quarta-feira, 27 de outubro de 2021

CPI desafia o Brasil a punir Bolsonaro pela gestão insensível à dor e às mortes na pandemia

Aprovação do relatório final, que pede 80 indiciamentos, pressiona autoridades judiciais por punições e acua o presidente, acusado pelos senadores de crime contra a humanidade

O senador Renan Calheiros durante entrevista coletiva no Senado. (Evaristo Sá, AFP)

Depois de quase seis meses de trabalho, a CPI da Pandemia aprovou seu relatório final por sete votos a quatro, colocando o presidente Jair Bolsonaro no centro de uma gestão frouxa e intencionalmente insensível da pandemia de coronavírus. Os senadores acusam o presidente de ter cometido crime contra a humanidade, e outros oito delitos, entre eles, incitação e propagação da pandemia, além de charlatanismo. Os integrantes da CPI já anteveem um encontro com representantes do Tribunal Penal Internacional para tratar da acusação mais grave.

A CPI sistematizou todos os potenciais crimes, omissões e erros cometidos pela Governo federal no combate à pandemia, em busca de uma suposta imunidade de rebanho. O plano era retomar a economia a qualquer custo, deixando o vírus se espalhar. Bolsonaro foi o principal garoto propaganda da desobediências às regras sanitárias, ao não usar máscaras, promover aglomerações e defender o uso da cloroquina. Além do presidente, outras 77 pessoas e duas empresas foram implicadas por 24 delitos, de charlatanismo a epidemia com resultado morte; de incitação ao crime a corrupção ativa. A lista é longa e já resultou na abertura de 17 procedimentos iniciais em órgãos de controle, como Ministério Público e Tribunal de Contas. Senadores e especialistas calculam que milhares de vidas poderiam ter sido poupadas se tivesse havido uma gestão responsável da pandemia.

A comissão parlamentar desnudou um balcão de negócios no Ministério da Saúde, impediu uma compra de 1,6 bilhão de reais da suspeita vacina Covaxin, descobriu esquemas de lobby de empresas Precisa e VTCLog, que tinham contratos com o Governo, e revelou que seres humanos eram usados pelo plano de saúde Prevent Senior e por um médico como cobaias involuntárias de medicamentos como cloroquina e proxalutamida. “Esta comissão parlamentar de inquérito tirou o Brasil do cercadinho e colocou o negacionismo dentro do cercadinho”, sintetizou o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), em alusão ao local onde os militantes bolsonaristas costumam se concentrar para ouvir o presidente em frente ao Palácio da Alvorada. O senador Renan Calheiros, (MDB-AL), relator da Comissão, chegou a comparar Bolsonaro ao ditador chileno Augusto Pinochet, e ao comandante Carlos Brilhante Ustra, temido agente da ditadura, que chefiou um centro de tortura de adversários do governo militar.

O destino do relatório está nas mãos do Procurador Geral da República, Augusto Aras, que deve analisar oito crimes comuns atribuídos ao chefe do Executivo, e do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que vai avaliar se Bolsonaro cometeu o crime de responsabilidade que lhe é atribuído e deveria, portanto, sofrer um processo de impeachment. “A CPI fez bastante barulho, produziu um relatório sério e robusto, mas o presidente ainda tem dois guardiões, Lira e Aras. Tudo o que a CPI fez, agora, depende deles. No mais, o desgaste político de Bolsonaro já foi dado”, destaca o cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).

Aras tem 30 dias para dar uma resposta aos senadores. Ele já disse que montará uma espécie de grupo de trabalho formado por procuradores para analisar as sugestões dos parlamentares para, só então, se manifestar. Lira, por sua vez, dificilmente dará andamento a um processo impeachment a menos de um ano da eleição. Como ressaltou Fleischer, portanto, é possível que a grande punição à política sanitária de Bolsonaro nos últimos meses venha das urnas no próximo ano, quando o presidente tentará a reeleição.

As mudanças

Correndo o risco de ver todo seu trabalho ser perdido por um rejeição do relatório pelo plenário da comissão, o relator Renan Calheiros recuou e decidiu apresentar um pedido de indiciamento do governador do Amazonas, o bolsonarista Wilson Lima (PSC), e do ex-secretário de Saúde do Estado Marcellus Campêlo pelo delito de prevaricação durante a crise de falta de oxigênio em Manaus. A inclusão de Lima era um pedido do senador Eduardo Braga (MDB-AM). O governador também responderá por epidemia com resultado morte e por crime de responsabilidade.

Calheiros acrescentou ao relatório outros 12 pedidos de indiciamento nesta terça-feira. No início do dia, o senador alagoano atendeu a um pedido do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e colocou no rol de possíveis culpados pelos erros na pandemia o senador Luz Carlos Heinze (PP-RS). Eles queriam que Heinze fosse indiciado por incitação ao crime pela divulgação de desinformação. Porém, uma intensa negociação com a cúpula do Senado levou à retirada do nome do parlamentar gaúcho, a pedido do próprio Alessandro Vieira, para evitar o constrangimento de envolver um senador da comissão entre os principais responsáveis pela crise que levou a mais de 606.000 mortes no país.

O nome de Heinze foi cogitado para a lista por ele ter propagandeado nos últimos seis meses o uso da cloroquina, entre outros medicamentos do ineficaz kit covid. É um comportamento semelhante ao de Bolsonaro, que foi apontado como o responsável por nove delitos. Heinze seria indiciado por incitação ao crime. “Não se gasta vela boa com defunto ruim. Esta CPI fez um trabalho, prestou um serviço para o Brasil, muitíssimo relevante. Não posso, a esta altura, colocar em risco nenhum pedaço desse serviço por conta de mais um parlamentar irresponsável”, justificou Vieira ao pedir a retirada do nome do colega do documento final.

Os senadores concordaram ainda em solicitar o banimento do presidente das redes sociais, pela insistência em disseminar desinformação. A última delas ocorreu na quinta-feira passada, quando, durante sua live semanal, ele associou a vacina contra coronavírus à infecção por HIV, o que é falso. “A responsabilidade é principalmente desse presidente da República, desse serial killer, que tem compulsão de morte e continua a repetir tudo que fez anteriormente. Agora, com a declaração de que a vacina pode proporcionar AIDS ele demonstra que não tem respeito nenhum pela vida dos brasileiros”, disse Calheiros, que chamou o presidente de homicida. “Bolsonaro agiu como um missionário enlouquecido para matar o próprio povo.”

O vídeo em que Bolsonaro mente sobre a vacina foi retirado do Facebook, do Instagram e do YouTube. Desta última plataforma o presidente ainda foi suspenso por uma semana. A intenção dos senadores opositores ao presidente é que ele sofra a mesma sanção que o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, suspenso depois de incentivar a invasão do Capitólio e reincidir diversas vezes na divulgação de fake news.

Parlamentares governistas protestaram contra o relatório aprovado. “É uma peça claramente de vingança, com requintes de crueldade, de ódio, com interesses de poder”, disse o senador Eduardo Girão (Podemos-CE). Já o primogênito do presidente, Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), disse que o documento é uma aberração jurídica e minimizou o resultado das apurações. “O maior escândalo que foi levantado aqui é de uma vacina que não foi comprada.”

Com o fim dos trabalhos, os senadores montaram uma espécie de observatório para acompanhar o andamento das denúncias apresentadas. A cúpula da CPI, formada por Randolfe, Renan e pelo presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM), tentará conseguir uma agenda com representantes do Tribunal Penal Internacional. A ideia é levar o caso a Haia para que Bolsonaro seja julgado por crime contra a humanidade.

Os senadores Randolfe, Omar e Renan, durante a última reunião da CPI da Pandemia (Adriano Machado / Reuters)

Depois de seis meses de atuação, a Comissão chega ao fim com um projeto de escapar das práticas bárbaras em que o país mergulhou, como discursou o senador Renan Calheiros. “É passada a hora de encerrar esta noite macabra que enluta o país dolorosamente”, concluiu, antes de os senadores fazerem um minuto de silêncio por quem não teve como se defender dos erros e omissões do Governo: os 606.000 mortos pela covid-19.

Afonso Benites, de Brasília, DF e Beatriz Jucá, de Fortaleza, CE, para o EL PAÍS, em 26.10.21.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

A última de Bolsonaro

Algumas das mentiras que o presidente conta soariam só ridículas, não fossem tão perigosas no contexto de uma pandemia que já matou mais de 605 mil brasileiros

 O presidente Jair Bolsonaro não é o primeiro mandatário a mentir. Seguramente, não haverá de ser o último. Entretanto, como nenhum outro antes dele, Bolsonaro alçou a desinformação à categoria de método de governo. Distorções de fatos amplamente assimilados como tais ou desinformação da mais desavergonhada têm servido ao presidente da República como instrumentos de mobilização e propaganda eleitoral.

De tão contumazes, por vezes estapafúrdias, algumas das mentiras que Bolsonaro conta soariam apenas ridículas não fossem extremamente perigosas no contexto de uma pandemia que já matou mais de 605 mil brasileiros. No que pode ser classificado como seu mais grave ataque à vacinação contra a covid-19 até agora, Bolsonaro afirmou durante uma live no dia 21 passado – sem apresentar qualquer dado confiável que sustentasse a afirmação – que indivíduos que receberam as duas doses da vacina no Reino Unido estariam “desenvolvendo a síndrome de imunodeficiência adquirida muito mais rápido do que o previsto”. Do seu jeito peculiar, Bolsonaro afirmou que a vacina contra a covid-19 causa aids. A isso ele se prestou para disseminar dúvidas sobre a segurança das vacinas a pretexto de defender o que entende ser a “liberdade individual” dos cidadãos que não querem receber o imunizante contra o coronavírus. O Comitê de HIV/Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia publicou nota desmentindo categoricamente o presidente da República. 

Das duas, uma: ou Bolsonaro não sabia que a associação entre a imunização completa contra a covid-19 e a infecção pelo vírus HIV não tem qualquer fundamento, demonstrando inaceitável ignorância para um presidente da República, ou sabia – e mesmo assim divulgou o embuste para confundir os cidadãos, com objetivos inconfessáveis. Seja como for, Bolsonaro deu a entender que sabia que a tal “informação” seria contestada: “Vou só ler a notícia aqui, não vou comentar. Já falei sobre isso no passado e apanhei muito. Posso ter problemas com a minha live”, disse o presidente. De fato, teve.

Pela primeira vez, o Facebook e o Instagram retiraram o conteúdo da transmissão de Bolsonaro de suas plataformas no dia 24. O presidente não se manifestou sobre a exclusão do vídeo. E nem precisava. A Bolsonaro interessa lançar suas mentiras no ar e deixar que elas ganhem vida própria no submundo das redes sociais.

Muitas dessas mentiras que Bolsonaro e seu “gabinete do ódio” fazem circular ressoam apenas entre os seguidores mais fanáticos do presidente, uma parcela cada vez menor da população, ainda que muito barulhenta. Para o bem do País, o discurso antivacina de Bolsonaro é mal recebido pela população em geral. A cultura vacinal tem raízes profundas no Brasil. O número de cidadãos que têm acorrido aos postos de vacinação fala por si só.

Como mostrou a reportagem do Estado, sempre haverá uma parcela da sociedade que não levará em consideração a verdade factual para formar opinião. Não obstante o diligente trabalho de serviços de checagem como o Estadão Verifica, muitas mentiras e teorias conspiratórias compartilhadas nas redes sociais, por mais absurdas que pareçam, são – e continuarão sendo – levadas a sério por uma parte da população. Quanto a isso pouco há de ser feito, haja vista que aqui se está na esfera das paixões. Já exigir responsabilidade de Bolsonaro no exercício da Presidência é dever inarredável dos Poderes constituídos.

O fato de ter amesquinhado o cargo que ocupa não exime Bolsonaro de ser chamado às falas por seus atos e palavras, ao contrário. Em boa hora, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) pediu à CPI da Covid que envie ao Supremo Tribunal Federal uma compilação das falsas alegações de Bolsonaro sobre as vacinas ditas em suas lives, a fim de que constem no inquérito que tramita na Corte sobre a disseminação de notícias falsas.

Não há registro de um chefe de Estado e de governo que tenha degradado a força da palavra da Presidência da República de forma irreparável como logrou Bolsonaro. Quase nada do que ele diz ou escreve é digno da confiança dos cidadãos que não têm por hábito brigar com a realidade. Mas até para um mitômano como ele há limites que não podem ser ultrapassados impunemente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 26 de outubro de 2021

Eduardo Leite se perfila como candidato pacificador enquanto desafia João Doria no ninho tucano

Governadores disputam prévia do PSDB, que serão definidas em novembro. Gaúcho aponta fraude na busca pela vaga do seu partido, que abre espaço para construir a candidatura de terceira via

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, durante entrevista nesta segunda-feira. (Foto: Gustavo Rampini).

O PSDB está em intensa campanha pelas prévias do partido que serão definidas entre os dias 21 e 28 de novembro (se houver segundo turno), para começar a construir a ansiada terceira via pela presidência da República. Os tucanos apostam que há uma avenida aberta entre os eleitores que não querem votar na reeleição do presidente Jair Bolsonaro nem na volta do ex-presidente Lula da Silva, líderes nas pesquisas até agora. Assim, o partido de centro, que já oscilou à esquerda e à direita, aposta em seus quadros mais destacados durante a pandemia. De um lado, o governador de São Paulo, João Doria Jr, visto com favoritismo inicialmente por seu esforço para trazer a vacina contra a covid-19 para o Estado paulista, a despeito da resistência do Governo Bolsonaro.

De outro, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, elogiado por ter colocado em dia o pagamento de salários atrasados de servidores ao longo do seu mandato, e por ter dado curso a privatizações de companhias locais para sanear as finanças do Estado. O gaúcho, de 36 anos, que já foi prefeito de Pelotas, anuncia que pretende ser o polo “pacificador” de uma eleição que, segundo ele, vive dois extremos com Lula e Bolsonaro. “Não podemos ter uma terceira via de polarização”, disse ele nesta segunda em entrevista ao programa Amarelas Onair, da revista Veja, do qual o EL PAÍS participou.

Por fora, corre o ex-prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, mas que fica na rabeira na peleja entre os dois primeiros. Tanto Leite como Doria estão confiantes de suas vitórias pela vaga de candidato tucano. Se Leite é um rosto novo na política nacional —e, portanto com uma imagem menos desgastada—, Doria conquistou o capital político de ter liderando o movimento dos governadores pela vacina enquanto Bolsonaro bloqueava o intento.

Cordiais mutuamente em aparições públicas, os dois governadores vivem um embate forte nos bastidores em busca dos votos de lideranças e filiados tucanos. Correligionário de Leite acusam um grupo de prefeitos recém-convertidos ao PSDB de jogo desleal ao querer votar mesmo tendo migrado para o partido em julho, após o prazo permitido, de 31 de maio. São 92 prefeitos mais alinhados a Doria, que estariam na pendenga. “É um questão que precisa ser apurada. Há farta documentação que apresenta a filiação [desses prefeitos] a partir de 20 de julho”, disse Leite nesta segunda.

O governador gaúcho não descarta a judicialização das prévias se os votos desse grupo forem contados. Doria, por sua vez, já disse que essa questão diz respeito ao diretório nacional, mantendo distância das acusações de fraude. Apesar das bicadas, os dois concorrentes pisam em ovos para tecer críticas um ao outro, para não inflamar (ainda mais) os ânimos no partido. “Prefiro acreditar que não foi uma ação direta do governador, mas eventualmente alguém que quis mostrar serviço a revelia do candidato [Doria]”, segue ele, que vê em sua gestão e na administração de São Paulo dois trunfos importantes para a corrida eleitoral. “Mas temos estilos diferentes. Doria vai para um tipo de enfrentamento e desqualificação de seus adversários”, diz Leite, que se vê numa linha de “construção” em vez de “destruição e eliminar quem pensa diferente”.

Tanto ele, como Doria, correm o país em busca de apoio dentro e fora do partido para serem chancelados para a terceira via. Nas pesquisas, entretanto, Doria encara uma rejeição maior que seu colega por manobras passadas, jamais esquecidas pelo eleitor. Eleito prefeito da cidade de São Paulo em 2016, abandonou a prefeitura 1 ano e 3 meses depois para concorrer ao governo do Estado, traindo não só os eleitores, mas seu padrinho no tucanato, o ex-governador Geraldo Alckmin, quando mostrou disposição para flertar com a vaga à presidência. Voltou atrás, mas a rusga já estava posta. O assunto persegue Doria até os dias de hoje, como mostrou um vídeo que circulou nas redes sociais nesta segunda.

Leite, por sua vez, tem menos de 40 anos e a estampa sob medida para um público de classe média e alta do Sul e Sudeste —e para o mercado financeiro. Seguindo a cartilha das privatizações e da gestão austera, coloca as reformas tributária e administrativa como prioridades para o primeiro ano de um eventual Governo. Mas aposta em conciliar o fiscal e o social. “Precisamos focar na redução da desigualdade e do desmatamento [da Amazônia]”, defende ele.

Terceira via

Seja quem for vitorioso na disputa tucana, terá pela frente o pesado desafio de superar os demais candidatos à terceira via. O número de potenciais candidatos se multiplica à medida que a campanha eleitoral se aproxima — na verdade, ela já está posta. A última novidade é a chegada do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que deixará o DEM para se filiar ao PSD, presidido por Gilberto Kassab. Nas próximas semanas, é a vez do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, que deve se filiar ao Podemos, completando mais de 10 nomes disputando a fatia entre Lula e Bolsonaro. Segundo Andrei Roman, CEO do Atlas Político, esse porcentual já esteve em 28% há algumas semanas, mas o número caiu um pouco. A fragmentação de nomes prejudica essa terceira via. Uma projeção da Atlas mostra, por exemplo, que Moro tiraria bons votos de Eduardo Leite.

O gaúcho, porém, diz ver com cautela as pesquisas neste momento. “A eleição ainda não está na mesa das famílias, no ambiente de trabalho. Está entre nós, políticos, a crítica especializada, não entre a população que está preocupada com pandemia, com preço do gás, alimento...”. Leite bate frontalmente com os dois líderes das pesquisas, mas uma pergunta o persegue, por ter votado no passado em Bolsonaro. Em entrevista ao UOL, na última semana, ele afirmou que não se sentia culpado pela eleição do presidente. “Vamos colocar a responsabilidade nas dezenas de milhões de brasileiros que votaram no Bolsonaro?”, questionou.

Carla Jiménez, de São Paulo para o EL PAÍS, em 26.1021

Quem são os 80 alvos de pedidos de indiciamento do relatório final da CPI da Pandemia

Nova versão do documento foi apresentada pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL) após inclusão de nomes a pedido dos parlamentares. 

O presidente da comissão Omar Aziz (PSD-AM), ao centro, conversa com o vice Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e o relator Renan Calheiros (MDB-AL). (Adriano Machado / Reuters)

A CPI da Pandemia apresentou nesta terça, 26 de outubro, uma nova versão de seu relatório, contemplando pedidos de senadores para a inclusão de novos nomes em relação ao texto lido na semana passada pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL). O novo documento amplia de 68 para 80 o número de possíveis indiciamentos por crimes relacionados à gestão da crise da covid-19 no Brasil, que já matou mais de 600.000 pessoas. A lista inclui pessoas e empresas.

O presidente Jair Bolsonaro continua sendo o principal alvo dos senadores. Entre os novos nomes estão o do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), e o de seu então secretário da saúde, Marcellus Campêlo. No texto, Calheiros argumenta que houve “falta de zelo e seriedade do governador Wilson Lima e do Secretário de Saúde Marcellus Campêlo com a coisa pública, comportamento esse que resultou na morte de milhares de pessoas no Estado do Amazonas”. O senador bolsonarista Luiz Carlos Heinze (PP-RS) também chegou a ser incluído por ter defendido reiteradamente ao longo dos seis meses de trabalho da comissão remédios sem eficácia para a covid-19, mas seu nome foi retirado da lista horas depois.

O relatório da CPI vai à votação ainda nesta terça. Para ter efeito prático, o texto aprovado ainda precisa ser enviado para autoridades como a Polícia Federal, o Ministério Público e a Procuradoria-Geral da República, a quem cabe investigar e apresentar denúncias.


Veja os alvos dos 80 pedidos de indiciamento:

Segundo a mais recente versão do relatório da CPI da Pandemia

1) JAIR MESSIAS BOLSONARO

2) EDUARDO PAZUELLO – Ex-Ministro da Saúde

3) MARCELO ANTÔNIO C. QUEIROGA LOPES – Ministro da Saúde

4) ONYX DORNELLES LORENZONI – Ex-ministro da Cidadania e ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República

5) ERNESTO HENRIQUE FRAGA ARAÚJO – Ex-ministro das Relações Exteriores

6) WAGNER DE CAMPOS ROSÁRIO - Ministro-chefe da Controladoria Geral da União

7) ANTÔNIO ELCIO FRANCO FILHO – Ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde

8) MAYRA ISABEL CORREIA PINHEIRO – Secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde

9) ROBERTO FERREIRA DIAS – Ex-diretor de logística do Ministério da Saúde

10) CRISTIANO ALBERTO HOSSRI CARVALHO – Representante da Davati no Brasil

11) LUIZ PAULO DOMINGUETTI PEREIRA – Representante da Davati no Brasil

12) RAFAEL FRANCISCO CARMO ALVES – Intermediador nas tratativas da Davati

13) JOSÉ ODILON TORRES DA SILVEIRA JÚNIOR – Intermediador nas tratativas da Davati

14) MARCELO BLANCO DA COSTA – Ex-assessor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde e intermediador nas tratativas da Davati

15) EMANUELA BATISTA DE SOUZA MEDRADES – Diretora-Executiva e responsável técnica farmacêutica da empresa Precisa

16) TÚLIO SILVEIRA – Consultor jurídico da empresa Precisa

17) AIRTON ANTONIO SOLIGO - Ex-assessor especial do Ministério da Saúde

18) FRANCISCO EMERSON MAXIMIANO – Sócio da empresa Precisa

19) DANILO BERNDT TRENTO - Sócio da empresa Primarcial Holding e Participações Ltda e diretor de relações institucionais da Precisa

20) MARCOS TOLENTINO DA SILVA – Advogado e sócio oculto da empresa FIB Bank

21) RICARDO JOSÉ MAGALHÃES BARROS – Deputado Federal

22) FLÁVIO BOLSONARO – Senador da República

23) EDUARDO BOLSONARO – Deputado Federal

24) BIA KICIS – Deputada Federal

25) CARLA ZAMBELLI – Deputada Federal

26) CARLOS BOLSONARO – Vereador da cidade do Rio de Janeiro

27) OSMAR GASPARINI TERRA – Deputado Federal

28) FÁBIO WAJNGARTEN – ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) do governo federal

29) NISE HITOMI YAMAGUCHI – Médica participante do gabinete paralelo

30) ARTHUR WEINTRAUB - ex-assessor da Presidência da República e participante do gabinete paralelo

31) CARLOS WIZARD MARTINS – Empresário e e participante do gabinete paralelo

32) PAOLO MARINHO DE ANDRADE ZANOTTO – biólogo e participante do gabinete paralelo

33) ANTÔNIO JORDÃO DE OLIVEIRA NETO – biólogo e participante do gabinete paralelo

34) LUCIANO DIAS AZEVEDO – Médico e participante do gabinete paralelo

35) MAURO LUIZ DE BRITO RIBEIRO – Presidente do Conselho Federal de Medicina

36) WALTER SOUZA BRAGA NETTO – Ministro da Defesa e Ex-Ministro Chefe da Casa Civil

37) ALLAN LOPES DOS SANTOS – Blogueiro suspeito de disseminar fake news

38) PAULO DE OLIVEIRA ENEAS – Editor do site bolsonarista Crítica Nacional suspeito de disseminar fake news

39) LUCIANO HANG – Empresário suspeito de disseminar fake news

40) OTÁVIO OSCAR FAKHOURY – Empresário suspeito de disseminar fake news

41) BERNARDO KUSTER – Diretor do Jornal Brasil Sem medo, suspeito de disseminar fake news

42) OSWALDO EUSTÁQUIO – Blogueiro suspeito de disseminar fake news

43) RICHARDS POZZER – Artista gráfico supeito de disseminar fake news

44) LEANDRO RUSCHEL – Jornalista suspeito de disseminar fake news

45) CARLOS JORDY– Deputado Federal

46) FILIPE G. MARTINS – Assessor Especial para Assuntos Internacionais do Presidente da República

47) TÉCIO ARNAUD TOMAZ – Assessor especial da Presidência da República

48) ROBERTO GOIDANICH - Ex-presidente da FUNAG

49) ROBERTO JEFFERSON – Político suspeito de disseminar fake News

50) HÉLCIO BRUNO DE ALMEIDA - presidente do Instituto Força Brasil

51) RAIMUNDO NONATO BRASIL – Sócio da empresa VTCLog

52) ANDREIA DA SILVA LIMA – Diretora-executiva da empresa VTCLog

53) CARLOS ALBERTO DE SÁ - Sócio da empresa VTCLog

54) TERESA CRISTINA REIS DE SÁ - Sócia da empresa VTCLog

55) JOSÉ RICARDO SANTANA – Ex-secretário da Anvisa

56) MARCONNY NUNES RIBEIRO ALBERNAZ DE FARIA – Lobista

57) DANIELLA DE AGUIAR MOREIRA DA SILVA – Médica da Prevent Senior

58) PEDRO BENEDITO BATISTA JÚNIOR – Diretor-executivo da Prevent Senior

59) PAOLA WERNECK – Médica da Prevent Senior

60) CARLA GUERRA - Médica da Prevent Senior

61) RODRIGO ESPER - Médico da Prevent Senior

62) FERNANDO OIKAWA - Médico da Prevent Senior

63) DANIEL GARRIDO BAENA – Médico da Prevent Senior

64) JOÃO PAULO F. BARROS – Médico da Prevent Senior

65) FERNANDA DE OLIVEIRA IGARASHI – Médica da Prevent Senior

66) FERNANDO PARRILLO - Dono da Prevent Senior

67) EDUARDO PARRILLO - Dono da Prevent Senior

68) FLÁVIO ADSUARA CADEGIANI – Médico que fez estudo com proxalutamida

69) WILSON MIRANDA LIMA – Governador do Estado do Amazonas

65) FERNANDA DE OLIVEIRA IGARASHI – Médica da Prevent Senior

66) FERNANDO PARRILLO - Dono da Prevent Senior

67) EDUARDO PARRILLO - Dono da Prevent Senior

68) FLÁVIO ADSUARA CADEGIANI – Médico que fez estudo com proxalutamida

69) WILSON MIRANDA LIMA – Governador do Estado do Amazonas

70) MARCELLUS JOSÉ BARROSO CAMPÊLO – Secretário Estadual de Saúde do Estado do Amazonas à época

71) HEITOR FREIRE DE ABREU – ex-subchefe de Articulação e Monitoramento da Casa Civil e ex-coordenador Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19

72) MARCELO BENTO PIRES – Assessor do Ministério da Saúde

73) ALEX LIAL MARINHO – ex-Coordenador de logística do Ministério da Saúde

74) THIAGO FERNANDES DA COSTA - Assessor técnico do Ministério da Saúde

75) REGINA CÉLIA OLIVEIRA – Fiscal de Contrato no Ministério Da Saúde

76) HÉLIO ANGOTTI NETTO – Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, do Ministério da Saúde

77) JOSÉ ALVES FILHO – Dono do grupo José Alves, do qual faz parte a Vitamedic

78) AMILTON GOMES DE PAULA – Vulgo Reverendo Amilton, representante Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah) que, apesar do nome, é uma entidade privada e não é ligada ao governo federal

79) PRECISA COMERCIALIZAÇÃO DE MEDICAMENTOS LTDA.

80) VTC OPERADORA LOGÍSTICA LTDA

Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em 26.10.21

Brasil perde uma livraria a cada três dias.

País tem uma loja de livros a cada 96 mil habitantes – muito longe da proporção que a Unesco considera ideal, uma a cada 10 mil. "Resistentes", pequenos livreiros apostam em nichos para sobreviver nesse mercado.

Banca Tatuí, em São Paulo, se preocupa em ter um catálogo de qualidade de pequenas editoras.

"Parece um chavão, mas manter uma livraria hoje no Brasil é um ato de resistência. Não é fácil." Em tom de desabafo, a frase dita pelo livreiro, editor e escritor João Varella resume bem a situação das casas do ramo que existem hoje no Brasil. Ele próprio é um dos que nadam contra o fluxo: em 2014, ele abriu a Banca Tatuí, em São Paulo, e quatro anos mais tarde, quase em frente, a Sala Tatuí.

Enquanto isso, os números que já não eram bons só pioraram. De tempos em tempos, sem periodicidade fixa, a Associação Nacional de Livrarias (ANL) faz um levantamento de quantas lojas de livro existem no país. Em 2014 eram 3.095, hoje são 2.200. Significa que, no Brasil, uma livraria encerra suas atividades a cada três dias, em média.

De acordo com Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o adequado é que haja uma livraria para cada 10 mil habitantes. No Brasil, há uma a cada 96 mil. "Temos um déficit gigantesco com relação ao número ideal que seria algo em torno de 20 mil livrarias", admite Bernardo Gurbanov, presidente da ANL.

"A formação de leitores depende mais de adequadas políticas públicas nos âmbitos da educação e da cultura do que das ações da sociedade civil", acredita ele. "Lamentavelmente, os índices que medem o desempenho escolar e os hábitos de leitura demonstram que estamos diante de um enorme fracasso institucional no que diz respeito à formação de leitores. Uma verdadeira tragédia nacional. Soma-se a isso a histórica fratura social e econômica que sofre a sociedade brasileira, fruto da desigual distribuição de renda."

Paa Gurbanov, a redução no número de livrarias no Brasil é consequência da recessão econômica e da mudança nos hábitos de consumo, após a consolidação "das novas tecnologias que possibilitaram a intensificação do comércio on-line". Sim, essa queda acentuada não necessariamente significa que o consumo de livros está ainda menor, mas também que as livrarias ganharam concorrentes de peso – as grandes plataformas de varejo digital.

Os concorrentes são ".com"

Todo esse contexto fez com que uma figura acabasse sendo valorizada por determinados nichos culturais: a do pequeno livreiro, como João Varella, capaz de indicar títulos sob medida para seu público e atender de forma calorosa, personalizada. O presidente da ANL observa que, em um cenário de fechamento de casas do ramo, é esse tipo de livraria que não só resiste, como ganha importância.

Aberta em março de 2020, Livraria Páginas se autointitula "a menor e mais charmosa" de Belo Horizonte

É o caso também da Livraria Páginas, que se autointitula "a menor e mais charmosa" de Belo Horizonte. Aberta em março de 2020, ela nasceu com a proposta de ser "uma livraria de bairro". "A maioria [dos consumidores] compra dos gigantes. O que fazemos é oferecer um atendimento personalizado. Temos um Instagram ativo com dicas literárias e fazemos lives com autores. Atendemos também com delivery. Receber bem e criar uma clientela fidelizada é o nosso propósito", diz a escritora e jornalista Leida Reis, fundadora da livraria.

Varella conta que na Banca Tatuí a preocupação está em ter um catálogo de qualidade de pequenas editoras, "que não chegam à Amazon, principalmente". "O espaço físico traz uma experiência diferente, um vendedor que entende de publicações e pode dialogar com o leitor, apontar, provocar, dizer o que ler e o que não ler. No fim das contas, o livro arma uma briga contra esse mundo algoritmizado", filosofa ele.

"A gente não tem muito como concorrer [com as gigantes do comércio eletrônico], por isso a gente afirma outro mundo: o mundo que elas não oferecem, que é o mundo do olho no olho e das muitas dimensões de vivências que uma livraria de rua oferece", argumenta o livreiro Eduardo Ribeiro da Luz Fernandes, da Livraria Casa da Árvore, aberta no ano passado no Rio de Janeiro.

"Para isso, também é preciso atacar nichos onde as pessoas são mais conscientes desse processo. Se a gente entrar na lógica de trabalhar com os mais vendidos, não temos como sobreviver."

Aposta é no pequeno livreiro, como João Varella, da Sala Tatuí (foto), capaz de indicar títulos sob medida para seu público e atender de forma calorosa

Pequenos catálogos, com curadoria

Quando voltou ao Brasil, após viver na Holanda, Carolina de Albernaz Nesi lamentou o fato de sua cidade, Vinhedo, no interior paulista, não contar com nenhuma livraria. "Todas haviam fechado", relata.

Ao longo de um ano ela fantasiou e planejou como abrir um negócio do tipo – na Europa, ela havia criado uma livraria voltada a expatriados na cidade de Delft, onde vivia.

Em maio deste ano, finalmente a Duli Delft abriu as portas em Vinhedo. Para atrair a freguesia, ela aposta em um catálogo pequeno, mas bem selecionado. E alguns itens complementam a ideia do livro – de chocolates a vinhos. "Meu propósito era criar uma experiência para aqueles que frequentam a Duli", conta. "Nosso títulos promovem a curiosidade, a cultura e o conhecimento."

Em meio a tantas plataformas on-line, Nesi afirma que "comprar numa pequena livraria passa a ser uma escolha do cliente, que sabe claramente qual é o valor agregado de entrar naquela livraria específica".

A livraria Duli Delft, em Vinhedo, aposta em um catálogo pequeno, mas bem selecionado

No fundo, o que esses livreiros apostam é numa consciência do consumidor – da mesma maneira que há espaço, afinal, para aqueles que escolhem alimentos mais sustentáveis nas gôndolas do supermercado ou preferem adquirir comida diretamente do produtor.

"A gente tenta acessar um público mais consciente, que entende que comprar no conforto de casa, com um preço muito baixo, pode ter consequências terríveis para o mercado editorial", comenta o livreiro Fernandes, da Casa da Árvore.

 "Além disso, sempre procuramos a persuasão positiva, com campanhas do tipo 'vem pra livraria' e 'viva a livraria de rua'", completa. "O importante é reforçar a ideia de que a compra consciente é uma maneira de manter os pequenos comércios vivos."

Nessas histórias, tem também uma pitada de idealismo – e muito amor pelos livros. Fernandes costuma dizer que visitar uma livraria de rua é uma experiência tão subjetiva quanto abrir um livro físico. "Algo que não existe em outros suportes", defende.

"Uma livraria independente não deixa ninguém rico, obviamente. Mas traz muitas experiências interessantes e aponta um caminho mais humano para a cidade", argumenta Fernandes. "Vale a pena manter uma livraria para mostrar que tipo de sociedade queremos construir."

Deutsche Welle Brasil, em 26.10.21

Eduardo Leite disse para a Veja que a homofobia de Jair Bolsonaro denota alguma incerteza sobre sua própria sexualidade:

“É uma fixação curiosa e, no mínimo, instigante. É uma fixação. A todo momento a piadinha, a todo momento uma brincadeira homofóbica, que denota e gera até especulação de algum tipo de incerteza ou de algum tipo de problema pessoal. 


Foto: Ana Maria Campos / O Antagonista

"Eu não quero fazer especulações. Mas a fixação no assunto gera, sem dúvida nenhuma, alguma especulação sobre… Eu entendo, uma pessoa é de outro tempo, de outro tipo de formação, que tenha suas próprias crises, suas próprias dificuldades”.

Em seguida, ele acrescentou:

“Estamos cansados de ver políticos que se apresentam de um jeito e depois a gente descobre que são outra coisa”, afirmou. “O importante é que para mim é algo bem resolvido e eu me apresento por inteiro. Se alguém tem algo a esconder, pior, com rachadinhas, com mensalão do outro lado, com petrolão, com superfaturamento de vacinas na aquisição. A esconder têm eles. Eu não tenho nada a esconder. Minha vida pessoal não deveria ser alvo de debate público. Mas, se é para ser, eu me apresento por inteiro. Não escondo nada.”

Publicado originalmente por O Antagonista, em 26.10.21.

CPI da Covid: o que pode acontecer com Bolsonaro após a divulgação do relatório

As suspeitas de crime comum serão encaminhadas à Procuradoria-Geral da República (PGR), que avaliará uma possível denúncia criminal contra Bolsonaro.

 Já as de crime de responsabilidade vão para análise da Câmara dos Deputados, para possível abertura de processo de impeachment. 

Por fim, as acusações de crimes contra a humanidade serão enviadas ao Tribunal Penal Internacional (TPI), onde o presidente poderia sofrer um processo.

CPI investigou atos e omissões do governo Bolsonaro durante a pandemia (Reuters)

O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, apresentado na semana passada pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), recomenda que o presidente Jair Bolsonaro seja investigado e, eventualmente, responsabilizado em três frentes devido à gestão do seu governo na pandemia de coronavírus: por crimes comuns, por crimes de responsabilidade e por crimes contra a humanidade.

O relatório está sendo votado nesta terça (26/10) pelo Senado. Caso ele seja aprovado pela maioria da comissão, essas acusações contra o presidente serão analisadas em três órgãos.

As suspeitas de crime comum serão encaminhadas à Procuradoria-Geral da República (PGR), que avaliará uma possível denúncia criminal contra Bolsonaro. Já as de crime de responsabilidade vão para análise da Câmara dos Deputados, para possível abertura de processo de impeachment. Por fim, as acusações de crimes contra a humanidade serão enviadas ao Tribunal Penal Internacional (TPI), onde o presidente poderia sofrer um processo.

No entanto, juristas ouvidos pela BBC News Brasil consideram que os três caminhos oferecem obstáculos hoje para que o presidente de fato venha a ser punido por possíveis crimes durante a pandemia de coronavírus, doença que já matou mais de 600 mil pessoas no Brasil desde março de 2020.

Durante viagem ao Ceará, enquanto Calheiros lia seu relatório na CPI, Bolsonaro negou qualquer responsabilidade nas mortes.

"Como seria bom se aquela CPI tivesse fazendo algo de produtivo para nosso Brasil. Tomaram tempo de nosso ministro da Saúde, de servidores, de pessoas humildes e de empresários", criticou o presidente.

"Nada produziram, a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas sabemos que não temos culpa de absolutamente nada, fizemos a coisa certa desde o primeiro momento", disse ainda.

Entenda a seguir o que pode acontecer concretamente contra o presidente, caso o relatório seja aprovado pela maioria da CPI, nos três tipos de crimes que Bolsonaro é citado no texto de Calheiros.

1) Acusações de crimes de responsabilidade

Calheiros ressalta em seu relatório que, entre os crimes de responsabilidade previstos na legislação brasileira, está o ato de atentar contra o exercício dos direitos sociais e contra a probidade na administração.

Além disso, ele destaca que o direito à saúde é previsto como um dos direitos sociais no artigo 6º da Constituição, enquanto o artigo 196 estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Relatório de Renan Calheiros ainda precisa ser aprovado por maioria da CPI; votação ocorre na próxima semana. (Ag. Senado)

Na avaliação de Calheiros, porém, a investigação da CPI mostrou que a gestão de Bolsonaro agiu em sentido contrário: ao invés de proteger a vida dos brasileiros da covid-19, o presidente teria contribuído para o agravamento da pandemia ao demorar a comprar vacinas, incentivar o uso de medicamentos sem comprovação científica, promover aglomerações, entre outras posturas.

"A minimização constante da gravidade da covid-19, a criação de mecanismos ineficazes de controle e tratamento da doença, com ênfase em protocolo de tratamento precoce sem o aval das autoridades sanitárias, o déficit de coordenação política, a falta de campanhas educativas sobre a importância de medidas não farmacológicas, o comportamento pessoal contra essas medidas, e, por fim, a omissão e o atraso na aquisição de vacinas e a contratação de cobertura populacional baixa do consórcio da OMS foram algumas das condutas do Chefe do Poder Executivo Federal que incontestavelmente atentaram contra a saúde pública e a probidade administrativa", diz trecho do relatório.

Apesar das duras acusações do relator, porém, hoje parece pouco provável que elas gerem abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro. O único que pode iniciar esse procedimento é o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que atualmente mantém boa relação com presidente.

E, a partir dessa aliança com Lira, o Palácio do Planalto construiu uma base de apoio entre os deputados do chamado Centrão (siglas de centro-direita de comportamento mais fisiológico), sustentada pela distribuição de cargos para indicados desses parlamentares e pelo envio de verbas federais para investimentos em seus redutos eleitorais. Com isso, hoje o presidente parece reunir o mínimo de 172 votos na Câmara necessários para barrar a aprovação de um processo de impeachment.

Outro elemento que reduz as chances desse processo ser iniciado é o fato de os protestos de rua realizados ao longo desse ano pedindo a cassação do presidente não terem reunidos um público tão grande quantos os atos que pressionaram pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016.

Já as pesquisas de opinião têm indicado que o governo Bolsonaro é reprovado pela maioria da população, mas ainda é bem avaliado por cerca de um terço dos brasileiros — patamar de aprovação superior ao que Dilma tinha quando foi cassada.

2) Acusações de crimes comuns

Para Calheiros, as condutas de Bolsonaro também podem ser enquadradas em sete crimes comuns, previstos no Código Penal.

São eles: epidemia com resultado de morte (por suspeita de propagar o vírus); infração de medida sanitária preventiva (por realizar aglomerações e não usar máscara); charlatanismo (devido ao incentivo de uso de medicamentos sem eficácia), incitação ao crime (por incentivar aglomeração e o não uso de máscara); falsificação de documento particular (por ter apresentado uma falsificação como sendo um documento oficial do Tribunal de Contas da União que provaria haver um excesso na contabilização de mortes por covid-19); emprego irregular de verbas públicas (por uso de recursos públicos na compra de medicamentos ineficazes); e prevaricação (por supostamente não ter mandado investigar denúncias de corrupção na compra de vacinas).

Caso o relatório seja aprovado, os elementos que baseiam essas acusações serão encaminhadas à PGR, pois o procurador-geral da República, Augusto Aras, é a única autoridade que pode apresentar uma denúncia criminal contra o presidente no Supremo Tribunal Federal (STF).

Aras é visto como aliado de Bolsonaro e hoje parece improvável que o denuncie, já que a PGR tem arquivado diversas queixas-crimes que já foram apresentadas solicitando a investigação criminal de Bolsonaro por sua conduta na pandemia.

A PGR, por exemplo, já arquivou pedido de investigação devido ao não uso de máscara por entender que isso configura infração administrativa, sujeita a multa, e não um crime.

O órgão também recusou pedido de investigação por causa das aglomerações provocadas pelo presidente. Segundo a PGR, Bolsonaro só poderia ser processado por disseminar coronavírus se estivesse contaminado com a doença e contrariasse ordem médica para se isolar.

Protesto em Brasília contra as mais de 600 mil mortes por covid (Reuters)

Por outra lado, a PGR já abriu inquérito para investigar se Bolsonaro prevaricou ao não tomar providências após ser informado pelo deputado Luiz Miranda (DEM-DF) de supostas ilegalidades no contrato para compra da vacina indiana Covaxin. A investigação está em andamento.

Quanto a suspeitas de crimes pelo incentivo de Bolsonaro ao chamado "tratamento precoce" (uso de medicamentos sem eficácia contra covid-19), Aras informou ao STF em junho que havia iniciado uma apuração preliminar para avaliar a abertura de investigação. Críticos de Aras, porém, o acusam de usar esse tipo de procedimento para responder a pressões para investigar Bolsonaro sem de fato adotar medidas concretas contra o presidente.

Para o criminalista Pierpaolo Bottini, professor da Universidade de São Paulo (USP), é difícil cravar que Aras não dará qualquer encaminhamento as acusações do relatório da CPI.

"Não é só uma avaliação política, tem uma avaliação jurídica que ele terá que fazer. Ele vai ter que motivar (justificar juridicamente) seja qual for a decisão dele. Se tiver muito subsídio (sustentando as acusações), também é difícil ele deixar de dar qualquer encaminhamento", acredita.

Segundo Bottini, há um outro caminho jurídico para Bolsonaro ser denunciado no STF. Em caso de omissão da PGR, ou seja, se o órgão demorar para dar alguma resposta ao relatório da CPI, as próprias vítimas da pandemia poderiam processar o presidente por meio de uma ação penal privada subsidiária da pública.

A Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico) disse à BBC News Brasil que de fato analisa essa possibilidade. A organização apresentou em junho à PGR um pedido de investigação contra Bolsonaro, mas a análise desse pedido tem transcorrido em sigilo e a própria Avico enfrenta dificuldades para obter informações sobre seu andamento.

Eventual apresentação de uma ação contra Bolsonaro pelas vítimas da pandemia seria algo inédito. Segundo Bottini, provavelmente o STF faria uma primeira avaliação de admissibilidade (decidir se a ação está dentro dos requisitos jurídicos necessários) e depois encaminharia a denúncia para análise da Câmara dos Deputados.

O professor ressalta que a Constituição só permite que o Presidente da República seja processado após aval de 342 deputados (mesmo número necessário para abertura de um processo de impeachment).

3) Acusações de crimes contra a humanidade

Calheiros também defende em seu relatório que Bolsonaro seja investigado no Tribunal Penal Internacional (TPI), Corte sediada em Haia, na Holanda, que julga graves violações de direitos humanos, como genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

No entanto, são poucas as denúncias recebidas pelo Tribunal que de fato geram investigações - e, quando isso ocorre, os casos se alongam por muitos anos, explicou à BBC News Brasil o juiz criminal e professor da USP Marcos Zilli, estudioso do funcionamento do Tribunal Penal Internacional.

Em tese, diz ele, o TPI pode condenar criminosos a penas de 30 anos de prisão e até a prisão perpétua, mas essas punições máximas nunca foram aplicadas pela Corte.

A intenção inicial de Calheiros era acusar o presidente de crime de genocídio contra populações indígenas, mas essa ideia foi abandonada devido à oposição de outros membros da CPI. Com isso, a proposta do relator é enviar ao TPI duas acusações de crimes contra a humanidade por parte do presidente.

Esses crimes estão previstos no Tratado de Roma, incorporado ao direito brasileiro desde setembro de 2002.

Uma das acusações propostas por Calheiros sustenta que Bolsonaro cometeu crime contra a humanidade a praticar "ato desumano que afete gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental". Isso teria ocorrido, segundo o senador, quando vidas humanas foram usadas como "cobaias" em estudos fraudulentos para aplicação de tratamentos sem eficácia contra covid-19.

Ele cita, por exemplo, a promoção do "tratamento precoce" pelo Ministério da Saúde durante a crise de falta de oxigênio em Manaus, no início de 2021. Outro argumento usado pelo senador foi o uso em massa de hidroxicloroquina pelo plano de saúde Prevent Senior. Resultados de um suposta pesquisa da empresa atestando a eficácia do remédio contra covid foram divulgados por Bolsonaro - no entanto, o estudo não havia sido autorizado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e ex-médicos da Prevent Senior acusaram o plano de fraudar os resultados.

A outra acusação é de crime contra a humanidade devido à postura do governo Bolsonaro em relação aos povos indígenas. O relatório destaca a decisão do STF de determinar em julho de 2020 a adoção de um plano emergencial pelo governo de apoio a essas populações durante a pandemia "diante das muitas falhas na política de enfrentamento à pandemia junto aos povos indígenas e da preocupação com a rápida interiorização da doença, que prenunciavam um desastre".

Ainda segundo o parecer de Calheiros, "esta CPI identifica o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro como o responsável máximo por atos e omissões intencionais que submeteram os indígenas a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição dessa parte da população, que configuram atos de extermínio, além de privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional, por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da coletividade em causa, que configura atos de perseguição".

O relatório final da CPI da covid foi lido no Senado nesta quarta-feira (Ag. Senado)

Segundo o professor Marcos Zilli, essas acusações, caso sejam realmente apresentadas pela CPI ao TPI, passarão por um longo processo de análise e não necessariamente vão gerar investigações internacionais contra o presidente brasileiro.

Todas as representações criminais feitas ao TPI são analisadas pela Procuradoria da Corte, órgão responsável por realizar investigações de forma independente. Um filtro inicial da procuradoria descarta casos em que os crimes denunciados claramente não são de competência do Tribunal.

Se a representação passar dessa etapa, ela é submetida a um exame preliminar, em que a Procuradoria avalia a presença dos elementos necessários à instauração de uma investigação formal. Nesse momento, é analisado, por exemplo, a gravidade dos crimes apontados na representação e se há omissão da Justiça nacional em apurar esses delitos.

"A experiência que nós temos no Tribunal Penal Internacional revelam que os casos demandam muitos anos de investigação, caso uma investigação seja instaurada, e muitos anos de processo também, caso o processo seja aberto", explica Zilli.

Na sua avaliação, a acusação envolvendo populações indígenas é a que teria mais potencial de prosperar no TPI, devido ao contexto mais amplo de ações da gestão Bolsonaro relacionadas a esses povos, como a redução da proteção aos seus territórios e falas recorrentes do presidente defendendo a exploração econômica das terras indígenas.

O TPI, inclusive, já recebeu algumas acusações contra Bolsonaro, envolvendo tanto os povos indígenas como a conduta na pandemia. Por enquanto, apenas uma relacionada aos indígenas, apresentada em 2019, avançou para a etapa de análise preliminar pela procuradoria.

Mariana Schreiber - @marischreiber, de Brasília, DF, para a BBC News Brasil. Texto atualizado em 26.10.21.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Escalada eleitoreira de Bolsonaro balança Guedes no cargo e ameaça implodir a economia brasileira

Ministro da Economia nega que tenha pedido demissão e diz que licença para furar o teto “não altera os fundamentos fiscais da economia”, mas não convenceu o mercado financeiro

Jair Bolsonaro ao lado de Paulo Guedes durante entrevista coletiva nesta sexta-feira. (Evaristo Sá / AFP)

As palavras de Paulo Guedes já não trazem mais alento aos seus antigos companheiros do mercado financeiro. O ministro da Economia enfrenta a pressão de seus pares após o Governo anunciar que vai furar o teto de gastos para financiar o novo programa Auxílio Brasil e ajudar caminhoneiros diante da alta dos combustíveis. Desta vez, o mercado não parece disposto a perdoar a quebra do pacto de apoio firmado com Bolsonaro ainda no período pré-eleitoral, no qual o então candidato se comprometia a não mexer na regra que limita as despesas públicas à inflação do ano anterior. Um divórcio lento e penoso para o país foi posto em curso, e, não por acaso, logo antes de um novo ano eleitoral.

Em mais um dia nervoso, a Bolsa de Valores de São Paulo conseguiu reverter perdas maiores e fechou em queda de 1,34%, a 106.296 pontos. Esse é o pior resultado desde 20 de novembro de 2020, quando o pregão chegou a 106.042 pontos. O dólar, que chegou a disparar para 5,71 reais no decorrer do dia, recuou 0,65%, sendo vendido a 5,55 reais. Nos bastidores do mercado financeiro, analistas afirmam que, a partir de agora, o Brasil “virou cassino”, com todos apostando contra o país. “A especulação começará a testar os novos patamares de preço da Bolsa”, afirmou um operador do mercado, que preferiu não se identificar. O momento é de ganhar dinheiro apostando contra o real e pressionando para acelerar as privatizações. “Afinal, é bom comprar ativos na baixa. 2022 será o ano do fim de feira e preços de xepa”, disse. Não há consenso quanto a permanência de Guedes à frente da Economia. Para alguns, sem ele pode ser bem pior, mas houve quem tomasse um vinho para celebrar antecipadamente sua saída.

Trata-se de uma reação forte daqueles que utilizam o teto como bússola de futuro, num ambiente de forte incerteza política. “Sem o teto de gastos o mercado fica sem ter parâmetro”, afirma Luciano Sobral, economista-chefe da Neo Investimentos. Segundo ele, o grande choque não foi descobrir que o Congresso não tem pudor de mexer na regra fiscal, mas sim que não há defesa no Ministério da Economia. A análise corrobora a impressão daqueles que enxergam no presidente mais interesse em se reeleger do que em manter alguma estabilidade econômica no país. “A aldeia gaulesa que funcionava ali pediu as contas”, afirma o economista, em referência aos quatro membros da equipe de Guedes que deixaram o Governo após perder a batalha pelo teto.

O próprio Guedes teve de vir a público desmentir os rumores de que teria pedido demissão. E aproveitou para defender “um ajuste fiscal menos intenso”. “Não vamos deixar milhões de pessoas passarem fome para tirar 10 em política fiscal”, disse o ministro em entrevista coletiva, acompanhado do presidente Jair Bolsonaro, que declarou ter confiança absoluta de que o Guedes não fará “nenhuma aventura” na economia. Guedes amenizou o que chamou de uma “aparente briga” entre a ala política do Governo ―que defendia ampliar os recursos aos mais vulneráveis para 600 reais―, e a ala econômica ―que queria a manutenção do teto de gastos e, por isso, só via possível pagar 300 reais.

A palavra final teria sido de Bolsonaro, que defendeu um meio termo: os 400 reais que devem ser pagos aos beneficiários do novo Auxílio Brasil, programa que vai substituir o Bolsa Família, lançado pelo petista Luiz Inácio Lula da Silva há 18 anos. Guedes reforçou que desde o início da campanha já havia o plano da implementação de um programa de renda básica. A origem dos recursos seria a reforma do imposto de renda, hoje parada no Senado. O ministro reconheceu que “teve muito barulho”, fruto de uma falta de comunicação do Governo. Mas garantiu que as medidas anunciadas nesta quinta-feira não vão ferir a responsabilidade fiscal. “Do ponto de vista fiscal, não altera os fundamentos fiscais da economia brasileira. Os fundamentos são sólidos”, garantiu.

Linhas tortas

O economista Luciano Sobral ressalta que o problema não é a ampliação do novo auxílio emergencial, que ele considera necessário em um país extremamente desigual, mas a forma como ela está sendo feita. “Em nenhum momento se rediscute a redistribuição de renda. O mercado financeiro aplaudiria se o dinheiro viesse da reforma tributária, taxando os dividendos, por exemplo. O problema é que o Governo vai se endividar mais para isso.”

A preocupação é que não se sabe realmente de quanto a mais será esse gasto. Uma comissão especial da Câmara aprovou nesta quinta-feira a regra da correção do teto de gastos embutida na PEC dos Precatórios, apresentada para determinar um limite para as despesas com as dívidas da União reconhecidas pela Justiça. Caso os deputados e senadores aprovem essa proposta, estarão liberados mais cerca de 84 bilhões de reais além do teto estabelecido para despesas em 2022. E a expectativa é de que esse valor fique ainda maior, pois a medida deve ganhar emendas parlamentares no caminho rumo à aprovação. “Onde passa 80 bilhões, pode passar bem mais. Precisamos ter um freio, que seria o ministro da Economia. Mas sabemos que Guedes não vai fazer esse papel”, diz Sobral.

André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos, concorda. “Tanto faz se será um real ou 1 trilhão acima do teto, o problema é que, sem o teto de gastos, não temos nada para regular essa dinâmica. Parte do gasto de auxílio vai ser determinado pelos parlamentares e não sabemos o que vai ser o montante total”, argumenta. O economista se recusa a acreditar que o plano de distribuir 400 reais seja simplesmente populismo de Bolsonaro. “Estamos falando de pessoas que estão revirando o lixo atrás de comida, comendo restos de ossos”, ressalta. Ele explica que o problema não é o dinheiro, mas a falta de planejamento para poder dar apoio aos mais vulneráveis. A reforma tributária do imposto de renda, que promete aumentar a arrecadação, seria uma solução. “A reforma foi anunciada com destaque, enfrentou críticas, foi aprovada na Câmara e, quando chega no Senado, morre. Bolsonaro está vendo que a situação da população está muito ruim, mas ele precisa tomar uma atitude política, que vem com um ônus. E ele não quer ter esse ônus”, diz Perfeito.

O economista lembra que o teto de gastos foi uma medida emergencial num momento em que o país estava traumatizado após o impeachment de Dilma Rousseff, mas nunca foi uma medida adequada, porque traz muita “rigidez para as contas públicas”. Agora, a forma como o teto de gastos está sendo abandonado, sem discussão, incomoda até críticos mais ferrenhos do Governo. “Guedes criou o teto de gastos endógeno. Quando os gastos batem no teto e o Governo quer gastar mais, eleva-se a altura do teto. É bestial! Se eu soubesse que ia ser assim não teria perdido tanto tempo criticando o teto de gastos”, disse o economista José Luis Oreiro. Ele defende como alternativa ao limite de endividamento a utilização do “resultado primário ajustado pelos ciclos econômicos”. “Essa metodologia foi desenvolvida pela Secretaria de Política Econômica em 2015, na gestão do economista Manuel Pires, e é usada pela União Europeia, Alemanha, Espanha e outros. Essa é a maneira civilizada e moderna de se fazer política fiscal, ao contrário desse teto fiscal anacrônico que só existe no Brasil”, disse.

Frederico Mazzuchelli, economista e ex-secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, diz que o problema é justamente o teto de gastos. “Tem sentindo, em um país como o Brasil, manter os gastos com saúde e educação constantes? Não tem sentido. Não fosse o auxilio emergencial teria ainda mais gente morrendo”, diz. “Mas aí eles colocam no meio disso tudo o perigo da dívida pública. A dívida pública pode crescer e não causar problema nenhum, em moeda soberana.”

Para Mazzuchelli, o furo no teto já era esperado. “Desde o início sabemos que o teto não vai aguentar, ainda mais com a pandemia”, diz. “O problema não é o teto, mas a regra fiscal, que é inadequada. Rico paga menos imposto que pobre.” Por isso, o economista afirma que a estratégia deve ser outra. “É preciso haver uma uma regra inteligente e justa, separar despesa corrente do que é investimento e melhorar a tributação. O mercado enfiou isso na cabeça de todo mundo, dizendo que o teto é sagrado.”

REGIANE OLIVEIRA e MARINA ROSSI, de São Paulo para o EL PAÍS, em 22.10.21

Acuado, Bolsonaro exibe Guedes e resgata tema da privatização da Petrobras para tentar acalmar o mercado

Após alta do dólar e demissões, mandatário aparece com ministro em pleno domingo para argumentar que o furo do teto de gastos não altera a política de austeridade. Semana começa com incerteza sobre a reação dos investidores e expectativa de anúncios de novos nomes da Economia


Bolsonaro e Guedes durante coletiva de imprensa na sexta-feira. (Ueslei Marcelino / Reuters)

Antecipando mais uma semana que promete ser de pressão do mercado, o presidente Jair Bolsonaro saiu às ruas em pleno domingo ao lado do ministro da Economia, Paulo Guedes, para tentar contornar a mais recente crise gerada pelo anúncio de que o Governo federal vai furar o teto de gastos. Dois dias depois de virem a público negar rumores de queda do ministro, o presidente e seu auxiliar voltaram a defender a medida como forma de subsidiar o programa Auxílio Brasil, que substituirá o Bolsa Família, e ajudar caminhoneiros diante da alta dos preços —uma justificativa eleitoreira que levou à demissão de quatro nomes importantes da pasta e ainda fez com que o dólar disparasse na sexta-feira.

Em conversa com jornalistas em Brasília, Guedes tirou da manga a proposta de privatização da Petrobras. Segundo o ministro, a petroleira deveria seguir o mesmo caminho da Eletrobras e dos Correios, que estão sendo desestatizados em dois processos, porém, muito criticados por economistas e analistas do mercado financeiros. “Só o BNDES tem uma fortuna, bilhões e bilhões em ações da Petrobras. Se formos para o Novo Mercado [segmento nobre da Bolsa, onde estão as empresas com alta governança corporativa], criamos entre 100 e 150 bilhões [de reais] de riqueza para os brasileiros. Vamos usar esse dinheiro para ajudar os mais frágeis”, defendeu Guedes.

O ministro tentou mais uma vez argumentar que a quebra do pacto fiscal não altera a agenda econômica que defendeu na campanha que levou Bolsonaro a ser eleito em 2018. “Eu sou um defensor do teto, eu vou continuar defendendo o teto, eu defendo as privatizações”, afirmou, dizendo que o Governo precisa “flexibilizar um pouco” para “atender a população mais vulnerável”. Em clima eleitoral, atribuiu ao Senado a culpa pela falta de recursos para ampliar os programas sociais, uma vez que esse dinheiro deveria vir da reforma tributária do imposto de renda. A medida, aprovada na Câmara do aliado Arthur Lira (PP-AL), encontrou uma barreira na Casa comandada por Rodrigo Pacheco (MG), que acaba de se filiar ao PSD de olho em 2022 e que nos últimos meses engrossou o coro contra ataques de Bolsonaro contra o sistema de votação e a democracia.

Por sua vez, Bolsonaro afirmou que não tem responsabilidade pelo avanço dos preços dos combustíveis e ainda alertou que novas altas virão nesta semana. “Teremos aí, ao que tudo indica, reajuste nos combustíveis. Não precisa ter bola de cristal nem informação privilegiada. É só ver o preço do barril de petróleo lá fora e o comportamento do dólar aqui dentro”, disse aos jornalistas, logo após afirmar que não vai interferir no preço dos combustíveis. “Isso já foi feito no passado e não deu certo.”

Bolsonaro afirmou que apenas a Petrobras tem condições de mexer no preço e como se trata de um “monopólio”, a empresa é “praticamente independente”. “Eu indico o presidente [da estatal]. Nada além disso”, afirmou. Em fevereiro deste ano, o mandatário colocou o general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa, no lugar de Roberto Castello Branco no comando da Petrobras, argumentando que “jamais” iria intervir na empresa e em sua política de preços, mas que o povo não podia “ser surpreendido com certos reajustes”. Depois, mudou o discurso: “É para interferir mesmo, eu sou o presidente”, disse em maio.

Desde então, o consumidor continuou sendo surpreendido com a alta dos preços nos combustíveis. Na semana passada, dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) mostraram que o valor do litro da gasolina comum avançou 0,6% para 6,361 reais, em relação à semana anterior. Diesel e etanol também subiram. O preço máximo da gasolina chegou a 7,469 reais. Desde janeiro, a gasolina comum já acumula uma alta média 35,5%.

Bolsonaro culpa o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), um tributo estadual que incide sobre os combustíveis, pela alta. E ressalta que há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão dos Estados esperando ser julgada no Supremo Tribunal Federal. “O Governo federal mantém os impostos [PIS/Cofins] congelados desde 2019, o que não acontece com o ICMS”, afirma. A equipe econômica de Bolsonaro defende que os Estados fixem o valor do ICMS ou que ele seja pago nas refinarias e não nos postos de gasolina (onde o valor é mais caro). “Os governadores ganham cada vez que sobe o preço [do combustível]. É injusto”, afirmou o presidente, que destacou o fechamento dos Estados para tentar conter a pandemia como outra das razões da crise econômica. “Sabemos agora que o preço do ‘fique em casa, a economia a gente vê depois, chegou’”, declarou, insistindo no discurso que o levou a CPI da Pandemia a imputar a ele a suspeita de nove crimes, incluindo contra a humanidade, pela gestão da crise sanitária que matou mais de 600.000 brasileiros.

Bolsonaro reafirmou a “total confiança” em Guedes para espantar rumores de troca na pasta. “Foi sensacional o trabalho dele em 2019 e melhor ainda em 2020″, disse, exagerando dados para ressaltar os feitos à da Economia. “Terminamos 2020 com mais carteira assinada do que em 2019 graças à equipe econômica”, destacou o presidente. Dados do IBGE mostram, no entanto, que o país terminou o ano de 2019 com 33,2 milhões de brasileiros com carteira assinada. No ano seguinte, esse número caiu para 30,6 milhões.

O ministro da Economia ressaltou que “o Brasil vai crescer mais de 5% neste ano”, apontando estimativa semelhante à feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) —que, entretanto, pirou a projeção para o país em seu último relatório. “Essa história de que o Brasil não vai crescer é narrativa política”, disse. Guedes se empolgou no discurso contra adversários políticos. “Ele [Bolsonaro] é um político popular, mas não é populista. Tem muito político aí candidato à Presidência, falando [em auxílio de] 600, 700, 800 [reais]. Mas eles quebram o Brasil e não fizeram esse auxílio emergencial. Eles quebraram o Brasil e não tiveram coragem de taxar o super-ricos”. Omitiu, no entanto, que o auxílio emergencial da forma como foi aprovada é um plano do Congresso Nacional, e que o imposto para o super-ricos, uma demanda da sociedade civil, sequer foi mencionado em seu projeto de reforma tributária.

Além da expectativa sobre a reação do mercado às aparições e falas de Guedes e Bolsonaro desde sexta, esta semana começa com a espera do anúncio de novos nomes de auxiliares da Economia. Dos quatro cargos vagos em protesto contra o furo do teto de gastos, apenas dois tiveram os substitutos confirmados: o economista Paulo Valle, que será o novo secretário do Tesouro Nacional, e Esteves Colnago, novo secretário do Tesouro e Orçamento.

REGIANE OLIVEIRA e DANIELA MERCIER, de São Paulo para o EL PAÍS, em 24.10.21

Facebook exclui live em que Bolsonaro relaciona falsamente vacina a aids

Vídeo também foi excluído do Instagram. É a primeira vez que empresa suprime live do presidente. Declaração mentirosa com o objetivo de alimentar paranoia contra vacinas anticovid provocou repúdio de médicos e políticos.

Bolsonaro tem feito declarações contra vacinas desde o ano passado. Ele também se recusa a tomar qualquer imunizante contra a covid-19

O Facebook apagou na noite deste domingo (24/10) a última live semanal do presidente Jair Bolsonaro, transmitida na quinta-feira. O vídeo também foi excluído do Instagram, que pertence à empresa.

Em nota, o Facebook afirmou que as políticas da plataforma "não permitem alegações de que as vacinas de covid-19 matam ou podem causar danos graves às pessoas."

O motivo da exclusão foram declarações de Bolsonaro que associaram falsamente as vacinas contra covid-19 ao risco de desenvolver aids.

Esta foi a primeira vez que o Facebook excluiu uma live semanal de Bolsonaro.

Até o último fim de semana, a empresa só havia se limitado a apagar, em março de 2020, um vídeo em que Bolsonaro  aparecia afirmando falsamente que a cloroquina era uma "cura" contra a covid-19. YouTube e Twitter também já excluíram ao longo da pandemia vídeos em que o presidente aparecia fazendo declarações falsas.

No entanto, a live da última quinta ainda permanecia no YouTube na manhã desta segunda-feira.

Mentira sobre aids

No vídeo da última quinta-feira, Bolsonaro leu um texto afirmando que vacinados com as duas doses contra a covid-19 estariam desenvolvendo a "síndrome da imunodeficiência adquirida" - o nome oficial da aids - "mais rápido do que o previsto" e que tal conclusão era supostamente apoiada em "relatórios oficiais do governo do Reino Unido".

No entanto, não há estudos do governo do Reino Unido que mencionam tal risco. Entidades médicas e cientistas imediatamente desmentiram o presidente em redes sociais.

A notícia falsa citada por Bolsonaro foi publicada originalmente pelos sites Stylo Urbano e Coletividade Evolutiva, este último um site antivacinas que já veiculou fake news ao longo da pandemia. Os dois sites se basearam numa página em inglês conhecida por espalhar teorias conspiratórias.

O site Aos Fatos apontou que os textos divulgados por Stylo Urbano e Coletividade Evolutiva inseriram de maneira fraudulenta uma tabela que não existia em documentos oficiais das autoridades sanitárias do Reino Unido.

Bolsonaro parece ter se dado conta na live sobre o potencial de sanções das redes sociais e se limitou a ler apenas o título e recomendar aos espectadores a procurarem ler o material. "Não vou ler porque posso ter problemas com minha live."

Não é a primeira vez que Bolsonaro menciona estudos inexistentes para embasar sua agenda negacionista. 

Em fevereiro, ele mencionou um "estudo de uma universidade alemã" para afirmar que o uso de máscaras são "prejudiciais a crianças". No entanto, como a DW Brasil revelou, o tal "estudo" não passava de uma mera enquete online altamente distorcida. 

Da mesma forma, a notícia havia sido divulgada inicialmente por ativistas negacionistas antes de chegar ao presidente.

Bolsonaro tem feito declarações contra vacinas desde o ano passado. Num dos casos mais notórios, ele comemorou publicamente uma suspensão temporária de testes sobre a eficácia da Coronavac. Ele também continua se recusando a tomar qualquer vacina contra a covid-19. É o único líder de um país do G20 que ainda não o fez.

Repúdio

A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) foi um dos grupos que desmentiu a fala de Bolsonaro que associou vacinas à aids. Em nota, a entidade repudiou "toda e qualquer notícia falsa que circule e faça menção a esta associação inexistente". A nota foi endossada pela Associação Médica Brasileira (AMB).

No Twitter, a epidemiologista Denise Garrett, do Instituto de Vacinas Sabin (EUA), reiterou que nenhuma das vacinas para covid-19 aprovadas pela Food and Drug Administration (FDA) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) causam HIV. Ela também chamou Bolsonaro de "inescrupuloso", "mentiroso" e "criminoso".

A microbiologista Natalia Pasternak também usou o Twitter para afirmar que nenhuma vacina faz com que as pessoas desenvolvam aids.

Já o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) pediu à CPI da Pandemia que envie ao Supremo Tribunal Federal (STF) um requerimento com uma compilação das mentiras divulgadas por Bolsonaro na live semanal. O senador deseja que o documento seja anexado no inquérito das fake news que tramita no tribunal.

Já o relator da CPI da Pandemia, senador Renan Calheiros (MDB-AL), afirmou que Bolsonaro faz "terrorismo de Estado". "Isso não é apenas fake news, é mais do que uma simples mentira – isso é terrorismo de Estado. A Justiça precisa frear essa loucura", escreveu o senador no Twitter.

Na semana passada, o relatório da CPI da Pandemia imputou nove crimes a Bolsonaro, inclusive o de "incitação ao crime" por espalhar sistematicamente notícias falsas e incitar o desrespeito às medidas contra a pandemia. O relatório também apontou que Bolsonaro comanda uma rede de fake news com a participação de seus filhos e blogueiros bolsonaristas.

Deutsche Welle Brasil, em 25.10.21

Tripé ‘liberal’

A social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal, enquanto os ‘liberais’ atuais estão semostrando discípulos dos petistas.

O governo “liberal” de Bolsonaro inovou em seu liberalismo ao inventar um novo tripé: o bolsa eleitoral, dito “Auxílio Brasil”; o bolsa caminhoneiro, denominado por um de seus líderes de bolsa “esmola”; e o bolsa “Centrão, conhecido por emendas parlamentares dos mais diferentes tipos, além de cargos governamentais.

Tais iniciativas são todas paliativas, algumas tidas por temporárias, quando vieram para ficar, numa aparente obediência às regras legais e constitucionais; outras almejam a permanência do grupo no poder, tendo como objetivo assegurar a reeleição do atual presidente. O mesmo uso que se faz de ajuda aos pobres, embora necessária, encobre uma desmedida política, que não hesita diante de nada para alcançar as suas finalidades, a custo de produzir o desmoronamento fiscal, econômico e social do País. O que mais espanta é o desaparecimento de qualquer perspectiva de trabalho pelo bem comum, esquartejado nos interesses particulares e corporativos.

Evidentemente, os pobres devem ser ajudados. Trata-se de respeito moral com o próximo e obediência política à Constituição. Ocorre, porém, que tal argumento está sendo empregado para furar o teto da lei dos gastos públicos, como se essa infração fosse condição deste atendimento social. Atente-se para o fato de que o alvo do governo consiste em abrir a porteira para o estouro da boiada, pois, em ato imediatamente seguinte, o presidente anunciou que, com a folga obtida, criaria o bolsa esmola para os caminhoneiros e pagaria e ou aumentaria as emendas parlamentes. Ou seja, estabelece como regra a irresponsabilidade fiscal, hipoteca o futuro e aumenta a espiral dos juros e da inflação, com péssimas consequências para os investimentos privados nacionais e estrangeiros. Os mesmos pobres atendidos hoje pagarão por isso amanhã.

Acontece que o governo precisa seguir o seu novo tripé. Poderia, ao contrário do que faz, não dar mais nenhuma bolsa Centrão, transferindo estes recursos para os mais necessitados. Poderia reduzir os subsídios fiscais concedidos a vários setores empresariais; poderia reduzir o custo da máquina pública; poderia reduzir privilégios nos diferentes Poderes, alguns exorbitantes. Se assim o fizesse, estaria adotando uma posição liberal no verdadeiro sentido do termo. Contudo, optou por assassinar o liberalismo em nome da causa liberal!

O governo do ex-presidente Fernando Henrique, criticado por ser social-democrata e, nesse sentido, de “esquerda”, foi muito mais liberal do que o apregoado por seus detratores. Levou a cabo um impressionante e bem-sucedido programa de privatizações, reformando o Estado, algo que o atual governo foi incapaz de fazer. Elaborou um exitoso combate à inflação graças ao Plano Real, cujos alicerces estão sendo agora desmontados. Criou uma Lei de Responsabilidade Fiscal, complementada pela Lei do Teto de Gastos Públicos, de iniciativa do ex-presidente Michel Temer, algo que está sendo substituído pela irresponsabilidade fiscal.

A social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal, enquanto os “liberais” atuais estão se mostrando discípulos dos petistas. Não sem razão, o ex-presidente Lula está elogiando as iniciativas de ajuda aos pobres, não cansando de repetir que, caso eleito, não seguirá a responsabilidade fiscal e a Lei do Teto de Gastos Públicos. Isto é, as afinidades entre os petistas e os ditos “liberais” expõem um parentesco para além das clivagens tradicionais entre (extrema)direita e esquerda.

Com a mudança legal do indexador de cálculo da Lei do Teto de Gastos Públicos, uma artimanha jurídica para cobrir de legalidade uma atitude ilegal, o governo também se mostra um seguidor dos petistas, pois, na verdade, estamos diante de uma nova forma de “contabilidade criativa”. A da ex-presidente Dilma foi, em sua dimensão, menor do que a que está sendo atualmente implantada, e terminou pagando por isso. Os atuais detentores do poder, cientes disso, procuraram dar uma cobertura jurídica para evitar tal desenlace, o que não diminui a sua responsabilidade.

Eis por que o bolsa Centrão é tão importante. Graças a isso, o impeachment tem muito menos chance de prosperar, possibilitando que os recursos públicos sejam partidariamente, privadamente e corporativamente apropriados. Numa situação completamente atípica, o presidente perde o controle do Orçamento, contentando-se com discursos em todos os cantos do País como se não mais precisasse governar, procurando tão exclusivamente a sua própria reeleição.

O cenário é totalmente esquizofrênico na medida em que o País real, em suas necessidades e carências, encontra-se divorciado de sua classe política e das narrativas presidenciais, de nítido teor demagógico. Diz-se respeitar a lei numa flagrante violência da mesma, como se a irresponsabilidade fiscal tivesse mudado de nome. A perversão no uso das palavras é mais um indicativo do desmoronamento da moralidade pública e, sobretudo, de respeito para com o País.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Eio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.10.21

      


Perspectiva promissora para os partidos

Há 33 partidos registrados na Justiça Eleitoral. Mas têm surgido indícios de uma possível melhora da representação partidária, com a redução do número de legendas

No Brasil, ter um partido político foi sempre um bom negócio. Por diversos meios, o sistema político-eleitoral favoreceu ao longo do tempo a proliferação de legendas, num quadro de explícita disfuncionalidade. A alta fragmentação partidária continua existindo. Há 33 partidos políticos registrados na Justiça Eleitoral. No entanto, têm surgido indícios importantes de uma possível melhora da representação partidária, com a redução do número de legendas.

Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atualizou uma regulamentação de 2018 a respeito da criação, organização, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos. Além de fixar um procedimento comum para as novas solicitações de registro, a medida regula a situação de 67 legendas em processo de formação na Justiça Eleitoral que, depois de dois anos, ainda não obtiveram as assinaturas necessárias para sua formalização.

É muito oportuna a nova regulamentação. Dentro de um regime constitucional de pluripartidarismo, é importante que o procedimento para a criação de novos partidos tenha critérios bem definidos, em um marco jurídico objetivo e seguro. Ao mesmo tempo, impressiona a quantidade de partidos em formação sem nenhuma viabilidade jurídica. São quase sete dezenas de pedidos parados por falta de apoio popular. Com a nova resolução, o não cumprimento das condições resultará na desconsideração do pedido, o que contribui para um sistema mais razoável.

Outra mudança – essa de natureza constitucional – que, aos poucos, vai produzindo mais efeitos positivos é a cláusula de barreira, aprovada pela Emenda Constitucional (EC) 97/2017. Trata-se de importante medida saneadora, que introduz de forma gradual restrições a partidos políticos sem representatividade popular.

A cláusula de barreira foi aplicada pela primeira vez nas eleições de 2018. Os partidos políticos que não alcançaram nenhum dos dois patamares mínimos de voto – a obtenção de 1,5% dos votos válidos para deputado federal ou a eleição de nove deputados – deixaram de ter acesso, desde 2019, aos recursos do Fundo Partidário e à chamada propaganda gratuita no rádio e na televisão.

Nas eleições de 2018, 14 partidos não superaram a cláusula de barreira. No pleito do ano que vem, as exigências serão um pouco maiores. Para 2022, a EC 97/2017 estabelece, como critério mínimo para cada partido, a obtenção de 2% dos votos válidos para deputado federal ou a eleição de 11 deputados federais.

Por outras razões não ligadas diretamente à cláusula de barreira, mas que se alinham com o novo regime jurídico de mais restrições aos partidos, os diretórios nacionais do DEM e do PSL aprovaram no início de outubro a fusão das duas legendas. Com o nome de União Brasil, o novo partido terá 82 deputados federais e 8 senadores.

Esse movimento do DEM e PSL, criando a maior bancada da Câmara, contribuiu para que outras legendas negociassem possíveis fusões. Além de conveniência política, outros partidos conversam com seus pares por uma razão de sobrevivência. A cláusula de barreira segue vigente.

Outra novidade que pode favorecer um cenário de menor fragmentação é a criação, por meio da recente Lei 14.208/21, da figura das federações partidárias. Sob essa modalidade de convênio, os partidos podem se unir para a disputa das eleições, passando a atuar como uma só legenda.

Ainda que seja uma medida de escape da cláusula de barreira, a nova lei fixa requisitos que podem contribuir para uma maior funcionalidade do quadro partidário. A federação partidária deve ter abrangência nacional e duração mínima de quatro anos, podendo ser constituída apenas até a data das convenções partidárias. Ou seja, não será tábua de salvação para partidos sem voto que não se uniram antes das eleições.

O cenário é novo, e muito dele ainda está no plano das possibilidades. De toda forma, em comparação ao anterior, é inegavelmente positivo. Merece, portanto, aplauso o Congresso que, apesar das pressões, manteve a cláusula de barreira. Sem ela, nada disso seria possível.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 25 de outubro de 2021