quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Medina: A nova Lei de Improbidade Administrativa e os processos em curso

Em texto anterior desta coluna, afirmamos que a nova tipologia normativa dos atos de improbidade administrativa e de suas sanções, por força do artigo 5º, caput, XL, da Constituição, cumulado com o artigo 1º, §4º, da Lei 8.429/1992 (na redação da Lei 14.230/2021), aplica-se aos atos praticados antes de sua vigência, se para beneficiar o réu. Observamos, também, que essa solução se encontra em conformidade com os princípios que vinham sendo firmados na jurisprudência, em relação a temas análogos.

As ações a serem ajuizadas, relacionadas a fatos praticados anteriormente, devem observar as soluções previstas no novo regime legal.

Em se tratando de ações em curso, há de se considerar o que preveem disposições como o artigo 493 do Código de Processo Civil [1]. Assim, antes de proferir sentença, incumbe ao juiz observar as disposições da lei reformada, mesmo que de ofício, intimando as partes para se manifestarem a respeito (cf. artigo 10 do Código de Processo Civil e também parágrafo único do artigo 493 do mesmo código).

Várias hipóteses podem ocorrer. Algumas delas:

O Ministério Público poderá manifestar-se no sentido de que não há interesse no prosseguimento da ação, pois o ato, antes considerado ímprobo, como tal não pode ser considerado, à luz do novo contexto normativo. Se o ato não puder ser caracterizado como ímprobo, a ação será incabível, faltando interesse processual em seu prosseguimento. A perda superveniente de interesse processual conduzirá à prolação de decisão fundada no artigo 485, caput, VI, 2ª parte do Código de Processo Civil, que extinguirá o processo sem resolução do mérito.

Poderá haver situações, eventualmente, em que o Ministério Público acabe por restringir o objeto da ação, podando-o para acomodá-la à nova tipologia normativa dos atos de improbidade. Nesse caso, poderá haver extinção parcial do feito (cf. parágrafo único do artigo 354 do Código de Processo Civil).

Não se pode descartar, ainda, a possibilidade de se requerer a conversão da ação de improbidade administrativa em ação civil pública, nos termos do §16 do artigo 17 da lei reformada [2]. Por exemplo, pode-se entender que não cabem as sanções por improbidade administrativa (que se assenta no §4º do artigo 37 da Constituição Federal), mas tem lugar a condenação por indenização (com base no §5º do artigo 37 da Constituição), e que, embora não seja cabível ação de improbidade, tem lugar a ação civil pública com propósito ressarcitório [3].

Nos casos em que a ação tenha sido ajuizada pela Fazenda Pública, será necessário observar a regra de transição prevista no artigo 3º da Lei 14.230/2021. No novo regime legal, a Fazenda Pública não ostenta legitimidade ativa para ação de improbidade administrativa, restrita pelo texto do artigo 17, caput, da Lei 8.429/1992 ao Ministério Público [4]. Nos casos em que a Fazenda Pública tenha promovido a ação, o Ministério Público deve manifestar-se dentro do prazo de um ano da publicação da reforma (que se deu em 25/10/2021) sobre a existência de interesse no prosseguimento do processo, que, nesse período, ficará suspenso. Findo o prazo sem manifestação do Ministério Público, o processo será extinto sem resolução de mérito [5].

Essas soluções, segundo pensamos, são aplicáveis nos casos em que o feito ainda tramita em primeiro grau de jurisdição, antes da prolação da sentença, com base no artigo 493 do Código de Processo Civil, como antes se observou. Mas semelhante solução deve ser observada também quando o caso tramitar em sede recursal. Isso é textualmente previsto pelo artigo 3º, caput, in fine, da Lei 14.230/2021, quanto à possibilidade de o Ministério Público prosseguir com a ação ajuizada pela Fazenda Pública [6]. No entanto, ocorrendo quaisquer das hipóteses suscitadas acima, dentre outras que emergirão da incidência do novo regime, não se poderá julgar o recurso antes de se verificar, por exemplo, se o pedido se fundou em mera culpa (e não em dolo, como exige a nova lei) do agente público, situação em que a ação de improbidade é descabida.

Caso isso seja detectado por ocasião do julgamento do recurso, o Tribunal deverá observar o que prevê o artigo 933 do Código de Processo Civil [7] (além do artigo 493 do código, antes mencionado).

Segundo pensamos, essa postura deverá ser adotada pelo órgão jurisdicional em qualquer grau de jurisdição, inclusive nos tribunais superiores, como já se faz notar em alguns casos que tramitam no Superior Tribunal de Justiça [8].

Além das situações aqui referidas, outras podem ocorrer, de acordo com as peculiaridades de cada caso. Procuramos apontar, no presente texto, aquelas que, em princípio, tendem a ser as mais comuns.

Outro problema também merece análise cuidadosa: o que fazer nos casos em que há decisão transitada em julgado? Também aqui muitas hipóteses podem ocorrer. Pode-se estar diante de cumprimento de sentença ou de sentença cuja execução já se concluiu; de casos em que há prazo para ajuizamento de ação rescisória (para aqueles que entendem ser esse o meio processual a ser utilizado para se alegar a retroatividade da nova lei) e decisões transitadas em julgado há mais de dois anos (prazo previsto no artigo 975 do Código de Processo Civil para o ajuizamento da ação rescisória). Seria admissível ação revisional, ou, ainda, bastaria peticionar nos autos em que proferida a decisão transitada em julgado, requerendo ao órgão jurisdicional a aplicação do novo regime?

Esses e outros aspectos serão objeto de outro texto, na sequência, nesta coluna.

[1] "Artigo 493 — Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão. Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir". A respeito desse e de outros dispositivos processuais, cf. o que escrevemos em Código de Processo Civil Comentado (7ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2021) e em Curso de Direito Processual Civil Moderno (5ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2021), passim (mais informações a respeito aqui).

[2] "Artigo 17 — [...] § 16. A qualquer momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985".

[3] Sobre o tema, cf. o que escrevemos em Constituição Federal Comentada (6ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2021), em comentário aos referidos dispositivos constitucionais (mais informações aqui).

[4] "Artigo 17 — A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei".

[5]: "Artigo 3º — No prazo de um ano a partir da data de publicação desta Lei, o Ministério Público competente manifestará interesse no prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, inclusive em grau de recurso. § 1º. No prazo previsto no caput deste artigo suspende-se o processo, observado o disposto no art. 314 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). § 2º. Não adotada a providência descrita no caput deste artigo, o processo será extinto sem resolução do mérito".

[6] Cf. nota precedente.

[7] "Artigo 933 - Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de cinco dias. § 1º. Se a constatação ocorrer durante a sessão de julgamento, esse será imediatamente suspenso a fim de que as partes se manifestem especificamente. § 2º. Se a constatação se der em vista dos autos, deverá o juiz que a solicitou encaminhá-los ao relator, que tomará as providências previstas no caput e, em seguida, solicitará a inclusão do feito em pauta para prosseguimento do julgamento, com submissão integral da nova questão aos julgadores".

[8] Exemplo: "[...]. Trata-se, na origem, de ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. A Lei n. 14.230/2021 trouxe mudanças significativas procedimentais e materiais. Entre essas alterações, o legislador destacou a natureza sancionatória da Lei de Improbidade, o que implica a aplicação das garantias correlatas, inclusive, retroação do tratamento mais favorável ao réu, como pode acontecer em relação à prescrição: [...]. Ante o exposto, com base no artigo 10 do CPC, intimem-se as partes para se manifestarem sobre a eventual aplicação retroativa da Lei de Improbidade, em especial, as mudanças no que se refere ao aspecto sancionador e prescricional [...]" (STJ, REsp 1662044, relator ministro Og Fernandes, decisão monocrática, DJe 09/11/2021).

José Miguel Garcia Medina, o autor deste artigo, é Advogado e Professor. Publicado originalmente no Consulor Jurídico, em 24.11.21.

José Sarney: O milagre da vacina

A pandemia atingiu toda a Humanidade com um choque assustador. Sentimos que ela poderia desaparecer, ser varrida da face da Terra. As taxas de contaminação e mortalidade eram gigantescas.

A salvação estaria no desenvolvimento de vacinas e medicamentos. O prognóstico não era muito bom: todas as vacinas que haviam sido desenvolvidas até então tinham levado anos. A OMS coordenou as iniciativas e vários governos investiram somas consideráveis nas pesquisas.

Ainda nos primeiros dias surgiram e foram descartados medicamentos existentes e destinados a outras doenças. A cloroquina, um antigo e corrente remédio para alguns tipos de lúpus e artrite, pareceu ser útil, mas logo foi comprovado que não só era ineficaz como podia ser mortal. O mesmo aconteceu com vários outros.

O único caminho era o já trilhado há séculos: diminuir o contágio pelo isolamento dos contaminados. Mas quem eram eles? A doença pode ser silenciosa, o portador do vírus — logo definido como SARS-CoV-2, vírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2, um novo integrante da mais mortal família de vírus, a dos coronavírus, responsável pela gripe comum e por algumas das maiores pandemias e epidemias da História — pode não desenvolver a doença, denominada Covid-19. Duas providências foram recomendadas pelos cientistas: a testagem de todos os que pudessem ter estado no local onde a pandemia já estivesse circulando ou ter tido contato com quem estivesse nesse caso, com a busca do círculo de propagação e seu isolamento completo, além do máximo de restrição a contatos interpessoais, com lockdown nas áreas acima de certo nível de risco. Assim, em maior ou menor grau, com maior ou menor sucesso — maior, quando as medidas eram mais efetivas —, foi feito isolamento em todo o planeta.

Os números de contaminados continuaram explodindo. O caso americano, em que o presidente negacionista fez propaganda da cloroquina e menosprezou a ciência, fazendo do país o com maior número de mortos do mundo, foi exemplar: os números despencaram com o novo presidente, que apoia as medidas científicas.

E a vacina chegou. Entre nós o governo de São Paulo se antecipou na produção das primeiras vacinas, disponibilizando-as em janeiro deste ano. O resto do País seguiu seus passos.

Infelizmente nem todos seguiram as orientações, e o Brasil chora hoje a perda de mais de 610 mil vítimas. É a maior catástrofe de nossa História. Todos tivemos parentes ou amigos entre os desaparecidos, todos temos que chorar o imenso desastre.

Mas a realidade agora é outra: a vacinação em massa funcionou. Os números de mortos despencaram. São Paulo alcançou 100% da população vacinada e 70% com o 1º ciclo vacinatório completo — sabemos que virão outros ciclos de vacinação, a guerra ainda não acabou. A maior parte dos Estados já teve dias sem morte por Covid. Em todo o País o número de mortes despencou.

A vacinação funciona. O milagre aconteceu: a Humanidade sobreviverá à pandemia. Graças a Deus!

José Sarney, Jornalista e Advogado, foi Governador do Maranhão e Presidente da República.

'Ou ia pra aula ou comia': como insegurança alimentar está prejudicando universitários brasileiros

Ao sair com sua bicicleta para fazer entregas de comida a serviço de um aplicativo, a universitária Franciele Rodrigues, 29 anos, "reza" para receber algum pagamento em dinheiro — e, com isso, ter ela mesma alguma quantia em mãos para garantir sua alimentação para os próximos dias.

Estudante de fonoaudiologia, Franciele Rodrigues diz que tem dificuldade para comer desde que entrou na universidade, em 2013 — mas situação piorou na pandemia (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

Ela concilia a graduação em fonoaudiologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) com bicos de entregadora na capital gaúcha porque, desde que deixou de viver com sua família na periferia de Porto Alegre e se tornou universitária, "o bicho pegou" na tentativa de atender sozinha suas demandas de estudo, moradia e sustento.

Tudo isso se reflete em uma situação que ela conta já durar anos: ela vem comendo pouco e mal, o que já gerou consequências para sua saúde.

"Entrar na faculdade representou deixar de trabalhar e deixar de ter cuidado com minha saúde. Quando saí da casa dos meus pais e entrei na universidade, foi a primeira vez que precisei racionar comida para ter por mais tempo e diminuir a qualidade da minha dieta para ter o que comer no dia seguinte", contou Franciele por telefone à BBC News Brasil, dizendo já ter passado alguns dias sem comer nada nessa trajetória, além de ter tido anemia.

"Durante a pandemia, piorou essa questão da alimentação. O preço das coisas aumentou muito."

Para complementar a renda, a universitária Franciele faz entregas de bicicleta (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

Situações como a narrada por Franciele, de insegurança alimentar entre universitários, têm ganhado a atenção de pesquisadores no Brasil e no exterior.

Não há dados nacionais ou de diferentes anos que possam demonstrar um aumento recente na insegurança alimentar destes estudantes no Brasil, mas pesquisadores da área sugerem que a piora em indicadores econômicos, cortes orçamentários para as universidades e a pandemia podem ter agravado o problema. Este período trouxe como consequência, por exemplo, o fechamento de restaurantes universitários (RU).

Por isso, diversas instituições anunciaram estar coletando informações e realizando pesquisas com estudantes sobre a questão alimentar deles durante a pandemia, como na Universidade de São Paulo (USP) e nas universidade federais de Uberlândia (UFU), do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), do Acre (UFAC), Rio Grande do Norte (UFRN), Mato Grosso (UFMT) e Paraná (UFPR).

Algumas resultados já foram publicados. Um artigo científico de março mostrou que 84,5% de 84 estudantes morando no Conjunto Residencial da USP (CRUSP) entrevistados online tinham algum nível de insegurança alimentar — definida por ao menos uma resposta afirmativa a perguntas como "nos últimos 3 meses, a comida acabou antes que você tivesse dinheiro para comprar mais?", "ficou sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?" ou "sentiu fome, mas não comeu porque não podia comprar comida suficiente?".

Já na dissertação de mestrado da nutricionista Natália Caldas Martins na Universidade de Fortaleza (Unifor), verificou-se que 84,3% de 428 universitários da rede pública da Bahia e do Ceará apresentaram algum grau de insegurança alimentar na pandemia — 35,7% leve, 23,6% moderado e 25% grave.

Estes universitários fazem parte de uma grande parcela da população brasileira em insegurança alimentar: eram 116,8 milhões de pessoas nessa situação no país em 2020, segundo estimou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. De acordo com a pesquisa, a parcela da população afetada cresceu significativamente nos últimos dois anos.

Café em falta e remédio para dormir e não sentir fome

Quando conversou com a BBC News Brasil, Franciele Rodrigues, que mora com o namorado, hoje desempregado, contou que a única proteína que eles tinha em casa naquela semana era ovo — e, mesmo assim, esse estava sendo racionado.

"Ontem, a gente comeu ovo meio-dia e de noite, só um arrozinho com feijão para ter (ovo) no almoço hoje", disse.

Na sua universidade, a UFCSPA, não há um restaurante universitário — a existência deles não é obrigatória por lei. Mas Franciele conta com bolsa alimentação de R$ 300 mensais, além de R$ 400 de auxílio-moradia.

Sem conseguir um emprego por conta da rotina de aulas e estudos e com aluguel e outras despesas a pagar, esse valor é insuficiente para se manter, ela diz.

"No primeiro mês de faculdade, fiquei sem dinheiro porque a bolsa demorou a sair. Teve dias que eu não comi. Ou ia pra aula, ou comia."

'A gente não sabe se vai sair dinheiro no aplicativo', diz estudante de fonoaudiologia sobre os motivos para racionar comida na semana (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

Com a pandemia, o namorado, que trabalhava em um restaurante, perdeu o emprego. Sem as aulas presenciais, ela deixou de conseguir vender lanchinhos e sucos que vendia na faculdade, perdendo mais um bocado de renda. Em 2020, a universidade organizou a entrega de cestas básicas mensais para alunos com vulnerabilidades como ela, mas Franciele diz que neste ano deixou de receber a doação.

Hoje, até o café está faltando em casa, e as frutas são raridade. Por outro lado, ovos, salsichas e hambúrgueres congelados passaram a protagonizar as refeições.

"Pulamos o café da manhã. Costumamos almoçar e jantar", conta Franciele, dizendo já ter perdido uma disciplina quando as aulas eram presenciais, por não ter o que comer. "Hoje, vejo que a situação está horrível mesmo para quem não pega assistência estudantil."

Para a estudante de turismo da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Juliana Castro, 21 anos, uma solução para conter a fome devido a refeições puladas tem sido dormir — às vezes através de remédios para isso. Durante sua trajetória universitária iniciada no segundo semestre de 2018, ela recebeu bolsas por alguns meses, não conseguiu empregos para complementar a renda e hoje conta estar endividada. Como essa situação financeira afeta diretamente sua alimentação, ela conta ter perdido quase 20kg nos últimos dois meses.

"Posso te dizer que o semestre passado eu passei acho que porque Deus quis. Eu não consegui ler texto, escrever então era fora de série", conta Juliana, que nasceu na pequena cidade de Palma (MG) e mora hoje em um alojamento da UFJF. "Não consigo me concentrar para fazer as coisas, fico com indisposição, cansaço. Já desmaiei por ficar sem comer. Fico com a barriga e a cabeça doendo de fome."

"Nos dias que eu não como nada, literalmente nada, eu só durmo. Às vezes eu tomo remédio para dormir, porque dormindo eu não sinto fome."

Desde o início da faculdade, a estudante teve a ajuda de amigos, que dividem com ela compras ou emprestam o dinheiro ou o cartão; e recebeu por algum tempo algumas bolsas, sempre com valores abaixo de um salário mínimo.

Juliana conta que durante dois anos recebeu uma bolsa vinculada ao Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), mas a vigência do benefício acabou. Ela também recebeu por alguns meses uma bolsa bancada por emendas parlamentares destinadas à Diretoria de Imagem Institucional da UFJF, precisando em contrapartida trabalhar em projetos de extensão. Entretanto, os pagamentos desta são irregulares.

Em nota, a UFJF afirmou que "dada a origem dos recursos — emenda parlamentar — o pagamento da bolsa dependia do envio de recursos financeiros pelo Congresso, o que não ocorreu de forma linear e seguindo prazos pré-estabelecidos".

A universidade afirmou que as bolsas pagas a alunos de graduação tinham até junho o valor de R$ 400, mas esses valores precisaram ser reduzidos para R$ 300 "em virtude das restrições orçamentárias às quais as universidades brasileiras foram submetidas".

Já a UFCSPA, onde estuda Franciele Rodrigues, afirmou em nota enviada à reportagem que está construindo um restaurante universitário, com previsão para abertura em 2022: "(…) cabe informar que a UFCSPA se tornou universidade federal em 2008, e desde então esta demanda (por um restaurante) tem sido apresentada pela comunidade universitária, demanda que está sendo encaminhada pela atual gestão."

"Salientamos a importância do PNAES que, mesmo com elevados cortes orçamentários, em conjunto com demais políticas públicas, tem sido um instrumento que colabora na segurança alimentar e na permanência estudantil no ensino superior", acrescentou a UFCSPA.

Origem pobre e saída da casa das famílias torna alguns universitários mais vulneráveis à insegurança alimentar (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

O Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi criado em 2010 e repassa verbas a instituições federais de ensino superior para que estas forneçam, conforme suas políticas internas, assistência aos universitários na moradia, alimentação, transporte, inclusão digital, entre outros.

Entretanto, a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Brelaz, diz que estas ações estão prejudicadas no contexto de "corte de mais de R$ 1 bilhão" no orçamento das universidades federais, citando dado da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) sobre a diminuição de verbas entre 2020 e 2021.

A Andifes diz que os recursos para o PNAES já têm sido insuficientes nos últimos anos, e que idealmente deveriam chegar a R$ 1,5 bilhão. Entretanto, segundo levantamento da entidade, em 2021 houve a maior redução no orçamento para o programa nos últimos cinco anos: o valor executado diminuiu 15,78%, caindo de R$ 1 bilhão em 2020 para R$ 874 milhões em 2021.

Esses valores são nominais — ou seja, não consideram a variação da inflação. Portanto, a diminuição do orçamento é na realidade maior do que 15,78%.

Na outra ponta, isso se reflete na evasão dos estudantes, segundo a presidente da UNE.

"Uma vez que a crise econômica é muito maior agora, e mais estudantes e suas famílias perderam rendas, a verba destinada a esses programas e bolsas não acompanhou a necessidade. Ainda não temos dados sobre a evasão universitária no pós-pandemia, mas com certeza, eles devem se elevar", escreveu Brelaz à BBC News Brasil.

O Ministério da Educação não atendeu ao pedido de posicionamento da reportagem.

Estudante de Direito, Erisvan Bispo, 43 anos, sabe bem o que é o descompasso entre o valor das bolsas e as necessidades. Indígena, ele recebe a Bolsa Permanência no valor de R$ 900 e, no passado, recebia também auxílio moradia e alimentação.

A Bolsa Permanência foi criada em 2013 pelo governo federal. Trata-se de um auxílio financeiro destinado sobretudo a universitários indígenas e quilombolas em instituições federais.

Em 2019, Erisvan precisou optar por alguma das bolsas, pois uma regra da sua universidade, a Federal da Paraíba (UFPB), passou a vedar o acúmulo de auxílios estudantis com a Bolsa Permanência. Perto da sua casa em Mamanguape (PB) e no seu campus, não há restaurante universitário.

"Acompanhando o aumento do preço das coisas, você fica perplexo. Quando você pensa o quanto de dinheiro entra e o quanto tem que gastar, enlouquece", disse Erisvan à reportagem por telefone. "Direito é um curso que eu preciso me dedicar muito. Não é impossível estudar e trabalhar, mas para ficar com um coeficiente de rendimento alto, é difícil."

"Sem trabalho, eu dependo das políticas sociais."

O "preço das coisas", como disse o universitário, realmente tem subido consideravelmente na alimentação, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No acumulado dos últimos 12 meses, a inflação nos alimentos e bebidas, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ficou em 11,7%, conforme registrado em outubro. Entre os 10 alimentos que mais tiveram aumento estão o pimentão (85,37%), açúcar refinado (47,8%), mandioca (40,7%), filé mignon (38%) e tomate (31,99).

Em nota, o professor Alfredo Rangel, pró-reitor de Assistência e Promoção ao Estudante da UFPB, afirmou que a universidade conta hoje com quatro restaurantes universitários e pretende abrir mais uma unidade em Mamanguape no ano que vem.

Ele acrescentou que, embora a UFPB tenha recebido um orçamento menor para assistência estudantil, a universidade conseguiu manter o valor e o número de bolsas normalmente ofertadas.

Também com orçamento apertado, no seu caso para bancar aluguel, moradia, internet, transporte e comida, Erisvan diz ter cortado da alimentação itens que chama de "supérfluos", como iogurte, queijo, biscoito recheado, goma para tapioca e frutas.

"A única carne que consigo comer é hambúrguer, calabresa e salsicha, porque é barato", afirma Erisvan, acrescentando ter perdido peso por conta da combinação falta de renda e estresse por todo este cenário.

Em um futuro próximo, ele diz depositar esperança em oportunidades de estágio remunerado e, a longo prazo, nos frutos que sua carreira pode trazer.

"Às vezes, por conta dos cortes (na educação superior), sinto revolta. Mas também sou muito grato por estar na universidade. Eu não acordo reclamando, lamentando… Eu sei que estou passando dificuldades para ter uma melhoria de vida. Acredito que algo de bom vai acontecer depois que eu me formar, depois da carteirinha da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)."

Vulnerabilidade da 'primeira geração'

Erisvan diz ter uma origem "paupérrima" e é o primeiro da família a ir para a universidade. Nascido em uma aldeia na serra do Ororubá, em Pernambuco, ele e a família migraram para São Paulo (SP) fugindo de conflitos por terra. Ele morou cerca de 30 anos na capital paulista e depois resolveu voltar a morar e estudar no Nordeste.

Assim como ele, Franciele Rodrigues e Juliana Castro também são da primeira geração de suas famílias a ir para a universidade.

Apesar de vir dos Estados Unidos, um dos maiores estudos já feitos sobre a insegurança alimentar nas universidades mostrou que estudantes de "primeira geração" — ou seja, cujos pais não tinham ensino superior —, aqueles com níveis socioeconômicos mais baixos, além de imigrantes e pessoas trans eram mais vulneráveis ao problema.

A pesquisa publicada em 2019, intitulada College and University Basic Needs Insecurity e realizada pelo Hope Center, entrevistou 86 mil estudantes em 123 universidades. Deste total, 45% foram considerados como sofrendo de insegurança alimentar nos 30 dias anteriores.

Franciele, assim como outros entrevistados, está na primeira geração da família a ir para a universidade (CRÉDITO,TIAGO COELHO/BBC)

A nutricionista Tânia Aparecida de Araújo é uma das autores da pesquisa sobre a insegurança alimentar entre alunos vivendo no Conjunto Residencial da USP (Crusp) durante a pandemia. Ela diz que neste e em outros estudos realizados no Brasil, a baixa renda foi um dos fatores mais importantes para a insegurança alimentar dos universitários.

Dos alunos considerados em insegurança alimentar no Crusp, 92,6% tinham renda considerada insuficiente.

Para Araújo, é justamente a chegada de estudantes de baixa renda à universidade nas últimas décadas, movimento que ela atribui a políticas de inclusão dos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), que impulsionou a insegurança alimentar nas universidades como tema de pesquisa.

"A gente tem agora mais pessoas de baixa renda entrando na universidade, o que é muito positivo, porque são ciclos de pobreza que podem ser quebrados. Mas antes, os universitários, principalmente de universidades públicas, eram de uma classe média branca. Agora, a gente realmente tem que dar atenção às políticas públicas para garantir, entre outras coisas, a segurança alimentar e nutricional desses estudantes", diz a pesquisadora, doutora em saúde pública pela USP.

A nutricionista aponta que, além da origem socioeconômica, os universitários ficam mais vulneráveis à insegurança alimentar à medida que deixam de ter redes de apoio como a alimentação e moradia na casa da família. Tendo que se virar sozinhos, muitos apelam às comidas ultraprocessadas como hambúrgueres e macarrão instantâneo porque são rápidas, práticas e baratas.

Ela também ressalta a importância dos restaurantes universitários mas diz que não deve-se esperar que eles contemplem integralmente todas as refeições dos alunos. Desejar comer em outros lugares além deles é legítimo — e em alguns casos necessário, como no caso de Juliana Castro, que teve problemas de intolerância a vários alimentos frequentes no cardápio do RU da sua universidade, como leite e carne de porco.

"A gente acha que a pessoa vulnerável tem que aceitar qualquer coisa, mas todo mundo tem direito de fazer suas escolhas alimentares. Por mais que tenha o restaurante universitário, é muito difícil você manter uma graduação fazendo todas as refeições, almoço e janta em um restaurante", diz Tânia Aparecida de Araújo, apontando para a importância das bolsas de auxílio, além dos RUs.

Para ela, os estudos têm se voltado para as universidades públicas justamente porque estas têm maior propensão a realizar pesquisas científicas — mas aponta que investigar a situação dos estudantes de faculdades particulares é também urgente, já que a presença de alunos de baixa renda nestas é grande, além do forte comprometimento financeiro que as mensalidades e financiamentos representam para eles.

Bruna Brelaz, da UNE, também aponta para diferenças entre os tipos de instituição. Enquanto as universidades federais contam o PNAES e a Bolsa Permanência, mesmo que aplicados de forma insuficiente na sua avaliação, as estaduais têm políticas e ações variando de acordo com a unidade federativa.

"Na nossa opinião, é preciso leis, decretos também estaduais, para garantir a manutenção desses direitos, além da regulamentação e constante fiscalização para as devidas condições de disponibilização deles", diz a presidente da UNE.

"Já nas universidades privadas, temos como realidade a falta de regulamentação, que dessa forma, não garante refeições com preço acessível, por exemplo", acrescenta. "Se alguma universidade privada institui esses restaurantes para estudantes ou vale alimentação é por iniciativa própria, mas sem haver uma regulamentação ou levantamento oficial."

Mariana Alvim -@marianaalvim, de S. Paulo para a BBC News Brasil em 23.11.21

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

4 momentos que contam a história da destruição das ferrovias no Brasil

Em 15 anos, o Brasil tinha perdido 8 mil km de ferrovias, que se estendiam naquele momento por cerca de 30 mil km do território nacional.

Desde então, o tamanho da malha ferroviária patina no mesmo patamar. Atualmente, de acordo com o os dados do Anuário Estatístico de Transportes, tem 29,8 mil km.

Desde o auge, no início do século 20, malha ferroviária perdeu 8 mil km (CRÉDITO,BIBLIOTECA NACIONAL)

"Ponta de areia ponto final / Da Bahia-Minas estrada natural / Que ligava Minas ao porto, ao mar / Caminho de ferro mandaram arrancar."

Lançada em 1975, a canção Ponta de Areia, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, é um lamento do fim da Estrada de Ferro Bahia Minas, que ligava os 582 km entre Araçuaí (MG) e o distrito de Ponta de Areia (BA).

A BBC News Brasil perguntou a especialistas em história e engenharia ferroviária o porquê - sintetizado, a seguir, em quatro momentos.

Trecho da São Paulo Railway Company na Serra do Mar: desde o início, ferrovias operaram sob regime de concessão (CRÉDITO,FRÉDÉRIC MANUEL/BIBLIOTECA NACIONAL)

A crise do café

O café é elemento central nos primeiros capítulos da história das ferrovias no Brasil - tanto na ascensão quanto na decadência, como explica Eduardo Romero de Oliveira, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

É a razão para a construção das primeiras estradas de ferro no século 19: a primeira delas, a Estrada de Ferro Mauá, que começou a operar em 1854, levava em suas locomotivas a vapor a commodity do Vale do Paraíba ao porto de Magé, na baixada fluminense, que, de lá, seguia de barco até a cidade do Rio. Nessa época, o café representava quase 50% das exportações brasileiras.

A malha ferroviária foi aumentando com a expansão da atividade cafeeira e passou a deslocar também passageiros, que até então só conseguiam viajar longas distâncias com transportes movidos por tração animal, como as charretes puxadas por cavalos.

"Durante muito tempo, as ferrovias foram praticamente a única via de transporte de cargas e pessoas no país", destaca Oliveira, um dos pesquisadores do projeto Memória Ferroviária.

E foi nesse contexto que a malha chegou a quase 30 mil km de extensão na década de 1920, quando veio o baque da crise de 29. O crash da bolsa nos Estados Unidos, na época o maior comprador de café brasileiro, e a grande depressão que se seguiu tiveram impacto direto sobre o Brasil.

Em um curto espaço de tempo, as exportações da mercadoria despencaram, assim como os preços. As ferrovias, que eram administradas pelo setor privado sob regime de concessão, passaram a transportar cada vez menos carga e viram sua rentabilidade despencar.

Tem início, nesse momento, um período lento de decadência que culminaria na estatização das estradas de ferro mais de duas décadas depois.

Antigo Largo do Rosário, em São Paulo: antes dos trens, transporte era feito por tração animal (CRÉDITO,GUILHERME GAENSLY/BIBLIOTECA NACIONAL)


JK e o nascimento da indústria automobilística

Antes, contudo, outros dois fatores importantes entram em cena: o crescimento das cidades e a popularização do automóvel.

O país vive uma grande transformação depois de 1940. Até então baseada quase exclusivamente na agricultura, a economia brasileira se volta cada vez mais para a indústria. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Vale do Rio Doce, então empresas estatais, são fundadas nessa época, em 1940 e 1942, respectivamente, no último período do governo de Getúlio Vargas, a ditadura do Estado Novo.

Essa mudança na matriz de crescimento, por sua vez, catalisa um processo de migração das populações de áreas rurais para as cidades. As capitais ganham uma nova escala, vão inchando, um processo que tem como efeito colateral a diminuição da demanda por trens de passageiros em alguns trechos menores, entre cidades próximas.

"As fábricas estão nas cidades", pontua Oliveira.

A política de industrialização continua com o presidente Juscelino Kubitschek, que assume em 1956 e elege a indústria automobilística como catalisador de seu plano de desenvolvimento.

O Plano de Metas de JK, que ganhou o slogan "50 anos em 5", é frequentemente apontado como o início do chamado "rodoviarismo" no Brasil. Um movimento cheio de nuanças e explicado por uma combinação de fatores, diz o professor de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ Hostílio Xavier Ratton Neto.

Um deles é a própria natureza da indústria automotiva, que tem uma cadeia de produção longa, com efeito multiplicador na economia, e emprega uma mão de obra qualificada que até então não existia no país.

"É nessa época que se cria a classe do operário especializado, com maior poder aquisitivo", afirma.

Em paralelo, a construção das rodovias era menos custosa que as estradas de ferro e o petróleo usado para produzir combustível ainda era muito barato.

No pano de fundo, a Guerra Fria estreitava as relações entre Brasil e Estados Unidos. Na tentativa de barrar a expansão da influência da União Soviética no continente, os americanos firmaram acordos de cooperação técnica e de financiamento para investimentos com diversos países da América Latina.

Assim, ainda em 1956 foi criado o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA), sob o comando do Capitão de Mar e Guerra Lúcio Meira.

O Brasil, que até então só montava veículos, passaria a fabricar carros, caminhões e jipes, tendo como principal polo a região do ABC paulista. São desse período dois modelos que fizeram história no país: o Fusca e a Kombi, ambos da linha de montagem da Volkswagen em São Bernardo do Campo.

Com a produção de veículos nacionais, multiplicaram-se os quilômetros de rodovias. Só nos cinco anos de gestão JK, a malha rodoviária federal pavimentada foi multiplicada por três, de 2,9 mil km para 9,5 mil km.

As ferrovias, por sua vez, entravam os anos 1950 sucateadas.

Além da redução da demanda de carga e passageiros, um outro fator contribuiu para o "estado bastante acentuado de degradação física das estradas de ferro": "Muitas concessões já estavam no final, próximo da devolução, e não havia cláusula nos contratos que obrigassem as concessionárias a fazer investimentos ou devolver as ferrovias no estado em que as pegaram", diz Ratton Neto, que tem larga experiência no planejamento, construção, operação e gestão de sistemas de transporte metroviário e ferroviário.

É nesse contexto que, em 1957, surge a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), estatal que passou a administrar as ferrovias que até então estavam nas mãos de diferentes empresas privadas.

Inicialmente, diz o historiador Welber Luiz dos Santos, do Núcleo de Estudos Oeste de Minas da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, a intenção não era "destruir" as ferrovias.

"Os primeiros relatórios da empresa demonstram que o projeto era de modernização e unificação administrativa para facilitar a integração entre os diferentes meios de transporte", afirma o pesquisador.

"Os investimentos rodoviários do Plano de Metas de JK não eram uma ameaça ao sistema ferroviário", avalia.

Malha ferroviária brasileira. Entre 1854 e 1985 - em km.  .


A extinção das linhas de passageiros

Os projetos de recuperação e melhoria, contudo, incluíam a desativação de uma série de linhas e "ramais" (jargão do setor para os trechos secundários) considerados deficitários.

A lógica, diz o historiador Eduardo Romero de Oliveira, é que o mundo de meados do século 20 era completamente diferente daquele que, muitas décadas antes, havia norteado a construção de parte das ferrovias.

"Houve uma mudança no negócio", diz o professor da Unesp. "As estradas de ferro da música do Milton Nascimento eram de outra época, para pensar o transporte de café, de açúcar, em um período em que nem a legislação trabalhista existia."

O químico Ralph Mennucci Giesbrecht, um "fanático por ferrovias" que há mais de duas décadas pesquisa sobre elas, especialmente sobre as estações, coleciona diversas histórias desse período turbulento.

"Nos anos 60 e 70 sumiram praticamente todas as ferrovias menores, aquelas consideradas deficitárias", diz ele, autor do livro O Desmanche das Ferrovias Paulistas.

Os conflitos aparecem em histórias como a da desativação do trecho entre as cidades paulistas de São Pedro e Piracicaba, concluída em 1966. O prefeito de São Pedro na época chegou a enviar um telegrama incisivo ao governador, Laudo Natel, questionando o critério da baixa rentabilidade usado para justificar a extinção do ramal.

"Déficit, se não levarmos em conta o bem coletivo, também dá a polícia, dão as escolas e todas as repartições mantidas pelo Estado. O déficit do ramal é muito relativo, pois, não levando em conta o movimento das estações de Barão de Rezende, Costa Pinto, Recreio e Paraisolândia, a estação de São Pedro despachou este ano mais de 40.000 toneladas de cana. Finalizando, aqui deixo minha desilusão por tudo e por todos", dizia a mensagem, conforme reportagem do jornal O Estado de S.Paulo de 30 de outubro de 1966 encontrada por Giesbrecht.

Aos poucos, as linhas de passageiros foram desaparecendo, permanecendo, em alguns casos, aquelas que cruzavam as regiões metropolitanas das grandes cidades, usadas até hoje.

Com o avanço da indústria automobilística e a entrada do avião em cena, as ferrovias entraram em crise, em maior ou menor medida, em todo o ocidente. Nos países em que foram mantidas para transporte de passageiros, o serviço, na maioria dos casos, passou às mãos do Estado.

É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos. A estatal Amtrak foi fundada em 1971 e faz até hoje a gestão das linhas de passageiros no país. Também são estatais a alemã Deutsche Bahn, a espanhola Renfe e a francesa Société Nationale des Chemins de fer Français (SNCF).

Trecho da Estrada de Ferro D. Pedro II, rebatizada posteriormente de Central do Brasil (Crédito da foto: Biblioteca Nacional).

A estagnação e o corredor de commodities

Do lado do transporte ferroviário de carga, parte dos investimentos vislumbrados no período JK não saíram do papel, diz o historiador Welber Santos.

Em sua visão, a ditadura militar mudou o foco da política de transportes, que passou a ser mais voltada para as rodovias, com a aposta em grandes obras de engenharia, como a ponte Rio-Niterói, e alguns investimentos questionáveis, como a Transamazônica, que nunca foi concluída.

A Ferrovia do Aço, ele diz, um dos projetos ferroviários que chegou a sair do papel nesse período, começou a ser construída em 1973 com a promessa de ser entregue em mil dias, mas só foi inaugurada em 1992, e com um porte muito mais modesto do que o projeto inicial.

Para Ratton Neto, da Coppe/UFRJ, um dos principais obstáculos à realização dos investimentos necessários à malha ferroviária do país naquela época foi a crise do petróleo de 1973 e o período turbulento que se seguiu.

"Depois daquele choque na economia mundial, o Brasil, que até então tinha acesso fácil a crédito, passou a ser visto como país de alto risco. A partir daí, teve início uma crise que impediu que os planos nacionais de desenvolvimento pudessem ter sequência. Deixamos de planejar para apagar incêndio praticamente até os anos 90", diz ele.

Nos anos 1990, em um contexto de baixo crescimento econômico, inflação elevada e alto nível de endividamento público, a RFFSA é liquidada e as ferrovias são novamente concedidas à iniciativa privada, por meio do Plano Nacional de Desestatização (PND).

A partir daí, elas passam a funcionar majoritariamente como corredores de transporte de commodities para exportação, diz o professor da Coppe/UFRJ.

Hoje, quase metade da malha, 14 mil km, está nas mãos da Rumo Logística, empresa do grupo Cosan. Outros 2 mil km são administrados pela Vale. Cerca de 75% da produção de transporte ferroviário é minério de ferro. "Outros 10% ou 12% são soja", estima Ratton Neto.

Como os contratos de concessão não preveem a realização de investimentos e melhorias, boa parte da malha segue como foi construída no segundo império, com a chamada bitola métrica, ultrapassada, bem mais estreita que a bitola internacional, hoje usada como padrão.

O modelo atual de exploração das ferrovias, na avaliação do especialista, subaproveita o potencial do país e deixa o Brasil refém das rodovias - consequentemente, mais suscetível a greves de caminhoneiros como a de 2018, que gerou caos e desabastecimento.

As estradas de ferro poderiam ser mais utilizadas para transporte de bens industriais, ele exemplifica, de bobinas de ferro e cimento a automóveis, inclusive em trechos curtos, nos moldes das "short lines" dos Estados Unidos.

"Também poderiam ser usadas para transportar contêineres, uma tendência nova e muito rentável", acrescenta.

Um entrave para o planejamento de novas linhas, contudo, é o apagão de dados sobre a movimentação interna de cargas. O Brasil não sabe, no detalhe, o que é transportado e de onde para onde. Iniciativas como o Plano Nacional de Contagem de Tráfego ainda não geram dados robustos nesse sentido, diz o professor

A outra é o próprio modelo de concessão, em que as concessionárias têm controle tanto sobre as vias quanto sobre os trens. Assim, essas empresas acabam tendo o monopólio do transporte ferroviário e, em última instância, decidem o que trafega ou não pelos trilhos.

"As ligações hoje atendem aos interesses dos próprios concessionários."

Os novos projetos anunciados recentemente pelo governo, na avaliação do professor, não chegam a quebrar a lógica das ferrovias como corredor de commodities. Em setembro, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, anunciou a autorização para construção, pela iniciativa privada, de 10 novas ferrovias, com investimentos da ordem de R$ 50 bilhões.

Em paralelo, ele chama atenção também para o projeto da Ferrogrão, que deve ligar o Mato Grosso ao Pará em cerca de 933 km com a proposta de facilitar o escoamento de grãos pela região Norte do país.

Na tentativa de tirar a ferrovia do papel, o governo sinalizou que disponibilizará para a futura concessionária até R$ 2,2 bilhões em recursos da União. O dinheiro, contudo, viria da outorga que será paga pela Vale para renovar a concessão de duas das ferrovias que administra hoje, a Estrada de Ferro Carajás e a Estrada de Ferro Vitória-Minas.

"Os recursos da outorga que poderiam ser usados para geração de benefícios econômicos e sociais nesse caso acabariam captados pelo próprio setor privado."

Camilla Veras Mota - @cavmota, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 12.11.21

Porandubas Políticas

 Por Gaudêncio Torquato

Abro a coluna com um "causo" da Paraíba.

Cancelo chuvas

A seca era medonha. A Paraíba em desespero, o governador aflito. Um dia, caiu uma chuva fininha no município de Monteiro. Inácio Feitosa, o prefeito, correu ao telégrafo:

"Governador José Américo: chuvas torrenciais cobriram todo município de Monteiro. População exultante: Saudações, Feitosa".

Os comerciantes da cidade, quando souberam do telegrama, ficaram desesperados. O município não ia mais receber ajuda. Ainda mais porque a mensagem era falsa e apressada. Feitosa correu de novo ao telégrafo:

"Governador José Américo: cancelo chuvas. População continua aflita. Feitosa, prefeito".

Santos Cruz

Do general Santos Cruz em comunicação assertiva para este analista político: "vou apoiar Sergio Moro. Saúde".

Bolsonaro no PL

A entrada de Jair Bolsonaro no PL, partido de Valdemar da Costa Neto, amarra o tronco do governo ao centrão. Trata-se de uma jogada combinada com o PP de Arthur Lira, o outro partido que integra o centrão. Significa a escolha da velha política como paredão de sustentação do governo. Vai atrair alguns deputados e perder outros. Por velha política, entende-se: ficar no poder seja qual for o presidente. Se outro candidato - Lula ou um da terceira via - se viabilizar e demonstrar ter chances em outubro de 2022 será uma correria em direção à sigla do favorito. A conferir.

O vice

Comenta-se que o general Hamilton Mourão, o vice-presidente, seria descartado do cargo na eleição de 2022. Bolsonaro estaria pensando em um nome político, de um dos partidos do centrão. Nesse caso, especula-se que o ministro das Comunicações, Fábio Faria, teria se cacifado com o leilão da 5-G, e, assim, estaria apto a ser o candidato a vice de Bolsonaro. Sairia do PSD de Kassab para ingressar no PP de Lira. Assim, Bolsonaro contentaria todo o centrão: ele no PL e um vice do PP. Faria deixaria livre o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Simonetti Marinho, que sairia como candidato a senador pelo RN. E Mourão? Candidato a senador pelo RS ou mesmo RJ.

- A tolerância chegará a tal ponto que as pessoas inteligentes serão proibidas de fazer qualquer reflexão para não ofender os imbecis. Dostoievski.

O PSD de Kassab

Gilberto Kassab é um dos mais eficientes articuladores da política nacional. Está comendo pelas beiradas, ou seja, filiando quadros importantes dos Estados. Seu candidato a presidente será o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Que saiu do DEM para o PSD. Pacheco terá como objetivo inicial fechar Minas Gerais em torno do seu nome. Minas é o segundo maior colégio eleitoral do país. Pacheco faz boa figura: simpático, moderado, fluente, educado. Não será surpresa se mostrar crescimento.

Moro

Sergio Moro precisa ganhar flexibilidade, aquele jeitão de falar o que a imprensa gosta de ouvir, ampliar o circuito de amizades na política, expor-se mais no espaço da visibilidade. Parece acanhado, com dificuldade de se comunicar com seus públicos.

Ciro

Ciro Gomes colocou um cabresto do PDT. Ou o partido volta atrás com os votos de apoio à PEC dos Precatórios ou cairá fora como candidato. Logo mais, veremos. Pareceu que o candidato queria um pretexto para pular fora da candidatura.

Lula

Este analista ainda não se convenceu que Lula quer ser candidato. Como não surgiu outro capaz de enfrentar Bolsonaro, seu nome subiu às alturas. Com o perfil resgatado, prestígio alto, vida tranquila, enfrentaria de bom grado uma campanha que tende a lembrar todos os malfeitos do PT? Diz-se que torce para surgir um nome do arco da esquerda ou centro-esquerda para que ele possa orientar o PT a apoiá-lo.

O vai-e-vem

Os números que se apresentam sobre o desempenho do país na esfera da economia são como uma gangorra. Ora, fala-se de crescimento de até 7,5% do PIB. Outras vezes, esse número chega próximo do zero. E lá vem mais: se somarmos o resultado primário dos Estados e municípios, estatais e governo central para termos o resultado do setor público passamos de um déficit primário de R$ 636 bilhões ( - 11,7% do PIB) nos nove primeiros meses para um superavit de R$ 14,2 bilhões(0,22% do PIB) este ano, ou seja, uma melhora de R$ 650 bilhões, apesar dos gastos extras com Covid este ano.

Não se iludam

Não se iludam uns e outros. Se a equação BO+BA+CO+CA (Bolso, Barriga, Coração, Cabeça) for bem equacionada, Bolsonaro ganhará mais um mandato. Ou seja, se as massas carentes tiverem o seu dinheirinho pingando ao final de cada mês, o capitão fará um gol de placa. O que interessa para essa massa de votantes é geladeira cheia e barriga satisfeita. O instinto de sobrevivência falará mais alto. O dinheiro que seria para pagar precatórios pode reeleger Bolsonaro. A recíproca é verdadeira. Barriga vazia queimará a possibilidade. E nem água vai faltar. Chove em quase todo o país, com tendência a acabar com a crise hídrica.

Um ponto fora da curva

Diz-se que Bolsonaro significa no mapa político um ponto fora da curva. Seu estilo pra lá de grotesco, infelizmente, começa a ser banalizado e fixado no vocabulário da política. E assim deixa de ser um ponto fora da curva. Se assim for, o futuro estará cheio de nuvens pesadas.

O Brasil

O prestígio do Brasil está ao rés do chão. Quebrado, esfacelado. E o cara não está nem aí....Barack Obama faz um discurso em que clama para que o Brasil, ao lado da China, Rússia, EUA e outros países, lidere a campanha pelo ambiente saudável. Bolsonaro ouviu daqui. Entrou por um ouvido, saiu pelo outro.

Governadores

Os governadores aproveitarão o tempo que lhes resta na atual gestão para fazer o obreirismo de pequenas coisas. É tempo de fazer política. É tempo de correr o Estado. É tempo de atrair as massas. É tempo de pão e circo.

É breve a vida

Tomo a liberdade de fazer uma reflexão sobre a vida. Valho-me de Sêneca com seu puxão de orelhas: "somos gerados para uma curta existência. A vida é breve e a arte é longa. Está errado. Não dispomos de pouco tempo, mas desperdiçamos muito. A vida é longa o bastante e nos foi generosamente concedida para a execução de ações as mais importantes, caso toda ela seja bem aplicada. Porém, quando se dilui no luxo e na preguiça, quando não é despendida em nada de bom, somente então, compelidos pela necessidade derradeira, aquela que não havíamos percebido passar, sentimos que já passou".

O tempo corre

A vida passa e não percebemos o quanto ela avançou. De repente, damo-nos conta de que o tempo que gastamos foi usado de maneira fútil, sem percebermos que nossos dias finais chegam rapidamente, trazidos pela cegueira de darmos valor à coisas que desperdiçam nossa atenção, guiados pelo voluntarismo que nos aproxima da materialidade cheia de magia da vida material. É a preocupação exagerada com a estética, é a discussão radical que não faz crescer a pessoa, é o pingo de azeite que mancha nossa gravata, a ponto de consumirmos um bom tempo para deixá-la limpa e sem mancha.

Oportunistas

A vida só é mesmo sentida e percebida diante dos grandes riscos que enfrentamos, do medo que avança ante o desconhecido e que ameaça consumir nossas energias, do perigo a que somos levados quando nosso corpo tem dificuldades de administrar as intempéries do tempo. Resta resistir aos contratempos que aparecem, quando menos se espera, e que servem como massa de manobra de certa categoria de protagonistas, como os individualistas, os populistas, os demagogos, os negacionistas, os obscuros, os oportunistas.

Fecho a Coluna com Gilberto Gil

Amigas e amigos de todo o Brasil. Cantemos com Gilberto Gil:

Andar com fé

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Que a fé 'tá na mulher

A fé 'tá na cobra coral

Oh oh

Num pedaço de pão

A fé 'tá na maré

Na lâmina de um punhal

Oh oh

Na luz, na escuridão

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá olêlê

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Olálá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Oh menina

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

A fé 'tá na manhã

A fé 'tá no anoitecer

Oh oh

No calor do verão

A fé 'tá viva e sã

A fé também 'tá prá morrer

Oh oh

Triste na solidão

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Oh menina

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Olálá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Certo ou errado até

A fé vai onde quer que eu vá

Oh oh

A pé ou de avião

Mesmo a quem não tem fé

A fé costuma acompanhar

Oh oh

Pelo sim, pelo não

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Olêlê

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Olálá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá (olêlê, vamos lá)

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá (costuma, costuma a fé não costuma faiá)

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá (costuma, costuma a fé não costuma faiá)

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andá com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá (olêlala)

Andá com fé eu vou que a fé não costuma faiá

Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.

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quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Consórcio falido

STF agravou a briga dentro do Centrão pelo acesso ao cofre aberto por Bolsonaro

O orçamento secreto agora não tão secreto vai continuar por outros meios, mas a decisão do STF garantiu a briga no consórcio montado para gastar à vontade em ano de eleição. Os consorciados são parlamentares do Centrão e Jair Bolsonaro.

O processo que levou ao orçamento secreto agora não tão secreto começou lá atrás, ainda durante Dilma, e tinha como objetivo limitar a capacidade do Executivo de manipular votos no Parlamento via distribuição de emendas. Foi “aperfeiçoado” por Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre dentro do mesmo espírito, ou seja, o Legislativo avançando em suas prerrogativas.

Coube ao “gênio” político Jair Bolsonaro consumar a entrega de fatia importante de seus poderes – a alocação de recursos através do Orçamento – aos chefões do Centrão, hoje os verdadeiros donos das principais decisões de governo. Eles já estavam em rota de colisão entre si por conta do único fator que lhes interessa, que é acesso aos cofres e máquina públicas.

A disputa tinha sido trazida a público no começo da semana pelo chefão do PL, ao qual Bolsonaro pretende se filiar, e que já tem um pedaço do Palácio do Planalto. Concorre ali com o chefão do PP, dono de um outro pedaço. O enfraquecimento de outro chefão do PP, o presidente da Câmara, trazido pela decisão do STF de suspender em parte o orçamento secreto, complica o jogo entre esses senhores.

Que já era intrincado o suficiente considerando-se o papel do Senado, do qual depende agora a tramitação da PEC dos precatórios e seus R$ 90 bilhões de “espaço fiscal” (na verdade, uma gambiarra despudorada). Apenas nas aparências o presidente do Senado manifestou muxoxo com o ataque do STF ao orçamento secreto que ele diz que não existia. Na prática, seu poder político de barganha aumentou consideravelmente.

Há quem enxergue na decisão claramente política do STF de suspender as emendas do relator um esforço de “salvar” a democracia e princípios da Constituição. O que o Direito não consegue, porém, é salvar o Brasil do seu próprio sistema político, que funciona (desde sempre?) para alimentar grupos privados (partidos políticos) que se juntam para apropriar-se de recursos públicos (estruturas do Estado e fundos) em benefício próprio.

O resultado dessa confusão, em parte um espelho da confusão mental de Bolsonaro, e da qual o grande público está alheio, é uma considerável paralisia política agravada por um quadro econômico que permanece em crescimento muito abaixo do necessário com medíocre recuperação de emprego e renda. O consórcio Centrão-Bolsonaro tem condições apenas de agravar esse quadro. 

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista. Apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 11.11.21.

11 de novembro de 2021 | 03h00

PT celebra eleição fraudulenta de Ortega na Nicarágua, mas volta atrás e tira nota do ar

Partido apoia pleito sem opositores ou observadores internacionais, constrangendo o ex-presidente Lula no momento em que articula volta ao Palácio do Planalto

Lula discursa no lançamento do Memorial da Verdade, em São Paulo, em agosto deste ano. (Marcelo Chello, AP)

Uma “grande manifestação popular e democrática”, é como os dirigentes do PT definiram as eleições que confirmaram a permanência de Daniel Ortega no poder da Nicarágua. O pleito fraudulento, que já tinha um vencedor definido antes mesmo do início das votações, ocorreu no último domingo, quando os rivais de Ortega estavam todos presos ou exilados. Ainda assim, o partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se apresenta como pleiteante à presidência em 2022, encarou o resultado como “o apoio da população a um projeto político que tem como principal objetivo a construção de um país socialmente justo e igualitário”. A nota, publicada no site da legenda na segunda-feira, foi amplamente criticada, tanto por opositores quanto por apoiadores do partido. Nesta quarta-feira, não estava mais no ar.

Enquanto o PT celebrava as eleições fraudulentas na Nicarágua, quatro ex-presidentes, incluindo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), assinavam uma carta exigindo que a região ignore o resultado do pleito. Diante das críticas, a presidenta nacional da legenda, a deputada Gleisi Hoffmann, usou sua conta no Twitter para colocar panos quentes, afirmando que a nota não havia sido submetida à direção partidária. “Posição do PT em relação qualquer país é de defesa da autodeterminação dos povos, contra interferência externa e respeito à democracia, por parte de governo e oposição”, escreveu ela. Depois, a legenda publicou uma nova nota no site do partido, dizendo que Gleisi “esclarece posição do PT sobre eleição na Nicarágua” e incluindo seu tuíte.

Em um momento em que Lula se apresenta como presidenciável e anuncia uma agenda de encontros internacionais com lideranças europeias, o gesto do PT vai na contramão dessas costuras democráticas. Em agosto, Lula aconselhou Ortega a “não abrir mão da democracia”. “Se eu pudesse dar um conselho ao Daniel Ortega, daria a ele e a qualquer outro presidente. Não abra mão da democracia. Não deixe de defender a liberdade de imprensa, de comunicação, de expressão, porque isso é o que favorece a democracia”, disse o petista em uma entrevista ao Canal Onze, do México.

Mas as eleições deste domingo na Nicarágua ocorreram em um contexto antidemocrático, a despeito dos conselhos de Lula —que não tocou mais no assunto. Ortega, que tem o apoio de somente 19% da população, segundo pesquisas sérias, teve 75% de apoio no pleito, de acordo com os resultados iniciais oficiais, que projetaram também uma participação de 65% da população. Os números foram considerados uma farsa pela oposição e pela comunidade internacional. A organização Urnas Abiertas informou que, de acordo com seus 1.450 observadores em todo o país, a abstenção foi em média de 81,5%.

Esta não é a primeira vez que o PT sofre críticas por apoiar uma eleição questionada. No fim do ano passado, o partido lançou uma nota saudando as eleições legislativas que ocorreram na Venezuela quase sem nenhuma oposição, sem o reconhecimento dos Estados Unidos e da Europa e com grande abstenção. “As eleições são a resposta democrática a esta política de bloqueio, que visa a atingir o governo constitucional do país, mas tem como grande vítima o povo venezuelano, gravemente prejudicado no acesso a alimentos, medicamentos e outros direitos”, afirmava a nota.

Marina Rossiafonso Benites, de São Paulo / Brasília para o EL PAÍS, em 10.11.21

Liberdade para as drogas

Os Estados não podem competir com quem gasta e esbanja somas delirantes para garantir o controle de certas cidades ou regiões, nas quais estes substituem, pouco a pouco, as autoridades. Leia aqui o artigo de Mário Llosa, publicado no EL PAÍS.

Planta de cannabis na fazenda de produção da Associação de Pesquisa e Apoio ao Paciente de Cannabis Médica (APEPI) em Paty dos Alferes, estado do Rio de Janeiro, Brasil em 9 de setembro de 2021. (Mauro Pimentel, AFP)

O Partido Socialista, no poder, e o Partido Popular, na oposição, forjaram uma momentânea aliança no Parlamento espanhol para pôr fim à Cannabis, que, ao que parecia, seria tolerada na Espanha. Equivocaram-se gravemente. Com essa proibição, só conseguirão que as máfias de narcotraficantes que já pululam na Espanha, embora menos que no México e em outros países latino-americanos, se fortaleçam e aumentem sua prática criminosa, assim como o consumo de drogas no país.

Quando fui candidato, nos anos oitenta do século passado, vivíamos na Frente que me apoiava a paixão pelo programa. Acreditávamos que desempenharia um papel crucial na eleição e nos enganamos redondamente: não desempenhou nenhum, e a maioria de eleitores nem sequer o leu. Mas para mim foi estimulante; segundo o programa, todos os problemas peruanos tinham solução. Menos as drogas, que fugiam do controle do país porque eram um assunto internacional.

Na área que nós, peruanos, chamamos de “sobrancelha de montanha”, entre os Andes e a Amazônia, o território da coca, fonte da cocaína, são feitas até três colheitas por ano; embora os camponeses não consumam a droga, só a semeiam e vendem. Eles chacchan a folha de coca, ou seja, mastigam-na, e o suco que extraem os protege do frio, da fome e do cansaço. Os aviõezinhos colombianos chegam às solitárias paragens dessa serra e seus pilotos pagam em dólares pela carga que transportam. Quem convenceria os camponeses de que deveriam substituir seus cultivos de coca por produtos alternativos que iriam vender, atravessando caminhos espantosos, que tomam muitos dias, até o Agrobanco das cidades, que lhes paga em sóis e, além disso, tarde, mal e nunca? Ninguém, é claro. E, por isso, a produção de coca é cada vez mais extensa no Peru e na América Latina, e o comércio da cocaína, que muitas vezes chega até nós importada do exterior, mais intenso.

A única solução para esse problema é a decisão corajosa que o Uruguai tomou: liberalizar o comércio da droga, embora eu não entenda por que apenas uma empresa estatal exerça esse direito; a lei deveria ser liberal, e as empresas privadas também deveriam desfrutar desse comércio (sob a supervisão do Estado, é claro).

Essa foi a solução que propôs, há muitos anos, um economista liberal, Milton Friedman, que, além disso, acrescentou que se continuasse crescendo o combate às drogas, aqueles que viviam desse trabalho seriam os piores inimigos de sua liberação. E ocorreu exatamente isso.

Atualmente, aqueles que lutam contra as drogas são muitos milhares de pessoas e instituições no mundo, começando pelos Estados Unidos, onde os funcionários da DEA [Drug Enforcement Administration, ou Departamento de Fiscalização de Drogas, em livre tradução] são hoje enérgicos adversários de sua redenção legal. Estamos acostumados a que nos informem, com base em estatísticas e pesquisas, que a luta contra a droga conquista muitas vitórias, que sua circulação está diminuindo e coisas parecidas. Mas a verdade é que as drogas são vendidas em toda parte − os narcotraficantes as dão de presente nas portas das escolas para que os jovens, e até as crianças, tornem-se usuários precoces − e a corrupção e a violência promovidas pelos poderosos cartéis não têm limites. Centenas de mulheres, suas vítimas preferidas, e outros tantos homens morrem diariamente nos países latino-americanos, em lutas pela posse de territórios ou rivalidades pessoais, enquanto, ao mesmo tempo, as lutas por aeroportos clandestinos ou delegacias de polícia ou, como na Venezuela, pelo domínio da força militar, vão minando os Estados, no nível ministerial e, às vezes, até no do próprio presidente, como foi o triste caso do Peru.

O problema é ainda mais profundo. Os sistemas de governo e as autoridades estão ou serão corrompidos pela enxurrada de dinheiro que as drogas produzem, a ponto de que, em alguns lugares que irão se espalhando, tudo depende delas e dos funcionários que têm a ver com sua circulação. Os Estados não podem competir com quem gasta e esbanja somas delirantes para garantir o controle de certas cidades ou regiões, que praticamente ficam nas mãos dos narcotraficantes e nas quais estes substituem, pouco a pouco, as autoridades.

Diante desse drama, não há mais remédio a não ser a legalização. É lógico que se comece pelas drogas menores, como já fizeram alguns países avançados, para medir suas consequências, e depois, sob receita médica, incluam-se as drogas maiores que sejam efetivamente um remédio contra a esquizofrenia e outras doenças. É verdade que, pelo menos no Peru, há uma velha polêmica − com discussões a viva voz, artigos e livros − entre os médicos que veem na legalização da cocaína um grave perigo para a saúde dos usuários (são minoria) e aqueles que, pelo contrário, acreditam que o vício nessa droga não seria pior do que o provocado pelo cigarro e pelo álcool. Mas o que interessa agora é acabar com esse contrapoder inesperado que, em muitos lugares, já substituiu o Estado e dita a lei.

Não estou exagerando nem um pouco. Em cidades onde o uso das drogas era secreto e inconfessável, hoje é quase público, está ao alcance de todo mundo e se tornou uma exibição de modernidade, de juventude e de progresso.

Em todo caso, a pior solução é endurecer as penas e aumentar as forças da ordem que combatem o narcotráfico. Já vimos − e o caso do México não é nem de longe o único − que à medida que cresce a perseguição, os narcotraficantes, que têm todo o dinheiro do mundo, armam-se com metralhadoras e fuzis mais sofisticados, comprados nos Estados Unidos, e multiplicam as demonstrações de força, deixando um rastro de mortes nos povoados e nas cidades que controlam. Esse caminho, o das hecatombes e matanças, não é realista.

É claro que a liberdade para as drogas tem seus riscos e o Estado deve combatê-los, neste caso com um maior controle judicial e policial daqueles que se veriam prejudicados por essa lei. Do mesmo modo, é imperioso que os sistemas de saúde prestem um serviço de desintoxicação e cura àqueles que estiverem dispostos a se livrar desse fardo, que também pode ser um grave perigo para a saúde. Tudo isso é útil e produtivo. Não é assim, no entanto, agir como se, na verdade, estivéssemos derrotando os narcotraficantes. Não é assim. São eles que estão ganhando a guerra. É preciso tirar a venda dos olhos e admitir. E eles continuarão ganhando enquanto os Estados pretenderem destruí-los. Eles é que estão nos destruindo.

O pior é a violência associada a essa situação em que os grandes traficantes são objeto de culto − as revistas e programas mais frívolos informam sobre eles, pois sua popularidade é grande − e as perseguições e guerras que travam entre eles já fazem parte da realidade cotidiana, como se as consequências de tudo isso não fossem os torturados e os mortos que se multiplicam por toda parte. A solução do problema não está só na legalização das drogas, é claro. Mas, de imediato, é a única maneira de acabar com a ilegalidade que rodeia essa questão, em que todos os dias morrem, em horríveis condições, dezenas ou centenas de inocentes. A legalização colocará ponto final a essa violência desmedida que paralisa o progresso e mantém muitos países no subdesenvolvimento.

Mário Vargas Llosa, o autor deste artigo, é escritor. Prêmio Nobel de Literatura. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 06.11.21.

Moro candidato? Como ex-ministro pode afetar corrida à Presidência

O ex-ministro Sergio Moro não anunciou, até o momento, uma pré-candidatura à Presidência da República, mas sua filiação ao partido Podemos, nesta quarta (10/11), é um passo a mais na direção de concorrer a um cargo público nas eleições de 2022.

Moro escolheu o Podemos para se filiar (Adriano Machado, Reuters)

Longe do cenário político no último ano — que passou morando nos Estados Unidos — Moro volta ao Brasil sem ter a mesma popularidade que tinha como juiz no auge da operação Lava Jato.

Sua imagem foi desgastada por crises que vão desde uma passagem conturbada pelo governo Bolsonaro até a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que considerou o ex-juiz parcial no julgamento do ex-presidente Lula.

Mas apesar das crises e do distanciamento, Moro ainda mantém uma popularidade que não pode ser desconsiderada — nas pesquisas feitas pelo Datafolha que incluíram seu nome, o ex-ministro ficou pouco abaixo dos 10% de intenção de votos.

"Eu diria que ele está hoje no mesmo patamar do (governador de SP) João Doria", afirma Mauro Paulino, diretor do Instituto Datafolha.

O ex-ministro é considerado uma grande "aquisição" pelo Podemos, cujo integrante mais conhecido nacionalmente era até hoje o senador Álvaro Dias (Paraná). Mesmo que Moro acabe não concorrendo à Presidência, seu capital eleitoral será aproveitado pelo partido, que também considera a possibilidade de lançá-lo como candidato ao Senado.

Entenda quais são os pontos fortes e as fraquezas de Moro em uma eventual campanha presidencial e seu impacto na disputa de 2022 — caso o ex-ministro decida realmente enfrentar Lula e Bolsonaro nas urnas.

Rosto conhecido

Embora Lula e Bolsonaro sejam hoje os favoritos para as eleições presidenciais do ano que vem, não se pode desconsiderar a possibilidade de um outro candidato ir para o segundo turno, explica Mauro Paulino, do Datafolha.

"Nos últimos anos, de maneira geral os eleitores têm se dividido em três grupos. Um mais de esquerda, um mais de direita e um grupo 'pêndulo', ou seja, que tende a votar no centro ou que varia de um extremo a outro", explica Paulino.

"Apesar do favoritismo atual de Lula e Bolsonaro, não dá para desconsiderar um terceiro nome por causa desse grupo mais ao centro — que votou em Bolsonaro em 2018 mas agora está descontente."

Moro é um de muitos nomes entre os possíveis candidatos conhecidos como "nem-nem" — de eleitores que não querem nem Lula, nem Bolsonaro. Políticos como Ciro Gomes (PDT), João Doria e Eduardo Leite (ambos do PSDB) e Luiz Henrique Mandetta (DEM) ainda podem ser lançados como pré-candidatos pelo seu partido e disputar uma vaga no segundo turno.

Uma vantagem que Moro tem em relação a esses e outros políticos que se colocam como uma "terceira via", aponta Mauricio Moura, diretor do instituto de pesquisa Ideia Big Data, é o fato de seu nome já ser conhecido nacionalmente.

"O fato de ser amplamente conhecido pela opinião pública é um grande diferencial em relação a outros candidatos", diz Moura.

Colocado sob os holofotes na última década por causa de sua atuação como juiz dos processos da operação Lava Jato, Moro foi tratado como símbolo do combate à corrupção durante anos, atingindo alta popularidade no auge da operação.

"O positivo desse reconhecimento (do seu nome) é que ele já tem uma imagem consolidada com o público, não precisa de muito pra reforçar essa imagem", afirma Mario Paulino.

No entanto, aponta o pesquisador, o fato de Moro ser um rosto conhecido também traz aspectos negativos — ele também precisa lidar com desgastes associados à sua imagem.

Moro rompeu com Bolsonaro um ano após assumir Ministério da Justiça (Reuters)

Alta rejeição

O lado negativo de ser mais amplamente conhecido é ter que lidar com uma índice de rejeição relativamente maior.

No caso de Moro, cerca de 26% dos brasileiros diziam que não votariam no ex-ministro de jeito nenhum em pesquisa divulgada pelo Datafolha em maio deste ano (última na qual ele foi incluído).

A passagem do juiz pelo governo Bolsonaro e a suspeição declarada pelo STF são principais fatores dessa rejeição.

"Moro saiu do governo Bolsonaro menor do que entrou", afirma Maurício Moura, do Ideia Big Data.

Ministro da Justiça e da Segurança Pública de Bolsonaro entre janeiro de 2019 e abril de 2020, Moro rompeu com o governo dizendo que o presidente não estava cumprindo as promessas feitas quando o convidou para o ministério. O episódio se deu pouco depois de uma polêmica envolvendo a acusação de que o presidente havia interferido na Polícia Federal para proteger seus filhos.

A aliança mal sucedida com Bolsonaro foi especialmente problemática para Moro porque acabou afetando sua imagem com dois públicos: pessoas que rejeitam Bolsonaro e ficaram decepcionadas quando Moro entrou no governo, e bolsonaristas, que o consideraram "traidor" ao abandonar o presidente.

Já a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que o considerou parcial no julgamento de Lula no âmbito da Lava Jato prejudicou sua imagem como juiz.

"Essa imagem amplamente associada à Lava Jato se deteriorou, ele teve seu capital reputacional diminuído", afirma Maurício Moura.

"Moro vai ter que lidar com algumas perguntas indigestas em uma campanha", afirma Creomar de Souza, CEO da consultoria política Dharma e professor da Fundação Dom Cabral. "Ele interferiu nas eleições de 2018 ao condenar Lula, como acusa a esquerda? Por que ele aceitou ser ministro de Bolsonaro?"

O ex-ministro não foi incluído nas últimas pesquisas de rejeição feitas pelo instituto, em julho e setembro. Na última, que ouviu 3.667 eleitores em 190 cidades nos dias 13 a 15 de setembro, a maior rejeição era de Bolsonaro (59%), seguido por Lula (38%).

Tradicionalmente, candidatos com alta rejeição não iam para o segundo turno das eleições presidenciais, explica Mauro Paulino. "Mas isso mudou em 2018, quando a disputa no segundo turno ficou entre Haddad e Bolsonaro, ambos com alto índice de rejeição."

Decisão do STF sobre suspeição de Moro no julgamento de Lula fortaleceu discurso de perseguição política adotado pelo ex-presidente (Getty Images)

Corrupção e economia

O público que votaria em Sergio Moro para presidente hoje é composto basicamente por eleitores "órfãos do PSDB" no sul, sudeste e centro-oeste, diz Mauro Paulino, do Datafolha.

"Eleitores que consideram a corrupção o principal problema do país, têm uma tendência conservadora, optaram por Bolsonaro em 2018 e agora estão insatisfeitos", explica Paulino.

Ter a imagem fortemente associada à pauta anticorrupção é um ponto a favor de Moro caso dispute a Presidente contra Bolsonaro e Lula, cujos governos tiveram que lidar com uma série de escândalos.

Por outro lado, Moro terá o desafio de fazer uma campanha em uma momento em que a sociedade está pressionada por outras questões, de ordem econômica: inflação, desemprego, desigualdade.

"As pessoas não sabem como Moro se posiciona em relação à política econômica", afirma Creomar Souza. Seu posicionamento em diversos outros assuntos também não é conhecido. Moro evitou se posicionar até agora, por exemplo, sobre a postura do governo Bolsonaro no combate à pandemia, outro tema que deve ser central na campanha para 2022.

A economia sempre foi um fator importante na eleição, explica Mauro Paulino, e o tamanho que o tema da corrupção teve em 2018 foi atípico. "Se as previsões de que a situação econômica no ano que vem vai estar até mais difícil do que hoje, o assunto vai readquirir o protagonismo perdido em 2018", diz ele.

"Por outro lado, ainda existe uma capilaridade desse tipo de discurso anticorrupção. Combater a corrupção é algo que tradicionalmente é visto no Brasil como a missão de um 'herói político'", lembra Souza. "Basta lembrar que o PT, antes do mensalão, tinha esse discurso. E Bolsonaro foi eleito em 2018 com esse discurso."

Letícia Mori, de São Paulo para a BBC News Brasil em São Paulo, em 10.11.21

Novo partido de Bolsonaro: PL esteve no centro do escândalo do mensalão no governo Lula

A participação de integrantes do PL no caso foi denunciada pelo presidente nacional do PTB e então deputado federal Roberto Jefferson (RJ). Na época apoiador de Lula e hoje aliado de Bolsonaro, o ex-parlamentar está preso por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes no inquérito das fake news.

O presidente Jair Bolsonaro (E) e o presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto

Provável destino partidário do presidente Jair Bolsonaro, o Partido Liberal (PL) esteve no centro do escândalo do mensalão, que abalou o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005. O presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, anunciou que a cerimônia de filiação de Bolsonaro ao PL acontecerá no próximo dia 22 em Brasília.

O PL e o próprio Costa Neto foram manchete em 2005 durante o chamado escândalo do mensalão, em que o governo Lula foi acusado de pagar dinheiro a deputados em troca de apoio a projetos do governo.

Foi Jefferson o primeiro a utilizar o termo "mensalão", em entrevista à jornalista Renata Lo Prete, então editora da coluna Painel do jornal Folha de S. Paulo, publicada em 6 de junho de 2005. Ele acusou o então tesoureiro nacional do PT, Delúbio Soares, de pagar parlamentares do partido e do PP para votar favoravelmente a projetos de interesse do Palácio do Planalto.

O deputado afirmou: "Um pouco antes de o Martinez (José Carlos Martinez, presidente do PTB morto em 2003 num acidente aéreo) morrer, ele me procurou e disse: 'Roberto, o Delúbio está fazendo um esquema de mesada, um mensalão, para os parlamentares da base. O PP, o PL, e quer que o PTB também receba. R$ 30 mil para cada deputado. O que você me diz disso?'".

PTB, PP e PL, entre outros partidos, faziam parte da base parlamentar do governo Lula.

No dia seguinte, o presidente nacional do PL, deputado federal Valdemar Costa Neto (SP), ingressou com representação contra Jefferson na Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara.

Valdemar da Costa Neto, em foto de 2005, foi condenado por por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no escândalo do mensalão (Evaristo Sá / AFP via Getty Images)

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"A ofensa, da forma como foi praticada, atingiu e maculou, quiçá de forma irreparável, a reputação ilibada não só dos parlamentares nominados, mas também a credibilidade, o conceito moral e administrativo desta Casa", afirmou Costa Neto.

Na dupla condição de acusador e acusado, Jefferson redobrou a aposta: citou como beneficiários dos pagamentos o próprio Costa Neto e os deputados do PL Sandro Mabel (GO) e Bispo Rodrigues (RJ), além de três parlamentares do PP (Pedro Corrêa, então presidente da sigla, José Janene e Pedro Henry).

Na sessão da Comissão de Ética em que Jefferson foi ouvido, em 14 de junho, Costa Neto confrontou-o: "Então dê os nomes".

O presidente do PTB respondeu: "Afirmo que Vossa Excelência recebe e repassa".

Jefferson foi condenado em votação secreta à perda de mandato por quebra de decoro.

Jefferson, Costa Neto, Corrêa, Henry e Rodrigues, entre outros, foram denunciados pela Procuradoria-Geral da República no caso do mensalão e, posteriormente, julgados e condenados a penas variadas pelo Supremo Tribunal Federal em 2012.

No total, 41 pessoas foram julgadas e 26 condenadas no processo, incluindo o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu e o ex-presidente nacional do PT José Genoino.

Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto com a ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (D)

"O PL é um partido estruturado nacionalmente, mas é também uma das siglas mais implicadas em corrupção na história recente. Essa escolha de Bolsonaro entra em contradição com o discurso do presidente contra a velha política, o toma-lá-dá-cá e a moralidade. Os bolsonaristas terão de se contorcer para explicar essa opção", afirma Victor Gandin, cientista político e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Base dos governos Lula e Dilma

Desgastado pelo episódio, o PL mudou de nome para disputar as eleições do ano seguinte.

Assumiu a identidade de Partido da República (PR), após fusão com o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona), do deputado federal e ex-candidato à Presidência Enéas Carneiro (SP). O objetivo declarado da fusão foi assegurar o cumprimento da cláusula de barreira, que exigia de cada sigla um percentual mínimo de 5% dos votos para eleger deputados.

No ano seguinte, já com 34 deputados, o então PR passou a fazer parte da base parlamentar de Lula, reeleito para um segundo mandato, e indicou Alfredo Nascimento para o Ministério dos Transportes. Mais tarde, compôs a aliança que elegeu a também petista Dilma Rousseff por dois mandatos.

Em 2019, o PR mudou novamente de identidade e voltou a se chamar PL.

O partido foi criado em 1985, logo após o fim da ditadura militar. Seus fundadores provinham sobretudo de partidos que haviam sustentado o antigo regime, como o então Partido Democrático Social (PDS, hoje PP), ou desertado no último minuto, como o Partido da Frente Liberal (PFL, hoje Democratas) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

À frente da nova sigla, destacavam-se políticos como Afif Domingos, ex-secretário de Agricultura do governo Paulo Maluf, de São Paulo, e Álvaro Valle, dissidente do PFL do Rio de Janeiro. Em 1989, o PL lançou Afif à Presidência, mas obteve apenas o sexto lugar entre 21 candidatos, com 3,2 milhões de votos (4,8% do total).

O partido apoiou as candidaturas presidenciais de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 1994 e Ciro Gomes (PPS) em 1998, mas chegou ao poder em 2002 ao emplacar o então senador por Minas Gerais José Alencar como vice de Lula.

Fundador do conglomerado têxtil Coteminas, Alencar tivera uma passagem frustrada pelo PMDB nos anos 1990, tendo sido preterido por caciques tradicionais do partido em disputas pelo governo do Estado. Sua presença na chapa presidencial ao lado de Lula ajudou o candidato do PT a se tornar mais palatável a setores conservadores. Na prática, a relação de Alencar com o PL, no qual era novato, permaneceu distante.

Nos últimos 10 anos, o PL consolidou-se como um dos pilares do Centrão, bloco de partidos que domina a Câmara dos Deputados e serve de fiel da balança em votações decisivas na relação do Legislativo com o governo federal.

A sigla soma atualmente 43 deputados, atrás apenas do PSL (54 parlamentares) e do PT (53). Os votos do PL foram fundamentais para a eleição de Artur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara, e o partido emplacou a deputada federal Flávia Arruda (DF) como ministra-chefe da Secretaria de Governo.

"O movimento de Bolsonaro em direção ao PL é um casamento de conveniência. Ele precisa de estrutura partidária e tempo de TV se quiser disputar com chances a reeleição. Por outro lado, o PL e o Centrão também buscam crescimento. Será difícil governar sem o Centrão a partir de 2023", analisa Paulo Sergio Peres, professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Luiz Antônio Araujo, de Porto Alegre para a BBC Brasil, em 11.11.21