diversas crises econômicas. Mas temos sofrido com as fissuras das dilacerantes desigualdade e injustiça sociais, com o egoísmo fornecido pela cultura de um compadrio secular nepotista, pela fome cega por cargos de confiança e espaços de poder.

A Lei de Acesso à Informação (LAI), que neste mês completa dez anos, representou marco divisor de águas em matéria de direitos civis, instalando luz do sol como desinfetante universal. Para que as trevas não pudessem ser usadas como escudo covarde. Para que não mais houvesse o uso abusivo do sigilo dos tempos sombrios da ditadura, das salas escuras de tortura, com ratos e até cobras – verdade histórica notória, só não admitida pelos ignorantes, ignóbeis e insensíveis.

Mas, passados dez anos, os detentores do poder, em geral, não oferecem a transparência que deveriam. Isso ficou nítido por ocasião da pandemia – os sites dos governos estaduais e municipais, que deveriam prestar contas das contratações emergenciais, não foram criados de forma natural. Precisamos de um consórcio de veículos de comunicação para lidar com o apagão federal de dados. Tivemos o bloqueio à informação sobre o número de encontros entre os pastores com o presidente, integrantes eles do gabinete oculto do Ministério da Educação. O uso abusivo do sigilo pelo presidente da República chega a ponto de responder a um cidadão “fique aí, esperando por cem anos por informação...”.

Foram 45 os encontros dos pastores com o presidente, e o ministro da Educação já havia revelado que Bolsonaro dera ordens para atender prioritariamente aos pleitos da dupla. Que tipo? Os pastores são lobistas – os prefeitos os procuravam para conseguir liberar verbas devidas, e a moeda indevidamente exigida variava, podendo, inclusive, ser ouro.

O escândalo derrubou o ministro, pastor Milton Ribeiro, assumindo em seu lugar o quinto em pouco mais de três anos, para ter ideia da pouca relevância da política pública da educação hoje. Registre-se que os desmandos neste campo estão sendo devidamente investigados pelo Ministério Público Federal (MPF) em diversos procedimentos. Deve-se distinguir o papel do MP como instituição daqueles atinentes ao procurador-geral da República (PGR), que não tem vislumbrado violações pelo presidente, que nomeou e reconduziu ao cargo dois anos depois quem o fiscalizaria, nos termos da Constituição, lembrando que o escolhido não era integrante da lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).

Corrupção sempre houve e continua existindo; inédito é o processo de enfraquecimento das instituições que vem sendo orquestrado nos últimos três anos e quatro meses. As leis anticorrupção foram literalmente esmagadas pelo Congresso, com patrocínio do governo federal; são sucessivas as trocas da direção-geral da Polícia Federal, até se encontrar o grau de subserviência pretendido, em amigo pessoal do filho do presidente. Pesquisa recente publicada pelo Estado de Minas com o termo corrupção o conecta mais a Bolsonaro pela primeira vez.

A grande imprensa, à exceção da bajuladora, é humilhada, deslegitimada e desacreditada diariamente, para turvar o fluxo informacional, inclusive com espancamento de jornalistas. Quem ousa querer cumprir seu papel, como o delegado Alexandre Saraiva, é sumariamente exonerado, por investigar o ex-ministro Ricardo Salles; o ministro André Mendonça foi alvo de execração pública por votar pela condenação de Daniel Silveira, sendo tratado como traidor, desrespeitado em sua independência jurisdicional, como se devesse algo ao nomeante.

Além de abusivamente conceder o presidente indulto ao parlamentar, afrontando o Supremo Tribunal Federal (STF), ao arrepio da impessoalidade e da separação dos Poderes, consagrada na Constituição, recebe Daniel, com a tornozeleira eletrônica desligada há semanas, como prêmio partidário por pregar a volta da ditadura, com embalagem fake de exercício de liberdade de expressão, a vice-presidência da Comissão de Segurança e a condição de membro da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.

Por trás de Sem corrupção e com Deus no coração, no estilo Goebbels, existe a dura realidade do esmagamento dos cânones republicanos e democráticos, em nível superlativo, nos exatos moldes desenhados por Ziblatt e Levitsky, professores de Harvard, em Como as Democracias Morrem. Cumpriu-se com precisão o roteiro.

Arruinados estamos e por isso precisaremos, como nunca, de maturidade e resiliência. Juntar cacos, dar as mãos e reconstruir nossa democracia. Qualquer caminho político precisa necessariamente passar pela premissa primeira e imprescindível do compromisso democrático, do respeito à dignidade humana, do renascimento das instituições e da recuperação da terra arrasada no campo anticorrupção.

Roberto Livianu, o autor deste artigo, é Procurador de Justiça em S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 02.05.22.

Novo extremismo de direita veio para ficar

O populismo de direita é retroalimentado pelo extremismo à esquerda. Se quiserem retomar o protagonismo, os liberais precisam ser intransigentes com o autoritarismo

A eleição do centrista Emmanuel Macron na França foi experimentada pelos liberais menos como um triunfo do que como um suspiro de alívio – e pode ser o último. O radicalismo está em ascensão – no primeiro turno, quase dois em três franceses votaram em extremistas – e o tempo está a seu favor: fossem contados só os eleitores abaixo dos 60 anos, o segundo turno seria disputado pelos radicais Jean-Luc Mélenchon, à esquerda, e Marine Le Pen, à direita, com vantagem para a última. A Reunião (antiga Frente) Nacional de Le Pen saltou de 18% dos votos no segundo turno de 2002 para 41% em 2022.

A tração do populismo de direita é comum à Europa e aos EUA. Donald Trump ainda é o republicano favorito para o pleito de 2024. No final dos anos 80, eurocéticos e nacionalistas respondiam por 9% do Parlamento europeu. Hoje são quase 20%. Aos poucos eles sugaram votos à direita: nos anos 70, democratas cristãos e conservadores tinham mais de 40% das cadeiras; hoje, têm menos de 25%

Como em todo populismo, seu conceito nuclear é a traição do “povo puro” pelas “elites corruptas”. Sua marca distintiva é o nativismo e seu autoritarismo se reveste do respeito “à lei e à ordem”. Os votos nos extremistas, especialmente à direita, crescem nas crises. O choque financeiro de 2008, a crise migratória de 2015 e a pandemia explicam muita coisa.

Mas há causas estruturais. Nos anos 50, os mais ricos e educados apoiavam partidos de direita; os pobres e menos educados, de esquerda. Dos anos 60 em diante, os eleitores mais educados aderiram cada vez mais à “nova” esquerda.

O progressismo identitário – majoritário em universidades, mídia ou classe artística –, com suas táticas autoritárias de cancelamento e intimidação e sua obsessão por desconstruir “estruturas” em favor de uma justiça restaurativa para novas castas de vítimas, funciona como uma nêmesis que retroalimenta os traços mais extremos à direita: a xenofobia, a intolerância com as minorias, as teorias conspiratórias.

“A seus modos, ambos os extremos sobrepõem o poder sobre o processo, os fins sobre os meios e os interesses de grupo sobre a liberdade do indivíduo”, diagnosticou a revista The Economist. “Quando populistas põem o partidarismo acima da verdade, sabotam o bom governo. Quando progressistas dividem as pessoas em castas em disputa, voltam a nação contra si mesma. Ambos diminuem as instituições que resolvem o conflito social. Logo, frequentemente apelam à coerção, por mais que gostem de falar de justiça.”

As conquistas do liberalismo – da extraordinária melhora no padrão de vida à expansão dos direitos humanos, sociais e civis por meio do compromisso com a dignidade individual, o livre mercado, limites aos governos e fé no progresso humano – não serão apagadas do dia para a noite. Mas, para não serem pilhadas pelas tribos extremistas, os liberais precisarão empregar suas principais ferramentas, o debate e a reforma, contra sua própria negligência e complacência.

As elites políticas precisam ser intolerantes com a corrupção e os privilégios. Mas o maior desafio é combinar convincentemente a intransigência com o autoritarismo das lideranças populistas com a empatia por seus eleitores. À esquerda, isso significa o compromisso com a igualdade de condições para que todos possam prosperar, seja qual for sua raça, gênero ou sexualidade. À direita, longe de esnobar o nacionalismo, devem reclamar para si o genuíno patriotismo, com suas próprias ideias sobre um orgulho cívico inclusivo. Isso implica descentralizar o poder e distribuí-lo às comunidades regionais, e garantir àqueles que se veem legitimamente “deixados para trás” serviços básicos de saúde, educação, transporte e segurança.

Em resumo, para vencer a batalha contra os extremos, o verdadeiro liberalismo precisará ser conservador e progressista. Ou seja, provar, a um tempo, o seu compromisso com valores universais e as instituições que os conservam e com a progressiva materialização desses valores por meio de um vigoroso reformismo rumo a uma sociedade mais livre, justa e próspera.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 02 de maio de 2022 | 03h00

O papel do Supremo na democracia

STF está sob ataque. Os cidadãos precisam entender o que está em jogo quando isso acontece e por que defender a instituição é o mesmo que defender a liberdade e a paz social

O Supremo Tribunal Federal (STF) está sob ataque. Real e simbólico. Não há outra forma de descrever as ações hostis e o desrespeito a decisões da Corte por parte do presidente Jair Bolsonaro e de parlamentares e lideranças do Congresso. O momento é gravíssimo. O País não assistia a uma afronta tão desabrida à instância máxima do Poder Judiciário desde o conflituoso mandato do presidente Floriano Peixoto (1891-1894). O “Marechal de Ferro” não era um democrata e fazia pouco-caso da tripartição dos Poderes da República e do sistema de freios e contrapesos. Assim como Bolsonaro.

Os cidadãos precisam ter em conta o que está em jogo quando o Supremo é atacado, seja por meio de ameaças explícitas ou veladas a seus ministros, servidores e familiares, depredações de suas dependências físicas ou pelo descumprimento puro e simples de suas decisões. Em outras palavras: é preciso entender qual é o papel de uma Corte Suprema na democracia e por que defender a instituição é o mesmo que defender a manutenção das liberdades civis e da paz social.

A Constituição, em seu artigo 102, delega sua guarda ao Supremo. Do ponto de vista prático, “guardar” a Constituição significa interpretar o seu texto e ter a palavra final diante de conflitos em torno de nosso pacto social. Quando o Supremo é desqualificado como última instância com poder para dirimir esses conflitos e pacificar a sociedade, rui a própria ideia da Justiça como um avanço civilizatório. A partir daí, vale tudo, não há mais limites. Comandos legais correm o risco de perder valor. Em casos extremos, cidadãos podem olhar para esse processo de deslegitimização do Supremo – liderado por altas autoridades da República, que deveriam servir como modelos de cidadania e respeito às leis – como uma espécie de autorização tácita para resolver suas contendas particulares da forma que bem entenderem, inclusive pela imposição da força bruta.

Nas noites em que consegue dormir, Jair Bolsonaro decerto sonha com esse ambiente caótico, beirando a distopia, em que a força até mesmo das armas prevalece sobre o diálogo e as leis. Uma sociedade conflagrada, sem um “árbitro” reconhecido por todos como a autoridade apta a “guardar” as regras do jogo, é tudo o que o presidente da República quer para exercitar seus delírios de poder.

Não se pode perder de vista que a campanha de difamação do Supremo capitaneada por Bolsonaro mira a desqualificação do Poder Judiciário, especificamente do Tribunal Superior Eleitoral, como garantidor do resultado das eleições de 2022, que Bolsonaro não reconhecerá caso seja derrotado. O presidente teve a audácia de pugnar até por uma “apuração paralela” do resultado das urnas pelas Forças Armadas. Isso não é autorizado pela Constituição nem tampouco é atribuição dos militares. Logo, ao atacar o guardião da Constituição, Bolsonaro pavimenta o caminho para impor as “leis” que lhe derem na veneta.

Para Bolsonaro, o arranjo institucional ideal seria o modelo pré-Revolução Americana, quando o Judiciário, antes do advento da Supreme Court, era uma espécie de anexo do Executivo. Mas nem é preciso ir tão longe no tempo. Bolsonaro já se contentaria em ver no Brasil a mesma submissão de juízes ao chefe de governo que é vista hoje em países como a Hungria e a Venezuela.

Por sua vez, o Congresso, que deveria cerrar fileiras em defesa do Estado Democrático de Direito, toma parte no conflito com o Supremo por ver no Judiciário, tal qual Bolsonaro, um anteparo às suas investidas sobre o Orçamento da União. Jamais os parlamentares se refestelaram tanto com recursos públicos como agora. Cobrados pelo Supremo a dar transparência às emendas de relator, base do “orçamento secreto”, os presidentes das duas Casas Legislativas ignoraram olimpicamente a decisão emanada do outro lado da Praça dos Três Poderes.

A sociedade brasileira precisa se erguer contra esses ataques à autoridade do Supremo. Errando ou acertando em suas decisões, um STF íntegro do ponto de vista institucional é o último refúgio antes da barbárie.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 02 de maio de 2022 | 03h00

Questionar independência do Judiciário faz parte de cartilha autoritária

Nos últimos anos, o Brasil experimentou uma série de conflitos entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Poder Judiciário, personificado na figura dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). 

A pouco mais de seis meses das eleições presidenciais, o vice-presidente de programas da organização sem fins lucrativos Freedom House, Gerardo Berthin, alerta que os questionamentos sobre a independência do Judiciário fazem parte de uma espécie de "cartilha" usada em regimes autoritários.

Nos últimos anos, presidente e Poder judiciário tiveram diversos conflitos (PR)

"Questionar a independência e a neutralidade do Judiciário faz parte da cartilha quando você está fortalecendo um regime mais autoritário", disse Berthin em entrevista à BBC News Brasil.

Berthin é especialista em governança democrática e atua na Freedom House, em Washington, DC (EUA). A instituição é uma organização não-governamental de viés liberal que faz o monitoramento do ambiente democrático em 185 países. Um dos seus produtos mais conhecidos é o relatório "Liberdade no Mundo", divulgado anualmente.

O relatório analisa quão livres são os países, com base em critérios como direitos civis e políticos e liberdade de expressão. As notas vão de 0 a 100 - quanto maior a pontuação, mais livre é o país.

Os dados da Freedom House são usados por acadêmicos e instituições ao redor do mundo como indicadores sobre a saúde da democracia em países governados tanto por políticos de esquerda quanto de direita.

Para o Brasil, no entanto, as notícias não são boas. Desde 2016, a nota do país vem caindo. Naquele ano, o Brasil atingiu a nota 81, o que o colocava no grupo das nações consideradas livres.

Em 2022, a nota chegou a 73, somente três pontos acima do mínimo para que um país seja considerado livre. Abaixo de 70, os países são classificados como "parcialmente livres". Nesta categoria, estão nações como Bolívia, Colômbia e Mauritânia.

À BBC News Brasil, Berthin afirmou que a queda no ambiente democrático no Brasil é uma das mais acentuadas nas Américas, comparável à da Venezuela, que não é considerado um país livre pela organização. Ele diz que as críticas feitas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) ao sistema eleitoral e as avaliações de alguns de que ele poderia não aceitar o resultado das eleições caso saia derrotado em outubro são motivo de preocupação.

Gerardo Berthin é vice-presidente de programas internacionais da Freedom House. Ele é especialista em governança democrática (Freedom House)

Ele diz que as eleições brasileiras serão monitoradas de perto e afirma ainda que uma possível ruptura democrática no país teria efeitos não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - A Freedom House é famosa pelo ranking sobre a democracia no mundo. De acordo com ele, a pontuação do Brasil está ficando cada vez menor desde pelo menos 2016. Em 2017, era 79 e agora é 73. Por que isso aconteceu?

Gerardo Berthin - O Brasil ainda é classificado como um país livre pela Freedom House, mas se você olhar comparativamente, ele está lá atrás, muito perto dos países considerados parcialmente livres das Américas. Estamos preocupados, principalmente, com questões relacionadas à liberdade de expressão online, que tem diminuído consistentemente nos últimos anos, particularmente no que diz respeito a ativistas e jornalistas. Eles estão enfrentando cada vez mais investigações criminais, particularmente por criticar o atual governo [...]

Neste ano em particular, a nota caiu um ponto por causa das restrições à liberdade acadêmica [...] Há vários relatos que surgiram sobre instituições federais e universidades públicas sendo ameaçadas para demitir pesquisadores depois que eles questionaram e criticaram o governo. O ato mais notável ocorreu no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Eles demitiram o diretor, Ricardo Galvão, provavelmente, por ter desafiado o presidente Bolsonaro.

BBC News Brasil - O Brasil terá eleições neste ano. A comunidade internacional está preocupada com a forma como esse processo ocorrerá aqui?

Gerardo Berthin - Temos duas eleições cruciais sendo monitoradas. Uma delas é na Colômbia, em maio. A outra é no Brasil. E há algumas preocupações sobre se Bolsonaro e seus aliados ou seus apoiadores voltarão a inundar o ambiente online com desinformação, como fizeram em 2018. Isso pode ameaçar a integridade da eleição.

Além disso, por muitas vezes, o regime de Bolsonaro também deu a entender que não reconhecerá o resultado das eleições se ele perder, mais ou menos como Donald Trump fez em 2020. Estamos observando isso de perto. Não vamos esquecer que Bolsonaro atacou a legitimidade das instituições eleitorais. Ele enviou uma emenda constitucional sobre o voto impresso e assinou um decreto que proibia as redes sociais de remover informações relacionadas a eleições. Mesmo que essas tentativas tenham falhado, sabemos que essas medidas teriam dado legitimidade a alegações infundadas de fraude e poderiam aumentar o potencial de intimidação dos eleitores.

BBC News Brasil - Quão fortes são as preocupações sobre uma possível ruptura democrática no Brasil a depender dos resultados das eleições?

Gerardo Berthin - Estamos vendo tendência global de mudança para regimes mais autoritários. Acho que o Brasil faz parte dessa tendência. Se você olhar a análise da Freedom House na última década, há dois países na América do Sul que realmente perderam pontos em relação aos direitos civis e políticos. Um deles é a Venezuela, que é considerada não-livre pela Freedom House. O outro é o Brasil. É claro que existem outros países na América do Sul que são considerados parcialmente livres: Bolívia, Colômbia e Paraguai, por exemplo. Mas esses dois países, Venezuela e Brasil, estão mostrando os declínios mais profundos nos direitos civis e políticos da última década. É preocupante ver o que está acontecendo.

Bolsonaro durante discurso para apoiadores em Brasília em ato de 7 de setembro (Facebbok)

BBC News Brasil - Na sua opinião, o presidente Bolsonaro já fez algum tipo de ameaça às instituições democráticas do país durante o seu mandato?

Gerardo Berthin - Acho que sim. Desde 2019, nossos relatórios têm documentado isso, particularmente em relação à restrição de direitos políticos e liberdades civis. Isso se reflete nesse declínio da pontuação do país. Como mencionei antes, existe essa a questão da liberdade de expressão, particularmente em relação aos defensores dos direitos humanos, ativistas e jornalistas. Também há as restrições à liberdade acadêmica e essa tentativa de limitar as empresas de mídia social em sua capacidade de fazer cumprir seus próprios termos de serviços. Se você analisar esses incidentes e essas evidências, há um risco de que Bolsonaro talvez não entenda totalmente que as eleições precisam ser livres e transparentes. Há uma demonstração de que talvez ele possa não estar disposto a apoiar eleições justas e transparentes que virão em outubro.

BBC News Brasil - E quais seriam as consequências para o Brasil se os resultados das eleições não fossem respeitados?

Gerardo Berthin - Essa é uma pergunta interessante. O jogo geopolítico será importante. Talvez essa seja uma das razões pelas quais há alianças sendo feitas com a Rússia. Lembre-se que o presidente Bolsonaro visitou o presidente Vladimir Putin algumas semanas antes da invasão da Ucrânia. O outro fator geopolítico é a China. O Brasil também tem relações crescentes com a China. Existem alguns instrumentos regionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), que pode aplicar a Carta da Democracia se isso acontecer. Certamente, os Estados Unidos reagiriam. Isso seria muito preocupante porque o Brasil não é apenas um líder regional por seu tamanho e sua história, mas também é um líder global. E o que quer que aconteça no Brasil, não só afetará seus vizinhos, particularmente aqueles que já estão tendo alguns problemas como Bolívia, Peru e talvez Colômbia, mas também afetaria fatores geopolíticos em todo o mundo. A ONU também será outro ator muito importante na reação se de fato algo assim acontecer.

BBC News Brasil - Considerando as últimas décadas, este é o momento de maior preocupação em relação à saúde da democracia brasileira? Essas eleições são um momento decisivo?

Gerardo Berthin - O que aprendemos é que o retrocesso da democracia, a menos que seja feito por um golpe de estado, é um processo gradual e incremental. O que estamos vendo no Brasil são os primeiros indícios de que há um retrocesso sustentado da democracia desde 2016. O que irá acontecer a partir de agora dependerá de quão fortes são as instituições que defenderão a democracia como, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, os órgãos eleitorais, etc.

Se esse é o último respiro da democracia no Brasil? Ainda não é possível dizer porque ainda existem algumas forças boas por aí. Há forças democráticas que podem impedir que essas eleições sejam as últimas. Mas, como eu disse, as democracias tendem a morrer muito gradualmente e, por conta de todas as indicações e evidências que eu mencionei, o Brasil está lentamente recuando em seu progresso democrático.

BBC News Brasil - Alguns analistas afirmam que o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva são radicais e que uma vitória de qualquer um deles colocaria a democracia no Brasil em perigo. O senhor vê os dois como radicais?

Gerardo Berthin - Eu diria que mais do que radicais, eles estão na extremidade oposta do espectro político. Uma das coisas que vimos em todo o mundo é que essa classificação entre esquerda e direita não faz mais sentido. Basta ver que, na França, muitas das posições da extrema direita também estão presentes nas respostas apresentadas pela esquerda. No Brasil, eles (Bolsonaro e Lula) são dois pontos que estão polarizando e não há nada no meio. Muito provavelmente, muitos países estão sofrendo com isso porque não há um centro forte. Ambos os candidatos precisam se pronunciar mais ativamente a favor dos valores democráticos. Se eles não forem capazes de fazer isso, certamente a polarização vai continuar e sabemos que ela não é boa.

BBC News Brasil - Falamos bastante sobre o papel desempenhado pelo presidente Bolsonaro, mas a nota do Brasil no ranking da democracia começou a cair antes de ele assumir o governo. Quais as responsabilidades de outros partidos e atores políticos em relação a isso?

Gerardo Berthin - A dinâmica nacional é importante em todos os países. Certamente, há algumas coisas que eles podem fazer. E uma das maneiras de renovar e reformar nossa democracia é também garantir que os partidos políticos sejam renovados, que eles realmente representem os interesses daqueles que são mais vulneráveis ou marginalizados para evitar termos uma eleição na qual você precisa escolher entre dois males, como foi também o caso do Peru, recentemente. O Brasil e outros precisam proteger eleições livres e justas. A integridade das eleições é muito importante para fortalecer essas instituições. Mas, com certeza, temos que começar a renovar os sistemas e processos políticos que não foram renovados ou melhorados desde que fizemos a transição para as democracias no final dos anos 1980.

BBC News Brasil - O senhor disse que os peruanos tiveram que escolher entre dois males. O senhor acredita que a escolha entre Bolsonaro e Lula é uma escolha entre dois males?

Gerardo Berthin - Provavelmente, não. Eu não usaria isso no caso do Brasil, mas certamente é uma escolha entre dois extremos.

BBC News Brasil - O ex-presidente Lula tem falado sobre a necessidade de regulamentar a mídia no Brasil. Isso lhe preocupa?

Gerardo Berthin - Muitos países estão tratando esse dilema em termos de como lidar com a evolução empoderadora das empresas de mídia social. Acabamos de ver Elon Musk comprando o Twitter. Não há uma solução mágica porque você precisa equilibrar, por um lado, a liberdade de expressão com a proteção dos direitos humanos, mas também precisa ter alguma forma de regulamentação. Esse será o tema da próxima década, já que essas empresas começam a ter mais poder do que muitos estados e estão orientando algumas políticas que estão afetando negativamente as pessoas. Estou feliz que ele esteja falando sobre isso. Espero que ele tenha boas soluções para isso.

BBC News Brasil - Recentemente, o presidente Bolsonaro contrariou uma decisão do Supremo Tribunal Federal e perdoou um parlamentar condenado em um caso que investigava atos antidemocráticos. Como você avalia isso?

Gerardo Berthin - Não estou familiarizado com isso nesse caso em particular. Não sei se eu poderia comentar.

Equipe de segurança do Supremo esteve em peso no prédio, por causa do temor de ataques e invasões durante o último 7 de setembrom(EPA)

BBC News Brasil - No Brasil, há muitas críticas sobre o papel desempenhado pelo Judiciário. Alguns aliados de Bolsonaro e até mesmo o presidente dizem que o Judiciário vem interferindo dentro do governo. Na sua opinião, o Judiciário brasileiro vem adicionando mais pressão ao cenário político?

Gerardo Berthin - Em geral, é bom ter poderes independentes. Esse conceito de freios e contrapesos é muito importante para garantir que nem o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário tenham mais poder do que os outros e que eles verifiquem a ação um do outro. O Brasil é um sistema federativo com um presidente muito poderoso. Dessa forma, ter um judiciário que possa interpretar a lei e ser justo e transparente é sempre muito importante.

BBC News Brasil - Como o senhor vê os conflitos entre o atual governo e o Judiciário?

Gerardo Berthin - Questionar a independência e a neutralidade do Judiciário faz parte da cartilha quando você está fortalecendo um regime mais autoritário.

BBC News Brasil - O senhor acredita que o presidente Bolsonaro está se comportando de acordo com essa cartilha?

Gerardo Berthin - Acho que há intenção. Agora, se isso se traduziria em ações nós precisamos ver. Entretanto, minar o estado de direito enfraquece a independência judicial.

BBC News Brasil - O senhor trabalha com a possibilidade de o presidente Bolsonaro não entregar o governo caso ele perca as eleições?

Gerardo Berthin - Bem... ele já falou sobre isso, na verdade. E o que estamos descobrindo, por exemplo, no caso dos Estados Unidos, é que isso era uma possibilidade com Trump. E o que evitou que isso acontecesse foi a força das instituições e a força dos indivíduos que continuam a acreditar nos valores democráticos. Esperamos que mesmo que sua (Bolsonaro) intenção seja fazer isso, que as instituições brasileiras estejam à altura da ocasião, que os verdadeiros democratas estejam à altura da ocasião e defendam a democracia contra alguém que não concorda com os resultados da eleição.

BBC News Brasil - O senhor classificaria o presidente Bolsonaro como um democrata?

Gerardo Berthin - Ele mostrou muitos traços autoritários, em certo sentido. Se ele fizer outro movimento, a opção nuclear (se negar a aceitar o resultado das eleições) então, provavelmente, ele se revelaria. Até agora, ele está caminhando sobre uma linha tênue e esperamos que ele continue sobre essa linha até depois das eleições.

Leandro Prazeres, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 02.05.22 

sábado, 30 de abril de 2022

Pacheco articula PEC que restringe uso de indulto pelo presidente da República

Após graça dada a Silveira por Bolsonaro, presidente do Congresso prepara proposta para estabelecer novas regras para perdões coletivo e individual do chefe do Executivo

  

Pacheco: tentativa de limitar ‘superpoder’ do chefe do Executivo. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

O presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), articula no Senado a aprovação de um projeto para limitar a concessão do indulto e da graça constitucional (perdão). A proposta tem apoio de outros senadores descontentes com o decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro que perdoou a condenação do seu aliado político, o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A pessoas próximas, Pacheco compartilhou a avaliação de que considera o indulto um tipo de “superpoder” do chefe do Executivo. Ponderou que, atualmente, o presidente pode usar o perdão praticamente “como quiser”. Além de Bolsonaro, outros presidentes usaram artifícios legais para beneficiar condenados. 

No caso do atual chefe do Executivo, foi concedido perdão a deputado aliado condenado a oito anos e nove meses de prisão por ataques a instituições democráticas e ameaças a ministros do Supremo. Seu principal adversário na disputa eleitoral deste ano, o petista Luiz Inácio Lula da Silva usou um outro instrumento legal, dando asilo ao italiano Cesare Battisti, condenado por homicídio em seu país. A decisão livrou o estrangeiro da extradição. Já Michel Temer indultou condenados, inclusive por corrupção na Operação Lava Jato. 

Publicamente, Pacheco já declarou que um presidente da República tem assegurado na Constituição o direito de conceder perdão, mas defendeu que o Legislativo trate do tema diante do ineditismo do benefício concedido a Silveira. 

Segundo aliados, o presidente do Congresso já encomendou estudos técnicos de sua assessoria para elaborar uma minuta de texto, que pode ser uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Mas avalia-se a possibilidade de a medida ser implementada apenas por projeto de lei.

Caso a proposta fique pronta a tempo, Pacheco estuda submetê-la à apreciação dos demais colegas na semana que vem. A intenção é de que as novas regras passem a valer a partir de sua aprovação, sem atingir o caso de Silveira.

O grupo de senadores com quem Pacheco discute a proposta tem integrantes como Renan Calheiros (MDB-AL) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Renan afirmou ao Estadão que o grupo é, de fato, coordenado por Pacheco e vai “brigar pelo estado democrático de direito e pela separação dos Poderes”.

Se vingar, a proposta de Pacheco marcará uma inflexão na crise entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Até então, os ministros do STF entendiam que estavam isolados, enquanto Bolsonaro, fortalecido politicamente, renovava a suspeição sobre as eleições e as ameaças de descumprir ordens judiciais, sem que a cúpula do Congresso reagisse. 

Pacheco conversou sobre a situação de estresse institucional com ministros da Suprema Corte e com o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL). Lira, por sua vez, por enquanto só pediu ao Supremo que julgue a ação na qual a Câmara argumenta ter a palavra final sobre a cassação de deputados.

Há outras ações em curso no Senado, além da iniciativa liderada pela cúpula. Por enquanto, a única formalmente apresentada é a PEC para acabar com o benefício da “graça constitucional”, de autoria do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE). Ele argumentou que o indulto em geral é um instrumento de política prisional e de caráter humanitário, enquanto a “graça” serve a “interesses puramente privados e, muitas vezes, não republicanos”.

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo, em 30 de abril de 2022 | 05h00

Até o Centrão tenta conter golpismo de Bolsonaro e maluquices dos bolsonaristas no Congresso

O caldeirão está fervendo e a grande pergunta é até onde presidente quer chegar

 Só não dá para contar nem com uns, do Centrão, nem com os outros, bolsonaristas, para defender o Supremo. Foto: Eraldo Peres/AP

Ok, pode-se alegar que o ministro Alexandre de Moraes estica muito a corda, 8 anos e 9 meses por ameaças é um exagero e o Supremo tem enviado sinais desencontrados à sociedade. Mas daí o presidente da República consumir duas horas numa homenagem a um sujeito condenado e desqualificado como Daniel Silveira?

Pode-se lembrar que Jair Bolsonaro é fã de Pinochet, Stroessner e Brilhante Ustra e sua família já condecorou um miliciano depois morto pela polícia, mas desta vez a papagaiada foi no Planalto, que não é de Bolsonaro nem do governo, mas do Estado brasileiro, e teve lances absurdos: o presidente abraçado a Silveira, o condenado divertindo-se com o decreto que o indultou, 22 parlamentares discursando.

É um tapa na cara do Supremo e da Nação, sufocada pela crise econômica e a inflação galopante divulgada no mesmo dia. Os bolsonaristas estão ocupados em endeusar Daniel Silveira, o povo quer comer, morar, estudar, tratar da saúde, se locomover e trabalhar.

E a Câmara? Premiou Daniel Silveira com cinco comissões! Uma delas é nada mais, nada menos, a de Constituição e Justiça (CCJ). Um valentão condenado por dez votos a um pelo Supremo na CCJ, “mãe” de todas as comissões, que julga exatamente a constitucionalidade das propostas?!

Atenção, porém! Isso é coisa de bolsonaristas, que caíram de paraquedas no Congresso com os ventos da “nova política” e do “Messias”, mas o Centrão, frio, pragmático e mais preocupado com orçamentos secretos, não gostou da brincadeira. Até para o Centrão, tudo tem limite.

Uma no cravo, outra na ferradura: os bolsonaristas meteram o condenado na CCJ, mas perderam a presidência da comissão. Saiu Bia Kicis e era para entrar Major Victor Hugo, mas o acordo previa que o novo presidente fosse do PSL e Hugo migrou para o PL de Bolsonaro. Assim, deu Arthur Maia, do União Brasil, fusão de PSL e DEM.

Registre-se que seis bolsonaristas, inclusive Eduardo Bolsonaro, são agora alvo do Conselho de Ética e que os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, postaram nas redes, quase ao mesmo tempo, o apoio ao sistema eleitoral. Logo, contra os ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas e ao TSE.

O caldeirão está fervendo e a grande pergunta é até onde Bolsonaro quer chegar. Só nos faltava contar com o Centrão para segurar os ímpetos enlouquecidos de Bolsonaro no Executivo e dos bolsonaristas no Congresso, mas é exatamente isso que está pintando no horizonte. Só não dá para contar nem com uns, do Centrão, nem com os outros, bolsonaristas, para defender o Supremo. Aí, a questão é bem diferente... 

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal(PE) e do Telejornal "Globo News em Pauta". Publicado originalmente em 30.04.22.

Golpismo é arma eleitoral de Bolsonaro

Enquanto a população sofre com a inflação, o desemprego e a fome, Bolsonaro zomba da Constituição e ameaça uma vez mais o processo eleitoral. É o bolsonarismo em ação.

Jair Bolsonaro avança, com desenvoltura crescente, na sua escalada contra as instituições. Não se vislumbra quais seriam os limites de sua irresponsabilidade. Num só dia, como fez na quarta-feira passada, é capaz de atacar o processo eleitoral, envolver as Forças Armadas em seus devaneios conspiratórios, zombar do Judiciário e profanar a liberdade de expressão. É uma sucessão de barbaridades que, a rigor, não têm nenhuma relevância para o País. Enquanto Jair Bolsonaro entretém seu eleitorado com afrontas golpistas, a população tem de enfrentar a inflação, o desemprego, a fome e a falta de perspectiva quanto ao futuro.

O quadro é grave e requer realismo. A situação do Brasil em 2022 não guarda nenhuma semelhança com o que se viu em 2017 e 2018. No governo de Michel Temer, havia a crise social e econômica gestada nas administrações petistas, mas tinha um Executivo federal disposto a trabalhar e a enfrentar os problemas nacionais. Esse esforço gerou resultados visíveis: redução da inflação, condições sustentáveis para a diminuição dos juros e a retomada do crescimento.

O cenário hoje é inteiramente diferente. Não são apenas os indicadores econômicos ruins; por exemplo, a inflação volta a apresentar índices não vistos desde os anos 90 do século passado. O mais grave é que, mesmo com essa situação, o presidente da República entende que o seu papel é afrontar o Supremo, promover a desconfiança contra o sistema eleitoral e ainda envolver o bom nome das Forças Armadas em questões políticas.

Não bastasse ter declarado a inocência de um condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – o presidente da República pode conceder perdão, mas não reescrever uma sentença judicial –, Jair Bolsonaro promoveu no Palácio do Planalto um ato que, sob pretexto de defender a liberdade de expressão, homenageou o deputado que não respeita as leis e as instituições do País. O bolsonarismo expõe, assim, sua verdadeira identidade. Não é liberalismo, não é eficiência na gestão pública, não é abertura comercial, não é zelo pelo ambiente de negócios, não é estímulo à produtividade, não é melhoria da educação. Seu símbolo perfeito é Daniel Silveira, aquele que vem exercendo na atual legislatura o papel desempenhado por Jair Bolsonaro na Câmara durante seus vários mandatos. O padrão é rigorosamente o mesmo: quebra de decoro e violência contra as instituições democráticas como tática para ganhar visibilidade, na tentativa de acobertar a irrelevância política.

E é o que continua fazendo Jair Bolsonaro na Presidência da República. Sem disposição e competência para enfrentar os problemas nacionais, Bolsonaro percorre o caminho da ameaça e do enfraquecimento das instituições. No ato de quarta-feira no Palácio do Planalto, Bolsonaro defendeu a contagem paralela de votos pelas Forças Armadas. Por todos os ângulos que se veja, a proposta é inconstitucional. A definição do processo eleitoral não é uma disposição do chefe do Executivo federal, mas competência do Congresso Nacional. Não cabe às Forças Armadas a função de revisor do sistema eleitoral.

Jair Bolsonaro mostra-se alheio à Constituição e, também, à lei. São crimes de responsabilidade, segundo a Lei 1.079/50, “utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral” e “incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina” (art. 7.º, 4 e 7). Bolsonaro pode não gostar, mas tem o dever de respeitar a legislação eleitoral aprovada pelo Congresso. A Presidência da República não é órgão legislador.

Sem cumprir o que lhe cabe, que é governar o País, Jair Bolsonaro cria novas frentes de atrito e confusão. Revisa sentença judicial, desdenha da legislação aprovada pelo Congresso sobre processo eleitoral, instiga os militares a desempenharem funções além dos limites constitucionais. Nada disso é casual. É o bolsonarismo em ação, que ataca não apenas o STF, mas o papel e as competências constitucionais de todas as instituições, também do Congresso e das Forças Armadas. Não é política, é golpe.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 30 de abril de 2022 | 03h00

EUA começam a treinar soldados ucranianos na Alemanha

Departamento de Defesa americano afirma que forças da Ucrânia estão aprendendo a usar sistemas avançados de defesa e a manusear armamento pesado, como armas de longo alcance e veículos blindados.

O Departamento de Defesa dos Estados Unidos informou que está treinando soldados ucranianos na Alemanha e ensinando-os a manusear sistemas avançados de defesa.

"Hoje posso anunciar que os Estados Unidos começaram a treinar sistemas-chave com as forças armadas ucranianas nas instalações militares dos EUA na Alemanha", afirmou o porta-voz do Departamento de Defesa, John Kirby, em entrevista coletiva nesta sexta-feira (29/04).

Segundo Kirby, o programa de treinamento ocorre em coordenação com o governo alemão. "Estamos gratos pelo apoio contínuo da Alemanha", disse o porta-voz.

Cerca de 50 ucranianos foram treinados a usar um obus, uma arma de longo alcance. Os soldados também aprenderão a usar sistemas de radar e veículos blindados.

Kirby disse ainda que a maior parte do treinamento está sob a responsabilidade da Guarda Nacional da Flórida, que já havia treinado as forças ucranianas antes da invasão do país pela Rússia em 24 de fevereiro.

"A recente reunião desses membros da Guarda Nacional da Flórida com seus colegas ucranianos, segundo nos disseram, foi emocionante, devido aos fortes laços que foram formados enquanto viviam e trabalhavam juntos antes de se separarem temporariamente em fevereiro", acrescentou o porta-voz americano.

Segundo ele, os soldados ucranianos treinados "serão basicamente treinadores eles mesmos, pois vão voltar para a Ucrânia e treinar seus companheiros e equipe".

Apoio ocidental à Ucrânia

Kirby afirmou ainda que o treinamento das forças ucranianas está ocorrendo também em outras partes da Europa, mas não divulgou locais.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, havia dito no final de março que tropas americanas estavam treinando soldados ucranianos na Polônia, mas essa afirmação foi posteriormente negada por autoridades militares.

A Rússia tem alertado países ocidentais contra o armamento das forças ucranianas. Em março, Moscou atacou um centro de treinamento da Otan perto da fronteira polonesa, em uma mensagem direta ao Ocidente.

Países como a Alemanha têm apoiado Kiev em meio à guerra travada pela Rússia. Nesta semana, o Parlamento alemão aprovou o envio de armas pesadas, como sistemas antiaéreos e veículos blindados, e sistemas complexos de defesa à Ucrânia. Berlim também deverá enviar mais soldados para aumentar a presença da Otan no Leste Europeu.

Deutsche Welle Brasil, em 30.04.22

Quem foi o marquês de Barbacena, homem de confiança de D. Pedro 1º que previu sua queda

Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, o marquês de Barbacena, embora pouco estudado e mencionado pela historiografia brasileira, é considerado por alguns como a personificação do Primeiro Reinado (1822-1831) e até do Período Regencial (1831-1840). 

Marquês de Barbacena foi uma figura controversa (Sisson)

Figura controversa, ele era senhor de engenho e dono de negros escravizados, mas foi o autor da primeira lei contra o comércio deles da África para o Brasil. Amigo do imperador D. Pedro 1º e ministro, foi responsável pelas negociações que levaram ao segundo casamento do monarca, mas depois foi demitido acusado de corrupção. Em seguida, escreveu uma "carta profética" para o imperador, na qual insinuava que ele era doido e o alertava que, se não mudasse sua forma de governar, cairia em sete meses. Caiu em seis, ao ser obrigado a abdicar.

Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, o marquês de Barbacena, embora pouco estudado e mencionado pela historiografia brasileira, é considerado por alguns como a personificação do Primeiro Reinado (1822-1831) e até do Período Regencial (1831-1840). Militar de formação, foi diplomata, senador do Império, ministro da Fazenda e Conselheiro de Estado. Era peça política importante na época, tendo participação ativa nos grandes momentos do reinado de D. Pedro 1º.

O futuro visconde e depois marquês nasceu no arraial de São Sebastião, perto de Mariana, em Minas Gerais, em 19 de setembro de 1772 e morreu no Rio de Janeiro em 13 de junho de 1842. Era filho de duas famílias importantes, os Caldeira Brant e os Horta. "Barbacena era neto do contratador de diamantes Felisberto Caldeira Brant, preso acusado de contrabando no período das Minas Gerais setecentistas", conta o historiador Rafael Cupello Peixoto, autor do livro O marquês de Barbacena: política e sociedade no Brasil Imperial (1796-1841), com lançamento previsto para maio de 2022. "Ele foi casado com Anna Constança Guilhermina de Castro Cardoso, filha de um importante traficante de escravos da Bahia, Antônio Cardoso dos Santos."

O também historiador Carlos Gabriel Guimarães, da Universidade Federal Fluminense (UFF), descreve o contexto político e econômicos na época em que Barbacena atuou, no início do império. "O ambiente no Primeiro Reinado foi bem conturbado, por causa das Guerras da Independência e as reações de outras Províncias à centralidade do Rio de Janeiro, e da presença portuguesa", explica. "Importante ressaltar o embate entre o imperador D. Pedro 1º e a Assembleia Constituinte de 1823, com seu fechamento e a Constituição sendo outorgada pelo imperador em março de 1824, o que levou à reação de Pernambuco com a Confederação do Equador."

Além disto, acrescenta, a Grã-Bretanha continuava pressionando para pôr fim ao tráfico negreiro com a África e a questão do reconhecimento político e diplomático do Brasil. "Em 1825, a antiga metrópole reconheceu a independência, mediante o pagamento de uma vultosa soma, o que levou o Brasil a contrair um empréstimo internacional", informa Guimarães. "Foi o chamado o 'empréstimo português', no valor de 3,7 milhões de libras esterlinas."

Outros problemas surgiram com a morte do rei de D. João 6º e a disputa pela sua sucessão, sendo D. Pedro 1º o autor da Carta Constitucional portuguesa, que duraria até a República de 1910 em Portugal. "Essa proximidade do imperador com seu país natal fez com que a relação deles com os brasileiros e seus representantes, principalmente na Câmara dos Deputados a partir de 1826, piorasse", explica Guimarães.

Capa do livro "O marquês de Barbacena: política e sociedade no Brasil Imperial (1796-1841)", que será lançado pelo Arquivo Nacional no próximo dia 26 de maio, após pesquisa do historiador Rafael Cupello ser premiada pelo órgão (Arquivo Nacional)

A situação se agravou mais ainda com a derrota na Guerra da Cisplatina (1825-1828), na qual Barbacena foi comandante das tropas brasileiras, com a consequente perda daquela Província (atual Uruguai), grandes gastos com o conflito e a falência do Banco do Brasil (o primeiro, criado em 1808). "Portanto, nas vésperas da abdicação, em 1831, a situação política e econômica era difícil, e D. Pedro 1º já estava bastante desgastado e cada vez mais pressionado pelo grupo dos brasileiros acusando-o de ser favorável aos interesses de Portugal e dos portugueses", conta o historiador.

Ao lado da perda da Província Cisplatina e dos gastos que a guerra gerou, Tâmis Parron, colega de Guimarães na UFF, lista outros fatores que levaram ao desgaste do imperador perante os brasileiros. "A política externa de D. Pedro 1º foi seu telhado de vidro, e a oposição não poupou nenhuma pedra que caísse nas suas mãos", diz. "Ele usou o fim do tráfico negreiro transatlântico como parte de uma barganha com a Inglaterra. A Corte assinaria uma convenção com os ingleses suprimindo esse comércio, e eles viabilizariam o reconhecimento da Independência do Brasil o mais rápido possível."

A barganha deu certo: nenhum país das Américas alcançou reconhecimento tão rapidamente como o Brasil na Era das Revoluções. "Foram meros três anos", lembra Parron. "Mesmo assim, a elite política não perdoou, pelo efeito que teve na ilegalização do comércio de africanos escravizados. 'O governo tem obrado como estúpido', gritou um deputado no Parlamento, pouco antes da queda de D. Pedro 1º. Mais uma vez, o rei já tinha perdido a majestade antes de cair."

De um jeito ou de outro, Barbacena participou de todos esses acontecimentos e situações. Antes disso, no entanto, ele foi fazer sua formação na Europa. O futuro marquês partiu em 1788, para estudar em Lisboa. Depois, ingressou na academia da Marinha, cujo comandante era seu primo José Pires da Silva Pontes, que o tornou seu protegido e de quem, mais tarde, ele adotou o sobrenome, como homenagem. Por algum motivo, Barbacena pediu transferência para o Exército e foi servir, por dois anos, em Angola, como major.


Historiador, professor e pesquisador Rafael Cupello Peixoto (Arquivo Pessoal)

Segundo Peixoto, depois disso, Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, fixou-se, em 1801, na Bahia como tenente-coronel do regimento local, onde desenvolveu uma extensa rede de negócios, que lhe possibilitou aproximar-se do novo centro político do Império português, o Rio de Janeiro, em virtude da instalação da Corte Joanina em 1808. "Nas diversas cartas que redigiu ao longo do oitocentos, a questão da segurança da Bahia, bem como o medo de levantes de 'negros' e da 'gente miúda' permearam as ideias dele", diz.

Ainda de acordo com o historiador, como militar, o futuro marquês procurou disciplinar as Forças Armadas que tinha à disposição, como instrumento de ação para preservar a ordem e garantir a segurança da "boa sociedade". Sua atuação no processo de independência reflete, de certa forma, seu apego à ordem. "Suas ações nesse período exemplificam seu modus operandi como político durante o período imperial brasileiro", explica.

Barbacena era simpático aos ideais constitucionais que circulavam no século 19, resultado da Revolução Francesa de 1789. No entanto, defensor de uma perspectiva conservadora, ele acreditava que uma mudança para o sistema constitucional deveria ser processada pelo monarca. "Ele era um belo exemplar do conceito de 'Despotismo Ilustrado', tão em voga no mundo luso-brasileiro e promovido pelas autoridades reinóis portuguesas em seus projetos de reformismo ilustrado, do final do século 18", diz Peixoto.

Ou seja, fiel ao seu princípio conservador, ele não poderia admitir um evento de transformação das estruturas políticas do mundo luso-brasileiro que não fosse comandado pela figura real. Isso pôde ser visto em 1817, quando eclodiu a Revolução Pernambucana, um movimento separatista — o último do período colonial — de caráter republicano. "Barbacena jamais participou ou apoiou qualquer movimento democrático", conta Peixoto.

Na verdade, ele associava o conceito de democracia ao de excesso de liberdade, vista como "desprezível" e associada ao termo "República", com a qual se deveria ter "o maior cuidado, e vigilância sobre outros da mesma escola, e seita". "Para ele, esta forma de governo (República) era propagadora da anarquia e do caos social", explica o historiador. "Não por acaso, portanto, ele se colocou contra a Revolução de 1817 e impediu que o movimento se alastrasse para a Bahia."

Peixoto lembra ainda que o futuro marquês também se posicionou contra a Revolução do Porto, em 1820, que ele classificou como uma "moléstia do século". Afinal, diz o historiador, ela foi promovida por revolucionários e não pela figura real. A mesma posição ele teve em relação ao movimento em apoio à revolta que ocorria em Portugal, que explodiu na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821.

Mas, desta vez, ele se viu em "maus lençóis", inclusive sendo ameaçado de "linchamento" pelos apoiadores do movimento. "Assim, ele acabou aderindo à ação, mas sob forte constrangimento", informa Peixoto. "Felisberto resolveu ir para o Rio de Janeiro e, depois, acabou viajando para Londres, após mais uma vez se envolver em uma confusão provocada agora por outro movimento de adesão às Cortes lisboetas, mas desta vez na cidade carioca."

Na Inglaterra, Barbacena desempenhou importante papel diplomático. "Ao lado do jornalista e diplomata, Hipólito José da Costa, ele atuou, antes mesmo da independência, na primeira tentativa de obter o reconhecimento do Brasil como reino autônomo", informa Isabel Lustosa, pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. "Depois da morte de Hipólito [em 11 de setembro de 1823], atuou junto ao governo inglês pelo reconhecimento da independência do Brasil."

Esse seu trabalho diplomático rendeu a ele dividendos econômicos e político. "Por causa de sua atuação, D. Pedro 1º, por meio do decreto de 12 de outubro de 1825, concedeu a Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta o título de Visconde de Barbacena, e, um ano depois, de marquês", conta Guimarães.

Já como marquês, Barbacena teve forte atuação no governo imperial e ajudou D. Pedro a contornar crises. Diante da situação crítica da corte, ele foi convidado pelo imperador, em 1829, para ficar à frente do gabinete de ministros. "No cargo, Barbacena teve que lidar com as questões políticas, como a presença dos portugueses na Corte; com o famoso secretário do imperador Chalaça [Francisco Gomes da Silva], e o problema de ordem moral de D. Pedro 1º, envolvendo a sua amante, a Marquesa de Santos", relata Guimarães.

Tâmis Parron, doutor em História, professor de História do Brasil no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (Arquivo Pessoal)

O marquês se saiu bem - pelo menos por um tempo. Sua atuação fez com que os portugueses fossem afastados e a marquesa se retirasse da Corte. "No entanto, a pressão sobre D. Pedro 1º fez com que o imperador, em 1830, dissolvesse o gabinete do Marquês de Barbacena, que tinha trazido um pouco de 'serenidade' na conturbada conjuntura do momento", diz Guimarães. "Isto fragilizou mais ainda o imperador, sendo criticado abertamente e em público."

Lustosa acrescenta que Barbacena foi nomeado ministro com grande prestígio e parecia destinado a fazer um grande governo. "Mas D. Pedro rompeu com ele, por conta das despesas das viagens à Europa para negociar o segundo casamento do imperador", explica. "O monarca lançou suspeitas sobre suas contas e o demitiu. Essa demissão parece ter tido o dedo do Chalaça, que tinha sido mandado embora do Brasil pelo imperador, a pedido do marquês. De lá da Inglaterra, Francisco Gomes da Silva fez a intriga que levou o monarca a romper com Barbacena."

Esse é o final de uma história que começou antes de o Marquês assumir o ministério, quando ele viajou à Europa, em de julho de 1828, para levar a filha de D. Pedro, D. Maria da Glória, que viria a ser a rainha de Portugal, D. Maria 2ª, para a corte de seu avô, o imperador Francisco 1º, da Áustria. Também fazia parte da missão do marquês negociar o segundo casamento do imperador do Brasil, com alguma princesa europeia.

Quando chegaram em Gibraltar, Barbacena ficou sabendo que o irmão de D. Pedro, D. Miguel, havia usurpado o trono português e tinha o apoio de Francisco 1º. Então, resolveu levar Maria da Glória para a Inglaterra e, de lá, seguiu com a segunda parte da missão. Em 1829, ele retornou ao Brasil, trazendo a segunda imperatriz do Brasil, D. Amelia de Leuchtenberg.

Este poderia teria sido um final da história feliz para Barbacena se tempos antes ele não tivesse cometido um erro de avaliação. "O marquês havia entendido a dinâmica para chegar ao topo do poder político imperial, isto é, 'bajular' os homens próximos do monarca como forma de se aproximar dele", conta Peixoto. "Ele fez isso ao ganhar a confiança de Chalaça, amigo e fiel escudeiro de D. Pedro 1º. Seu erro político foi achar que, uma vez no topo, poderia se livrar da influência de Francisco Gomes da Silva. Ao fazê-lo, enviando-o para a Europa, escreveu as páginas de sua própria ruína."

Quando Chalaça descobriu que Barbacena foi um dos articuladores de sua retirada da Corte do Rio de Janeiro, conspirou contra ele, de Londres, incutindo no Imperador a desconfiança de que seu ministro havia roubado dinheiro em sua missão na Europa. "Dito e feito, D. Pedro demitiu Barbacena", resume Peixoto.

Com o que D. Pedro não contava talvez fosse a crise que sua decisão iria gerar e que levaria a sua própria queda. Ressentido pelas acusações de corrupção, Barbacena trouxe à tona a história das negociações do segundo casamento e as exigências do Imperador de que a nova imperatriz reunisse quatro qualidades essenciais: nascimento, formosura, virtudes e instrução.

Dessas, D. Pedro estava até disposto a abrir mão de parte de duas. "Se não fosse 'possível reunir as quatro indicações', poderia 'admitir alguma diminuição da primeira, e quarta, contanto que a segunda e a terceira sejam constantes'", conta Peixoto. "A humilhação pela qual D. Pedro 1º passou, com seu excêntrico pedido e uma série de recusas, veio assim a conhecimento público."

Barbacena foi mais longe, no entanto. Em 15 de dezembro de 1830, pouco depois de ter sido demitido, ele escreveu uma carta com pesadas críticas a D. Pedro, insinuando, inclusive, que o imperador era louco. "É uma carta interessantíssima, na qual ele faz análise da política na corte", diz Peixoto. "Num trecho dela, ele lembra antepassados do imperador, como Afonso 6º (1643-1683) [rei de Portugal de 1656 até à sua morte, o segundo monarca português da Casa de Bragança], que acabou preso em Sintra por loucura."

Segundo o historiador, Barbacena diz, "com todas as letras", que, pelo seu comportamento, de às vezes falar uma coisa e fazer outra e pelos seus rompantes de fúria, pelo seu autoritarismo, se não mudasse poderia seguir o destino de Afonso 6º. "Ele diz textualmente as seguintes palavras: 'Poderá acabar como parentes seus, em alguma prisão de Minas a título de doido',", revela. "Ou seja, D. Pedro seria considerado louco pelas suas ações."

Na mesma carta, ele alertou que seu reinado não iria longe daquele jeito. "Barbacena previu, mas não no sentido profético, mas sim porque estava sintonizado com os acontecimentos políticos do período e também porque havia conversado com os grupos de oposição, que ele duraria sete meses no poder", diz Peixoto. "Mas D. Pedro 1º caiu em seis, com a abdicação, em 7 de abril de 1831, em favor de seu filho, então uma criança de 5 anos, que mais tarde veria a ser o imperador D. Pedro 2º."

Fora do governo, Barbacena continuou atuando no Parlamento. Ele foi autor da Lei de 4 de novembro de 1831 a primeira do Brasil que buscou abolir o comércio de africanos escravizados para o país. "Por muito tempo, a historiografia especializada, influenciada por pesquisadores estrangeiros, considerou a lei como uma norma promulgada apenas para 'inglês ver', isto é 'letra morta', que foi criada só para fugir das fortes pressões britânicas pelo fim do tráfico de africanos, tendo em vista a forte campanha internacional abolicionista promovida pela Grã-Bretanha", explica Peixoto.

Isabel Lustosa, pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa (Arquivo Pessoal)

A aparente contradição de um dono de escravos, como Barbacena, fazer uma lei para proibir o comércio deles pode ser explicada pelo projeto de nação que ele defendia. "A ideia era - seguindo em parte o projeto de José Bonifácio de Andrada e Silva - construir uma nação homogênea, mas diferentemente do patriarca da Independência, que via na miscigenação o caminho para o branqueamento do país, o marquês defendia a vinda de imigrantes, sem qualquer tipo de mistura racial, como forma de colocar o país entre nas nações civilizadas", diz Peixoto. "Uma civilização feita a partir do branqueamento do país."

A lei de 1831 chegou a ser executada num primeiro momento após a sua promulgação, mas o fracasso do projeto "moderado" de Barbacena e do ideal de maior aceitabilidade das liberdades fez surgir uma nova força política em 1835, os Regressistas, futuro Partido Conservador do Segundo Reinado. Barbacena propôs então outro projeto de lei em 1837, que anulava a de 1831, mas mantinha o comércio proibido em troca um grande perdão aos senhores de escravos, que haviam obtido ilegalmente mão de obra africana desde o momento de promulgação da norma. "Uma vergonha", classifica Peixoto.

Com o projeto de 1837, Barbacena ainda tentava fazer valer seu projeto de nação, no qual o africano deveria ser impedido de entrar no país e uma nação de imigrantes branqueada seria incentivada. "Só que, os regressistas eram contrários a esse projeto, porque o que eles desejavam era manter a escravidão e retirar dessa gente qualquer tipo de direito", explica Peixoto. "Até mesmo o da liberdade, que de alguma forma, mesmo que não ideal, a lei de 1831 garantiu aos africanos."

Evanildo da Silveira, de Vera Cruz (RS) para BBC News Brasil, em 30.04.22

sexta-feira, 29 de abril de 2022

CNJ assume estranhas funções

A pedido de associações de magistrados, o CNJ tem criado novas despesas e disciplinado a política remuneratória dos juízes independentemente de lei nesse sentido

Um levantamento feito pelo Estadão mostrou o desembaraço de associações de magistrados na busca por vantagens financeiras a seus associados. O curioso, desta vez, é que os pleitos dessas associações não se dirigem a membros do Congresso Nacional nem são ações ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal (STF).

Como mostra a reportagem, desde 2020 as associações têm obtido seguidos êxitos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A investida mais recente, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), busca ampliar um auxílio pago aos magistrados quando há um excesso de novos processos ajuizados. 

A Anamatra pleiteia a redução do número de litígios que autorizam o pagamento da chamada Gratificação por Exercício Cumulativo de Jurisdição (GECJ). A ideia da associação é reduzir de 1.500 para 750 o número de novas ações para fins de cálculo da gratificação.

Se o CNJ deferir esse pleito, não só os magistrados da Justiça do Trabalho poderão ser beneficiados com esse bônus. O dinheiro extra, equivalente a um terço do salário, também poderá aparecer nos contracheques de juízes de todo o País e de todos os ramos do Judiciário.

A iniciativa chama a atenção por mais de um motivo. Primeiro, porque a categoria que pleiteia o benefício não figura entre as mais prejudicadas pelos efeitos da pandemia de covid-19 ou da gestão econômica irresponsável do governo Bolsonaro. Além desses dois fatores não terem impactado os vencimentos dos magistrados – realidade experimentada por muitos brasileiros de diferentes ocupações –, seus salários os colocam entre o 1% mais rico da população.

Some-se a isso que o pleito da Anamatra poderá representar um custo anual de R$ 167 milhões. Conforme o relatório Justiça em Números, do CNJ (2021), as despesas totais do Poder Judiciário chegam a 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB), um recorde internacional, e 92,6% desse montante é de despesas com recursos humanos (pessoal e encargos). 

Outro ponto que chama a atenção na iniciativa da Anamatra e de outras associações de magistrados é o foco no CNJ. A reportagem do Estadão mostra, por exemplo, que esse órgão já determinou aos tribunais federais e do trabalho, a pedido da Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e da Anamatra, a aquisição de 20 dos 60 dias de férias dos juízes.

Vale recordar aqui que o CNJ tem como atribuição primordial o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (artigo 103-B, parágrafo 4.º, da Constituição Federal). Para as referidas associações, entretanto, aquele órgão também poderia criar novas despesas e disciplinar a política remuneratória dos magistrados independentemente de lei nesse sentido. 

Essa dispensa da lei também chama a atenção. Afinal, é ela o veículo pelo qual a sociedade, democraticamente, cria direitos e obrigações jurídicas. A legalidade é sinônimo não só de certeza quanto ao direito, mas também de segurança contra o arbítrio. A lei não é obra de um único indivíduo ou de uma casta, mas dos representantes políticos da comunidade. É uma obra coletiva. Daí que, num cenário de escassez de recursos públicos, era de esperar uma maior valorização do processo legislativo por parte de representantes do Poder Judiciário. 

A importância desse processo é reconhecida pela própria Anamatra. Em texto publicado em seu site em julho de 2017, ela critica a reforma trabalhista feita no governo Temer por ela ter supostamente desconsiderado “a regra básica da formação de uma legislação trabalhista, que é a do diálogo tripartite, e também por conta da supressão do indispensável debate democrático”. 

É essa consciência da relevância do debate democrático que se espera das associações de magistrados em temas de interesse de toda a sociedade, tais como a destinação de recursos públicos à categoria que representam. Ou também aqui valerá o velho dito “Aos amigos os favores, aos inimigos a lei”?

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 03h00

Qualidade da democracia depende da Câmara

Condescendência com desvios de conduta de deputados indignos do mandato que receberam depõe contra a própria Casa e distorce a representação política da sociedade

Um deputado desqualificado e insignificante se tornou o centro das atenções do País e peão de uma constrangedora rusga entre os Poderes da República, que resvalou até para as Forças Armadas. É como se nada mais urgente demandasse as atenções dos chefes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário do que o destino da triste figura de Daniel Silveira (PTB-RJ) e suas implicações jurídicas e políticas.

A sociedade teria sido poupada do sentimento de vergonha alheia e seus interesses estariam mais bem resguardados se acaso a Câmara dos Deputados – que representa a sociedade, afinal – tivesse cassado Daniel Silveira por quebra de decoro parlamentar. Razões para isso não faltaram.

Antes mesmo de ser eleito na onda “antipolítica” que varreu o País em 2018, o ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro já dava mostras cabais de que seu comportamento iracundo, vulgar, indisciplinado e desrespeitoso era absolutamente incompatível com o exercício do múnus público. Mas, até a eleição, esse era um problema de seus eleitores. Uma vez eleito, mantida a postura indecorosa, Daniel Silveira passou a ser um problema da Câmara.

A Casa tem o papel inalienável de zelar pela qualidade da democracia representativa. Esse zelo se materializa na sanção política, que pode culminar na cassação do mandato, daqueles que manifestam um comportamento que degrada, antes de qualquer coisa, a própria imagem do Legislativo. Contudo, não só Daniel Silveira não foi cassado, malgrado a falta de decoro e a condenação criminal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como foi premiado com assento em cinco comissões permanentes da Câmara, inclusive a mais importante e prestigiosa de todas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

O deputado Daniel Silveira está longe de ser o único exemplo de tolerância excessiva da Câmara com graves desvios de conduta – quando não crimes – cometidos pelos seus. Para ficar apenas no caso de condescendência mais nocivo para o País até hoje, basta um simples exercício de imaginação para inferir qual teria sido a sorte dos brasileiros se acaso a Câmara tivesse cassado o mandato do então deputado Jair Bolsonaro após um dos muitos episódios de quebra de decoro que o atual presidente da República protagonizou durante seus quase 30 anos de vida parlamentar. No caso de Silveira, ainda há tempo para a Casa refletir e agir como se espera.

O espírito de corpo na Câmara pode muito bem beneficiar determinada legislatura e aumentar o poder do seu presidente de ocasião, mas, visto a longo prazo, contribui decisivamente para o desprestígio popular do Legislativo e, como consequência, para o enfraquecimento da democracia representativa.

Na esteira da graça inconstitucional concedida a Daniel Silveira por Bolsonaro, um grupo de parlamentares ligados ao presidente da República, liderados pela deputada Carla Zambelli (PL-SP), pretende transformar a condescendência em lei. A parlamentar apresentou um projeto de lei que propõe anistia a todos os deputados que tenham praticado atos investigados como “crimes de natureza política” entre o dia 1.º de janeiro de 2019, data da posse de Bolsonaro, e o dia 21 passado, quando o presidente assinou o decreto “perdoando” Silveira, como se inocente este fosse e como se Bolsonaro fosse um “revisor” das decisões do STF.

A mera apresentação de um projeto desse gabarito, com esse explícito recorte temporal, já é indecente por si só, mas, vindo de uma bolsonarista de quatro costados não chega a surpreender. Outro deputado bolsonarista, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), apresentou um Projeto de Resolução que torna ainda mais difícil a cassação do mandato parlamentar ao propor o aumento do quórum de votação, de maioria absoluta (257 votos) para dois terços (342 votos).

Para o bem da própria Câmara e da democracia representativa, projetos claramente corporativistas como esses não devem prosperar. É do interesse maior da Casa que os maus parlamentares, os que não honram o mandato recebido de seus eleitores, sejam excluídos da vida pública.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 03h00