segunda-feira, 2 de maio de 2022

Questionar independência do Judiciário faz parte de cartilha autoritária

Nos últimos anos, o Brasil experimentou uma série de conflitos entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Poder Judiciário, personificado na figura dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). 

A pouco mais de seis meses das eleições presidenciais, o vice-presidente de programas da organização sem fins lucrativos Freedom House, Gerardo Berthin, alerta que os questionamentos sobre a independência do Judiciário fazem parte de uma espécie de "cartilha" usada em regimes autoritários.

Nos últimos anos, presidente e Poder judiciário tiveram diversos conflitos (PR)

"Questionar a independência e a neutralidade do Judiciário faz parte da cartilha quando você está fortalecendo um regime mais autoritário", disse Berthin em entrevista à BBC News Brasil.

Berthin é especialista em governança democrática e atua na Freedom House, em Washington, DC (EUA). A instituição é uma organização não-governamental de viés liberal que faz o monitoramento do ambiente democrático em 185 países. Um dos seus produtos mais conhecidos é o relatório "Liberdade no Mundo", divulgado anualmente.

O relatório analisa quão livres são os países, com base em critérios como direitos civis e políticos e liberdade de expressão. As notas vão de 0 a 100 - quanto maior a pontuação, mais livre é o país.

Os dados da Freedom House são usados por acadêmicos e instituições ao redor do mundo como indicadores sobre a saúde da democracia em países governados tanto por políticos de esquerda quanto de direita.

Para o Brasil, no entanto, as notícias não são boas. Desde 2016, a nota do país vem caindo. Naquele ano, o Brasil atingiu a nota 81, o que o colocava no grupo das nações consideradas livres.

Em 2022, a nota chegou a 73, somente três pontos acima do mínimo para que um país seja considerado livre. Abaixo de 70, os países são classificados como "parcialmente livres". Nesta categoria, estão nações como Bolívia, Colômbia e Mauritânia.

À BBC News Brasil, Berthin afirmou que a queda no ambiente democrático no Brasil é uma das mais acentuadas nas Américas, comparável à da Venezuela, que não é considerado um país livre pela organização. Ele diz que as críticas feitas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) ao sistema eleitoral e as avaliações de alguns de que ele poderia não aceitar o resultado das eleições caso saia derrotado em outubro são motivo de preocupação.

Gerardo Berthin é vice-presidente de programas internacionais da Freedom House. Ele é especialista em governança democrática (Freedom House)

Ele diz que as eleições brasileiras serão monitoradas de perto e afirma ainda que uma possível ruptura democrática no país teria efeitos não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - A Freedom House é famosa pelo ranking sobre a democracia no mundo. De acordo com ele, a pontuação do Brasil está ficando cada vez menor desde pelo menos 2016. Em 2017, era 79 e agora é 73. Por que isso aconteceu?

Gerardo Berthin - O Brasil ainda é classificado como um país livre pela Freedom House, mas se você olhar comparativamente, ele está lá atrás, muito perto dos países considerados parcialmente livres das Américas. Estamos preocupados, principalmente, com questões relacionadas à liberdade de expressão online, que tem diminuído consistentemente nos últimos anos, particularmente no que diz respeito a ativistas e jornalistas. Eles estão enfrentando cada vez mais investigações criminais, particularmente por criticar o atual governo [...]

Neste ano em particular, a nota caiu um ponto por causa das restrições à liberdade acadêmica [...] Há vários relatos que surgiram sobre instituições federais e universidades públicas sendo ameaçadas para demitir pesquisadores depois que eles questionaram e criticaram o governo. O ato mais notável ocorreu no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Eles demitiram o diretor, Ricardo Galvão, provavelmente, por ter desafiado o presidente Bolsonaro.

BBC News Brasil - O Brasil terá eleições neste ano. A comunidade internacional está preocupada com a forma como esse processo ocorrerá aqui?

Gerardo Berthin - Temos duas eleições cruciais sendo monitoradas. Uma delas é na Colômbia, em maio. A outra é no Brasil. E há algumas preocupações sobre se Bolsonaro e seus aliados ou seus apoiadores voltarão a inundar o ambiente online com desinformação, como fizeram em 2018. Isso pode ameaçar a integridade da eleição.

Além disso, por muitas vezes, o regime de Bolsonaro também deu a entender que não reconhecerá o resultado das eleições se ele perder, mais ou menos como Donald Trump fez em 2020. Estamos observando isso de perto. Não vamos esquecer que Bolsonaro atacou a legitimidade das instituições eleitorais. Ele enviou uma emenda constitucional sobre o voto impresso e assinou um decreto que proibia as redes sociais de remover informações relacionadas a eleições. Mesmo que essas tentativas tenham falhado, sabemos que essas medidas teriam dado legitimidade a alegações infundadas de fraude e poderiam aumentar o potencial de intimidação dos eleitores.

BBC News Brasil - Quão fortes são as preocupações sobre uma possível ruptura democrática no Brasil a depender dos resultados das eleições?

Gerardo Berthin - Estamos vendo tendência global de mudança para regimes mais autoritários. Acho que o Brasil faz parte dessa tendência. Se você olhar a análise da Freedom House na última década, há dois países na América do Sul que realmente perderam pontos em relação aos direitos civis e políticos. Um deles é a Venezuela, que é considerada não-livre pela Freedom House. O outro é o Brasil. É claro que existem outros países na América do Sul que são considerados parcialmente livres: Bolívia, Colômbia e Paraguai, por exemplo. Mas esses dois países, Venezuela e Brasil, estão mostrando os declínios mais profundos nos direitos civis e políticos da última década. É preocupante ver o que está acontecendo.

Bolsonaro durante discurso para apoiadores em Brasília em ato de 7 de setembro (Facebbok)

BBC News Brasil - Na sua opinião, o presidente Bolsonaro já fez algum tipo de ameaça às instituições democráticas do país durante o seu mandato?

Gerardo Berthin - Acho que sim. Desde 2019, nossos relatórios têm documentado isso, particularmente em relação à restrição de direitos políticos e liberdades civis. Isso se reflete nesse declínio da pontuação do país. Como mencionei antes, existe essa a questão da liberdade de expressão, particularmente em relação aos defensores dos direitos humanos, ativistas e jornalistas. Também há as restrições à liberdade acadêmica e essa tentativa de limitar as empresas de mídia social em sua capacidade de fazer cumprir seus próprios termos de serviços. Se você analisar esses incidentes e essas evidências, há um risco de que Bolsonaro talvez não entenda totalmente que as eleições precisam ser livres e transparentes. Há uma demonstração de que talvez ele possa não estar disposto a apoiar eleições justas e transparentes que virão em outubro.

BBC News Brasil - E quais seriam as consequências para o Brasil se os resultados das eleições não fossem respeitados?

Gerardo Berthin - Essa é uma pergunta interessante. O jogo geopolítico será importante. Talvez essa seja uma das razões pelas quais há alianças sendo feitas com a Rússia. Lembre-se que o presidente Bolsonaro visitou o presidente Vladimir Putin algumas semanas antes da invasão da Ucrânia. O outro fator geopolítico é a China. O Brasil também tem relações crescentes com a China. Existem alguns instrumentos regionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), que pode aplicar a Carta da Democracia se isso acontecer. Certamente, os Estados Unidos reagiriam. Isso seria muito preocupante porque o Brasil não é apenas um líder regional por seu tamanho e sua história, mas também é um líder global. E o que quer que aconteça no Brasil, não só afetará seus vizinhos, particularmente aqueles que já estão tendo alguns problemas como Bolívia, Peru e talvez Colômbia, mas também afetaria fatores geopolíticos em todo o mundo. A ONU também será outro ator muito importante na reação se de fato algo assim acontecer.

BBC News Brasil - Considerando as últimas décadas, este é o momento de maior preocupação em relação à saúde da democracia brasileira? Essas eleições são um momento decisivo?

Gerardo Berthin - O que aprendemos é que o retrocesso da democracia, a menos que seja feito por um golpe de estado, é um processo gradual e incremental. O que estamos vendo no Brasil são os primeiros indícios de que há um retrocesso sustentado da democracia desde 2016. O que irá acontecer a partir de agora dependerá de quão fortes são as instituições que defenderão a democracia como, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, os órgãos eleitorais, etc.

Se esse é o último respiro da democracia no Brasil? Ainda não é possível dizer porque ainda existem algumas forças boas por aí. Há forças democráticas que podem impedir que essas eleições sejam as últimas. Mas, como eu disse, as democracias tendem a morrer muito gradualmente e, por conta de todas as indicações e evidências que eu mencionei, o Brasil está lentamente recuando em seu progresso democrático.

BBC News Brasil - Alguns analistas afirmam que o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva são radicais e que uma vitória de qualquer um deles colocaria a democracia no Brasil em perigo. O senhor vê os dois como radicais?

Gerardo Berthin - Eu diria que mais do que radicais, eles estão na extremidade oposta do espectro político. Uma das coisas que vimos em todo o mundo é que essa classificação entre esquerda e direita não faz mais sentido. Basta ver que, na França, muitas das posições da extrema direita também estão presentes nas respostas apresentadas pela esquerda. No Brasil, eles (Bolsonaro e Lula) são dois pontos que estão polarizando e não há nada no meio. Muito provavelmente, muitos países estão sofrendo com isso porque não há um centro forte. Ambos os candidatos precisam se pronunciar mais ativamente a favor dos valores democráticos. Se eles não forem capazes de fazer isso, certamente a polarização vai continuar e sabemos que ela não é boa.

BBC News Brasil - Falamos bastante sobre o papel desempenhado pelo presidente Bolsonaro, mas a nota do Brasil no ranking da democracia começou a cair antes de ele assumir o governo. Quais as responsabilidades de outros partidos e atores políticos em relação a isso?

Gerardo Berthin - A dinâmica nacional é importante em todos os países. Certamente, há algumas coisas que eles podem fazer. E uma das maneiras de renovar e reformar nossa democracia é também garantir que os partidos políticos sejam renovados, que eles realmente representem os interesses daqueles que são mais vulneráveis ou marginalizados para evitar termos uma eleição na qual você precisa escolher entre dois males, como foi também o caso do Peru, recentemente. O Brasil e outros precisam proteger eleições livres e justas. A integridade das eleições é muito importante para fortalecer essas instituições. Mas, com certeza, temos que começar a renovar os sistemas e processos políticos que não foram renovados ou melhorados desde que fizemos a transição para as democracias no final dos anos 1980.

BBC News Brasil - O senhor disse que os peruanos tiveram que escolher entre dois males. O senhor acredita que a escolha entre Bolsonaro e Lula é uma escolha entre dois males?

Gerardo Berthin - Provavelmente, não. Eu não usaria isso no caso do Brasil, mas certamente é uma escolha entre dois extremos.

BBC News Brasil - O ex-presidente Lula tem falado sobre a necessidade de regulamentar a mídia no Brasil. Isso lhe preocupa?

Gerardo Berthin - Muitos países estão tratando esse dilema em termos de como lidar com a evolução empoderadora das empresas de mídia social. Acabamos de ver Elon Musk comprando o Twitter. Não há uma solução mágica porque você precisa equilibrar, por um lado, a liberdade de expressão com a proteção dos direitos humanos, mas também precisa ter alguma forma de regulamentação. Esse será o tema da próxima década, já que essas empresas começam a ter mais poder do que muitos estados e estão orientando algumas políticas que estão afetando negativamente as pessoas. Estou feliz que ele esteja falando sobre isso. Espero que ele tenha boas soluções para isso.

BBC News Brasil - Recentemente, o presidente Bolsonaro contrariou uma decisão do Supremo Tribunal Federal e perdoou um parlamentar condenado em um caso que investigava atos antidemocráticos. Como você avalia isso?

Gerardo Berthin - Não estou familiarizado com isso nesse caso em particular. Não sei se eu poderia comentar.

Equipe de segurança do Supremo esteve em peso no prédio, por causa do temor de ataques e invasões durante o último 7 de setembrom(EPA)

BBC News Brasil - No Brasil, há muitas críticas sobre o papel desempenhado pelo Judiciário. Alguns aliados de Bolsonaro e até mesmo o presidente dizem que o Judiciário vem interferindo dentro do governo. Na sua opinião, o Judiciário brasileiro vem adicionando mais pressão ao cenário político?

Gerardo Berthin - Em geral, é bom ter poderes independentes. Esse conceito de freios e contrapesos é muito importante para garantir que nem o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário tenham mais poder do que os outros e que eles verifiquem a ação um do outro. O Brasil é um sistema federativo com um presidente muito poderoso. Dessa forma, ter um judiciário que possa interpretar a lei e ser justo e transparente é sempre muito importante.

BBC News Brasil - Como o senhor vê os conflitos entre o atual governo e o Judiciário?

Gerardo Berthin - Questionar a independência e a neutralidade do Judiciário faz parte da cartilha quando você está fortalecendo um regime mais autoritário.

BBC News Brasil - O senhor acredita que o presidente Bolsonaro está se comportando de acordo com essa cartilha?

Gerardo Berthin - Acho que há intenção. Agora, se isso se traduziria em ações nós precisamos ver. Entretanto, minar o estado de direito enfraquece a independência judicial.

BBC News Brasil - O senhor trabalha com a possibilidade de o presidente Bolsonaro não entregar o governo caso ele perca as eleições?

Gerardo Berthin - Bem... ele já falou sobre isso, na verdade. E o que estamos descobrindo, por exemplo, no caso dos Estados Unidos, é que isso era uma possibilidade com Trump. E o que evitou que isso acontecesse foi a força das instituições e a força dos indivíduos que continuam a acreditar nos valores democráticos. Esperamos que mesmo que sua (Bolsonaro) intenção seja fazer isso, que as instituições brasileiras estejam à altura da ocasião, que os verdadeiros democratas estejam à altura da ocasião e defendam a democracia contra alguém que não concorda com os resultados da eleição.

BBC News Brasil - O senhor classificaria o presidente Bolsonaro como um democrata?

Gerardo Berthin - Ele mostrou muitos traços autoritários, em certo sentido. Se ele fizer outro movimento, a opção nuclear (se negar a aceitar o resultado das eleições) então, provavelmente, ele se revelaria. Até agora, ele está caminhando sobre uma linha tênue e esperamos que ele continue sobre essa linha até depois das eleições.

Leandro Prazeres, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 02.05.22 

sábado, 30 de abril de 2022

Pacheco articula PEC que restringe uso de indulto pelo presidente da República

Após graça dada a Silveira por Bolsonaro, presidente do Congresso prepara proposta para estabelecer novas regras para perdões coletivo e individual do chefe do Executivo

  

Pacheco: tentativa de limitar ‘superpoder’ do chefe do Executivo. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

O presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), articula no Senado a aprovação de um projeto para limitar a concessão do indulto e da graça constitucional (perdão). A proposta tem apoio de outros senadores descontentes com o decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro que perdoou a condenação do seu aliado político, o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A pessoas próximas, Pacheco compartilhou a avaliação de que considera o indulto um tipo de “superpoder” do chefe do Executivo. Ponderou que, atualmente, o presidente pode usar o perdão praticamente “como quiser”. Além de Bolsonaro, outros presidentes usaram artifícios legais para beneficiar condenados. 

No caso do atual chefe do Executivo, foi concedido perdão a deputado aliado condenado a oito anos e nove meses de prisão por ataques a instituições democráticas e ameaças a ministros do Supremo. Seu principal adversário na disputa eleitoral deste ano, o petista Luiz Inácio Lula da Silva usou um outro instrumento legal, dando asilo ao italiano Cesare Battisti, condenado por homicídio em seu país. A decisão livrou o estrangeiro da extradição. Já Michel Temer indultou condenados, inclusive por corrupção na Operação Lava Jato. 

Publicamente, Pacheco já declarou que um presidente da República tem assegurado na Constituição o direito de conceder perdão, mas defendeu que o Legislativo trate do tema diante do ineditismo do benefício concedido a Silveira. 

Segundo aliados, o presidente do Congresso já encomendou estudos técnicos de sua assessoria para elaborar uma minuta de texto, que pode ser uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Mas avalia-se a possibilidade de a medida ser implementada apenas por projeto de lei.

Caso a proposta fique pronta a tempo, Pacheco estuda submetê-la à apreciação dos demais colegas na semana que vem. A intenção é de que as novas regras passem a valer a partir de sua aprovação, sem atingir o caso de Silveira.

O grupo de senadores com quem Pacheco discute a proposta tem integrantes como Renan Calheiros (MDB-AL) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Renan afirmou ao Estadão que o grupo é, de fato, coordenado por Pacheco e vai “brigar pelo estado democrático de direito e pela separação dos Poderes”.

Se vingar, a proposta de Pacheco marcará uma inflexão na crise entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Até então, os ministros do STF entendiam que estavam isolados, enquanto Bolsonaro, fortalecido politicamente, renovava a suspeição sobre as eleições e as ameaças de descumprir ordens judiciais, sem que a cúpula do Congresso reagisse. 

Pacheco conversou sobre a situação de estresse institucional com ministros da Suprema Corte e com o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL). Lira, por sua vez, por enquanto só pediu ao Supremo que julgue a ação na qual a Câmara argumenta ter a palavra final sobre a cassação de deputados.

Há outras ações em curso no Senado, além da iniciativa liderada pela cúpula. Por enquanto, a única formalmente apresentada é a PEC para acabar com o benefício da “graça constitucional”, de autoria do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE). Ele argumentou que o indulto em geral é um instrumento de política prisional e de caráter humanitário, enquanto a “graça” serve a “interesses puramente privados e, muitas vezes, não republicanos”.

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo, em 30 de abril de 2022 | 05h00

Até o Centrão tenta conter golpismo de Bolsonaro e maluquices dos bolsonaristas no Congresso

O caldeirão está fervendo e a grande pergunta é até onde presidente quer chegar

 Só não dá para contar nem com uns, do Centrão, nem com os outros, bolsonaristas, para defender o Supremo. Foto: Eraldo Peres/AP

Ok, pode-se alegar que o ministro Alexandre de Moraes estica muito a corda, 8 anos e 9 meses por ameaças é um exagero e o Supremo tem enviado sinais desencontrados à sociedade. Mas daí o presidente da República consumir duas horas numa homenagem a um sujeito condenado e desqualificado como Daniel Silveira?

Pode-se lembrar que Jair Bolsonaro é fã de Pinochet, Stroessner e Brilhante Ustra e sua família já condecorou um miliciano depois morto pela polícia, mas desta vez a papagaiada foi no Planalto, que não é de Bolsonaro nem do governo, mas do Estado brasileiro, e teve lances absurdos: o presidente abraçado a Silveira, o condenado divertindo-se com o decreto que o indultou, 22 parlamentares discursando.

É um tapa na cara do Supremo e da Nação, sufocada pela crise econômica e a inflação galopante divulgada no mesmo dia. Os bolsonaristas estão ocupados em endeusar Daniel Silveira, o povo quer comer, morar, estudar, tratar da saúde, se locomover e trabalhar.

E a Câmara? Premiou Daniel Silveira com cinco comissões! Uma delas é nada mais, nada menos, a de Constituição e Justiça (CCJ). Um valentão condenado por dez votos a um pelo Supremo na CCJ, “mãe” de todas as comissões, que julga exatamente a constitucionalidade das propostas?!

Atenção, porém! Isso é coisa de bolsonaristas, que caíram de paraquedas no Congresso com os ventos da “nova política” e do “Messias”, mas o Centrão, frio, pragmático e mais preocupado com orçamentos secretos, não gostou da brincadeira. Até para o Centrão, tudo tem limite.

Uma no cravo, outra na ferradura: os bolsonaristas meteram o condenado na CCJ, mas perderam a presidência da comissão. Saiu Bia Kicis e era para entrar Major Victor Hugo, mas o acordo previa que o novo presidente fosse do PSL e Hugo migrou para o PL de Bolsonaro. Assim, deu Arthur Maia, do União Brasil, fusão de PSL e DEM.

Registre-se que seis bolsonaristas, inclusive Eduardo Bolsonaro, são agora alvo do Conselho de Ética e que os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, postaram nas redes, quase ao mesmo tempo, o apoio ao sistema eleitoral. Logo, contra os ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas e ao TSE.

O caldeirão está fervendo e a grande pergunta é até onde Bolsonaro quer chegar. Só nos faltava contar com o Centrão para segurar os ímpetos enlouquecidos de Bolsonaro no Executivo e dos bolsonaristas no Congresso, mas é exatamente isso que está pintando no horizonte. Só não dá para contar nem com uns, do Centrão, nem com os outros, bolsonaristas, para defender o Supremo. Aí, a questão é bem diferente... 

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal(PE) e do Telejornal "Globo News em Pauta". Publicado originalmente em 30.04.22.

Golpismo é arma eleitoral de Bolsonaro

Enquanto a população sofre com a inflação, o desemprego e a fome, Bolsonaro zomba da Constituição e ameaça uma vez mais o processo eleitoral. É o bolsonarismo em ação.

Jair Bolsonaro avança, com desenvoltura crescente, na sua escalada contra as instituições. Não se vislumbra quais seriam os limites de sua irresponsabilidade. Num só dia, como fez na quarta-feira passada, é capaz de atacar o processo eleitoral, envolver as Forças Armadas em seus devaneios conspiratórios, zombar do Judiciário e profanar a liberdade de expressão. É uma sucessão de barbaridades que, a rigor, não têm nenhuma relevância para o País. Enquanto Jair Bolsonaro entretém seu eleitorado com afrontas golpistas, a população tem de enfrentar a inflação, o desemprego, a fome e a falta de perspectiva quanto ao futuro.

O quadro é grave e requer realismo. A situação do Brasil em 2022 não guarda nenhuma semelhança com o que se viu em 2017 e 2018. No governo de Michel Temer, havia a crise social e econômica gestada nas administrações petistas, mas tinha um Executivo federal disposto a trabalhar e a enfrentar os problemas nacionais. Esse esforço gerou resultados visíveis: redução da inflação, condições sustentáveis para a diminuição dos juros e a retomada do crescimento.

O cenário hoje é inteiramente diferente. Não são apenas os indicadores econômicos ruins; por exemplo, a inflação volta a apresentar índices não vistos desde os anos 90 do século passado. O mais grave é que, mesmo com essa situação, o presidente da República entende que o seu papel é afrontar o Supremo, promover a desconfiança contra o sistema eleitoral e ainda envolver o bom nome das Forças Armadas em questões políticas.

Não bastasse ter declarado a inocência de um condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – o presidente da República pode conceder perdão, mas não reescrever uma sentença judicial –, Jair Bolsonaro promoveu no Palácio do Planalto um ato que, sob pretexto de defender a liberdade de expressão, homenageou o deputado que não respeita as leis e as instituições do País. O bolsonarismo expõe, assim, sua verdadeira identidade. Não é liberalismo, não é eficiência na gestão pública, não é abertura comercial, não é zelo pelo ambiente de negócios, não é estímulo à produtividade, não é melhoria da educação. Seu símbolo perfeito é Daniel Silveira, aquele que vem exercendo na atual legislatura o papel desempenhado por Jair Bolsonaro na Câmara durante seus vários mandatos. O padrão é rigorosamente o mesmo: quebra de decoro e violência contra as instituições democráticas como tática para ganhar visibilidade, na tentativa de acobertar a irrelevância política.

E é o que continua fazendo Jair Bolsonaro na Presidência da República. Sem disposição e competência para enfrentar os problemas nacionais, Bolsonaro percorre o caminho da ameaça e do enfraquecimento das instituições. No ato de quarta-feira no Palácio do Planalto, Bolsonaro defendeu a contagem paralela de votos pelas Forças Armadas. Por todos os ângulos que se veja, a proposta é inconstitucional. A definição do processo eleitoral não é uma disposição do chefe do Executivo federal, mas competência do Congresso Nacional. Não cabe às Forças Armadas a função de revisor do sistema eleitoral.

Jair Bolsonaro mostra-se alheio à Constituição e, também, à lei. São crimes de responsabilidade, segundo a Lei 1.079/50, “utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral” e “incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina” (art. 7.º, 4 e 7). Bolsonaro pode não gostar, mas tem o dever de respeitar a legislação eleitoral aprovada pelo Congresso. A Presidência da República não é órgão legislador.

Sem cumprir o que lhe cabe, que é governar o País, Jair Bolsonaro cria novas frentes de atrito e confusão. Revisa sentença judicial, desdenha da legislação aprovada pelo Congresso sobre processo eleitoral, instiga os militares a desempenharem funções além dos limites constitucionais. Nada disso é casual. É o bolsonarismo em ação, que ataca não apenas o STF, mas o papel e as competências constitucionais de todas as instituições, também do Congresso e das Forças Armadas. Não é política, é golpe.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 30 de abril de 2022 | 03h00

EUA começam a treinar soldados ucranianos na Alemanha

Departamento de Defesa americano afirma que forças da Ucrânia estão aprendendo a usar sistemas avançados de defesa e a manusear armamento pesado, como armas de longo alcance e veículos blindados.

O Departamento de Defesa dos Estados Unidos informou que está treinando soldados ucranianos na Alemanha e ensinando-os a manusear sistemas avançados de defesa.

"Hoje posso anunciar que os Estados Unidos começaram a treinar sistemas-chave com as forças armadas ucranianas nas instalações militares dos EUA na Alemanha", afirmou o porta-voz do Departamento de Defesa, John Kirby, em entrevista coletiva nesta sexta-feira (29/04).

Segundo Kirby, o programa de treinamento ocorre em coordenação com o governo alemão. "Estamos gratos pelo apoio contínuo da Alemanha", disse o porta-voz.

Cerca de 50 ucranianos foram treinados a usar um obus, uma arma de longo alcance. Os soldados também aprenderão a usar sistemas de radar e veículos blindados.

Kirby disse ainda que a maior parte do treinamento está sob a responsabilidade da Guarda Nacional da Flórida, que já havia treinado as forças ucranianas antes da invasão do país pela Rússia em 24 de fevereiro.

"A recente reunião desses membros da Guarda Nacional da Flórida com seus colegas ucranianos, segundo nos disseram, foi emocionante, devido aos fortes laços que foram formados enquanto viviam e trabalhavam juntos antes de se separarem temporariamente em fevereiro", acrescentou o porta-voz americano.

Segundo ele, os soldados ucranianos treinados "serão basicamente treinadores eles mesmos, pois vão voltar para a Ucrânia e treinar seus companheiros e equipe".

Apoio ocidental à Ucrânia

Kirby afirmou ainda que o treinamento das forças ucranianas está ocorrendo também em outras partes da Europa, mas não divulgou locais.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, havia dito no final de março que tropas americanas estavam treinando soldados ucranianos na Polônia, mas essa afirmação foi posteriormente negada por autoridades militares.

A Rússia tem alertado países ocidentais contra o armamento das forças ucranianas. Em março, Moscou atacou um centro de treinamento da Otan perto da fronteira polonesa, em uma mensagem direta ao Ocidente.

Países como a Alemanha têm apoiado Kiev em meio à guerra travada pela Rússia. Nesta semana, o Parlamento alemão aprovou o envio de armas pesadas, como sistemas antiaéreos e veículos blindados, e sistemas complexos de defesa à Ucrânia. Berlim também deverá enviar mais soldados para aumentar a presença da Otan no Leste Europeu.

Deutsche Welle Brasil, em 30.04.22

Quem foi o marquês de Barbacena, homem de confiança de D. Pedro 1º que previu sua queda

Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, o marquês de Barbacena, embora pouco estudado e mencionado pela historiografia brasileira, é considerado por alguns como a personificação do Primeiro Reinado (1822-1831) e até do Período Regencial (1831-1840). 

Marquês de Barbacena foi uma figura controversa (Sisson)

Figura controversa, ele era senhor de engenho e dono de negros escravizados, mas foi o autor da primeira lei contra o comércio deles da África para o Brasil. Amigo do imperador D. Pedro 1º e ministro, foi responsável pelas negociações que levaram ao segundo casamento do monarca, mas depois foi demitido acusado de corrupção. Em seguida, escreveu uma "carta profética" para o imperador, na qual insinuava que ele era doido e o alertava que, se não mudasse sua forma de governar, cairia em sete meses. Caiu em seis, ao ser obrigado a abdicar.

Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, o marquês de Barbacena, embora pouco estudado e mencionado pela historiografia brasileira, é considerado por alguns como a personificação do Primeiro Reinado (1822-1831) e até do Período Regencial (1831-1840). Militar de formação, foi diplomata, senador do Império, ministro da Fazenda e Conselheiro de Estado. Era peça política importante na época, tendo participação ativa nos grandes momentos do reinado de D. Pedro 1º.

O futuro visconde e depois marquês nasceu no arraial de São Sebastião, perto de Mariana, em Minas Gerais, em 19 de setembro de 1772 e morreu no Rio de Janeiro em 13 de junho de 1842. Era filho de duas famílias importantes, os Caldeira Brant e os Horta. "Barbacena era neto do contratador de diamantes Felisberto Caldeira Brant, preso acusado de contrabando no período das Minas Gerais setecentistas", conta o historiador Rafael Cupello Peixoto, autor do livro O marquês de Barbacena: política e sociedade no Brasil Imperial (1796-1841), com lançamento previsto para maio de 2022. "Ele foi casado com Anna Constança Guilhermina de Castro Cardoso, filha de um importante traficante de escravos da Bahia, Antônio Cardoso dos Santos."

O também historiador Carlos Gabriel Guimarães, da Universidade Federal Fluminense (UFF), descreve o contexto político e econômicos na época em que Barbacena atuou, no início do império. "O ambiente no Primeiro Reinado foi bem conturbado, por causa das Guerras da Independência e as reações de outras Províncias à centralidade do Rio de Janeiro, e da presença portuguesa", explica. "Importante ressaltar o embate entre o imperador D. Pedro 1º e a Assembleia Constituinte de 1823, com seu fechamento e a Constituição sendo outorgada pelo imperador em março de 1824, o que levou à reação de Pernambuco com a Confederação do Equador."

Além disto, acrescenta, a Grã-Bretanha continuava pressionando para pôr fim ao tráfico negreiro com a África e a questão do reconhecimento político e diplomático do Brasil. "Em 1825, a antiga metrópole reconheceu a independência, mediante o pagamento de uma vultosa soma, o que levou o Brasil a contrair um empréstimo internacional", informa Guimarães. "Foi o chamado o 'empréstimo português', no valor de 3,7 milhões de libras esterlinas."

Outros problemas surgiram com a morte do rei de D. João 6º e a disputa pela sua sucessão, sendo D. Pedro 1º o autor da Carta Constitucional portuguesa, que duraria até a República de 1910 em Portugal. "Essa proximidade do imperador com seu país natal fez com que a relação deles com os brasileiros e seus representantes, principalmente na Câmara dos Deputados a partir de 1826, piorasse", explica Guimarães.

Capa do livro "O marquês de Barbacena: política e sociedade no Brasil Imperial (1796-1841)", que será lançado pelo Arquivo Nacional no próximo dia 26 de maio, após pesquisa do historiador Rafael Cupello ser premiada pelo órgão (Arquivo Nacional)

A situação se agravou mais ainda com a derrota na Guerra da Cisplatina (1825-1828), na qual Barbacena foi comandante das tropas brasileiras, com a consequente perda daquela Província (atual Uruguai), grandes gastos com o conflito e a falência do Banco do Brasil (o primeiro, criado em 1808). "Portanto, nas vésperas da abdicação, em 1831, a situação política e econômica era difícil, e D. Pedro 1º já estava bastante desgastado e cada vez mais pressionado pelo grupo dos brasileiros acusando-o de ser favorável aos interesses de Portugal e dos portugueses", conta o historiador.

Ao lado da perda da Província Cisplatina e dos gastos que a guerra gerou, Tâmis Parron, colega de Guimarães na UFF, lista outros fatores que levaram ao desgaste do imperador perante os brasileiros. "A política externa de D. Pedro 1º foi seu telhado de vidro, e a oposição não poupou nenhuma pedra que caísse nas suas mãos", diz. "Ele usou o fim do tráfico negreiro transatlântico como parte de uma barganha com a Inglaterra. A Corte assinaria uma convenção com os ingleses suprimindo esse comércio, e eles viabilizariam o reconhecimento da Independência do Brasil o mais rápido possível."

A barganha deu certo: nenhum país das Américas alcançou reconhecimento tão rapidamente como o Brasil na Era das Revoluções. "Foram meros três anos", lembra Parron. "Mesmo assim, a elite política não perdoou, pelo efeito que teve na ilegalização do comércio de africanos escravizados. 'O governo tem obrado como estúpido', gritou um deputado no Parlamento, pouco antes da queda de D. Pedro 1º. Mais uma vez, o rei já tinha perdido a majestade antes de cair."

De um jeito ou de outro, Barbacena participou de todos esses acontecimentos e situações. Antes disso, no entanto, ele foi fazer sua formação na Europa. O futuro marquês partiu em 1788, para estudar em Lisboa. Depois, ingressou na academia da Marinha, cujo comandante era seu primo José Pires da Silva Pontes, que o tornou seu protegido e de quem, mais tarde, ele adotou o sobrenome, como homenagem. Por algum motivo, Barbacena pediu transferência para o Exército e foi servir, por dois anos, em Angola, como major.


Historiador, professor e pesquisador Rafael Cupello Peixoto (Arquivo Pessoal)

Segundo Peixoto, depois disso, Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, fixou-se, em 1801, na Bahia como tenente-coronel do regimento local, onde desenvolveu uma extensa rede de negócios, que lhe possibilitou aproximar-se do novo centro político do Império português, o Rio de Janeiro, em virtude da instalação da Corte Joanina em 1808. "Nas diversas cartas que redigiu ao longo do oitocentos, a questão da segurança da Bahia, bem como o medo de levantes de 'negros' e da 'gente miúda' permearam as ideias dele", diz.

Ainda de acordo com o historiador, como militar, o futuro marquês procurou disciplinar as Forças Armadas que tinha à disposição, como instrumento de ação para preservar a ordem e garantir a segurança da "boa sociedade". Sua atuação no processo de independência reflete, de certa forma, seu apego à ordem. "Suas ações nesse período exemplificam seu modus operandi como político durante o período imperial brasileiro", explica.

Barbacena era simpático aos ideais constitucionais que circulavam no século 19, resultado da Revolução Francesa de 1789. No entanto, defensor de uma perspectiva conservadora, ele acreditava que uma mudança para o sistema constitucional deveria ser processada pelo monarca. "Ele era um belo exemplar do conceito de 'Despotismo Ilustrado', tão em voga no mundo luso-brasileiro e promovido pelas autoridades reinóis portuguesas em seus projetos de reformismo ilustrado, do final do século 18", diz Peixoto.

Ou seja, fiel ao seu princípio conservador, ele não poderia admitir um evento de transformação das estruturas políticas do mundo luso-brasileiro que não fosse comandado pela figura real. Isso pôde ser visto em 1817, quando eclodiu a Revolução Pernambucana, um movimento separatista — o último do período colonial — de caráter republicano. "Barbacena jamais participou ou apoiou qualquer movimento democrático", conta Peixoto.

Na verdade, ele associava o conceito de democracia ao de excesso de liberdade, vista como "desprezível" e associada ao termo "República", com a qual se deveria ter "o maior cuidado, e vigilância sobre outros da mesma escola, e seita". "Para ele, esta forma de governo (República) era propagadora da anarquia e do caos social", explica o historiador. "Não por acaso, portanto, ele se colocou contra a Revolução de 1817 e impediu que o movimento se alastrasse para a Bahia."

Peixoto lembra ainda que o futuro marquês também se posicionou contra a Revolução do Porto, em 1820, que ele classificou como uma "moléstia do século". Afinal, diz o historiador, ela foi promovida por revolucionários e não pela figura real. A mesma posição ele teve em relação ao movimento em apoio à revolta que ocorria em Portugal, que explodiu na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821.

Mas, desta vez, ele se viu em "maus lençóis", inclusive sendo ameaçado de "linchamento" pelos apoiadores do movimento. "Assim, ele acabou aderindo à ação, mas sob forte constrangimento", informa Peixoto. "Felisberto resolveu ir para o Rio de Janeiro e, depois, acabou viajando para Londres, após mais uma vez se envolver em uma confusão provocada agora por outro movimento de adesão às Cortes lisboetas, mas desta vez na cidade carioca."

Na Inglaterra, Barbacena desempenhou importante papel diplomático. "Ao lado do jornalista e diplomata, Hipólito José da Costa, ele atuou, antes mesmo da independência, na primeira tentativa de obter o reconhecimento do Brasil como reino autônomo", informa Isabel Lustosa, pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. "Depois da morte de Hipólito [em 11 de setembro de 1823], atuou junto ao governo inglês pelo reconhecimento da independência do Brasil."

Esse seu trabalho diplomático rendeu a ele dividendos econômicos e político. "Por causa de sua atuação, D. Pedro 1º, por meio do decreto de 12 de outubro de 1825, concedeu a Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta o título de Visconde de Barbacena, e, um ano depois, de marquês", conta Guimarães.

Já como marquês, Barbacena teve forte atuação no governo imperial e ajudou D. Pedro a contornar crises. Diante da situação crítica da corte, ele foi convidado pelo imperador, em 1829, para ficar à frente do gabinete de ministros. "No cargo, Barbacena teve que lidar com as questões políticas, como a presença dos portugueses na Corte; com o famoso secretário do imperador Chalaça [Francisco Gomes da Silva], e o problema de ordem moral de D. Pedro 1º, envolvendo a sua amante, a Marquesa de Santos", relata Guimarães.

Tâmis Parron, doutor em História, professor de História do Brasil no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (Arquivo Pessoal)

O marquês se saiu bem - pelo menos por um tempo. Sua atuação fez com que os portugueses fossem afastados e a marquesa se retirasse da Corte. "No entanto, a pressão sobre D. Pedro 1º fez com que o imperador, em 1830, dissolvesse o gabinete do Marquês de Barbacena, que tinha trazido um pouco de 'serenidade' na conturbada conjuntura do momento", diz Guimarães. "Isto fragilizou mais ainda o imperador, sendo criticado abertamente e em público."

Lustosa acrescenta que Barbacena foi nomeado ministro com grande prestígio e parecia destinado a fazer um grande governo. "Mas D. Pedro rompeu com ele, por conta das despesas das viagens à Europa para negociar o segundo casamento do imperador", explica. "O monarca lançou suspeitas sobre suas contas e o demitiu. Essa demissão parece ter tido o dedo do Chalaça, que tinha sido mandado embora do Brasil pelo imperador, a pedido do marquês. De lá da Inglaterra, Francisco Gomes da Silva fez a intriga que levou o monarca a romper com Barbacena."

Esse é o final de uma história que começou antes de o Marquês assumir o ministério, quando ele viajou à Europa, em de julho de 1828, para levar a filha de D. Pedro, D. Maria da Glória, que viria a ser a rainha de Portugal, D. Maria 2ª, para a corte de seu avô, o imperador Francisco 1º, da Áustria. Também fazia parte da missão do marquês negociar o segundo casamento do imperador do Brasil, com alguma princesa europeia.

Quando chegaram em Gibraltar, Barbacena ficou sabendo que o irmão de D. Pedro, D. Miguel, havia usurpado o trono português e tinha o apoio de Francisco 1º. Então, resolveu levar Maria da Glória para a Inglaterra e, de lá, seguiu com a segunda parte da missão. Em 1829, ele retornou ao Brasil, trazendo a segunda imperatriz do Brasil, D. Amelia de Leuchtenberg.

Este poderia teria sido um final da história feliz para Barbacena se tempos antes ele não tivesse cometido um erro de avaliação. "O marquês havia entendido a dinâmica para chegar ao topo do poder político imperial, isto é, 'bajular' os homens próximos do monarca como forma de se aproximar dele", conta Peixoto. "Ele fez isso ao ganhar a confiança de Chalaça, amigo e fiel escudeiro de D. Pedro 1º. Seu erro político foi achar que, uma vez no topo, poderia se livrar da influência de Francisco Gomes da Silva. Ao fazê-lo, enviando-o para a Europa, escreveu as páginas de sua própria ruína."

Quando Chalaça descobriu que Barbacena foi um dos articuladores de sua retirada da Corte do Rio de Janeiro, conspirou contra ele, de Londres, incutindo no Imperador a desconfiança de que seu ministro havia roubado dinheiro em sua missão na Europa. "Dito e feito, D. Pedro demitiu Barbacena", resume Peixoto.

Com o que D. Pedro não contava talvez fosse a crise que sua decisão iria gerar e que levaria a sua própria queda. Ressentido pelas acusações de corrupção, Barbacena trouxe à tona a história das negociações do segundo casamento e as exigências do Imperador de que a nova imperatriz reunisse quatro qualidades essenciais: nascimento, formosura, virtudes e instrução.

Dessas, D. Pedro estava até disposto a abrir mão de parte de duas. "Se não fosse 'possível reunir as quatro indicações', poderia 'admitir alguma diminuição da primeira, e quarta, contanto que a segunda e a terceira sejam constantes'", conta Peixoto. "A humilhação pela qual D. Pedro 1º passou, com seu excêntrico pedido e uma série de recusas, veio assim a conhecimento público."

Barbacena foi mais longe, no entanto. Em 15 de dezembro de 1830, pouco depois de ter sido demitido, ele escreveu uma carta com pesadas críticas a D. Pedro, insinuando, inclusive, que o imperador era louco. "É uma carta interessantíssima, na qual ele faz análise da política na corte", diz Peixoto. "Num trecho dela, ele lembra antepassados do imperador, como Afonso 6º (1643-1683) [rei de Portugal de 1656 até à sua morte, o segundo monarca português da Casa de Bragança], que acabou preso em Sintra por loucura."

Segundo o historiador, Barbacena diz, "com todas as letras", que, pelo seu comportamento, de às vezes falar uma coisa e fazer outra e pelos seus rompantes de fúria, pelo seu autoritarismo, se não mudasse poderia seguir o destino de Afonso 6º. "Ele diz textualmente as seguintes palavras: 'Poderá acabar como parentes seus, em alguma prisão de Minas a título de doido',", revela. "Ou seja, D. Pedro seria considerado louco pelas suas ações."

Na mesma carta, ele alertou que seu reinado não iria longe daquele jeito. "Barbacena previu, mas não no sentido profético, mas sim porque estava sintonizado com os acontecimentos políticos do período e também porque havia conversado com os grupos de oposição, que ele duraria sete meses no poder", diz Peixoto. "Mas D. Pedro 1º caiu em seis, com a abdicação, em 7 de abril de 1831, em favor de seu filho, então uma criança de 5 anos, que mais tarde veria a ser o imperador D. Pedro 2º."

Fora do governo, Barbacena continuou atuando no Parlamento. Ele foi autor da Lei de 4 de novembro de 1831 a primeira do Brasil que buscou abolir o comércio de africanos escravizados para o país. "Por muito tempo, a historiografia especializada, influenciada por pesquisadores estrangeiros, considerou a lei como uma norma promulgada apenas para 'inglês ver', isto é 'letra morta', que foi criada só para fugir das fortes pressões britânicas pelo fim do tráfico de africanos, tendo em vista a forte campanha internacional abolicionista promovida pela Grã-Bretanha", explica Peixoto.

Isabel Lustosa, pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa (Arquivo Pessoal)

A aparente contradição de um dono de escravos, como Barbacena, fazer uma lei para proibir o comércio deles pode ser explicada pelo projeto de nação que ele defendia. "A ideia era - seguindo em parte o projeto de José Bonifácio de Andrada e Silva - construir uma nação homogênea, mas diferentemente do patriarca da Independência, que via na miscigenação o caminho para o branqueamento do país, o marquês defendia a vinda de imigrantes, sem qualquer tipo de mistura racial, como forma de colocar o país entre nas nações civilizadas", diz Peixoto. "Uma civilização feita a partir do branqueamento do país."

A lei de 1831 chegou a ser executada num primeiro momento após a sua promulgação, mas o fracasso do projeto "moderado" de Barbacena e do ideal de maior aceitabilidade das liberdades fez surgir uma nova força política em 1835, os Regressistas, futuro Partido Conservador do Segundo Reinado. Barbacena propôs então outro projeto de lei em 1837, que anulava a de 1831, mas mantinha o comércio proibido em troca um grande perdão aos senhores de escravos, que haviam obtido ilegalmente mão de obra africana desde o momento de promulgação da norma. "Uma vergonha", classifica Peixoto.

Com o projeto de 1837, Barbacena ainda tentava fazer valer seu projeto de nação, no qual o africano deveria ser impedido de entrar no país e uma nação de imigrantes branqueada seria incentivada. "Só que, os regressistas eram contrários a esse projeto, porque o que eles desejavam era manter a escravidão e retirar dessa gente qualquer tipo de direito", explica Peixoto. "Até mesmo o da liberdade, que de alguma forma, mesmo que não ideal, a lei de 1831 garantiu aos africanos."

Evanildo da Silveira, de Vera Cruz (RS) para BBC News Brasil, em 30.04.22

sexta-feira, 29 de abril de 2022

CNJ assume estranhas funções

A pedido de associações de magistrados, o CNJ tem criado novas despesas e disciplinado a política remuneratória dos juízes independentemente de lei nesse sentido

Um levantamento feito pelo Estadão mostrou o desembaraço de associações de magistrados na busca por vantagens financeiras a seus associados. O curioso, desta vez, é que os pleitos dessas associações não se dirigem a membros do Congresso Nacional nem são ações ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal (STF).

Como mostra a reportagem, desde 2020 as associações têm obtido seguidos êxitos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A investida mais recente, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), busca ampliar um auxílio pago aos magistrados quando há um excesso de novos processos ajuizados. 

A Anamatra pleiteia a redução do número de litígios que autorizam o pagamento da chamada Gratificação por Exercício Cumulativo de Jurisdição (GECJ). A ideia da associação é reduzir de 1.500 para 750 o número de novas ações para fins de cálculo da gratificação.

Se o CNJ deferir esse pleito, não só os magistrados da Justiça do Trabalho poderão ser beneficiados com esse bônus. O dinheiro extra, equivalente a um terço do salário, também poderá aparecer nos contracheques de juízes de todo o País e de todos os ramos do Judiciário.

A iniciativa chama a atenção por mais de um motivo. Primeiro, porque a categoria que pleiteia o benefício não figura entre as mais prejudicadas pelos efeitos da pandemia de covid-19 ou da gestão econômica irresponsável do governo Bolsonaro. Além desses dois fatores não terem impactado os vencimentos dos magistrados – realidade experimentada por muitos brasileiros de diferentes ocupações –, seus salários os colocam entre o 1% mais rico da população.

Some-se a isso que o pleito da Anamatra poderá representar um custo anual de R$ 167 milhões. Conforme o relatório Justiça em Números, do CNJ (2021), as despesas totais do Poder Judiciário chegam a 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB), um recorde internacional, e 92,6% desse montante é de despesas com recursos humanos (pessoal e encargos). 

Outro ponto que chama a atenção na iniciativa da Anamatra e de outras associações de magistrados é o foco no CNJ. A reportagem do Estadão mostra, por exemplo, que esse órgão já determinou aos tribunais federais e do trabalho, a pedido da Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e da Anamatra, a aquisição de 20 dos 60 dias de férias dos juízes.

Vale recordar aqui que o CNJ tem como atribuição primordial o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (artigo 103-B, parágrafo 4.º, da Constituição Federal). Para as referidas associações, entretanto, aquele órgão também poderia criar novas despesas e disciplinar a política remuneratória dos magistrados independentemente de lei nesse sentido. 

Essa dispensa da lei também chama a atenção. Afinal, é ela o veículo pelo qual a sociedade, democraticamente, cria direitos e obrigações jurídicas. A legalidade é sinônimo não só de certeza quanto ao direito, mas também de segurança contra o arbítrio. A lei não é obra de um único indivíduo ou de uma casta, mas dos representantes políticos da comunidade. É uma obra coletiva. Daí que, num cenário de escassez de recursos públicos, era de esperar uma maior valorização do processo legislativo por parte de representantes do Poder Judiciário. 

A importância desse processo é reconhecida pela própria Anamatra. Em texto publicado em seu site em julho de 2017, ela critica a reforma trabalhista feita no governo Temer por ela ter supostamente desconsiderado “a regra básica da formação de uma legislação trabalhista, que é a do diálogo tripartite, e também por conta da supressão do indispensável debate democrático”. 

É essa consciência da relevância do debate democrático que se espera das associações de magistrados em temas de interesse de toda a sociedade, tais como a destinação de recursos públicos à categoria que representam. Ou também aqui valerá o velho dito “Aos amigos os favores, aos inimigos a lei”?

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 03h00

Qualidade da democracia depende da Câmara

Condescendência com desvios de conduta de deputados indignos do mandato que receberam depõe contra a própria Casa e distorce a representação política da sociedade

Um deputado desqualificado e insignificante se tornou o centro das atenções do País e peão de uma constrangedora rusga entre os Poderes da República, que resvalou até para as Forças Armadas. É como se nada mais urgente demandasse as atenções dos chefes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário do que o destino da triste figura de Daniel Silveira (PTB-RJ) e suas implicações jurídicas e políticas.

A sociedade teria sido poupada do sentimento de vergonha alheia e seus interesses estariam mais bem resguardados se acaso a Câmara dos Deputados – que representa a sociedade, afinal – tivesse cassado Daniel Silveira por quebra de decoro parlamentar. Razões para isso não faltaram.

Antes mesmo de ser eleito na onda “antipolítica” que varreu o País em 2018, o ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro já dava mostras cabais de que seu comportamento iracundo, vulgar, indisciplinado e desrespeitoso era absolutamente incompatível com o exercício do múnus público. Mas, até a eleição, esse era um problema de seus eleitores. Uma vez eleito, mantida a postura indecorosa, Daniel Silveira passou a ser um problema da Câmara.

A Casa tem o papel inalienável de zelar pela qualidade da democracia representativa. Esse zelo se materializa na sanção política, que pode culminar na cassação do mandato, daqueles que manifestam um comportamento que degrada, antes de qualquer coisa, a própria imagem do Legislativo. Contudo, não só Daniel Silveira não foi cassado, malgrado a falta de decoro e a condenação criminal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como foi premiado com assento em cinco comissões permanentes da Câmara, inclusive a mais importante e prestigiosa de todas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

O deputado Daniel Silveira está longe de ser o único exemplo de tolerância excessiva da Câmara com graves desvios de conduta – quando não crimes – cometidos pelos seus. Para ficar apenas no caso de condescendência mais nocivo para o País até hoje, basta um simples exercício de imaginação para inferir qual teria sido a sorte dos brasileiros se acaso a Câmara tivesse cassado o mandato do então deputado Jair Bolsonaro após um dos muitos episódios de quebra de decoro que o atual presidente da República protagonizou durante seus quase 30 anos de vida parlamentar. No caso de Silveira, ainda há tempo para a Casa refletir e agir como se espera.

O espírito de corpo na Câmara pode muito bem beneficiar determinada legislatura e aumentar o poder do seu presidente de ocasião, mas, visto a longo prazo, contribui decisivamente para o desprestígio popular do Legislativo e, como consequência, para o enfraquecimento da democracia representativa.

Na esteira da graça inconstitucional concedida a Daniel Silveira por Bolsonaro, um grupo de parlamentares ligados ao presidente da República, liderados pela deputada Carla Zambelli (PL-SP), pretende transformar a condescendência em lei. A parlamentar apresentou um projeto de lei que propõe anistia a todos os deputados que tenham praticado atos investigados como “crimes de natureza política” entre o dia 1.º de janeiro de 2019, data da posse de Bolsonaro, e o dia 21 passado, quando o presidente assinou o decreto “perdoando” Silveira, como se inocente este fosse e como se Bolsonaro fosse um “revisor” das decisões do STF.

A mera apresentação de um projeto desse gabarito, com esse explícito recorte temporal, já é indecente por si só, mas, vindo de uma bolsonarista de quatro costados não chega a surpreender. Outro deputado bolsonarista, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), apresentou um Projeto de Resolução que torna ainda mais difícil a cassação do mandato parlamentar ao propor o aumento do quórum de votação, de maioria absoluta (257 votos) para dois terços (342 votos).

Para o bem da própria Câmara e da democracia representativa, projetos claramente corporativistas como esses não devem prosperar. É do interesse maior da Casa que os maus parlamentares, os que não honram o mandato recebido de seus eleitores, sejam excluídos da vida pública.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 03h00

Gabeira: Qual é a graça de Bolsonaro?

O problema do presidente não é tanto o STF em 2021, mas sim aqueles ministros que têm poder noTribunal Superior Eleitoral (TSE).
   
 A decisão de Bolsonaro de conceder uma graça presidencial a Daniel Silveira é um marco na sua trajetória. Remete ao 7 de setembro de 2021. Naquele momento, ele fez um discurso inflamado contra o STF, mas, logo em seguida, recuou. Bolsonaro deu um passo atrás para caminhar dois passos à frente num ano eleitoral. Agora, o próprio ex-presidente Michel Temer tentou dissuadi-lo, mas ele segue firme em sua lógica de confronto.

Foram muitos os argumentos jurídicos contra o ato de Bolsonaro. Mas o que parece interessar a ele, na verdade, são as consequências políticas. Avançou ou não no seu projeto de reeleição? É difícil de responder neste momento, mas aparentemente Bolsonaro reforçou sua base e se distanciou um pouco dos setores mais moderados, que, em última análise, são o fiel da balança de uma eleição polarizada. O problema de Bolsonaro não é tanto o STF em 2021, mas sim aqueles ministros que têm poder no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

No caso de Daniel Silveira, ele apenas partiu para o confronto, sem maiores cuidados. Não concedeu graça a um criminoso, como prevê a Constituição. Ele aboliu o crime, afirmando que Silveira apenas exerceu a liberdade de expressão. Em outras palavras, funcionou como uma instância jurídica de revisão, substituiu a Corte Suprema. Isso pode? Perguntam todos aos juízes, no mesmo tom em que locutores esportivos consultam comentaristas especializados depois de um lance confuso.

Da mesma forma, Bolsonaro usou um falso argumento para fundamentar sua decisão. Disse que havia uma comoção nacional por causa da pena a Silveira. Havia apenas um carnaval, muita gente cantando e apontando dois dedos para o alto.

É previsível que agora Bolsonaro volte toda sua energia para questionar as urnas eletrônicas. Ele conseguiu uma nota do Ministério da Defesa condenando o ministro Luís Roberto Barroso. Ao dizer que as Forças Armadas estavam sendo influenciadas para questionar as urnas eletrônicas, Barroso abriu um flanco. Na verdade, essa é a intenção de Bolsonaro, mas todas as forcas democráticas têm de contar com a hipótese de que ele não conseguiu nem conseguirá.

Tudo isso acontece já no calor da pré-campanha. As pesquisas indicam um crescimento de Bolsonaro, mas apontam para um limite por causa da rejeição. Com uma possibilidade grande de derrota, interessa a ele o quadro mais tumultuado possível.

Interessante, também, acentuar que um quadro de tumulto estimulado pelo presidente da República se reflete claramente na economia: afasta investidores, desvaloriza o real, enfim, traz uma série de consequências negativas. Portanto, é um momento de muita cautela, pois simultaneamente é necessário evitar as provocações que vêm de cima e manter a economia num bom estado, para que o sucessor de Bolsonaro não a encontre arruinada.

O TSE tem seguido o caminho mais adequado para esta conjuntura. Ampliou a transparência do sistema eleitoral, compartilha de sua organização com diferentes setores da sociedade e até para a observação internacional está aberto.

Há dois anos, falamos muito de uma frente democrática. Havia dificuldades em formá-la porque as cicatrizes entre os opositores de Bolsonaro ainda estavam muito vivas. Em pleno processo eleitoral, é difícil retomar a ideia de uma frente com a mesma amplitude. Mas nada impede que as campanhas troquem informações e que, num determinado momento, exista um pronunciamento coletivo. Este momento ocorre quando o processo estiver ameaçado, mas pode ser também quando o processo for contestado. Se isso acontecer, será necessária a frente de candidatos que, derrotados ou não, tenham o objetivo comum de preservar a escolha democrática.

Vivemos um debate global sobre liberdade de expressão. A compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk vai reacender uma discussão sobre o comportamento da plataforma, uma vez que o novo dono tende a uma posição mais liberal. Isso vai repercutir no Brasil, sem dúvida. O Twitter firmou um compromisso de combater fake news com a Justiça Eleitoral. Será que poderá cumpri-lo, com a mudança de direção?

A concepção de liberdade de expressão do bolsonarismo e de seus líderes é bastante singular. Foi esse tipo de concepção, nos primórdios da rede social, que permitiu o avanço do racismo, da política do ódio, do assédio moral.

As redes pareciam estar amadurecendo, criando regras, ampliando seu trabalho de moderação. E isso era nossa esperança de atenuar o impacto das fake news em 2022. Se não conseguirmos um avanço neste campo da neutralização das fake news, a tarefa de tumultuar as eleições para questionar seus resultados será muito mais fácil.

O que a nova conjuntura parece nos indicar é que a necessidade de uma frente em defesa da democracia continua sendo tão importante como nos momentos em que ela pareceu mais ameaçada. A existência de muitas candidaturas é uma realidade democrática. Mas os diferentes jogadores não podem ignorar que estão querendo levar a bola, e, neste caso, simplesmente não haverá jogo.

Se os candidatos ainda não suportam falar uns com os outros, ao menos deveriam designar seus representantes para esta conversa permanente no ano eleitoral. É só o que faltava: alguma coisa acontecer, e não estarmos minimamente preparados. Quem quer democracia precisa cuidar dela.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 03h00

Governo parece gostar de inflação e não se importar com consequências', diz presidente da Febraban

Isaac Sidney prevê aumento do custo do crédito num momento de pressão inflacionária e alta dos juros, por conta do aumento de impostos sobre bancos anunciado nesta quinta-feira

Entrevista com Isaac Sidney, presidente da Febraban  

Isaac Sidney Menezes Ferreira, presidente da Febraban; para ele, governo federal errou ao aumentar impostos Foto: Foto: Celso Doni/Febraban

Isaac Sidney, presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), diz que o governo busca um troféu para ter a narrativa contra bancos na suposição de que aumentar imposto sobre o setor bancário rende dividendos políticos e pode dar votos.

“Mas quem é alvejado com um tiro certeiro é o consumidor”, disse ele em entrevista ao Estadão após o presidente Jair Bolsonaro editar uma Medida Provisória (MP) elevando de 20% para 21% a alíquota da Contribuição Social sobre Lucro Líquido dos Bancos (CSLL) para liberar o Refis do Simples Nacional.  A alíquota para as instituições financeiras não bancárias sobe de 15% para 16% para as instituições financeiras não bancárias. Ao todo, o governo conseguirá reforço de R$ 850 milhões neste ano.

Os bancos já tinham sido atingidos no ano passado com aumento da carga tributária para compensar a desoneração do diesel e do gás.

Na entrevista, o presidente da Febraban subiu o tom das críticas e prevê aumento do custo do crédito num momento de pressão inflacionária e alta dos juros. Para ele, a impressão que fica é que o governo gosta de inflação e não se importa com as consequências.

“Além de mostrar insensibilidade com as pessoas e empresas, particularmente as micro e pequenas, que mais precisam de crédito, aumentar imposto não ajuda nada o BC [Banco Central], que já estava sozinho mesmo, no dificílimo desafio de mitigar os efeitos já fortemente sentidos da inflação de dois dígitos”, critica. Leia a entrevista:

Depois de uma novela de meses, o governo aumentou a tributação dos bancos para fazer o Refis do Simples. O que o sr. achou dessa opção? 

Ao aumentar impostos, o governo errou e escolheu, de novo, onerar o consumidor, o que vai encarecer ainda mais o crédito bancário. É intrigante que, havendo setores muito mais lucrativos e com volumes elevados de incentivos fiscais, os bancos venham a ser penalizados com mais carga tributária. Nesses dois anos de pandemia, os bancos foram essenciais para preservar empregos e empresas com R$ 8,5 trilhões em crédito, irrigando toda a economia. Fomos o 16º setor mais rentável em 2020, ou seja, 15 outros ficaram à frente no quesito rentabilidade, mas só os bancos estão pagando a conta.

Qual a consequência para o crédito?

É, no mínimo, uma péssima sinalização para quem precisa de crédito. Qualquer percentual de aumento de imposto para os bancos impacta diretamente no custo dos empréstimos, que já estão caros. A incidência de mais impostos sobre o crédito, mesmo com um pequeno aumento temporário, pressiona o spread [a diferença entre o custo de captação do dinheiro pelo banco e o que ele cobra do cliente], e pior, num momento em que a sociedade está suportando uma forte subida da taxa básica de juros, que o Banco Central, corretamente, se vê na contingência de agir para conter a escalada da inflação. A medida, embora possa até mirar nos bancos, acerta uma vez mais o consumidor e torna mais caras linhas importantes no processo de recuperação econômica, como financiamento imobiliário e de veículo, crédito consignado e capital de giro.

Como a medida pressiona a inflação?

A inflação está nas nuvens, rodando a 12% ao ano. A impressão que fica é que o governo gosta de inflação e não se importa com as consequências de mais pressão inflacionária, algo que a sociedade não aceita mais. Aumento de impostos pressiona ainda mais a estrutura de custos das famílias e das empresas, retroalimentando o processo inflacionário. Isso é básico. É incrível como se cogita aumentar imposto num momento em que a economia desacelera e quando a Selic e a inflação estão nas alturas. Além de mostrar insensibilidade com as pessoas e empresas, particularmente as micro e pequenas, que mais precisam de crédito, aumentar imposto não ajuda nada o BC, que já estava sozinho mesmo, no dificílimo desafio de mitigar os efeitos já fortemente sentidos da inflação de dois dígitos. Busca-se um troféu para ter a narrativa contra bancos, na suposição de que aumentar impostos do setor rende dividendos políticos e pode dar votos, mas quem é alvejado com um tiro certeiro é o consumidor.

Como o aumento da CSLL influencia nos juros bancários?

Tudo que pesa na intermediação financeira desemboca nos juros bancários e os impostos representam 20% do spread. Portanto, mais CSLL para os bancos significa, no final do dia, mais juros para o tomador do crédito. Nos últimos 12 meses, com a elevação da Selic e do custo de captação, já houve aumento das taxas médias de juros para o crédito às famílias e para as empresas. Este aumento de impostos é muito ruim e seus efeitos serão os de sempre, que já deveriam ter sido evitados: custos maiores para quem mais precisa de crédito num cenário já bem adverso em que a inflação está corroendo o poder de compra das pessoas. 

Qual o impacto geral para a economia?

Aumento de imposto é sempre nocivo por ser fonte de custos. Vai dificultar ainda mais o processo de recuperação da economia, que estará em ritmo de desaceleração em 2022, dadas as condições financeiras e monetárias mais severas.

O que o governo deveria ter feito para compensar o custo fiscal do Refis das MPEs?

O que infelizmente não fez. Para enfrentar as dificuldades fiscais, evitar impactos negativos no custo do crédito e propiciar a retomada consistente da economia, só há um caminho: perseverarmos na aprovação da agenda de reformas estruturais em tramitação no Congresso.

O ministro Guedes descumpriu a promessa feita de que o aumento seria só aquele do ano passado?

Independentemente de promessa ou não, não é razoável que os bancos tenham, em 2021, suportado um aumento de cinco pontos percentuais de CSLL, sob o compromisso de que a majoração seria circunstancial e por apenas seis meses, e agora, pouco tempo depois, haja nova imposição de ônus sobre um dos setores que mais tem ajudado na recuperação econômica. Acho lamentável, pois cumprimos nossa parte e já pagamos mais impostos do que outros setores.

Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 09h54

Quanto custa acabar com a extrema pobreza no Brasil?

Especialistas na área social dizem que o país poderia gastar menos em transferência de renda do que os R$ 89,1 bilhões do Auxílio Brasil, desde que o programa fosse mais focalizado. Maior atenção às crianças e às diferenças regionais também são pontos de alerta.


O casal Daniel e Bruna e os filhos sobrevivem apenas com os R$ 632 que recebem do Auxílio Brasil e os R$ 52 do Auxílio Gás — Foto: João Raimundo/GloboNews

No Sol Nascente, uma das regiões mais pobres do Distrito Federal, o casal Daniel Souza de Oliveira e Bruna Carvalho Tavares e os seis filhos sobrevivem apenas com os R$ 632 que recebem do Auxílio Brasil e os R$ 51 do Auxílio Gás.

Mesmo com dois benefícios, o dinheiro não é suficiente para dar conta de todas as despesas. Só o custo do aluguel, da conta de luz e do gás soma R$ 700 por mês. Na prática, é como se cada integrante da família tivesse direito a apenas R$ 85,5 mensais.

"O nosso aluguel está com um mês de atraso", conta Daniel. "O dono pediu a casa se a gente não conseguir o dinheiro até o fim do mês."

Desempregado desde o início de abril, Daniel tem enviado currículos por e-mail. Sair de casa para buscar emprego não tem sido mais uma possibilidade, porque é preciso economizar na passagem de ônibus. No supermercado, diz que dá para comprar pouca coisa.

"Carne não pode nem se falar e até mesmo o preço do ovo... Uma bandeja custa R$ 20", diz. "A gente é uma família muito grande. Tudo é em grande quantidade. É muito difícil."

Eliminar a pobreza do país, no entanto, é acessível. Especialistas ouvidos pelo g1 e pela GloboNews estimam que seja necessário entre R$ 43 bilhões e 80 bilhões anuais para que toda a população supere ao menos a linha de pobreza – valores menores que os gastos atualmente no pagamento do Auxílio Brasil.

Pobreza, o grande problema

Famílias como a de Daniel têm engrossado as estatísticas da dura desigualdade do Brasil. No ano passado, 27,6 milhões de brasileiros estavam na pobreza, segundo o último levantamento realizado pela FGV Social. Ou seja, 13% das pessoas no país encerraram 2021 vivendo com até R$ 290 por mês, o maior patamar desde 2012, pelo menos.

A pobreza é um dos grandes problemas estruturais do país. Historicamente, diferentes governos usaram mecanismos de transferência de renda para tentar diminuir a miséria e, assim, melhorar os indicadores sociais.

Hoje, o principal programa é o Auxílio Brasil. Com um orçamento estimado em R$ 89,1 bilhões neste ano, ele foi criado pelo governo Jair Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, que tinha cerca de R$ 35 bilhões em recursos disponíveis.

Mesmo com um programa mais robusto em vigor, os analistas que se debruçam sobre os indicadores sociais dizem que apenas mais dinheiro não é suficiente para acabar com a pobreza. A avaliação é a de que o Brasil pode até gastar menos no combate à miséria se conseguir focalizar melhor o benefício naqueles que mais precisam.

Os especialistas também alertam que o fim da pobreza não depende apenas dos programas de transferência de renda. Boas políticas de educação e saúde, além de uma inflação sob controle e um mercado de trabalho forte, são fundamentais.

"O Brasil tem um número grande e um número pequeno. O número grande é a quantidade de pobres. (Em outubro de 2021) Eram cerca de 27 milhões de pessoas. E tem um número pequeno, que é o custo de erradicação da pobreza", afirma Marcelo Neri, diretor da FGV Social.

"Apesar de o governo gastar muito (com o Auxílio Brasil), ele não consegue encontrar as pessoas que, por exemplo, estão dormindo na rua, o que está cada vez mais comum", acrescenta Naercio Menezes, coordenador da Cátedra Ruth Cardoso e professor do Insper. "Os programas têm de ser ágeis para encontrar essa entrada e saída de pessoas da pobreza."

Procurado, o Ministério da Cidadania, responsável pela execução do Auxílio Brasil, não se manifestou sobre a reportagem.

Afinal, quanto custa acabar com a pobreza?

Os analistas têm números distintos para a erradicação da miséria. E essa diferença pode ser explicada porque não há, por exemplo, uma classificação única para a linha de pobreza. Cada pesquisador trabalha com um número diferente.

Apesar das diferenças metodológicas, os exercícios mostram que o país poderia gastar menos se desenvolvesse um programa social focalizado exclusivamente nos mais pobres e conseguisse mapear quem mais precisa.

Valor necessário é pequeno, diz Marcelo Neri

Nas contas de Marcelo Neri, da FGV Social, o custo para tirar os 27,6 milhões de brasileiros da pobreza seria de R$ 43 bilhões anuais.

"Se você fizesse um programa totalmente focalizado, esse número (para acabar com a pobreza) é pequeno", afirma. "São cerca de R$ 43 bilhões, que é menos da metade do que se gasta com o Auxílio Brasil."

Ele avalia que o Auxílio Brasil trouxe uma "certa involução". Um bom programa de transferência de renda, diz, deve conceder o benefício apenas "aos pobres. E dar aos pobres apenas aquilo que eles necessitam para chegar na linha de pobreza (R$ 290 mensais per capita, segundo a FGV)."

"Os R$ 400 [do Auxílio Brasil] não levam em conta nem o tamanho nem o grau de pobreza da família", pondera Neri.

Gasto para acabar com a pobreza é acessível, afirma Naercio Menezes

Naercio Menezes, do Insper, estima que são necessários R$ 80 bilhões para acabar com a pobreza entre as famílias com crianças de zero e seis anos e erradicar a pobreza extrema nas famílias sem crianças.

"É um gasto acessível. O governo já vai gastar mais ou menos isso com o Auxílio Brasil sem acabar com a pobreza entre as crianças", afirma Naercio. "É uma questão de realocar os recursos, concentrando onde a gente mais precisa."

Na avaliação dele, o foco das políticas públicas deve ser na primeira infância. Com mais recursos em mãos, as famílias vão ter mais renda para gastos básicos, como moradia, transporte, roupas e remédios.

R$ 80 bilhões podem acabar com a pobreza entre as famílias com crianças de zero e seis anos, diz pesquisador — Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

"Se você não investe nas crianças hoje, vai precisar, no futuro, fazer programas de qualificação profissional, construir mais hospitais, prisões, fazer programas de transferências de renda. Então, é uma maneira ótima de usar os recursos no longo prazo", acrescenta.

Ele também pondera que as transferências de renda precisam levar em conta a diferença do custo de vida entre as regiões do país.

"Se o governo transferir R$ 400 para a zona rural do Piauí, é possível acabar com a pobreza. Mas, com esse valor, na região metropolitana de São Paulo, não é possível acabar nem com a pobreza extrema."

Por Bianca Lima, Vanessa Silvestre e Luiz Guilherme Gerbelli, GloboNews e g1. Publicado originalmente em 29/04/2022.

Zelensky: quem é o ator que foi de novato político a presidente da Ucrânia em guerra

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, um ator que não tinha experiência política quando foi eleito há menos de três anos, agora surge como um convincente líder de um país em guerra.

Volodymyr Zelensky discursou na TV tarde da noite no dia 24 de fevereiro, poucas horas antes da invasão (Getty Images)

Ele está unindo a nação com seus discursos e selfies em vídeo, dando voz à raiva ucraniana na resistência à agressão russa.

Enquanto o presidente russo Vladimir Putin parece cada vez mais errático — acusando a Ucrânia de "genocídio" nas repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk, e falando da necessidade de "desnazificar" o país — o presidente Zelensky, de uma família judia de língua russa, mantém uma postura digna.

Seus pronunciamentos revelaram um lado que muitos críticos seus — incluindo vários da elite intelectual — não esperavam.

Um momento chave na transformação deste presidente — que vinha mal nas pesquisas e às vezes parecia estar abaixo da capacidade que o cargo exige — em uma liderança nacional aconteceu nas primeiras horas da quinta-feira, dia 24 de fevereiro, pouco antes da invasão russa. Em um discurso sóbrio postado nas mídias sociais, falando parcialmente em russo, ele disse que tentou ligar para Vladimir Putin para evitar uma guerra, mas que foi recebido com silêncio.

Vestindo um terno escuro em frente a um mapa da Ucrânia, ele disse que os dois países não precisam de uma guerra, "nem uma Guerra Fria, nem uma guerra quente, nem uma guerra híbrida". Mas ele acrescentou que se os ucranianos fossem atacados, eles se defenderiam. "Quando você nos atacar, verá nossos rostos — não nossas costas, mas sim nossos rostos."

Em sua próxima transmissão, ao meio do dia de sexta-feira, já após a invasão russa, ele usava uniforme militar, refletindo o clima de "Davi contra Golias" do conflito. Naquela noite, ele fez outro discurso, alertando os líderes de países como EUA e Reino Unido que, se eles não ajudassem no esforço contra os russos, "amanhã a guerra baterá em suas portas".

"Este é o som de uma nova cortina de ferro, que desceu e está separando a Rússia do mundo civilizado."

Volodymyr Zelensky em uma selfie em vídeo mostrando aos ucranianos que ele não fugiu de Kiev (Reuters)

A editora-chefe do site de notícias Novoye Vremya, Yulia McGuffie, diz que ficou chateada quando Zelensky foi eleito presidente em abril de 2019, pois ela não tinha fé em sua capacidade de liderar o país. Mas os ucranianos passaram rapidamente a apreciar seu presidente na semana passada, diz ela.

"Apoio e respeito total vieram, eu acho, depois que a Rússia começou sua guerra — todos os ucranianos fecharam com Zelensky. Ele está desempenhando um papel de união e eu diria de inspiração, em parte por seu próprio exemplo. Ele está liderando um governo que está repelindo o exército de Putin, e por causa disso muitos o admiram e respeitam."

A chegada de Zelensky à cena política foi um caso de vida que imita a arte. Seu papel mais celebrado como ator cômico foi em 2015 na série de TV Servant of the People, na qual ele interpretou um professor de escola catapultado à Presidência depois que um aluno postou um vídeo viral dele falando sobre corrupção na política.

Sua candidatura nas eleições presidenciais de 2019 foi inicialmente vista por alguns como apenas uma piada — seu partido político leva o nome do seriado: o Criado do Povo. Mas Zelensky acabou vencendo com 73% dos votos, prometendo combater a corrupção e trazer a paz ao leste do país, onde há tensões com a Rússia.

O presidente ucraniano tem muitos poderes, mas todos sabiam que cumprir essas promessas seria difícil, diz a consultora de comunicação Yaryna Klyuchkovska. E para alguém que começou sua presidência com um índice de aprovação tão alto, o único caminho era para baixo.

"Uma coisa é fazer promessas tão amplas e outra é executar essas políticas", diz ela.

Zelensky antes da política

Nascido na cidade de Kryvyi Rih, leste da Ucrânia, em 1978

Formado pela Universidade Nacional de Economia de Kiev com diploma em Direito

Co-fundou uma produtora de TV de sucesso

Produziu programas para uma rede de propriedade do controverso bilionário Ihor Kolomoisky

Kolomoisky apoiou sua candidatura presidencial

Até meados da década de 2010, sua carreira na TV e no cinema era seu foco principal

Zelensky contou com o apoio do oligarca Ihor Kolomoisky durante sua campanha presidencial, levando muitos a temer que ele se tornasse um fantoche, controlado por um homem que está sob investigação nos EUA por possível fraude e lavagem de dinheiro.

Na verdade, ele provou ser mais independente do que muitos céticos imaginavam, recusando-se, por exemplo, a permitir a reprivatização do PrivatBank, que era de propriedade de Kolomoisky antes de ser nacionalizado.

Por outro lado, a corrupção continua profundamente enraizada na Ucrânia, e há preocupações de que uma nova lei anti-oligarca possa ser usada para restringir as atividades de alguns bilionários mas não de outros. Um sinal disso seria o indiciamento por corrupção do principal rival de Zelensky, Petro Poroshenko, seu antecessor como presidente.

As tentativas de Zelensky de negociar com a Rússia uma solução para o conflito no leste, que deixou mais de 14 mil mortos, também tiveram sucesso limitado. Houve trocas de prisioneiros e movimentos para a implementação parcial de um processo de paz, conhecido como acordos de Minsk, mas nada foi concluído. Ao longo de 2020, seu índice de aprovação caiu constantemente.

Diante disso, Zelensky adotou um tom mais assertivo ao pressionar pela adesão à União Europeia e à aliança militar da Otan, um movimento que certamente enfureceu o presidente russo.

Zelensky é constantemente acusado de ter ligações com o polêmico magnata dos negócios Ihor Kolomoisky (Getty Images)

Mas Yaryna Klyuchkovska diz que a postura de Zelensky sobre o conflito no leste e sobre a Rússia ainda era tímida demais para muitos ucranianos, pelo menos até recentemente.

Com a guerra cada vez mais iminente, ele declarou um "Dia da Paz" e continuou falando em solução diplomática, mesmo diante do aumento em violações do cessar-fogo na linha de frente.

"Ele evitava falar em guerra, artilharia, qualquer assunto militar. Era um tópico fora de sua zona de conforto e ele não estava disposto a abordar isso em seu discurso público", diz Klyuchkovska.

Ele também discordava dos avisos diários dos EUA e de outros governos sobre um ataque russo iminente, dizendo que a estratégia de comunicação dos EUA era "cara demais para a Ucrânia".

A grande mudança de rumo veio com um discurso que ele fez na Conferência de Segurança de Munique no sábado, 19 de fevereiro, diz Klyuchkovska. A consultora de comunicação disse que foi esse discurso que a converteu em fã. Zelensky começou descrevendo uma visita a um jardim de infância no leste do país que havia sido atingido por um míssil.

"Quando uma cratera de bomba aparece no pátio da escola, as crianças perguntam: 'O mundo se esqueceu dos erros do século 20?'", disse ele.

"A indiferença faz de você um cúmplice", disse ele aos convidados das elites diplomáticas e de defesa de países como EUA e Reino Unido. Ele lembrou todos de quando Vladimir Putin rejeitou uma ordem mundial liderada pelos EUA na mesma conferência exatamente 15 anos antes, e seu alerta de que a Rússia estava voltando ao palco mundial. "Como o mundo respondeu a isso? Com apaziguamento."

Klyuchkovska diz que nenhum líder ucraniano havia falado tão abertamente com países como EUA e Reino Unido antes.

"Para mim, o momento de passar a ter orgulho de Zelensky veio durante seu brilhante discurso na conferência de segurança em Munique", diz a jornalista Yulia McGuffie. "Foi ali que muitos dos oponentes políticos de Zelensky na Ucrânia decidiram que agora não é hora de brigas e conflitos."

Volodymyr Zelensky em vídeo do lado de fora da Casa das Quimeras de Kiev no sábado, 26 de fevereiro

Os serviços de inteligência de países como EUA e Reino Unido afirmam que o nome de Zelensky é o primeiro em uma lista de pessoas que as forças russas pretendem assassinar. Zelensky diz que sua família está em segundo lugar na lista, mas que todos vão permanecer na Ucrânia.

Sua presença é confirmada pelas selfies em vídeo que ele publicou do lado de fora do prédio presidencial e da famosa Casa das Quimeras, adornada com representações de animais exóticos e cenas de caça.

Em resposta a uma das fotos, o escritor britânico Ben Judah tuitou: "Se você tivesse dito a muitos de nossos bisavós no Pale [a zona do império russo em que os judeus ficavam confinados] que um homem judeu seria um ucraniano líder de guerra contra uma invasão russa, eles teriam ficado incrédulos."

"Claro, ele é um ator. Não sei se isso é sua verdadeira personalidade ou não. Mas o que quer que ele esteja fazendo, está funcionando", diz Yaryna Klyuchkovska. "As pessoas que escrevem os seus discursos encontraram o ritmo certo. Eles vêm da indústria do entretenimento, mas mesmo escrever um programa da Netflix é diferente de escrever discursos presidenciais."

A Ucrânia ainda enfrenta condições muito pouco favoráveis nesta guerra. A força de invasão da Rússia é enorme e bem armada. Mas este bacharel em direito de 44 anos, um novato político, tem sido uma voz que está ajudando a elevar o moral ucraniano.

"Um dos meus bons amigos acabou de escrever: 'Zelensky de repente criou coragem em proporções cósmicas'", diz McGuffie. "E isso realmente reflete a atitude [nacional] em relação a ele agora."

Stephen Mulvey, da BBC News, em 27 fevereiro 2022 / Kateryna Khinkulova colaborou