quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Brasil ainda não tem uma política nacional com foco em órfãos da pandemia

Milhares de crianças perderam os pais para a covid-19. No entanto, país ainda mal começou a mapear e estabelecer políticas para ajudar esses órfãos. Apenas algumas iniciativas estaduais de amparo foram criadas

País não tem nem mesmo dados precisos sobre quantas crianças ficaram órfãs. Estimativas oscilam de 12 mil a 282 mil

Sem saber com precisão quantos são, onde estão e do que mais necessitam, crianças e adolescentes em situação de orfandade por causa da covid-19 – em especial os que vivem em situação de vulnerabilidade econômica e social – não contam com uma política pública nacional e coordenada que possa minimizar os efeitos dessas perdas, que impactarão o futuro de uma geração inteira.

Em números absolutos, estima-se que o Brasil seja o segundo país com mais órfãos no mundo, atrás apenas do México.

Somente alguns Estados e municípios já aprovaram leis e políticas de assistência material e amparo psicossocial específicos a essas crianças e adolescentes em luto, como é o caso, por exemplo, dos 9 estados do Nordeste, São Paulo e a cidade de Campinas. No entanto, poucas ações já estão funcionando na prática, incluindo as de transferência de renda, e elas são bastante limitadas.

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou à DW Brasil, por e-mail, que a empresa Finatec venceu edital e iniciou, em 13 de outubro, mapeamento sobre o impacto da covid-19 em crianças e adolescentes, incluindo a questão da orfandade.

Esse estudo será concluído em março de 2022. O objetivo, segundo a pasta, é identificar "os principais efeitos psicossociais gerados pelo contexto relacionado à pandemia”. O trabalho será feito em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Não foram informados valores da contratação.

Corrida contra o tempo

Ainda que reconheçam que é preciso dimensionar o fenômeno da orfandade pela covid-19 e tirar da invisibilidade essas crianças e adolescentes, especialistas em infância e juventude têm enorme preocupação com o tempo. É sobretudo a primeira infância (0 a 6 anos) que vai determinar o futuro da criança e já se passaram 20 meses desde o início da pandemia no Brasil. Muitas dessas crianças perderam os pais ou responsáveis no ano passado.

A desestruturação completa da família, sob os aspectos material e emocional, pode provocar danos irreversíveis que implicam evasão escolar, trabalho infantil, abuso sexual e até mesmo a entrada dessas crianças e adolescentes para a rede do crime organizado. Outra preocupação é com políticas apenas pontuais e temporárias.

A CPI da Covid, no Senado, cujo relatório final foi aprovado em outubro, recomendou a pensão de um salario mínimo a esses órfãos até que completem 18 anos. No entanto, é preciso aprovar uma lei.

Com o país afundado no dilema fiscal sobre furar ou não o teto de gastos para criar o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, ainda não há sinais concretos de que essa proposta possa ser aprovada com prioridade neste ano. Há mais de um projeto sobre o tema em tramitação no Congresso.

Movimento precisa ser combinado e urgente

"Temos que fazer um movimento combinado entre dimensionar e encontrar formas imediatas de garantir apoio a essas crianças e adolescentes”, afirmou à DW Brasil Benedito Santos, consultor de proteção à criança do Unicef no Brasil. Segundo ele, o receio do Unicef é que os governos gastem muito tempo no dimensionamento o fenômeno e demorem demais a agir.

Essas políticas públicas precisam fazer acompanhamento contínuo dos órfãos até a maioridade, pela rede de proteção social já existente no Brasil – o Sistema Único da Assistência Social (Suas) – defende o consultor do Unicef.

"Se houver só ajudas momentâneas agora, isso tem impacto no desenvolvimento futuro da criança. Além de ajuda financeira pontual e eventual, essa família precisa estar apoiada em torno do próprio luto, da saúde mental, ter um acompanhamento da rede de proteção social”, afirma Santos.

Ele alerta, ainda, que não se pode utilizar esse debate para flexibilizar, sem critérios, as regras de adoção no Brasil. "Há uma série de pré-requisitos para adoção e estamos com receio de que isso seja flexibilizado. Deve haver um cuidado especial para isso não virar também um esquema de flexibilização de normas e garantias que a criança tem no processo de adoção.”

Quantos são: números oscilam de 12 mil a 282 mil

Há poucos dados quantitativos concretos sobre a orfandade na pandemia. O estudo mais robusto foi feito por um grupo de pesquisadores, coordenado pelo Imperial College London. Publicado em julho pela revista científica The Lancet, o estudo cria um modelo estatístico de orfandade para 21 países do mundo, com ferramenta de atualização.

A última atualização para o Brasil foi feita em 12 de outubro. Se consideradas as perdas primárias e secundárias (de um dos pais, de ambos ou do responsável legal, como avó ou avô), o país já tem 282;800 menores de 18 anos órfãos pela covid. Quando se leva em conta apenas a morte de um dos pais ou de ambos, essa estatística é de 168.500. Os próprios pesquisadores alertaram que a subnotificação é provável.

Outra estatística foi divulgada pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). A partir do cruzamento de certidões de óbitos com registros de nascimento, os cartórios apontaram que há no Brasil 12.211 crianças órfãos na faixa etária de 0 a 6 anos.

Os cartórios só fizeram o cruzamento de crianças de 0 a 6 anos porque, desde 2015, há uma legislação no país que concede a cada criança um número de CPF que fica registrado, de imediato, na certidão de nascimento. Como a base de dados é integrada com a Receita Federal, foi possível fazer o cruzamento online.

A pressão do MP: casos de São Luís (MA) e Campinas (SP)

A região Nordeste é a única no país que criou política de transferência de renda e assistência direcionada aos órfãos da covid-19, via Consórcio Nordeste. O programa, Nordeste Acolhe, foi inspirado no Maranhão, o primeiro estado do país a criar transferência de renda aos órfãos bilaterais (que perderam o pai e a mãe) até que completem a maioridade. As famílias beneficiadas precisam ter renda mensal inferior a três salários mínimos.

O governo federal não considera a possibilidade de  pagamento pensão aos órfãos da covid-19.

Titular da 1ª Promotoria de Justiça de Infância e Juventude de São Luís, Márcio Thadeu Silva Marques identificou, nos últimos meses, que situações de ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes estavam relacionadas à orfandade.

"O Ministério Público tem a possibilidade de acompanhar políticas públicas. Foi o que fiz. Queria saber do município e do Estado do Maranhão se os órfãos da covid já tinham entrado no radar. Abri esse procedimento não no sentido investigativo ou punitivo, mas para tentar induzir políticas públicas. Percebi, logo, que elas não existiam”, disse o promotor de justiça à DW Brasil.

O promotor pediu auxílio à Corregedoria Geral de Justiça do Maranhão, que determinou aos cartórios que, ao registrarem os óbitos por covid, informassem também se o falecido deixou filhos menores de idade, constando na certidão seus respectivos nomes e idades, bem como a informação se há responsável (pai ou mãe) sobrevivente.

Se configurada a orfandade bilateral, o cartório aciona imediatamente os órgãos de assistência social. Além disso, hospitais do Maranhão também foram orientados a preencher ficha detalhada de pacientes de covid-19 no ato da internação, registrando se o paciente tem filhos menores de 18 anos.

O promotor Márcio Thadeu ressalta a importância da "desinvibilização dos órfãos” para criar políticas públicas.

"Preservar a convivência da criança com a família extensa é prioridade. A família extensa, sobrevivente, não é só a de sangue, mas é a quem tem laços de convivência e afeto”, explica. Garantir segurança de renda para essas crianças é outra prioridade, além da proteção psicossocial. "Se a orfandade atinge extratos populacionais mais vulneráveis social e economicamente, isso pode definir se essa criança vai para a rua ou não”, assegura o promotor.

Em Campinas, a promotora de Justiça da Infância e Juventude Andréa Santos Souza também conseguiu pressionar o poder público e tem, hoje, dados concretos de orfandade pela covid-19 no município. "Pedi para os cartórios me mandassem as certidões de óbitos dos que morreram por covid, se possível só os que deixaram menores. Recebi mais de 2 mil certidões de óbitos”, conta.

Depois de filtrar toda a documentação de março de 2020 a julho de 2021, a promotora encontrou 455 órfãos só no município. A partir da articulação da promotoria, Campinas tem agora lei municipal que assegura um benefício à família que acolher o órfão. Mas serão apenas 3 parcelas de R$ 500. A transferência de renda até a maioridade, diz a promotora, é o recomendável pela ONU. "É meu horizonte, mas não posso forçar o poder público a fazer isso agora. Temos que ir devagar.”

Transferência de renda para órfãos

O governo do Maranhão começaria a pagar os benefícios (R$ 500) a partir do início de novembro às crianças e adolescentes que perderam pai e mãe. De acordo com Márcio Honaiser, secretário de Desenvolvimento Social do Estado, o poder público está ciente de que a orfandade é uma situação de dificuldade para as crianças que perderam um ou os ambos os pais, mas o "cobertor é curto” e, por razões orçamentárias, o governo deu prioridade ao auxílio se houver orfandade bilateral.

"A preocupação inicial é com quem perdeu os dois, não tem ninguém, ficou sem vínculo”, disse o secretário. O governo estadual estima que há cerca de 800 crianças e adolescentes nesta situação e admite que, em 2022, a política poderá ser redesenhada.

O Consórcio Nordeste seguiu as mesmas orientações da lei maranhense e vai conceder o auxílio de R$ 500 a órfãos bilaterais, até a maioridade completa.

Íris Oliveira, coordenadora da Câmara Temática de Assistência Social do Consórcio do Nordeste, reconhece que o auxílio financeiro apenas para órfãos que perderam pai e mãe é limitado. Porém, ela justifica que as famílias em situação de vulnerabilidade "precisam ter direito a outros programas de transferência de renda para além do benefício concedido dos órfãos”. É por isso, complementa, que o Consórcio Nordeste luta pela ampliação do Bolsa Família.

Em São Paulo, o governo estadual criou uma bolsa mensal, de R$ 300, por seis meses, para famílias de baixa renda que perderam algum ente vítima fatal da covid-19. O programa, São Paulo Acolhe, não é específico para os órfãos, mas a secretaria de Desenvolvimento Social do Estado, Célia Parnes, explica que, entre os 27.500 beneficiários, 5.851 estão na faixa etária entre 0 a 18 anos, e 5.500 deles estão registrados nas categorias de filho, neto ou bisneto.

"Esse programa foi criado, como vários outros na pandemia, de forma a responder rapidamente a situações novas. O governador vem estendendo programas criados na pandemia de forma sistemática. Não me surpreenderia se esse também for prorrogado”, diz.

Célia Parnes elogiou o trabalho da CPI da Covid, ao dar visibilidade a esse problema e propor uma pensão nacional. "Acho que isso tem que ser uma ação do governo federal. É uma resposta macro, que deve partir do governo federal, já que temos um problema nacional. O SUAS é um sistema tripartite. As ações emergenciais feitas por governadores são respostas rápidas. Não acho que deva haver sobreposição de ações. Deve haver uma ação tripartite de cofinanciamento, interligada, isso seria o correto.”

Além do estudo de diagnóstico, que será conduzido sob a orientação da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a pasta alega que implementou ações específicas para crianças e adolescentes afetados pela pandemia.

Pasta de Damares Alves lançou mapeamento de órfãos, mas especialistas temem que iniciativa demore demais

Não foi atendido o pedido de entrevista da DW Brasil para que as ações da pasta pudessem ser detalhadas. O ministério citou um trabalho "em busca de caminhos para aprimorar os procedimentos de adoção, buscando amparo aos órfãos da Covid-19, propondo a adequação e o aperfeiçoamento da legislação, com segurança jurídica e sempre centrada no melhor interesse da criança e do adolescente e no direito a convivência familiar e comunitária”.

Já o Ministério da Cidadania informou que "implementou atendimento especial para crianças inscritas no Cadastro Único que perderam ao menos um de seus responsáveis familiares, durante o período da pandemia da Covid-19, por meio do Programa Criança Feliz”.

Esse programa atende a famílias em que há crianças de 0 a 6 anos. Não há transferência de renda no Criança Feliz. Trata-se de um programa de visitação domiciliar. De acordo com a nota enviada à DW Brasil, o intuito desta medida é "que os profissionais do Criança Feliz incluam temas como perda e luto nas atividades, atualmente focadas no pleno desenvolvimento cognitivo, afetivo e motor das crianças”. Em 2021, foram visitadas 1,2 milhão de famílias no país.

Deutsche Welle Brasil, em 03.11.21

Brasil cortou 93% da verba para pesquisa em mudanças climáticas

As mudanças climáticas são um conjunto de alterações no clima do planeta causadas pela ação humana. Entre os principais fatores está a emissão de gases causadores do efeito estufa como o gás carbônico e metano.

Dados levantados pela BBC News Brasil mostram corte em pesquisas sobre mudanças climáticas no Brasil (Reuters)

O governo do presidente Jair Bolsonaro cortou em 93% os gastos para estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos três primeiros anos da sua gestão quando comparado com os três anos anteriores.

Os dados foram levantados pela BBC News Brasil por meio do Sistema Integrado de Orçamento do Governo Federal (Siop). Entre janeiro de 2016 e dezembro de 2018, os investimentos nessa área foram de R$ 31,1 milhões. Na gestão Bolsonaro, porém, os gastos foram de apenas R$ 2,1 milhões.

Procurados, os ministérios do Meio Ambiente e da Ciência, Tecnologia e Inovações, e a Presidência da República não se pronunciaram.

As mudanças climáticas são um conjunto de alterações no clima do planeta causadas pela ação humana. Entre os principais fatores está a emissão de gases causadores do efeito estufa como o gás carbônico e metano.

Estudos indicam que países altamente dependentes da exportação de commodities agrícolas como o Brasil estão particularmente vulneráveis ao fenômeno porque ele pode causar, por exemplo, alterações no regime de chuvas e ventos e resultar em eventos climáticos extremos como secas prolongadas, ondas de frio e de calor mais frequentes.

Pressionado por altas taxas de desmatamento nos últimos anos, o governo Bolsonaro participa da COP26, Conferência do Clima da ONU, que acontece em Glasgow, no Reino Unido. O próprio presidente não viajou para a Escócia.

Um dos principais objetivos da delegação brasileira é convencer a comunidade internacional do seu compromisso com a agenda ambiental.

Na terça-feira (2/11), representantes de mais de cem países, entre eles China e Brasil, assinaram um acordo para proteção de florestas que tem como meta zerar o desmatamento no mundo até 2030. O Brasil também aumentou a meta de redução de gases poluentes de 43% para 50% até 2030 e se comprometeu em antecipar a meta de zerar o desmatamento ilegal de 2030 para 2028.

Na semana passada, a BBC News Brasil antecipou que o Brasil decidiu assinar um importante acordo sobre proteção de florestas conhecido como "Forest Deal".

Mais promessas, menos verba

O levantamento feito pela BBC News Brasil, porém, mostra uma redução drástica do investimento do governo federal em estudos para preparar o país para os efeitos da crise no clima.

Os dados consideram duas ações orçamentárias do governo federal destinadas, especificamente, a produzir estudos e projetos com essa temática: 20G4 — Fomento a Estudos e Projetos para Mitigação e Adaptação à Mudança do Clima (sob responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente) e 20VA — Apoio a Estudos e Projetos de Pesquisa e Desenvolvimento à Mudança do Clima (a cargo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações).

O levantamento aponta que o ritmo de investimento entre 2016 e 2018 era de redução. Em 2016, por exemplo, o governo gastou R$ 20,7 milhões. No ano seguinte, esse valor caiu para R$ 8,4 milhões. Em 2018, chegou a R$ 2 milhões.

Governo Bolsonaro reduziu drasticamente recursos para estudos sobre efeitos de mudanças climáticas, apontam dados. (EPA/Joedson Alves)

A queda prosseguiu no governo Bolsonaro. Em 2019, o governo investiu R$ 1 milhão. Em 2020, foram gastos R$ 659 mil. Neste ano, até outubro, foram gastos R$ 426 mil.

Os dados mostram ainda que no Ministério do Meio Ambiente os investimentos em estudos sobre mudanças climáticas foram zerados a partir de 2019.

Política climática

A política ambiental do governo Bolsonaro é alvo de críticas domésticas e internacionais. Por outro lado, ele é apoiado por diversos setores do agronegócio e da mineração. Em sua campanha, em 2018, ele prometeu acabar com o que chamava de "indústria das multas" ambientais.

Em 2019 e 2020, o Brasil registrou as piores taxas anuais de desmatamento desde 2008. No período, foram desmatados mais de 20 mil quilômetros quadrados, uma área equivalente a 13 cidades de São Paulo. O avanço do desmatamento e dos incêndios florestais nesses dois anos despertaram reações de organizações não-governamentais e de chefes de estado estrangeiros como o presidente da França, Emmanuel Macron.

A posição de Bolsonaro em relação às mudanças climáticas também é fruto de críticas de ambientalistas e cientistas. Em 2019, após a COP25, por exemplo, Bolsonaro chegou a afirmar que a pressão internacional em torno do assunto seria parte de um "jogo comercial" com o objetivo de prejudicar países em desenvolvimento como o Brasil.

"Eu quero saber... alguma resolução para a Europa começar a ser reflorestada? Alguma decisão? Ou só ficam perturbando o Brasil? É um jogo comercial, eu não sei como o pessoal não consegue entender que é um jogo comercial", disse o presidente.

O ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, que ficou no cargo janeiro de 2019 a março de 2021, chegou a colocar em dúvida que as mudanças climáticas seriam causadas pela ação humana, na contramão do consenso da comunidade científica.

"Há mudanças climáticas? Sim, certamente, sempre teve. É causada pelo homem? Muitas pessoas dizem que sim, não sabemos com certeza", disse o ex-chanceler em um evento nos EUA, em setembro de 2019.

Política ambiental do governo Bolsonaro é alvo de críticas domésticas e internacionais (Ricardo Moraes / Reuters)

O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que ficou na pasta de janeiro de 2019 a junho de 2021, admitia a responsabilidade do ser humano nas mudanças climáticas. Mesmo assim, foi na sua gestão que a pasta extinguiu, no início do governo Bolsonaro, a secretaria responsável por elaborar políticas públicas sobre o assunto.

Foi apenas em 2020, em meio a críticas internacionais, que Salles determinou a recriação de uma secretaria dedicada às mudanças climáticas dentro do ministério. Salles deixou o cargo em junho deste ano em meio a investigações sobre seu suposto envolvimento com um grupo de empresários que faria contrabando de madeira da Amazônia.

Críticas

Especialistas ouvidas pela BBC News Brasil criticaram os cortes nos investimentos do governo em estudos sobre as mudanças climáticas. Segundo elas, o governo Bolsonaro prejudicou a política climática do país.

Para Natalie Unterstell, presidente do think tank Talanoa, os números mostram os investimentos aquém da necessidade do Brasil para lidar com a crise climática.

"Estudos recentes mostram que o mundo deveria investir pesado em estudos e projetos para mitigar os efeitos da mudança climática. Esses cortes comprometem a forma como o Brasil se prepara. Isso mostra que ela não é prioridade para um órgão que deveria ser um importante formulador de políticas públicas. Isso é um reflexo da paralisação da agenda ambiental o governo que se deu dentro do MMA e a partir dele", diz Natalie.

"Um olhar para o esvaziamento da ação orçamentária referente ao fomento a projetos para mitigação e adaptação à mudança do clima mostra bem isso. Em 2021, foram empenhados na ação orçamentária 20G4 míseros R$ 110 mil reais até agora. Para 2022, estão previstos pouco mais de 500 mil reais. Nesses números fica patente a desatenção ao tema", afirmou a ex-presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pesquisadora sênior do Observatório do Clima, Suely Araújo.

A BBC News Brasil enviou questionamentos para o Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e para a Presidência da República sobre os cortes. Nenhum dos três se pronunciou sobre o assunto.

Leandro Prazeres, de Brasília para a BBC News Brasil, em 03.11.21 

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Bolsonaro enfrenta protestos em cidade onde recebe homenagem

Presidente chega a localidade italiana de Anguillara Veneta, onde nasceu seu bisavô. Prefeitura local comandada por política de extrema direita concedeu título de cidadão honorário ao chefe de Estado brasileiro.

"Ao lado do povo brasileiro": militantes de esquerda protestam contra honraria ao presidente

O presidente Jair Bolsonaro chegou nesta segunda-feira (01/11) a Anguillara Veneta, no norte da Itália, para receber o título de cidadania honorária do vilarejo, em meio a manifestações contra e a favor da honraria.

Houve registro de choques entre a polícia e manifestantes contrários a Bolsonaro. Agentes de segurança usaram cassetetes e canhões d´água contra os manifestantes.

Os protestos têm se repetido na cidade dos ancestrais do chefe de governo brasileiro desde o anúncio da proposta da homenagem, feita pela prefeitura local, chefiada por uma integrante do partido de extrema direita italiano Liga Norte.

Um bisavô de Bolsonaro, Vittorio Bolzonaro, era de Anguillara Veneta e imigrou para o Brasil. Atualmente, a localidade tem cerca de 4 mil moradores. A horaria ao chefe de governo foi aprovada na semana passada pela a câmara de vereadores local.

A solenidade, inicialmente marcada para ocorrer na prefeitura, foi transferida para uma residência do século 17 na periferia, onde Bolsonaro tem agendado almoço com cerca de 200 convidados, entre parentes distantes e vereadores do município.

Bolsonaro em Anguillara Veneta: presidente teve agendado almoço com cerca de 200 convidados

A Diocese de Pádua, que engloba Anguillara Veneta, divulgou na sexta-feira nota afirmando que a concessão da homenagem ao presidente brasileiro é motivo de "grande constrangimento".

Militantes de esquerda

A chegada do presidente mobilizou tanto militantes de esquerda quanto organizações antifascistas, contrárias às suas políticas de extrema direita, como também um setor da comunidade brasileira residente na Itália.

Sob uma garoa persistente e no meio do nevoeiro, representantes de vários partidos de esquerda, assim como do sindicato CGIL e do grupo antifascista ANPI, manifestaram-se pacificamente na praça central, agitando bandeiras e cartazes.

"Que ele visite a cidade de onde vem sua família é justo, mas não que o apresentem como um exemplo ao conceder-lhe a cidadania honorária", lamentou Antonio Spada, vereador da oposição.

A prefeita de Anguillara Veneta, cidade na região de Veneto, mobilizou policiais e serviços de segurança para evitar confrontos.

Apoiadores do presidente Bolsonaro agitam bandeiras do Brasil em Anguillara Veneta

"Fora Bolsonaro, fora Bolsonaro", dizia um enorme pôster, enquanto outro, escrito à mão, dizia "Anguillara ama o Brasil, mas não Bolsonaro".

Entre os manifestantes mais indignados estava o missionário italiano Massimo Ramundo, que viveu 20 anos no Brasil, 12 deles em Maranhão, estado com 34% de seu território ocupado pela Floresta Amazônia. "É uma vergonha. Estou furioso com a prefeita desta cidade. Ela não sabe o que o Bolsonaro fez e disse, ela não ouviu suas declarações de cunho racista, contra os indígenas, os vacinados, as mulheres. Além disso, quer que a Amazônia seja um negócio. Não respeita os valores do papa Francisco", lamentou o religioso.

Adeptos de Bolsonaro

Na manifestação, organizada na cidade para onde a família de Bolsonaro emigrou há mais de um século, também compareceram grupos de partidários do presidente, em sua maioria brasileiros que residem em várias regiões da península.

"Estou aqui para dizer que você não está sozinho", disse Silvana Kowalsky, uma elegante senhora de 50 anos que viajou de Vicenza, a cerca de 85 quilômetros de distância, para dar seu apoio.

Portando bandeiras brasileiras, os simpatizantes do presidente cantavam e gritavam "mito, mito", ao mesmo tempo em que gritavam expressões como "Lula ladrão", referindo-se ao ex-presidente Lula.

"Ele é um grande presidente e tem direito porque é de ascendência italiana. Tudo o que a CPI (da Pandemia) fala sobre ele é mentira", disse o brasileiro Claudio Resende, 65 anos, que mora na Itália há 17 anos.

Encontro com Salvini

Na terça-feira, Bolsonarovai se encontrar com o líder do partido Liga Norte, Matteo Salvini, na cidade de Pistoia, região central da Itália. Os dois vão participar de uma cerimônia em frente ao monumento erguido em memória dos quase 500 pracinhas brasileiros que morreram na Segunda Guerra Mundial.

Atualmente, Salvini responde a uma ação judicial por ter impedido - na época em que ocupou o cargo de ministro do Interior - o desembarque de um navio com mais de 140 migrantes resgatados no mar Mediterrâneo por uma ONG.

Em agosto, subsecretário de Economia da Itália filiado à Liga, o partido de Salvini, renunciou após sugerir que um parque de sua cidade natal fosse renomeado em homenagem ao irmão do ditador fascista Benito Mussolini. A sugestão provocou uma onda de críticas.

Conhecido por suas posições xenófobas, Salvini já se referiu várias vezes a Jair Bolsonaro como "o meu amigo brasileiro". Ele também tem relações com Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente brasileiro, e já participou de lives com o deputado brasileiro. Salvini também já defendeu publicamente a forma como Jair Bolsonaro lidou com a pandemia, que deixou até o momento mais de 600 mil mortos no Brasil.

Deutsche Welle Brasil, em 01.11.21

'Bolsonaro vem fazer campanha. Meu pai vai se revirar na tumba', diz filho de pracinha enterrado na Itália

"O soldado desconhecido que fica ali no monumento vai se revoltar, meu pai, um pracinha que está no cemitério ali do lado, vai se revoltar muito, se revirar na tumba. Infelizmente, temos a ideologia contrária vindo homenagear quem combateu e derrotou o nazifascismo."

Monumento Votivo Brasileiro foi construído para homenagear soldados mortos na Segunda Guerra Mundial

É assim que Mario Pereira, guardião por décadas do monumento em homenagem aos soldados brasileiros mortos na Segunda Guerra Mundial, reagiu à visita nesta terça-feira (2/11) do presidente Jair Bolsonaro e do senador italiano Matteo Salvini ao local em Pistoia, cidade que fica 300 km ao norte de Roma.

Para Pereira, funcionário da embaixada brasileira, o presidente do Brasil só está preocupado em fazer campanha política na Itália e não parece natural que Bolsonaro e Salvini visitem o monumento "visto o perfil ideológico dos dois", "uma ideologia muito parecida com o nazifascismo".

Mario é filho de um "amor de guerra" entre Giuliana Menichini, italiana de Pistoia, e Miguel Pereira, soldado gaúcho natural de Passo Fundo. Eles se conheceram por acaso quando ela abriu a janela de seu quarto, se deparou um caminhão e ouviu um "buongiorno, signorina". Acabaram se casando anos depois.

Miguel se tornou único pracinha que decidiu permanecer na Itália depois da guerra e acabou sendo responsável pelo Monumento Votivo Brasileiro de 1966 a 2003, ano de sua morte. Foi quando então Mario, que ajudava o pai desde 1997, assumiu o posto de guardião do local, mantido com recursos do governo brasileiro e do próprio bolso dele (para custear palestras no Brasil sobre os pracinhas).

Mario Pereira quando criança (Arquivo Pessoal)

"Os brasileiros não davam... Eles dividiam. Se tinham café, levavam café em casa. Se tinham chocolate, levavam chocolate em casa, o mingau, o pão branco. Era uma divisão, o que era muito diferente (dos outros soldados). Era como confraternizar com os brasileiros; eles se integraram logo à família", relembrou Giuliana Menichini a uma publicação do Exército brasileiro.

Para Mario Pereira, o Monumento Votivo marca esse lado humano das relações entre os soldados brasileiros e os cidadãos italianos, algo que ele diz comover até hoje a população local. "O lado humano do monumento é que, no meio drama da maior guerra do mundo, a postura e o caráter dos soldados brasileiros se destacaram mais do que própria força militar contra os alemães. Eles conseguiram trazer esperança e ajuda para uma população fragilizada por 20 anos de fascismo e cinco anos de guerra, e isso é reconhecido por mais de 50 monumentos espalhados pela Itália."

O mais importante deles é o Monumento Votivo Brasileiro, construído em 1966 no mesmo lugar em que havia um cemitério para os soldados brasileiros mortos em combate até 1960, ano em que eles foram levados para o Brasil.

 "Este cemitério tão puro / é um dormitório de meninos: / e as mães de muito longe chamam, / entre as mil cortinas do tempo, / cheias de lágrimas, seus filhos. / (...) E as mães esperam que ainda acordem, / como foram, fortes e belos, / depois deste rude exercício, / desta metralha e deste sangue", escreveu a poeta Cecília Meireles.


Mario Pereira é guardião do monumento desde 1997

Em audiência no Senado brasileiro em 2019, Vinicius Mariano de Carvalho, professor e pesquisador do Brazil Institute do King's College, citou a expressão "diplomacia de memória" para ressaltar a importância do monumento em Pistoia. Segundo ele, o local é capaz de fazer lembrar que "em momentos de dificuldade as nações amigas podem contar umas com as outras".

Segundo dados oficiais, 20.573 pracinhas foram enviados para lutar na Itália e 465 morreram em batalha. Do total, 16 nunca foram identificados, entre eles o Soldado Desconhecido, que continua enterrado em Pistoia e garante que ali continue sendo considerado um lugar sagrado. Ali há também um fogo eterno, a lista dos brasileiros mortos e das batalhas na Itália e um altar em formato de véu (leia mais abaixo).

Matteo Salvini é líder da Liga Norte, partido de extrema-direita com 113 deputados e 64 senadores (Reuters).

A cerimônia em homenagem a esses soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) mortos em solo italiano marca o último dos cinco dias de visita presidencial ao país. Bolsonaro esteve em reuniões do G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo), cumprimentou apoiadores nas ruas, promoveu ato com apoiadores em que jornalistas acabaram agredidos por seus seguranças, participou de homenagem feita pela cidade natal de seu bisavô paterno e agendou encontro com seu principal aliado na Itália, Matteo Salvini, ex-vice-primeiro ministro que falhou em sua tentativa de comandar a Itália, mas continua sendo o líder de um partido com 113 deputados e 64 senadores e também líder de uma coalizão de centro-direita que comanda 14 das 20 regiões da Itália.

Salvini e seus aliados fazem oposição ao atual governo do primeiro-ministro Mario Draghi, que não recebeu Bolsonaro durante sua visita à Itália.

Para David Magalhães, professor de relações internacionais da PUC-SP e da Faap e coordenador do Observatório da Extrema Direita, o encontro entre Bolsonaro e Salvini visa "reforçar uma tendência de fortalecimento internacional de uma rede ultradireitista, que inclui outras peças como Donald Trump, o Vox espanhol e o AfD alemão"

Monumento foi construído em local onde funcionava CEB (Cemitério do Exército Brasileiro)

Quem é Matteo Salvini e quais são seus elos com o fascismo?

Um dos principais expoentes da direita nacionalista e populista em expansão na Europa, Salvini é líder do partido Liga, identificado especialmente com o Norte da Itália (daí o nome anterior da sigla, Liga do Norte). Parte do seu sucesso se deve à reconhecida habilidade de comunicação.

Nascido em Milão em 1973 numa família de classe média, filho de um diretor de uma empresa privada e de uma dona de casa, ele estudou história e ciência política na sua cidade natal, mas não concluiu nenhum dos cursos. Na época, teve seu primeiro emprego, numa rede de fast food.

Ex-comunista, ele se filiou à então Liga Norte no início dos anos 1990. Aos 20 anos, em 93, foi eleito vereador em Milão e nunca mais deixou a política — apesar de assumir a imagem de alguém antissistema.

Além de passar pela Câmara dos Deputados e pelo Parlamento Europeu, ele também já atuou como jornalista e hoje é um crítico ferrenho do jornalismo, que considera um inimigo do governo, embora apareça com frequência em debates na TV ou em programas de auditório.

Desde 2013, quando se tornou o principal nome do seu partido, ele cercou-se de uma equipe de dezenas de pessoas que o ajudou a se transformar em uma liderança nacional, sendo bem-avaliado inclusive no Sul, região historicamente menos desenvolvida do país. "Salvini criou um carisma muito particular e aprendeu a se vender de forma simpática, próximo do povo e com uma comunicação direta e envolvente. Sua popularidade vem daí", disse Gianpietro Mazzoleni, professor de comunicação política da Universidade de Milão, em 2018, auge do poder político de Salvini.

Miguel Pereira, soldado gaúcho natural de Passo Fundo, casou-se com Giuliana Menichini, italiana de Pistoia (Foto do arquivo pessoal de Mário Pereira).

Naquele ano, o líder da Liga publicou no dia de aniversário do ditador fascista Benito Mussolini uma pequena variação ("Tantos inimigos, tanta honra.") do slogan usado pela propaganda pelo regime totalitário ("Muitos inimigos, muita honra."). Em 2019, Salvini citou outra famosa frase de Mussolini ao pedir à população "plenos poderes".

Mas essas não são as únicas associações apontadas entre regime fascista derrotado por tropas incluindo as brasileiras, e Salvini, que chegou perto de comandar a Itália e hoje tem sua hegemonia na direita enfraquecida e ameaçada por Giorgia Meloni, deputada do partido Irmãos da Itália que disse ter uma relação "serena" com o fascismo, ao ressaltar diversos avanços, mas condenar erros profundos como as leis raciais e o autoritarismo. Vale lembrar que Rachele Mussolini, neta do ditador fascista, foi a vereadora mais votada de Roma pelo partido Irmãos da Itália.

O cientista político italiano Fabio Gentile, professor da Universidade Federal do Ceará e especialista em fascismo, explica que classificar qualquer pessoa hoje como fascista é incorreto porque o fascismo clássico acabou e nunca mais será reproduzido. Então, desde o fim da Segunda Guerra, pessoas ou práticas identificadas com parte dos valores fascistas são classificadas por pesquisadores como neofascistas ou pós-fascistas, termos também de difícil definição.

Gentile afirma à BBC News Brasil ser bastante complexo enquadrar Salvini em uma dessas "caixinhas", porque políticos como ele se aproveitam de ambiguidades "para conseguir ganhar consenso em setores mais radicais e setores mais moderados". O pesquisador descarta de início o termo neofascista porque a Liga de Salvini não defende o resgate do regime totalitário nem se limita ao papel de apoiar governos conservadores sem integrá-los. Dessa forma, Gentile descreve Salvini como mescla de "pós-fascista" com "neoliberal". Mas por quê?

Para responder a essa pergunta, o cientista político italiano cita as principais semelhanças de Salvini com a ideologia fascista, em sua avaliação: uma ideia racista de uma raça superior, a manipulação midiática usando a mentira como elemento fundamental do poder, a homofobia e o pragmatismo político de empunhar e abandonar bandeiras a depender as circunstâncias. Há outros pontos em comum, segundo outros pesquisadores, como o anticomunismo, o nacionalismo, as paixões mobilizadoras e a defesa de valores cristãos.

"Na crise atual da democracia, o fascismo voltou a ser um modelo de organização das massas para líderes como Salvini e Bolsonaro", resume Gentile.

Na questão racial, a Liga defendeu em 2001 a existência de uma raça da Padânia, região do Norte da Itália onde ficam os Estados mais ricos, em contraposição à "sociedade multicultural" e a imigrantes que não descendem de italianos. Salvini costuma protestar contra o que ele chama de "limpeza étnica" na questão dos refugiados que chegam à Europa, considerada uma "tentativa de genocídio contra as populações que têm vivido na Itália há séculos, que alguém queria substituir por dezenas de milhares de pessoas procedentes de outras partes do mundo".

Ao longo dos anos, Salvini criticou aqueles que o classificam como extremista, radical ou pós-fascista. "Quero libertar a Itália de todos os extremismos de direita, de esquerda, islâmicos, de todos. Os extremismos nunca estão certos. Quero tranquilizar: comunismo, fascismo e nazismo não voltam", disse o então vice-premier italiano. Curiosamente, essa frase foi proferida no mesmo dia em que ele foi o único membro do governo a faltar à tradicional celebração do Aniversário da Libertação da Itália do regime nazifascista. "Cada um decide o que faz com seus dias", rebateu.

Especialista em radicalismo e populismo, o historiador argentino Federico Finchelstein, chefe do departamento de História e do programa de Estudos Latinos Americanos da New School, inclui Salvini entre os líderes populistas de direita do século 21 com traços semelhantes ao fascismo histórico do início do século 20. Para ele, o principal é a mentira.

Em seu estudo mais recente, Uma Breve História das Mentiras Fascistas, ele afirma que o poder político fascista derivou em grande parte da "cooptação da verdade e da ampla propagação de mentiras" e que o populismo adota essas práticas como uma espécie de pós-fascismo. Para Finchelstein, o "populismo é o fascismo adaptado à democracia", usando a mentira como instrumento para perturbar a confiança nas instituições democráticas.

"Os líderes fascistas proeminentes do século 20 - de Mussolini a Hitler - consideravam as mentiras como sendo verdades encarnadas por eles. Esse era o ponto central das noções que tinham do poder, da soberania popular e da história. Um universo alternativo, no qual a verdade e a falsidade não podem ser distinguidas, se baseia na lógica do mito. No fascismo, a verdade mítica substituiu a verdade factual."

Gentile, por outro lado, ressalta aquela que é a principal diferença entre a plataforma da Liga de Salvini e o regime fascista liderado por Mussolini: o papel do Estado. O político contemporâneo defende algo mais ligado ao neoconservadorismo, que incorporou a bandeira do neoliberalismo econômico ao conservadorismo. Ou seja, defende-se um "desmonte neoliberal do Estado", segundo as palavras de Gentile, algo bem diferente do fascismo clássico, que tinha o Estado grande como pilar de um regime totalitário que controla diversos aspectos das relações pessoais e econômicas.

Por fim, o pesquisador italiano ressalta que a luta entre fascismo e antifascismo se arrasta há décadas na Itália e que a disputa política também envolve o uso indiscriminado de termos como "fascista" e "neofascistas" sem uma preocupação rigorosa com o significado. "É claro que existe um uso bastante ideológico desses conceitos, porque nem tudo que a extrema-esquerda está combatendo é fascismo".

Para a Liga Antidifamação dos Estados Unidos, organização que luta contra o antissemitismo e outras discriminações, a resposta é mais genérica: a comparação com o fascismo clássico é amplamente usada no debate político porque este foi "o evento histórico que mais facilmente ilustra o certo versus o errado".

Matheus Magenta, enviado especial da BBC News Brasil a Roma, em 02.11.21

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

O medo é o pior dos conselheiros

A reeleição de Bolsonaro ou o retorno de Lula ao poder suscitam temores justificados. Mas uma nova via precisa ser construída sobre a esperança

Após quatro mandatos de um governo populista à esquerda e um mandato de sua contraparte populista à direita, os altos índices de rejeição aos dois candidatos que lideram as pesquisas para a eleição de 2022 revelam que boa parte da sociedade a vê como uma oportunidade de renovação da política.

A reeleição de Jair Bolsonaro significaria a manutenção de uma crassa incompetência administrativa e da maior ameaça à democracia brasileira desde 1964. O retorno do lulopetismo significaria reeditar uma agenda que negligenciou as condições para o desenvolvimento sustentável, alimentou o corporativismo e o clientelismo, disseminou ainda mais a corrupção endêmica, precipitou o País na maior recessão de sua história e, por último, mas não menos importante, inflamou o sectarismo que alçou Bolsonaro ao poder.

Ante a erosão econômica, social e moral provocada pelo lulopetismo e agravada pela incúria e o autoritarismo de Bolsonaro, o empresariado tem se mobilizado cada vez mais em nome do interesse público, seja em defesa dos alicerces democráticos, como nos manifestos contra as agressões do presidente às instituições republicanas, seja em apoio a políticas públicas inovadoras de inclusão social, meio ambiente ou educação.

“Vejo um crescente envolvimento da sociedade na política. Vejo mais gente querendo se candidatar a cargos públicos”, disse ao Estado o empresário Fabio Barbosa, que foi signatário de um manifesto em apoio ao sistema eleitoral e participa de grupos de executivos empenhados em promover a racionalidade no debate político. “Eu quero que as pessoas votem por acreditar, e não por ter medo.”

Foi o medo de um quinto mandato lulopetista que alavancou o apoio de parte do empresariado a Bolsonaro em 2018. Aqueles que se deixaram enganar pelas promessas fajutas de liberalismo de Paulo Guedes já perceberam que ele só entregou demagogia. Barbosa lembrou os malogros do governo, incapaz de dar o devido arranque ao novo marco do saneamento básico ou encampar privatizações e reformas, como a tributária e a administrativa. Hoje, a política econômica é refém dos interesses patrimonialistas do Centrão e do projeto de poder de Bolsonaro.

A esquerda, por sua vez, “se apropriou indevidamente do monopólio do discurso do bem social”, como lembrou Barbosa. Essa apropriação, retoricamente alimentada pela vilanização da iniciativa privada, serviu na prática ao aparelhamento de um Estado cujos pedaços foram distribuídos a políticos corruptos e empresários gananciosos. O PT se jacta de ter se servido do superciclo das commodities para ampliar os programas sociais gestados na administração FHC. Mas esses programas não foram estruturados para alavancar a independência de seus beneficiários. Além disso, os investimentos em infraestrutura e capital humano foram negligenciados e a irresponsabilidade fiscal arruinou as contas públicas, levando à deterioração da renda e ao desemprego recorde. Em outras palavras, se o lulopetismo deu um pouco às populações carentes com uma mão, tirou muito mais com a outra.

Ante o fracasso dos modelos populistas, é compreensível o temor que aflige a parte mais sensata do eleitorado. Mas, carentes de propostas, os dois adversários se valem justamente do medo um do outro para retroalimentar suas ambições eleitorais. Assim como a campanha bolsonarista foi e é fundada sobre o antipetismo, a campanha petista se resume ao antibolsonarismo.

A esperança pode vencer o medo. Mas, para isso, os candidatos que se apresentarem como seus portadores precisarão propor uma agenda modernizante. Não, porém, costurada nos recessos das cúpulas partidárias, e sim com as lideranças da sociedade civil. As articulações políticas que resgataram a democracia do País nas “Diretas Já” e superaram as grandes crises da Nova República com os impeachments de Fernando Collor e Dilma Rousseff foram erguidas sobre uma mobilização cívica. Só com essa mobilização será possível evitar que o lulopetismo e o bolsonarismo perpetuem a crise que eles fabricaram e colocar o País nos trilhos do desenvolvimento.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 01 de novembro de 2021 

Sex shops dedicadas a evangélicos crescem no Rio: ‘Público é fiel’, diz proprietária

Carolina afirma que seu negócio tem como propósito ajudar os casamentos a perdurarem e casais a ficarem juntos. Já a empresária Andréa dos Anjos conta que envia produtos em caixa de remédio e saco de padaria.


Empresária Carolina Marques: curadoria cuidadosa e produtos com nomes lúdicos — Foto: Arquivo pessoal

A empresária Carolina Marques, de 26 anos, já tinha um filho de outro relacionamento quando conheceu o atual marido, com quem é casada desde janeiro. Mesmo assim, convertida à Assembleia de Deus há três anos, Carolina esperou se casar para ter um envolvimento sexual com ele.

Depois de oficializar a relação, no entanto, nada de monotonia na cama. Pelo contrário.

Dona da sex shop ConSensual, direcionada ao público evangélico, Carolina quer levar aos clientes desse nicho a ideia de que o sexo não precisa ser um tabu nem deve ser visto como algo sujo -- desde que aconteça entre um homem e uma mulher e dentro do casamento. 

Em sua loja de artigos eróticos, que ela prefere chamar de 'Love Store' no lugar de 'Sex Shop', as aparências importam. As embalagens são de cores sóbrias, e os produtos não têm nomes sugestivos em seu negócio, inaugurado em maio. Sabores mais lúdicos, como algodão-doce e outros inspirados nos famosos chicletes Bubbaloo, têm uma receptividade melhor.

“Não tem como vender produtos chamados ‘ppk louca’, ‘ ‘vai fundo’, isso assusta esse público, pode acabar afastando”, diz ela.
Carolina vê em seu negócio mais que uma fonte de renda e acredita que sua marca tem um propósito: ajudar os casamentos a perdurar.

Para isso, Carolina, massoterapeuta de formação, conta que faz uma curadoria muito cuidadosa dos artigos, já que para quase todas as clientes aquela é a primeira vez que elas usam um produto do tipo. Então, é importante que a qualidade seja boa, para mostrar que o investimento vale a pena. 

“A ideia é mostrar que o sexo pode ser uma conversa saudável, um assunto para se tratar sem medo e que começa muito antes da cama. Se a esposa não quer porque está cansada, o marido tem que pensar se ele tem feito a parte dele na casa. Às vezes, a mulher só está sobrecarregada com as tarefas, o trabalho, os filhos”, diz ela.  

Produtos para sexo anal, por exemplo, não são o foco de sua loja. “Dentro do meio cristão, a região anal é vista como uma área fisiológica. Tanto que não existe ali lubrificação natural. A mulher engravida a partir da penetração na vagina, aquilo já foi feito para isso”, diz ela. 

Quanto ao sexo oral, há mais liberdade, pela prática ser vista como um tipo de carinho, dentro da retórica evangélica. 

Produtos enviados em caixa de remédio e saco de padaria

Andrea dos Anjos, de 43 anos, é outra vendedora do setor erótico gospel no Rio. Há 17 anos, ela frequenta a Igreja Batista e, desde 2019, é dona da loja Memórias da Clo, que atende esse público. Andrea tem visto o interesse de seu público aumentar, principalmente na Zona Norte e nos bairros da Barra e do Recreio, na Zona Oeste.

“São clientes um pouco diferentes da maioria, porque, devido à religião e a alguns dogmas, ficam envergonhados e constrangidos, mas é um público fiel. Dou consultoria informalmente”, explica.
Andrea, assim como Carol, vende seus produtos pela internet e ganha clientes no boca a boca. 


Empresária Andréa dos Anjos — Foto: Arquivo pessoal

Para esse público, muito reservado, uma loja física, identificável, não é tão interessante, já que a discrição é uma das chaves do sucesso. 

“Tenho clientes que pedem para eu mandar os produtos em caixa de remédio, em saco de padaria, para que ninguém saiba mesmo”, conta ela.

As duas afirmam que mulheres são 95% de seu público. A idade costuma variar bastante.  

‘Me chamavam de crente do rabo quente’

Carolina foi julgada pela mãe e teve que convencer até o marido de que sua ideia era boa. “Me chamavam de crente do rabo quente, meu marido falou que não sabia se ia dar certo, por sermos cristãos, mas eu sabia que a marca teria um propósito”, diz ela. 

Ambas as vendedoras conversam com as conhecidas da igreja, que indicam para outras fiéis, e assim as marcas se propagam e crescem.

“Eu só não levo para dentro da igreja, entrego do lado de fora”, explica Carol.
Vibradores não estão no catálogo da ConSensual, pelo menos não ainda. “Um homem pode ficar muito intimidado de ver a mulher com uma prótese que pareça um pênis. Por que ter outro pênis ali? No futuro, quero trazer vibros, mas do tipo colorido, para usar junto, mas as pessoas precisam se acostumar aos poucos com essa ideia. Primeiro um gel beijável, um lubrificante, e depois algo a mais”, explica. 

Clientes têm medo de julgamento, mas aprovam produtos
O g1 conversou com mulheres evangélicas que preferiram não ser identificadas, mas garantem que incluir os produtos em suas vidas sexuais fez diferença. 

“Tinha medo de ser julgada. Produtos íntimos, até onde apresentavam pra mim com naturalidade, eram produtos de higiene. Em uma sex shop normal, me sentia atacada de informação, imagens apelativas, próteses de genitálias na nossa cara durante o atendimento”, diz uma das clientes da ConSensual. 

Com a loja, isso mudou. A cliente passou a se sentir mais à vontade sabendo que está com outra mulher evangélica. 

Cliente da Memórias da Clo, outra mulher que prefere não se identificar conta que os acessórios mudaram seu casamento e que fez diferença ter uma vendedora que compartilhasse de sua fé. 

“Sou casada há 15 anos, conversei com meu esposo que uma amiga minha que também é evangélica vendia esses produtos e se ele aceitaria usá-los para sairmos da rotina”, conta ela. Ele aceitou e os dois vêm curtindo as novidades. 

“Mudou muito o meu casamento, com toda certeza, não é porque somos evangélicas que também não podemos usar umas coisinhas, né?”, brinca.

Elisa Soupin, do Rio de Janeiro, RJ, para o g1, em 01.10.21

Brasil não sabe quantos homicídios são esclarecidos porque maioria das vítimas é negra

Quando começaremos a oferecer justiça às famílias negras em luto?

Tornou-se um triste lugar-comum tipicamente brasileiro lembrar que somos os líderes mundiais em homicídios, considerando o total de ocorrências. Após uma leve melhora após 2017, o ano de nossa história em que mais somamos vítimas de mortes violentas, os homicídios voltaram a subir em 2020, acrescentando mais dor a todo o sofrimento que a epidemia nos trouxe.

Como no Brasil temos por hábito associar tragédias, além das dezenas de milhares de vítimas anuais de assassinatos, pouco fazemos para oferecer justiça aos mortos e a seus familiares. É notável, por exemplo, que no país com mais homicídios no mundo e com a terceira maior população carcerária do planeta, apenas 11% dos detentos sejam condenados ou estejam sendo acusados de homicídios. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a maioria dos presos, em torno de 40% deles, tem ligação com o tráfico de drogas, em sua grande maioria detidos com uma pequena quantidade de drogas e sem terem praticado atos violentos. Outros 36% estão associados a crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos.

A composição da massa carcerária denota de forma explícita o modelo de segurança pública que vigora no país, apesar dos seus resultados pífios: um modelo de policiamento orientado ao confronto, em detrimento da investigação e da perícia policial; investimento massivo em armas que não deveriam ser utilizadas num país que não esteja em guerra, em veículos e aeronaves de combate orientados a bairros periféricos e pobres e operações policiais orientadas ao confronto e ao flagrante, cujo principal resultado é termos a polícia que mais mata, mas também mas morre no mundo, e pequenas apreensões de armas e drogas. Crimes que dependem de investigações mais complexa s e que muitas vezes não ocorrem nas ruas e por isso não são interrompidos em flagrante, justamente como os homicídios, restam impunes em sua maioria.

Essas reflexões levaram o Instituto Sou da Paz a se debruçar sobre o esclarecimento de homicídios no Brasil há cinco anos e a primeira constatação foi desanimadora: mal havia informações sobre a quantidade de mortes violentas efetivamente esclarecidas pela polícia, com seus acusados denunciados à Justiça pelo Ministério Público. Como melhorar algo cuja dimensão nem se conhece? Como o país com mais homicídios no mundo não apresenta de forma organizada e periódica os dados sobre a impunidade do mais atroz dos crimes? Estas foram as primeiras perguntas que nos chocaram. Desde então passamos a buscar anualmente tanto os Tribunais de Justiça quanto os MPs estaduais para buscar dados que nos permitissem calcular um indicador nacional de esclarecimento de homicídios e pressionar estados a produzirem estes dados e estabelecerem metas para a melhoria de seus índices, a partir de sua própria realidade ― como, aliás, as políticas educacionais são avaliadas há muito tempo.

Há poucas semanas lançamos a 4ª edição da pesquisa “Onde Mora a Impunidade”, onde apresentamos os dados que obtivemos referentes aos homicídios ocorridos em 2018. Embora mais uma vez fracassamos em obter dados válidos para todos os estados brasileiros, comemoramos o aumento significativo de estados que produziram dados desde a primeira edição, em 2017. Naquele ano, apenas seis unidades federativas nos responderam de forma satisfatória. Neste ano, 17 estados apresentaram dados que nos permitiram calcular o índice. Não é possível tratar o tema de forma simplória, considerando a típica diversidade regional brasileira. Se o Paraná e o Rio de Janeiro apresentam índices baixos, de pouco mais de 10% de esclarecimento de homicídios, estados como Santa Catarina e Mato Grosso do Sul superam os 80%.

Conhecer estes números é fundamental para que cada unidade da federação possa planejar políticas de combate aos homicídios e trazer justiça à memória dos mortos e algum alento a seus familiares. Defendemos que estes dados deveriam ser coletados e publicados pelo Governo Federal, para que possam orientar ações coordenadas em todo o território nacional. Há projetos no Congresso Nacional e no Conselho Nacional do Ministério Público para obrigar a produção destes dados pelos estados e a coleta e publicação por órgãos centrais e é urgente que sejam aprovados.

Em nosso país, há tragédias que se repetem de forma crônica. No caso da violência, assassinatos e do encarceramento, o raio cai sempre no mesmo lugar: as comunidades pobres, negras e periféricas brasileiras. Talvez uma cruel explicação para o fato de que o país que mais registra assassinatos no mundo nem sabe ao certo quantos acusados de mortes violentas foram ao menos julgados em seus tribunais seja o racismo estrutural da sociedade brasileira. Não nos preocupamos com nossos mortos de homicídios porque são, em sua quase totalidade, jovens pretos. Dados recentes do Atlas da Violência mostram que 77% das vítimas de homicídio em 2019 eram negras. A chance de um negro ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes maior do que de alguém não negro. Os mesmos negros pobres aprisionados por pequenas quantidades de mortes em geral são os mesmos mortos pelo crime e pela polícia, assim muitas vezes são policiais negros são mortos em operações inúteis e mal planejadas. Além de uma necessidade para se orientar o combate ao homicídio no Brasil, a produção de um indicador nacional de esclarecimento de homicídios é um sinal mínimo de respeito a todos as pessoas negras mortas anualmente no Brasil, assim como a seus familiares, cuja dor resta aprisionada em seus corpos, que não interessam ao Estado.

Felippe Angeli, o autor deste artigo, é gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 30.10.21

Na COP26, ONU pressiona líderes a "salvarem a humanidade"

Em discurso na abertura da cúpula em Glasgow, chefe das Nações Unidas diz que é hora de dizer "basta" ao desastre climático. "Ou paramos ele, ou ele nos para. Estamos cavando nossas próprias covas", afirma Guterres.


O anfitrião da COP26, o premiê britânico Boris Johnson, a chanceler alemã Angela Merkel e o chefe da ONU, António Guterres

Na abertura da Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas (COP26) nesta segunda-feira (01/11), o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, pressionou os líderes mundiais a tomarem ações concretas para "salvar a humanidade" e proteger o planeta da crise do clima.

Sem o brasileiro Jair Bolsonaro mais de 120 chefes de Estado e de governo estão reunidos em Glasgow, na Escócia, para a cúpula climática de dois dias, que seus organizadores dizem ser crucial para traçar um caminho que não leve a um aquecimento global catastrófico.

"Ao abrirmos esta tão esperada conferência sobre o clima, ainda estamos caminhando para um desastre climático. Os jovens sabem disso. Cada país vê isso. Pequenos Estados insulares em desenvolvimento – e outros vulneráveis – vivem isso. Para eles, o fracasso não é uma opção. O fracasso é uma sentença de morte", declarou Guterres.

"Ou paramos [esse desastre], ou ele nos para. E é hora de dizer 'basta'. Basta de brutalizar a biodiversidade. Basta de nos matarmos com carbono. Basta de tratar a natureza como um banheiro. Basta de queimar, perfurar e minerar nosso caminho mais a fundo. Estamos cavando nossas próprias covas", continuou o português, reforçando sua reputação de ser um dos maiores defensores de ações urgentes pelo clima.

Guterres disse ainda que, se os governos mundiais fracassarem em apresentar compromissos ambiciosos na COP26, eles terão que retornar anualmente com promessas melhoradas, em vez dos atuais cinco anos acordados anteriormente.

"Não tenhamos ilusões: se os compromissos forem insuficientes até o final desta COP, os países deverão rever seus planos e políticas climáticas nacionais. Não a cada cinco anos, mas todos os anos, até que possamos garantir o nível de 1,5 °C [de aquecimento global, ante os níveis pré-industriais]. Até que os subsídios aos combustíveis fósseis acabem, até que haja um preço para o carbono, e até que o carvão seja eliminado", disse.

O chefe da ONU também defendeu a importância de um financiamento anual bilionário para apoiar medidas climáticas em países de baixa renda, acordado em Paris em 2015.

"O compromisso de financiamento climático de 100 bilhões de dólares por ano em apoio aos países em desenvolvimento precisa se tornar realidade. Isso é fundamental para restaurar a confiança e a credibilidade", afirmou. "Os que mais sofrem – ou seja, os países menos desenvolvidos e os pequenos Estados insulares em desenvolvimento – precisam de financiamento urgente."

Ele observou que os países do G20 são responsáveis por 80% das emissões globais de gases de efeito estufa e, portanto, têm uma responsabilidade maior.

Por fim, Guterres declarou apoio ao ativismo climático comandado pelas gerações mais jovens. "O exército da ação climática – liderado por jovens – é imparável. Eles são maiores. São mais barulhentos. E, garanto a vocês, eles não vão desistir", disse. "Eu estou com eles."

Johnson: "Se fracassarmos, nossos filhos não nos perdoarão"
Guterres falou logo em seguida ao anfitrião da COP26, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que em seu discurso também recorreu à retórica de que o mundo caminha para um fim se não agir contra a crise climática.

Segundo ele, o aquecimento global é como um "dispositivo do Juízo Final" amarrado à humanidade, fazendo referência ao agente secreto fictício James Bond, amarrado a um bomba que destruirá o planeta e tentando descobrir como desarmá-la.

A única diferença é que "este não é um filme e o dispositivo do Juízo Final é real", declarou Johnson. "Falta um minuto para meia-noite nesse relógio do Juízo Final e precisamos agir agora." A ameaça, segundo ele, é a mudança climática, desencadeada pela queima de carvão, petróleo e gás natural.

"Se fracassarmos, nossos filhos não nos perdoarão. Nos julgarão com amargura e terão razão", disse o premiê britânico às dezenas de chefes de governo e Estado reunidos em Glasgow.

Ele ainda alertou que um aumento de 2 °C na temperatura global colocaria em risco a distribuição de alimentos; com 3 °C haveria mais incêndios descontrolados e cinco vezes mais secas; e com 4 °C "daremos adeus a cidades como Miami e Alexandria".

O discurso de Johnson foi o primeiro entre os líderes globais, que apresentarão nesta COP suas estratégias para cumprir com o objetivo de limitar o aquecimento global em 1,5 °C.

Em seguida, os negociadores indicados pelos governos, blocos comunitários, organizações e empresas buscarão fechar, durante as duas próximas semanas, um acordo final para a COP26.

"Estava em Paris seis anos atrás, quando concordamos com as emissões zero e em limitar o aquecimento em 1,5 °C. Mas essas promessas não terão sido mais que 'blá blá blá' se não fizermos desta COP o momento de sermos realistas contra a mudança climática", disse Johnson.

"A COP26 não pode e não será o fim da luta contra a mudança climática, no entanto, embora não seja o fim, deve marcar o início do fim", completou, pedindo trabalho com criatividade e imaginação dos líderes globais. (ek (Efe, AP, AFP, Reuters).

Deutsche Welle Brasil, em 01.11.21

Deputadas trans querem mudar política alemã

Nyke Slawik e Tessa Ganserer foram eleitas para compor o Bundestag, o Parlamento alemão, e são as duas primeiras deputadas publicamente abertas sobre sua identidade trans. Ambas querem usar sua influência política para lutar por uma sociedade mais aberta e diversa.    

Nyke Slawik e Tessa Ganserer foram eleitas para compor o Bundestag, o Parlamento alemão, e são as duas primeiras deputadas publicamente abertas sobre sua identidade trans. Ambas querem usar sua influência política para lutar por uma sociedade mais aberta e diversa.    

"Ainda temos tantas leis que são discriminatórias. Por exemplo, existe a legislação transexual na Alemanha, pela qual as pessoas trans são ainda tratadas como doentes mentais", disse Ganserer. 

Ambas são deputadas do Partido Verde e têm em suas agendas, primordialmente, o combate contra a discriminação de pessoas trans e a fomentação de políticas verdes de mobilidade, além de pavimentar um futuro com menos barreiras para políticos e políticas trans.

"Tenho certeza de que será bem mais fácil para as pessoas trans que vierem depois de nós", concluiu.

Deutsche Welle Brasil, em 01.11.21

Ex-potência ambiental, Brasil chega à COP26 com reputação derretida

Com desmatamento e emissões em alta sob Bolsonaro, país sofre desgaste internacional e perde prestígio que acumulou em negociações climáticas anteriores. ONU vê regressão nas metas brasileiras.

Área desmatada no Pará em 2020: antiga boa reputação do Brasil na área ambiental havia sido construída a partir de uma queda drástica do desmatamento na Amazônia

Após um intervalo de dois anos devido à pandemia de covid-19, a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), em Glasgow, na Escócia, é encarada como uma das mais decisivas. Nesta edição, é aguardado que países anunciem metas mais ousadas de corte de emissão de gases de efeito estufa para que a temperatura média do planeta não aumente mais que 1,5 ºC em relação aos níveis pré-industriais até o fim de século, patamar estabelecido no Acordo de Paris.

Com um histórico respeitável em discussões internacionais como essa, desta vez o Brasil não deve ter uma performance de impacto. Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência com uma política antiambiental, a reputação do país como potência nessa área se derreteu, assim como sua habilidade de destravar nós diplomáticos.

"A capacidade que o país tinha de influenciar as negociações foi enfraquecida. O governo Bolsonaro vive uma situação caótica sob esse ponto de vista, principalmente com o aumento do desmatamento", pontua Raoni Rajão, professor de Gestão Ambiental e Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Programa lançado às pressas

Nem o chamado Programa Nacional de Crescimento Verde (PNCV), lançado às pressas antes da COP26, empolgou. Segundo o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, o programa, apresentado na última segunda-feira (25/10), tem o objetivo de reduzir as emissões, conservar florestas e usar racionalmente os recursos naturais, com geração de emprego e crescimento econômico.

Na prática, no entanto, a direção parece ser outra. Em 2020, o país registrou uma alta de 9,5% nas emissões puxada pelo aumento do desmatamento, principalmente na Amazônia, conforme levantamento feito pelo Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG).

"Não se espera muito do Brasil. O país não conseguiu articular nada consistente em termos de proposta de redução de emissões que tivesse transparência, etapas claras a serem cumpridas e compromissos", analisa Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasilia e membro da Coalizão Ciência e Sociedade.

O decreto que criou o PNVC fala ainda em investimento para pesquisa em biodiversidade e serviços ecossistêmicos como bases para esse crescimento verde. Ironicamente, ele foi publicado poucas semanas depois de um grande corte de recursos para a ciência , à beira de um colapso iminente.

"É mais um movimento errático", comenta Bustamante sobre o PNVC. "O governo tem consciência de que a imagem está muito desgastada. Esse plano não tem nada consistente apontando para uma mudança de trajetória."

Manobra nas contas

A COP26 terá que lidar com uma matemática difícil. Os gases de efeito estufa lançados na atmosfera ainda levam a um aquecimento além do 1,5 ºC estipulado pelo Acordo de Paris. Todas as promessas de cortes de emissões feitas pelos 192 países que ratificaram o pacto levam o termômetro para uma elevação de pelo menos 2,7 °C neste século, segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) publicado nesta semana.

Essas promessas estão nas chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas, ou NDCs, na sigla em inglês. É por meio da NDC que um país indica o quanto está disposto a cortar de CO2 para frear o aquecimento do planeta.

Uma contribuição brasileira para melhorar essa conta não deve surgir durante a reunião. Na sua NDC original, apresentada em 2015 na COP de Paris, o país fixou o compromisso de reduzir suas emissões líquidas em 37% até 2025. Para 2030, estipulou o corte de 43% - ambos em relação ao ano de 2005.

Numa revisão submetida à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), que organiza as COPs, o país manteve as percentagens, mas alterou a base de cálculo. Na prática, a "nova" NDC permite ao Brasil chegar a 2030 emitindo 400 milhões de toneladas de CO2 a mais que o proposto em 2015.

A "pedalada" não passou despercebida: no relatório Emissions Gap Report publicado nesta semana, a poucos dias da COP26, o Pnuma destacou que o Brasil regrediu na ambição de suas metas.

Credibilidade abalada

A antiga boa reputação internacional do Brasil na área ambiental havia sido construída a partir de uma queda drástica do desmatamento na Amazônia. O país foi o que mais reduziu emissões no planeta entre 2004 e 2012, por causa de uma redução de 80% no corte da floresta.

O país também sediou a conferência que deu vida à UNFCCC, a ECO-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992. Durante as últimas décadas, os negociadores brasileiros ganharam papel de destaque, em particular quando o Acordo de Paris foi firmado. Mas o cenário mudou nos últimos anos.

"Hoje, o Brasil enfrenta enormes desafios com o aumento do desmatamento e da violência contra os povos indígenas e o enfraquecimento da governança socioambiental", comenta Toerris Jaeger, secretário-geral da Rainforest Foundation Norway. "Isso com certeza será discutido em eventos paralelos e nos corredores da COP, pois deve haver coerência entre o que é dito no cenário internacional e o que está acontecendo no território."

Susanne Dröge, especialista em política climática do Instituto Alemão para Política Internacional e Segurança (SWP), concorda que a imagem do governo brasileiro se deteriorou, mas ressalta que o peso do país é grande quando se consideram os estoques de carbono da maior floresta tropical do mundo.

"O Brasil é sempre solicitado a proteger a Amazônia, e a ajuda internacional continuará sendo importante para isso. Suspender o Fundo Amazônia não pode ser uma solução permanente", comenta Dröge, ressaltando que muitas entidades precisam de apoio internacional.

Além disso, o Brasil [e uma âncora na região, exercendo influência sobre outros países latino-americanos, analisa Dröge. "A cooperação com o Brasil também é essencial nesse sentido", diz.

Ainda assim, não há sinais de que doadores internacionais se comprometam a enviar recursos para o país proteger a floresta. O Fundo Amazônia, criado para incentivar o uso sustentável da floresta e combater o desmatamento, foi paralisado após a chegada de Bolsonaro à presidência. Por causa da indefinição, inúmeros projetos financiados pelo fundo tiveram que suspender as atividades.

Deutsche Welle Brasil, em 01.11.21

Ato com Bolsonaro em Roma acaba em violência contra jornalistas brasileiros

Enquanto isso, eles permitiam que apoiadores se aproximassem de Bolsonaro para tirar selfies.

Uma manifestação pró-Bolsonaro com brasileiros que vivem na Itália acabou em violência e intimidação contra jornalistas que cobriam o evento na região da embaixada do Brasil em Roma neste domingo (31/10). Agentes de segurança italianos e brasileiros empurraram, deram socos, arrancaram celular de um repórter que filmava o ato, seguraram, gritaram e impediram repórteres de chegar perto do presidente para entrevistá-lo.

O ato começou pacificamente por volta das 15h (horário local) e reuniu dezenas de pessoas no lado dos fundos da representação brasileira. Vestidos de verde e amarelo. Eles cantavam o hino brasileiro e gritavam palavras de ordem a favor do presidente enquanto aguardavam o presidente. Cerca de uma hora depois, Bolsonaro acenou da sacada e em seguida desceu para discursar para apoiadores reunidos numa praça do centro da capital italiana.

Bolsonaro se defendeu das críticas e acusações à sua gestão da pandemia e fez críticas à imprensa e à CPI da Covid, entre outros assuntos. Enquanto isso, ele era filmado das janelas da embaixada por integrantes de sua comitiva.

Depois de sua fala, ouvida em silêncio por todos, ele decidiu caminhar pelas ruas do centro de Roma. Foi quando o tumulto começou.

Jornalistas de diversos veículos brasileiros, entre eles a BBC News Brasil, credenciados para a cobertura da reunião do G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo), tentaram se aproximar do presidente para entrevistá-lo. Bolsonaro foi questionado sobre os motivos de sua ausência na COP26 (Cúpula do Clima na Escócia) e sobre a greve dos caminheiros prevista para esta segunda-feira (1º/11) no Brasil, entre outros temas.

Mas ele não respondeu a nenhuma das perguntas durante sua caminhada de menos de dez minutos, registrada por câmeras de jornalistas, assessores e apoiadores.

Bolsonaro não respondeu a nenhuma das perguntas durante sua caminhada de menos de dez minutos Matheus Magenta / BBC News Brasil).

Enquanto isso, os agentes de segurança do Brasil e da Itália que o cercavam só deixavam apoiadores com as cores verde e amarela e membros da comunicação do governo se aproximarem do presidente para tirarem fotos e se abraçarem enquanto intimidavam e agrediam jornalistas no entorno do mandatário. Parte dos apoiadores xingou e intimidou repórteres.

O jornalista Jamil Chade, que cobria o ato para o portal UOL, teve o celular arrancado de suas mãos, enquanto filmava a manifestação, por um agente de segurança italiano que não quis se identificar. Em seguida, o aparelho foi jogado no chão pelo policial durante a manifestação pró-Bolsonaro e recuperado pelo jornalista instantes depois.

Jornalistas brasileiros são atacados durante passagem do presidente em Roma (Matheus Magenta / BBC News Brasil)

Ao fim do evento, diversos jornalistas brasileiros questionaram os agentes de segurança italianos à paisana sobre as agressões que eles cometeram durante o ato. Em resposta, eles diziam "podem registrar queixa" e não se identificaram. Parte dos profissionais de mídia do Brasil que cobriram o ato iria sim formalizar as agressões com a polícia italiana.

Procurada pela BBC News Brasil para comentar a violência contra os jornalistas, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República não respondeu aos questionamentos da reportagem até o momento da publicação deste texto.

Matheus Magenta, de Roma para a BBC News Brasil, 31.10.21

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Procuradoria abre investigação preliminar sobre Bolsonaro e outros 12 a partir da CPI da Pandemia

Procedimento é apenas o primeiro ato formal da PGR e não implica que os pedidos de indiciamento apresentados pela comissão foram endossados pelo procurador Augusto Aras

Os senadores da CPI da Pandemia entregam oelatório final ao procurador-geral Augusto Aras na quarta-feira. (Antonio Augusro, SECOM/MPF)

O procurador-geral da República, Augusto Aras, tomou seu primeiro ato formal sobre as acusações feitas pela CPI da Pandemia contra o presidente Jair Bolsonaro e os outros 12 portadores de foro privilegiado que protagonizam o relatório final da CPI. A abertura de uma investigação preliminar é um procedimento padrão e não significa que Aras tenha considerado válidos os argumentos apresentados nas 1.288 páginas do documento, em que Bolsonaro é acusado de crime contra a humanidade, entre outros oito delitos, por sua gestão da pandemia de covid-19. “Esperamos que prospere. A CPI da Covid encerrou suas atividades de maneira formal, mas continuamos trabalhando e acompanhando para que o relatório tenha seus resultados esperados”, escreveu o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), em seu perfil no Twitter ao saber da abertura da apuração

O discurso de vigilância de Rodrigues se explica pelo histórico de Aras, que até agora, em mais de dois anos de Procuradoria Geral da República (PGR), não passou da abertura de investigações preliminares no que diz respeito a Bolsonaro. A desconfiança em relação a seu trabalho levou a PGR a divulgar uma nota nesta quinta-feira, para refutar “textos especulativos acerca do tratamento a ser dado ao Relatório da CPI da covid 19 pela Procuradoria-Geral da República”. “A Procuradoria-Geral da República reitera o respeito ao trabalho feito ao longo de seis meses pelos senadores que integram a CPI que, inclusive, não permite e não condiz com eventuais ilações acerca de análises de materiais que sequer chegaram de forma oficial ao órgão ministerial”, diz a mensagem. Nesta quinta, circularam informações de que assessores de Aras teriam considerado o conteúdo do relatório “devastador”, o que não parece ser a avaliação do procurador-geral.

A cúpula da CPI da Pandemia se reuniu com Aras na quarta-feira, um dia após a aprovação do relatório que pede o indiciamento de 78 pessoas —13 delas com prerrogativa de foro— e duas empresas, para marcar publicamente a entrega do documento. Na ocasião, o procurador-geral fez uma saudação protocolar ao trabalho dos parlamentares. “Esta CPI já produziu resultados. Temos denúncias, ações penais e civis em curso, autoridades afastadas”, elogiou. “E a chegada desse material que envolve pessoas com prerrogativa de foro por função vai contribuir para que possamos dar a agilidade necessária à apreciação dos fatos que possam ser puníveis seja civil, penal ou administrativamente”, completou Aras.

Quem são os 80 alvos de pedidos de indiciamento do relatório final da CPI da Pandemia

Nesta quinta-feira, o périplo dos representantes da comissão passou pelo procurador-geral do Ministério Público do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, pela presidenta do Tribunal de Contas da União, Ana Arraes, e pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux. “Como guardião da Constituição brasileira, tenho certeza que o Supremo tomará as providências cabíveis para que a justiça seja feita”, declarou o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), ao entregar o documento para Fux. Desde a aprovação do relatório final, redigido pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), os senadores se escoram em eventos como esses para manter as atenções sobre aqueles que os parlamentares determinaram como os principais responsáveis pelas mais de 607.000 mortes da pandemia no Brasil.

Também nesta quinta-feira, os senadores criaram um Observatório da Pandemia, para receber novas denúncias e fiscalizar as ações das autoridades brasileiras no combate ao coronavírus, além de acompanhar o andamento formal das denúncias apresentadas pela CPI. Entre as autoridades com foro implicadas pela comissão estão ss ministros da Saúde, Marcelo Queiroga, do Trabalho, Onyx Lorenzoni, da Defesa, Braga Netto, e da Controladoria Geral da União, Wagner Rosário. Há ainda um senador —Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ)—, um governador —Wlson Lima (PSC)— e seis deputados: o líder do Governo, Ricardo Barros (Progressistas-PR), Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF), Osmar Terra (MDB-RS), Carla Zambelli (PSL-SP) e Carlos Jordy (PSL-RJ).

Rodolfo Borges, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 28.10.21

Bloqueio da China à carne brasileira põe em risco 10 bilhões de reais neste ano

Estimativa da CNA leva em conta produção que seria vendida até dezembro ao país asiático, responsável por comprar mais da metade do produto exportado pelo Brasil. Atritos de Bolsonaro com chineses e preço do boi afetam o negócio

Linha de produção em frigorífico de Xinguara (PA). (Bruno Cecim, Ag. Pará. Fotos públicas).

A suspensão da exportação da carne bovina para a China deve resultar em perdas para o Brasil de até 1,8 bilhão de dólares (10,1 bilhões de reais) se durar até o fim do ano. No melhor dos cenários, a Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) estima que os produtores brasileiros perderiam 1,2 bilhão de dólares (6,8 bilhões de reais). O histórico de atritos de Bolsonaro com os chineses e o preço do boi afetam o negócio há quase dois meses. A China é responsável por comprar 56% da carne bovina brasileira exportada. A razão oficial para o bloqueio é o registro de dois casos suspeitos da doença da “vaca louca” descobertos no dia 3 de setembro em Minas Gerais e no Mato Grosso. Os chineses suspenderam as aquisições no dia 4 daquele mês e ainda não voltaram atrás, mesmo após o pronunciamento da Organização Mundial de Saúde Animal de que o Brasil representa risco insignificante para a doença.

Além da questão técnico-sanitária, ao menos outros três elementos rondam este tema, conforme analistas e diplomatas relataram ao EL PAÍS: o alto preço da carne, a tentativa do Governo chinês de estimular o tradicional consumo de suínos ao invés dos bovinos e, em menor escala, uma retaliação ao Governo Jair Bolsonaro, outrora marcadamente hostil aos chineses. “O presidente e seu entorno já foram muito duros com a China. Agora, são só elogios. Mas talvez o passado tenha interferido na demora para essa retomada da negociação”, disse um diplomata ouvido pela reportagem.

Até meados deste ano o presidente brasileiro tinha uma relação de atritos com a China. Ele já colocou em suspeita a origem do coronavírus e a confiabilidade das vacinas produzidas naquele país, mas mudou a postura recentemente. Na cúpula dos Brics, em 9 de setembro, Bolsonaro rasgou elogios a Xi Jinping e disse que a parceria entre os países se mostrou essencial para o controle da pandemia de covid-19.

A estimativa da perda para os produtores brasileiros foi feita pelo diretor técnico da CNA, Bruno Lucchi. Sua conta leva em consideração a média de exportações feitas para a China nos últimos três meses do ano, que varia de 400 milhões de dólares a 600 milhões de dólares ao mês. “Esse é o período em que a China mais compra a carne bovina, para estocar para o ano novo chinês [comemorado em fevereiro]”, detalhou o dirigente.

"Quando você deixa de comprar, você acaba induzindo uma queda no valor. É o que o Governo chinês está fazendo. Charles Tang, da Câmara de Comércio Brasil-China

Uma das queixas dos chineses é o preço do gado. A arroba chegou a custar 322 reais em junho deste ano. Desde o veto à carne brasileira, em setembro, o preço da arroba começou a despencar. No dia 28 de outubro, fechou a 258,10 reais. É o menor valor desde outubro de 2020, de acordo com dados do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo.

“Quando deixa de comprar, você acaba induzindo uma queda no valor. É o que o Governo chinês está fazendo”, diz o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, Charles Andrew Tang. Na avaliação dele, quando o mercado estiver mais estável e a China sentir segurança nas questões sanitárias, o comércio será restabelecido entre os dois países.

Alimentação cara e seca prolongada

Lucchi explica que o preço do boi estava alto porque o custo de alimentação dos animais disparou, como consequência da seca intensa e prolongada pela qual passou o país nos últimos anos, e também porque houve uma retenção de fêmeas para gerar novos bezerros. Em 2019, uma série de abates de vacas resultou na redução de nascimentos e atrapalhou o ciclo de reprodução e reposição do gado. “Não tem mais tanta oferta como antigamente”, sintetiza.

Nenhum parceiro comercial do Brasil tem capacidade de ocupar o espaço da China. De acordo com a CNA, anualmente os chineses compram 920.000 toneladas de carne bovina brasileira. Somadas, todas as outras nações compram 900.000 toneladas. Em tese, a carne que não é vendida para a China deveria passar a ser consumida pelos próprios brasileiros.

Essa mudança na destinação da proteína gerou uma redução do preço no atacado. A média do corte bovino caiu de 17 reais para 14 reais. Contudo, até o momento, os varejistas preferiram ampliar suas margens de lucro a repassar essa redução ao consumidor final. Nas gôndolas dos açougues e dos supermercados, essa diminuição quase não vem sendo sentida. A queda no preço foi de apenas 0,31% em outubro, após 16 meses seguidos de alta. Os dados são do IPCA-15, a prévia da inflação divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Diante da indefinição dos chineses, no último dia 20 o Ministério da Agricultura do Brasil determinou que os frigoríficos habilitados a exportar para a China suspendam a produção para o país asiático. Com isso, a tendência é que aumente a oferta no mercado brasileiro, e o preço finalmente caia.

Funcionários de frigorífico em Xinguara, no Pará. (Bruno Cecim, Ag. Pará. Fotos públicas.

Bolha a estourar

De acordo com a CNA, porém, com a redução do valor da arroba e o aumento dos insumos para alimentação do gado confinado, os produtores passaram a amargar altos prejuízos. Se antes eles ganhavam cerca de 300 reais por animal vendido, agora têm o prejuízo de aproximadamente 500 reais. “Quem pode, segura o gado no pasto agora por um período até a situação se normalizar e, só depois, manda para o abate”, diz Lucchi. Essa retenção, em médio prazo, deverá elevar o preço.

Na tentativa de reverter o bloqueio temporário da compra, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina Dias, cogitou viajar a Pequim para negociar a retomada do comércio com o Governo local. Mas recebeu a sinalização de que não seria necessário no momento. Enquanto isso, técnicos do Ministério da Agricultura brasileiro e da Administração Geral de Aduanas da China se reúnem com frequência para analisar o processo de retomada das exportações.

“Essas reuniões virtuais servem para esclarecer procedimentos implementados no Brasil para o controle e vigilância da enfermidade e fornecer informações complementares solicitadas pelos técnicos chineses”, explicou o MAPA, em nota. “As relações entre Brasil e China são boas, em breve esse problema será superado”, avalia Chang, da Câmara de Comércio. Mais da metade da carne bovina exportada do Brasil depende diss.

AFONSO BENITES, de Brasília, DF, para o EL PAÍS, em 29.10.21