terça-feira, 12 de outubro de 2021

Nossa Senhora Aparecida: Por que mãe de Jesus entrou para a história com mais de mil nomes

São muitos nomes, muitas "nossas senhoras". Mas elas todas se referem a uma mesma pessoa, uma mesma santa católica?

Há mais de mil representações da Virgem Maria (Getty Images)

A resposta é sim. O que significa que Nossa Senhora Aparecida, cuja data se comemora em 12 de outubro é uma representação diferente da mesma santa que também pode ser chamada de Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Lourdes e tantas outras.

Trata-se de Maria, uma jovem judia nascida em Nazaré há pouco mais de 2 mil anos, quando essas terras ao sul de Israel eram parte do Império Romano. Para o cristianismo, ela tem papel fundamental: tornou-se a mãe de Jesus Cristo.

Chamada de virgem por dois dos evangelistas, Mateus e Lucas, acredita-se que ela tinha cerca de 15 anos quando ficou grávida — pela doutrina cristã, por obra do Espírito Santo, ou seja, sem ter tido relações sexuais com homem algum. Na época, Maria já estava prometida em casamento a José, um carpinteiro da mesma cidade, mais velho, já na casa dos 30 anos.

Fato é que desta gravidez nasceria Jesus, o pilar fundador do cristianismo. Mas por que a tradição católica não rende a essa mulher apenas o título de Santa Maria, e são tantas as representações dela pelo mundo?

"Os nomes dedicados a Nossa Senhora dependem muito da forma como ela apareceu. Normalmente são dados pelo nome do lugar onde ela apareceu ou pelas condições em que se deram o aparecimento", esclarece o padre Arnaldo Rodrigues, assessor da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Cerca de 200 mil pessoas acompanharam visita do papa Francisco à cidade de Aparecida em 2013 (Marcelo Camargo / ABR)

Conforme explica a cientista da religião Wilma Steagall De Tommaso, coordenadora do grupo de pesquisa Arte Sacra Contemporânea - Religião e História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do Conselho da Academia Marial de Aparecida, essas nomenclaturas acabam variando a "cada povo, cada região, cada cultura", por conta de "títulos que correspondem aos eventos decorrentes de inúmeras situações".

Ela lembra que muitos desses títulos são os chamados dogmáticos. É de onde vem, por exemplo, a nomenclatura de Nossa Senhora da Imaculada Conceição — bula assinada pelo papa Pio IX "declara Maria imune da mancha do pecado original", ressalta a pesquisadora — ou mesmo a ideia de chamá-la de Virgem Maria, já que "o Concílio de Latrão, em 649, preconiza como verdade a virgindade perpétua", da mãe de Cristo.

"Há ainda as denominações decorrentes dos lugares onde houve uma manifestação que deu origem à devoção local, muitas vezes ampliada a outros povos e locais, como Aparecida, Guadalupe, Lourdes, Fátima, Loreto, Montserrat, etc.", complementa ela.

"Nomes diferentes são atribuídos à Virgem Maria pois estão ligados ao lugar onde ela apareceu", acrescenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. "Não existe algo que determine que ela precise, necessariamente, 'ser batizada' com o nome do território da visão, mas como inicialmente as aparições são uma manifestação de religiosidade popular, antes mesmo de passar por toda a análise canônica de praxe, é o povo que acaba difundindo, num primeiro momento, esses títulos."

"Os tantos títulos que lhe dão todos têm uma razão. É Nossa Senhora de Fátima, porque apareceu lá. É Nossa Senhora do Bom-Parto porque auxilia espiritualmente as parturientes. É Nossa Senhora do Bom-Conselho porque tem sempre uma orientação a dar aos seus filhos", afirma o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará. "E todos esses títulos são de uma só mãe, porque é mãe de toda a humanidade e em todos os lugares, os povos a chamam e representam conforme seus costumes, suas tradições. É claro que para uma veneração pública é necessária a aprovação da Igreja."

A basílica da Anunciação, em Israel, tem imagens de Maria enviadas por diferentes países do mundo; aqui é como ela seria representada na Coreia do Sul (Getty Images)

Pedido de mãe é uma ordem

A devoção a Nossa Senhora, contudo, remonta ao princípio do cristianismo. Por princípio, a ideia é que ela funcione como um canal direto ao próprio Cristo — dentro da premissa que pedido de mãe ninguém nega.

Uma passagem importante do próprio evangelho reforça essa ideia. Trata-se da narração do milagre das bodas de Caná, que aparece exclusivamente no texto de João, no qual Jesus faria aquele que é considerado seu primeiro milagre.

Na festa de casamento, onde ele estava junto a sua mãe como convidado, os anfitriões notam que havia acabado a bebida. Maria chama Jesus de lado e explica o drama. Ele, então, transforma água em vinho e garante a continuação da celebração.

"Seria um escândalo para o casal se acabasse a bebida antes de a festa terminar. Quando Maria pede a Jesus que tome uma providência, fica importante o papel dela como intercessora", analisa padre Rodrigues.

A devoção mariana também se baseia em outro momento dos textos bíblicos. Quando Jesus está agonizando na cruz, segundo o relato, ele teria dito algumas palavras para sua mãe e também para seu apóstolo João. Ali, teria utilizado o seguidor como representante toda a humanidade, considerando Maria a mãe dele — e, por extensão, a mãe de todos.

"Nesta ação, João representa toda a humanidade. Maria se tornou a mãe nossa. A nova Eva, uma Eva livre do pecado, como a Igreja nos ensina. Assim, Maria Santíssima cuida da humanidade como mãe e mãe zelosa", analisa o hagiólogo Lira.

No México, Nossa Senhora é representada com traços indígenas (Getty Images)

Antiguidade

Segundo estudos do padre Valdivino Guimarães, mariologista e ex-prefeito de Igreja do Santuário Nacional de Aparecida, os registros mais antigos dessa crença no poder da mãe de Cristo remontam ao século 2. "Indícios arqueológicos demonstram a veneração dos primeiros cristãos. Nas catacumbas de Priscila, se vê pinturas marianas do segundo século, em local onde os primeiros cristãos se reuniam", afirma ele.

"Nas catacumbas, encontramos o afresco considerado, até agora, a mais antiga imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus", comenta De Tommaso. "Esse afresco deixa evidente que os primeiros cristãos entendiam que a vinda de Jesus fora prenunciada nos livros sagrados do povo hebreu. E Maria, a mulher que disse o sim e que tece em seu ventre o corpo do Salvador. Há um ícone muito antigo conhecido como Maria, a tecelã."

A mais remota das aparições remontam ao ano 40 e seria um episódio de bilocação, na verdade, pois Maria ainda era viva. Segundo a tradição cristã, ela teria aparecido ao apóstolo Tiago na atual cidade de Zaragoza, hoje Espanha, onde ele estava pregando. Fato é que há registros da construção de uma pequena capela ali, desde os primórdios do cristianismo.

A basílica da Anunciação tem imagens de Maria enviadas por diversos países; na Escócia ela é representada como branca (Getty Images)

Outro relato sempre citado por pesquisadores é o de Nossa Senhora das Neves, uma aparição de agosto de 352, em Roma. Foi por conta desse episódio que foi erguida a Basílica de Santa Maria Maior.

"Maria é venerada desde os primórdios do cristianismo. Em muitos escritos, e inclusive na própria iconografia primitiva, ela recebe um lugar de destaque. A mais antiga antífona mariana que se tem notícia é do século 2, que é chamada, em latim, de Sub tuum presidium, ou Sob tua proteção. O Concílio de Éfeso, em 431 d.C, analisa e aprova a tese teológica de que Maria também era mãe de Deus, entre outras atribuições que ocorreram mais à frente", pontua Medeiros.

"O tema de Maria está presente em todos os períodos da história do cristianismo. Há uma tradição que aponta que a primeira aparição de Maria teria acontecido na Espanha, em 40 d.C, cujo vidente teria sido São Tiago, apóstolo de Jesus, considerado o evangelizador do território", prossegue a especialista. "O título adotado foi o de Nossa Senhora do Pilar, já que, segundo o relato, Maria teria mostrado ao apóstolo uma coluna, pedindo que ele construísse um santuário naquele lugar."

Ao longo dos séculos, contudo, esses relatos passariam a ser constantes. De acordo com padre Rodrigues, estima-se que hoje sejam cerca de 1,1 mil nomes pelos quais a santa é conhecida.

"Bom, falando do ponto de vista histórico, as aparições acontecem em períodos muito particulares", diz Medeiros. "Não cabe a nós, enquanto historiadores, julgarmos se elas são verídicas ou não, mas o fato está que muitas acontecem em meio a um determinado contexto político-social. É o caso de Fátima, cuja mensagem é muito interessante, e condiz com a postura da que a Igreja vai adotar, frente ao comunismo, nos anos posteriores. Temos o caso de Aparecida, por exemplo, cuja imagem é achada em meio ao debate em torno da abolição da escravatura. Temos o caso de Guadalupe, onde a virgem Maria, com traços indígenas, é um símbolo da luta contra a desigualdade. E por aí vai."

Mas nem sempre a Igreja aprova essas manifestações. "Nem todas as aparições que ocorrem hoje foram oficialmente reconhecidas pelo catolicismo. Há um protocolo a ser seguido. Sem contar que algumas são reconhecidas totalmente e diante de outras, ainda em fase de análise, foi permitida somente a liberdade de culto", lembra ela. "O que a suposta Virgem Maria diz, no caso, precisa condizer totalmente com os princípios da Igreja Católica e até a idoneidade moral e psicológica dos videntes é analisada."

A devoção à Maria é muito antiga no catolicismo (Getty Images)

A padroeira do Brasil

Autora do livro 21 Nossas Senhoras que inspiram o Brasil, a jornalista Bell Kranz conta que a devoção mariana foi trazida ao Brasil já pelas esquadras de Pedro Álvares Cabral — em um dos barcos foi trazida uma imagem da santa. "[A tradição] chegou essencialmente pelos portugueses, pelos colonizadores", explica. "O Tomé de Sousa [primeiro governador-geral do Brasil] chegou à Bahia já com uma imagem da santa na bagagem… Nossa Senhora da Conceição! E logo erigiu uma capelinha em Salvador, que hoje é a grande catedral Conceição da Praia [Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia]."

"Eu diria que o Brasil foi escolhido por Nossa Senhora, não é fanatismo dizer isso", comenta Lira. Para ele, há uma "predileção especial de Nossa Senhora para com esta terra".

"Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Candeias (a mesma da Candelária e da Purificação), Nossa Senhora Aparecida (que é a mesma Conceição), penso que são as mais importantes para o Brasil pela veneração que o povo lhes atribui", acrescenta o hagiólogo.

"É claro que cada Estado brasileiro tem sua devoção. Por exemplo, na Bahia há uma forte devoção à Nossa Senhora da Boa-Morte. Em Minas Gerais, Nossa Senhora da Piedade que é a mesma Nossa Senhora das Dores e por aí vai. No Pará, em Belém, temos a linda manifestação à Nossa Senhora de Nazaré que anualmente leva milhões ao Círio de Nazaré. Aqui no Ceará é interessantíssima a devoção a Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, por exemplo. E qual a razão? Não dá para explicar concretamente. É algo meio que filial mesmo. Amor de filho à sua mãe e uma mãe que é mãe de todas as mães, pais e filhos."

Kranz atenta para o fato de que, dada a religiosidade católica inerente à própria construção da nação brasileira, "desde a colonização, Nossa Senhora está presente em todos os momentos de nossa história".

E a ligação brasileira com a santa é umbilical. Isto porque, como bem lembra a jornalista, em 1646 o então rei português dom João 4º"consagrou todo o reino, incluindo aí as colônias, a Nossa Senhora". "Aí, 217 anos depois do descobrimento do Brasil, ela apareceu lá para os pescadores [Nossa Senhora Aparecida]", acrescenta Kranz.

Nossa Senhora

Maria se tornou "Nossa Senhora", assim chamada, somente no fim do período medieval. Mas, historicamente, a Igreja já a reconhecia como "Mãe de Deus" muito antes — mais precisamente a partir do século 5, depois do Concílio de Éfeso, em 431. "[É quando] Maria recebe o título de Thotòkos, a Mãe de Deus, dogma que define explicitamente a maternidade divina de Maria. Daí em diante, ela passa a ocupar, por exemplo, o posto principal, o conteúdo da imagem do presépio se amplia e praticamente esse ícone resume a história da salvação", esclarece De Tommaso.

De acordo com o mariologista Guimarães, Maria "ganha destaque sociológico, cultural e religioso" no período medieval. É quando ela adquire "caráter de poder", tornando-se "aquela que destrói o mal". Assume características fortes, "ganha rosto de rainha". Assim, passa a ser invocada como "guerreira", "a mulher que combate o mal e, com poder militar, destrói as heresias".

"Maria passa da dimensão cultural para a política", compara ele. "No período feudal, diante da opressão, Maria se torna a padroeira para os que nela buscam auxílio, e em troca de proteção, o fiel a louva com oração e atos de caridade."

A santa passa a ser invocada "como a mãe que protege diante da ira de Deus, por algum pecado cometido, não só de forma individual mas também comunitária".

"Com o surgimento das ordens mendicantes, Maria se aproxima das pessoas, ela é tirada do trono de realeza, onde fora colocada pela teologia monástica, e se faz irmã, pobre e vizinha das pessoas", diz Guimarães.

Ao fim do período medieval, Maria já era um ícone consolidado dentro do catolicismo, tema constante das pregações e protagonista de tradições como medalhinhas, procissões, novenas e outras manifestações.

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Nalini: Ossos e pés de galinha

Uma das sensações mais desagradáveis que recentemente me acometeram, veio de duas notícias. A primeira, a de que boa parcela da população estava a consumir pés de galináceos em lugar da carne nobre dessas aves. 

O pé sempre foi refugado, até em lares modestos. Quando muito, entrava na canja, mas era deixado de lado.

Agora, é bem de consumo disputado. Talvez o único a que têm acesso os que viram sua renda reduzir-se, drasticamente, em virtude do combo de crises em que estamos imersos.

Nada se comparou, todavia, com a foto e texto de pessoas disputando ossos num caminhão. A que ponto se chegou na terra em que “se plantando tudo dá”! Isso é real, não é invenção da mídia fantasiosa e conspiradora, que atua contra o progresso em que o Brasil se encontra, na fantasiosa narrativa de quem não tem de comer pé de frango, nem correr atrás de carrocerias repletas de ossos.

Parece o coroamento ou a culminância de uma série de fatos que só podem nos entristecer. O desmatamento ignorante e cruel de nossas florestas, a poluição de nossos rios, o desmanche das estruturas tutelares da ecologia, da qual o País tanto se orgulhava e que rendeu encômios a esta Nação que despontava como potência verde.

A pandemia já escancarara os milhões de invisíveis, de informais, desempregados ou subempregados. Pesquisas recentes mostram que 55% dos jovens estão insatisfeitos com o Brasil. 47% deles deixariam o País se pudessem. Até os haitianos desistem desta terra antes acolhedora e se arriscam a serem mortos, porque tentarão entrar de qualquer maneira nos Estados Unidos.

O impressionante é o grupo coeso e fanatizado dos que acreditam que tudo está bem, porque o comunismo foi eliminado do horizonte desta Terra de Santa Cruz. O esfarrapado argumento de que já não existe corrupção é insustentável. É suficiente a leitura da mídia espontânea, aquela que não é alimentada pelo Estado.

Será que além das crises ética, moral, política, econômico-financeira e sanitária, também somos vítima de uma imbecilização total? O que aconteceu com o discernimento, com a lucidez, com o brio, com a sacrossanta capacidade de indignação?

Há um resquício de esperança. Vem da postura do empresariado, que sobreviveu ao desvario governamental, suportou a imprevisibilidade das regras, não tem por si o Erário – que satisfaz a volúpia de gastos de quem nunca teve tanto melado à disposição – e está atuando por si, sem levar o governo a sério.

Empresas que procuram atuar na urgência da descarbonização, fundos que desinvestem na anacrônica exploração de combustíveis fósseis, que fazem reflorestamento, que mostram ao planeta que o Brasil ainda tem nichos de lucidez. Levam entidades da Federação que integram o chamado subgoverno ou governos regionais e locais a prestigiarem a corrente mundial para a conversão da humanidade, fazendo-a assumir posturas condizentes com o maior perigo que já nos ameaçou: o aquecimento global.

É saudável verificar que Governadores dos Estados-membros vão participar da Cop-26, onde faríamos péssima figura, na condição de “Pária ambiental”, para mostrar que a proteção do nosso maior patrimônio, a nossa natureza, entrou na agenda de verdadeiras lideranças. Aquelas que não negam a ciência, que não são terraplanistas, que zelam pela saúde da cidadania e que estão aflitas com o que aí vem. Na verdade, já veio. Ou é por acaso que o Brasil enfrenta a maior crise hídrica do século? Ou é normal que cidades interioranas paulistas ostentem fenômeno típico do deserto saariano?

Um excelente exemplo, que deve servir de inspiração para a Academia, foi o festo de Harvard, cujos Fundos milionários não investirão mais em empresas que explorem combustíveis fósseis. Carvão, gasolina, diesel, devem ser banidos. Se o Brasil tivesse estimulado a pesquisa pura, teríamos talentos voltados à descoberta e produção de energia limpa. Não veríamos a lamentável fuga de cérebros, recrutados pelo Primeiro Mundo, já que aqui não há espaço para eles.

O brasileiro sério, de reta intenção e de boa vontade, não pode pactuar com uma situação que parece ter ultrapassado qualquer limite na decência e na tolerabilidade. Vamos buscar o que restou de ética em nossa consciência e atuar no sentido da restauração do que é exigível numa República: trabalho honesto, observância da ética e prestação de contas – com a maior transparência – ao verdadeiro titular do que resta da relativizada soberania: o povo brasileiro.

José Renato Nalini, o autor deste artigo, é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 06.10.21.

Atrás do próprio rabo

Tanto para Lula quanto para Bolsonaro, centro é uma palavra despida de conceitos

Dois candidatos a presidente e uma ideia fixa: a utopia do centro. Bolsonaro, que se acha predestinado a manter-se no poder, por sua conta e risco; e Lula, que se imagina garfado pela História e quer reaver o lugar.

O primeiro, só pensa em golpe. O segundo, em compensação por um golpe que não houve. Impeachment não é golpe. É processo político constitucional.

Lula acredita ter direitos adquiridos depois de vencer quatro eleições presidenciais, duas para ele mesmo e duas para um poste.

Ambos dedicam-se a reconquistar os votos do centro que, um dia, acidentalmente, foram seus. Imaginem, logo os eleitores do centro! Equidistantes dos extremos que os dois, de fato, representam. Há um impasse a romper. Sozinhos, não vencem. E os votos do centro mantêm-se ainda perplexos. Preferem a alternativa de esperar que surja o seu candidato confiável.

Bolsonaro e Lula, imperturbáveis, vão em frente. Não conseguem despir, em público, a condição de radicais. Ao prometer vestir o figurino da moderação, em particular, parecem andar em círculos, atrás do próprio rabo. Articulam como se montassem uma equação aritmética. Tentam engatar líderes e estruturas, esperando, assim, arrastar a maioria a seu favor. Acham-se capazes de atrair os fiéis da balança para continuar girando a roda da fortuna.

O convite de Bolsonaro ao ex-presidente Temer (MDB) para ajudá-lo a superar sua frustrada tentativa de golpe do 7 de Setembro deixou seus fanáticos à beira de um ataque de nervos. Entre incredulidade e reclamações, os radicais não entenderam o alcance da manobra. Assim como não compreendem que o eleitorado disponível nesta faixa seja indispensável para superar seus limites de 30%.

Bolsonaro os contém, enquanto reforça sua parceria com o Centrão, designação pejorativa de parte do centro eleitoral. Deu a Casa Civil da Presidência a Ciro Nogueira e a presidência da Câmara a Arthur Lira, com o cofre ao alcance da mão. E a ordem, implícita: Façam o que quiserem, sobretudo no Nordeste, mas tragam os seus currais.

Quanto a Lula, resolveu que já era tempo de dar uma satisfação aos enciumados petistas históricos. Menos barulhentos, não precisaram de consolos públicos. Convidados a participar, com ele, dos conchavos e decisões, vieram imediatamente. Esta semana, Lula desembarcou em Brasília, reuniu bancadas, chamou governadores. Até então, o ex-presidente conduzia uma campanha tão fechada que seus amigos o imaginavam desdenhando a disputa. Capaz até de dela desistir.

O ex-presidente estava apenas, e ainda está, integralmente ocupado em buscar o centro. Negocia com o MDB, procura o PSD, o Solidariedade, o PSDB e a quem mais possa corresponder aos seus acenos.

Lula age abertamente. Arranca declarações amigáveis do ex-presidente Fernando Henrique (PSDB) enquanto espera os dissidentes perdedores das prévias para escolha do candidato tucano. Recebe as bênçãos do ex-presidente Sarney (MDB) em encontro reservado antes do jantar, esta semana, que o reunirá com a velha guarda do partido.

Repete seu próprio roteiro de 2002. Quando, declarando-se cansado de perder as disputas anteriores (para Collor e FHC), atribuindo-as ao isolamento do PT, exigiu que se fizessem composições. Só seria candidato com alianças amplas, gerais e irrestritas. Decisão que o levou à vitória, à governabilidade, e à infeliz associação que o integrou ao elenco da Lava Jato.

Tanto para Lula quanto para Bolsonaro, centro é uma palavra despida de conceitos. Sejam geográficos, geométricos, políticos, ideológicos, sociológicos. Para eles, centro não é um ponto de convergência de ideias e programas. É simplesmente um pacote de votos que lhes faltam para vencer.

Jornalista Rosângela Bittar escreve semanalmente sobre o cenário político do País. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 06.10.21

O que importa é o caráter

É descabida a pretensão de limitar a trajetória pública de uma pessoa em razão de sua orientação sexual. Na vida pública, o que se exige é competência e honestidade

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, estabelece a Constituição de 1988, reconhecendo expressamente um dos fundamentos da República: o princípio da igualdade. Onde há discriminação não há verdadeira República, não há Estado Democrático de Direito.

Tudo isso pode parecer óbvio, mas ainda há muito a aprimorar, tanto na atuação do Estado como na própria compreensão da sociedade a respeito do princípio da igualdade. Não cabem discriminações, mas o fato é que ainda existem muitas discriminações, explícitas ou veladas.

Os tempos avançam, antigas batalhas por reconhecimento e igualdade ganham visibilidade, as novas gerações expressam novas percepções e sensibilidades. Mas ainda persistem preconceitos que ferem o princípio da igualdade de todos perante a lei. Circunstâncias pessoais, como cor da pele, religião ou orientação sexual, que não deveriam ter relevância pública – não são critérios aptos a diferenciar pessoas na vida pública e, portanto, são a rigor um “não assunto” –, continuam sendo usadas para diminuir, ridicularizar e estigmatizar determinados grupos e indivíduos.

Na semana passada, ao rebater na CPI da Pandemia um comentário preconceituoso publicado em uma rede social, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) recordou um aspecto fundamental da vida em sociedade. “Eu aprendi que a orientação sexual não define o caráter, que a cor da pele não define o caráter, que o poder aquisitivo não define o caráter”, disse.

Primeiro senador a assumir publicamente a homossexualidade, Fabiano Contarato fez uma vigorosa defesa do princípio da igualdade e da não discriminação. “Eu sonho com o dia em que eu não vou ser julgado por minha orientação sexual. Sonho com o dia em que meus filhos não serão julgados por ser negros. Eu sonho com um dia em que minha irmã não vai ser julgada por ser mulher e que o meu pai não será julgado por ser idoso”, afirmou.

É inteiramente descabida num Estado Democrático de Direito a pretensão de limitar a trajetória pública de uma pessoa em razão de sua orientação sexual. Infelizmente, mesmo que isso não seja dito explicitamente, ainda se constata uma confusão entre a esfera pública e a esfera privada, com a tentativa de desqualificar pessoas para determinados cargos públicos ou privados em razão de sua conduta sexual privada ou mesmo de sua compreensão sobre a própria sexualidade.

São, portanto, especialmente significativas – e corajosas – atitudes como a do senador Fabiano Contarato e a do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB-RS), assumindo sua homossexualidade. “Neste Brasil, com pouca integridade neste momento, a gente precisa debater o que se é, para que fique claro e não se tenha nada a esconder. Eu sou gay, e sou um governador gay. Não sou um ‘gay governador’, tanto quanto (Barack) Obama nos Estados Unidos não foi um ‘negro presidente’. Foi um presidente negro. E tenho orgulho disso”, disse Eduardo Leite, em entrevista à TV Globo no mês de julho.

Na ocasião, apareceram muitas manifestações de apoio ao governador do Rio Grande do Sul, mas também surgiram críticas de diversas posições ideológicas e sob os mais variados motivos. Repetimos: a rigor, num regime republicano, declarações como a de Eduardo Leite não deveriam ter a menor relevância na esfera pública. Todos são iguais perante a lei.

Viver em sociedade significa conviver com a diferença, com a pluralidade de ideias, com a diversidade de concepções morais. Numa República, ninguém deve ser privado de direitos em razão de sua etnia, de sua orientação sexual, de suas escolhas religiosas ou de suas preferências filosóficas. Como também ninguém deve ser privado de almejar determinados cargos, públicos ou privados, em razão de suas circunstâncias pessoais, como se o interesse público exigisse um patamar de invisibilidade a determinadas pessoas ou grupos.

Na vida pública, o que se exige é competência e honestidade. Mais caráter e menos preconceito fariam muito bem ao País.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de outubro de 2021 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Um Poeta

Bonfim Tobias


                                             Entrelaces


Ser poeta ou ser apenas médico,

Esse contraste que a vida tem,

É ser um sonhador ou ser um cético,

Ver só a realidade ou ver além!


Contraste entre a miséria e o estético

Da rosa e do espinho que ela tem,

De quem pensa estrelas e do herético,

De quem vive a alma ou vive sem!


Ser poeta é a ânsia de saber

A vida muito além desta existência,

Ser médico é o desejo de querer


Prolongar está pouca permanência!

Médico e poeta, é a busca e a dor:

Saber a vida é a morte com Amor!


O Brasil precisa olhar para as mulheres vítimas de violência

De modo geral, a violência armada e os homicídios acontecem nas ruas, sobretudo no caso da vitimização masculina. Mas, entre as mulheres, chama atenção que 26% das vítimas de homicídio com emprego de arma de fogo em 2019 sofreram a agressão fatal em casa

Mulheres se emocionam em ato contra a violência em Fortaleza. (Victor Moiyama)

A violência contra a mulher é um fenômeno que afeta a sociedade globalmente, produz impactos do ponto de vista individual e social em diversas esferas, como saúde, educação, trabalho e renda, e cujos danos podem se estender por gerações. No âmbito da violência doméstica, prevalece aquela provocada pelo parceiro íntimo, que passa a se manifestar e a atingir as mulheres desde a juventude, avançando na fase adulta e comprometendo sua vida ao longo das fases reprodutiva e produtiva. Relatório global da Organização Mundial da Saúde estima que na região da América Latina e Caribe a violência provocada por parceiro íntimo atinge 25% das mulheres entre 15 e 49 anos.

No recente estudo elaborado pelo Instituto Sou da Paz, o comportamento dos indicadores criminais do estado de São Paulo durante o primeiro semestre de 2021, chama a atenção, por um lado, a redução geral de ocorrências violentas, como homicídios e roubos, e, por outro, o aumento de ocorrências de violência contra a mulher e de estupros, em comparação com o primeiro semestre de 2020. Se em 2021 os homicídios sofreram redução de 3% no estado, os homicídios de mulheres cresceram 2,6% e as lesões corporais dolosas contra mulheres, 5,4%. As ocorrências de estupro, que atingem majoritariamente as mulheres, também aumentaram, sobretudo as de estupro de vulneráveis, que correspondem a 77% desses casos de violência sexual e tiveram crescimento de 17,5% neste primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano anterior.

É preciso observar esses indicadores no contexto da pandemia da covid-19, visto que o isolamento social afetou a dinâmica de crimes e violências. No primeiro semestre de 2020, quando tivemos o primeiro isolamento amplamente instituído, observou-se uma queda dessas ocorrências em relação a 2019, não só em São Paulo mas também em outros estados. Considerando que as agressões contra as mulheres e a violência sexual contra vulneráveis prevalecem no ambiente doméstico, nota-se que a queda nos registros de lesões corporais e de estupros durante o primeiro momento de isolamento social refletiu antes a subnotificação desses crimes do que sua redução. Com maior exposição e vulnerabilidade a violências que ocorrem dentro de casa e maior dificuldade de acessar canais institucionais para denúncia e atendimento dos casos, os registros sofreram uma redução expressiva no primeiro semestre de 2020.

Instituto Sou da Paz: O acesso às armas é a única resposta de Bolsonaro para melhorar a segurança pública?

Assim, o aumento observado em 2021 sinaliza para uma retomada dos registros que vem resultar em estatísticas mais aproximadas da realidade, ou menos subnotificadas, dando visibilidade para a gravidade e recorrência desse tipo de violência. No Brasil, pesquisas de vitimização —como as realizadas pelo Datasenado, em 2019, e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021— indicam que ao menos 1/4 das mulheres já sofreram algum tipo de agressão, que seu parceiro, companheiro ou ex-companheiro, prevalece entre os agressores, assim como a casa permanece como o principal local onde ocorre o evento violento. E que não chegam a 30% as vítimas que recorrem a instituições como a polícia ou o Disque 180 para fazer a denúncia.). A denúncia é um passo importante para romper o ciclo de violência que caracteriza a violência doméstica e pode se agravar até chegar ao feminicídio, que é o assassinato de mulheres por razões de gênero.

Em relação à morte violenta de mulheres, a partir de dados da saúde, estima-se que no país 1/3 dos assassinatos estão relacionados à violência de gênero, visto que provocados por um parceiro ou ex-parceiro e ocorridos em residências. Os dados da segurança pública, que passaram a ser produzidos a partir da Lei do Feminicídio (2015), se alinham à estimativa ao indicar que os casos de feminicídio corresponderam a 34,5% dos homicídios de mulheres brasileiras em 2020 e, no estado de São Paulo, essa proporção chegou a a 42% (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2021).

Aqui um ponto merece atenção: a arma de fogo é o principal instrumento empregado no assassinato de mulheres, estando presente em cerca de 50% dos casos ocorridos nas últimas duas décadas, conforme indicado em outra análise do Instituto Sou da Paz sobre o Papel da Arma de Fogo na Violência contra a Mulher.

De modo geral a violência armada e os homicídios acontecem nas ruas, sobretudo no caso da vitimização masculina. Mas, entre as mulheres, chama atenção que 26% das vítimas de homicídio com emprego de arma de fogo em 2019 sofreram a agressão fatal em casa. Ainda, 40% das mulheres atendidas no sistema de saúde, vítimas de algum tipo de violência com arma de fogo que não resultou fatal, sofreram a agressão armada em casa —casa que se tornou em 2019 o principal local deste tipo de incidente, à frente da rua. Esses dados evidenciam o risco que a arma de fogo representa no agravamento dos conflitos interpessoais e domésticos ao contribuir para desfechos fatais e/ou danos graves à saúde das vítimas.

Frente à complexidade do problema, já temos grandes desafios para fortalecer e expandir as políticas públicas de enfrentamento da violência contra a mulher, garantindo a implementação de mecanismos de proteção e de acolhimento. No contexto atual, frente aos retrocessos na política de controle de armas, é preciso atentar para o risco que a facilitação do acesso às armas de fogo pode representar em relação ao agravamento dos conflitos interpessoais e da violência doméstica. Defender uma política responsável de controle de armas no país é também um requisito fundamental para avançarmos no enfrentamento da violência contra a mulher.

Cristina Neme é coordenadora de Projetos do Instituto Sou da Paz. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 05.10.21

Consumo de pé de galinha em alta e outros 5 dados que revelam retrato da fome no Brasil

Primeiro, foi a fila quilométrica em um açougue de Cuiabá, no Mato Grosso — maior Estado produtor e exportador de carne bovina do país —, para receber ossos. Depois, cariocas garimpando restos em um caminhão de ossos e pelancas descartadas por supermercados.

São 19 milhões de brasileiros passando fome, uma em cada três crianças anêmicas e um auxílio emergencial médio que só compra 38% da cesta básica. (Ednúbia Ghisi e Regis Luis Cardoso - Fotos Públicas)

E assim, dia após dia, as imagens da fome vão voltando ao noticiário nacional.

Eram 19,1 milhões de brasileiros com fome em 2020, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).

Em relação a 2018 (10,3 milhões), são quase 9 milhões de pessoas a mais nessa condição.

O auxílio emergencial que, no ano passado, em seu valor máximo (R$ 1.200), chegou a comprar duas cestas básicas e sobrar, agora, mesmo em seu maior valor (R$ 375) não compra nem 60% da cesta da região metropolitana de São Paulo.

Em meio a essa realidade, as crianças são as mais afetadas, já que são os lares com pequenos os mais propensos a estarem na pobreza e na extrema pobreza.

Mesmo antes da pandemia, uma em cada três crianças brasileiras sofria de anemia por falta de ferro, segundo estudo da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

Confira esses e outros dados que mostram como a fome voltou a ser um drama cotidiano no Brasil.

1) Aumento de 85% no número de brasileiros com fome em dois anos

A pandemia do coronavírus teve um efeito devastador sobre a segurança alimentar no Brasil, revelaram estudos da Rede Penssan e da Universidade Livre de Berlin publicados este ano.

No país, a fome atingiu 19,1 milhões de pessoas em 2020, parte de um contingente de 116,8 milhões de brasileiros que convivam com algum grau de insegurança alimentar — número que corresponde a 55,2% dos domicílios, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Penssan.

Pessoas em situação de rua recebem marmitas nas ruas de São Paulo. Março de 2021 (Getty Images)

A insegurança alimentar abrange desde a alimentação de má qualidade, passando pela instabilidade no acesso a alimentos, até a fome propriamente dita.

O aumento no número de brasileiros passando fome, de 10,3 milhões em 2018, para 19,1 milhões em 2020, representa um crescimento de 85% em dois anos.

O resultado fez a Oxfam — organização internacional que atua no combate à pobreza, desigualdade e injustiça social — classificar o Brasil como um dos focos emergentes de fome no mundo, ao lado da Índia e da África do Sul.

De acordo com estudo do grupo de pesquisas Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy (Comida por Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares em uma Bioeconomia, em tradução livre), da Universidade Livre de Berlim, a insegurança alimentar é marcadamente desigual.

Os mais altos percentuais de insegurança alimentar são registrados em famílias com apenas um responsável pela geração de renda (66,3%).

Isso se acentua ainda mais quando essa responsável é uma mulher (73,8%) ou uma pessoa parda (67,8%) ou preta (66,8%).

Também é maior nas residências com crianças de até 4 anos (70,6%), nas regiões Nordeste (73,1%) e Norte (67,7%) e nas áreas rurais (75,2%).

Não é só efeito da pandemia: por que 19 milhões de brasileiros passam fome

Em meio à exportação recorde de alimentos, seca e pandemia agravam fome no campo

2) Uma em cada três crianças com anemia

De cada três crianças brasileiras, uma apresenta um quadro chamado anemia ferropriva, revelou um estudo da UFSCar publicado em julho deste ano.

A anemia ferropriva é marcada pela falta de ferro no organismo. Esse nutriente é encontrado no leite materno, na carne vermelha e em alguns vegetais, como as folhas verde-escuras, o feijão e a soja.

Prevalência de anemia por falta de ferro atingia 33% das crianças brasileiras mesmo antes da pandemia. Na foto, bebê é pesada por voluntárias da Pastoral da Criança (Getty Images)

As crianças com deficiência de ferro sofrem alterações no desenvolvimento do cérebro que, mais para frente, se manifestam na forma de dificuldade de aprendizado, sonolência e desânimo. Muitos desses problemas repercutem pela vida toda e são irreversíveis.

Para chegar ao resultado, os especialistas da UFSCar compilaram dados de outros 134 estudos feitos entre 2007 e 2020, que reuniram informações sobre a saúde de 46 mil indivíduos com menos de 7 anos de idade de todas as regiões do Brasil.

Os dados, no entanto, só vão até o início de 2020, o que traz um alerta: a situação pode ter se agravado ao longo da pandemia, diante da acentuada queda no consumo de carne vermelha no país, em meio à forte alta de preços.

Estudo alerta: uma em três crianças sofre de anemia no Brasil

3) Menor consumo de carne bovina em 26 anos

Em 2021, o consumo de carne bovina no Brasil deverá ser de 26,4 quilos por pessoa, uma queda de quase 14% em relação a 2019, ano anterior à pandemia, e de 4% ante 2020.

Esse é o menor nível registrado para consumo de carne bovina no país em 26 anos, segundo a série histórica da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), com início em 1996.

Consumo de carne bovina no Brasil deve cair em 2021 ao menor patamar em pelo menos 26 anos (Amanda Perobelli / Reuters)

Até agosto, as carnes acumulavam aumento de preço de 30,8% em 12 meses, bem acima da alta de 9,68% da inflação geral, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A alta de preços da carne começou antes da pandemia, puxada pela demanda da China, cujo rebanho suíno foi fortemente afetado pela peste suína africana.

A tendência foi acentuada no ano passado pela alta do dólar, que estimula as exportações, reduzindo a oferta do produto no mercado interno.

Pesaram ainda a seca, que piora a qualidade do pasto e aumenta a necessidade de uso de ração, elevando o custo de produção; e o menor abate de fêmeas, que são retidas pelos pecuaristas para produzir novos animais, aproveitando a alta de preços.

Então foi assim que a carne vermelha sumiu do prato dos brasileiros mais pobres.

Por que o consumo de carne bovina no Brasil deve voltar em 2021 ao patamar de décadas atrás

4) Auxílio emergencial não compra mais uma cesta básica

Um dos fatores que explica a crescente dificuldade dos brasileiros em se alimentarem adequadamente é a perda do poder de compra do auxílio emergencial, em meio à redução do valor do benefício e à alta da inflação.

Em abril de 2020, quando o auxílio começou a ser pago, ele tinha valores que variavam de R$ 600 a R$ 1.200. Naquele mês, a cesta básica custava R$ 556,36 em São Paulo, segundo dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

Ou seja: mesmo com o valor mais baixo, era possível comprar todos os produtos da cesta e ainda sobrava algum dinheiro.

Protesto pela manutenção do auxílio emergencial em R$ 600. Brasília, maio de 2021 (MST / Foto Pública)

De abril de 2020 a agosto deste ano, o valor da cesta básica paulistana subiu 16,9%, segundo o Dieese, para R$ 650,50.

Já o auxílio emergencial foi na direção oposta, tendo seus valores reduzidos em 2021 para R$ 150, R$ 250 ou R$ 375.

Assim, quem recebe o valor mais baixo só consegue comprar atualmente 23% da cesta básica. Quem recebe o valor médio, 38%. E mesmo quem recebe o valor mais alto — pago às mães solteiras chefes de família — só consegue comprar 58% da cesta.

Considerando que as pessoas também têm aluguel e contas básicas para pagar, a perda do poder de compra do auxílio emergencial dá uma dimensão da precariedade em que têm vivido os brasileiros mais pobres.

5) Consumo de pés de galinha e miojo

Outros indicadores da piora das condições de alimentação do brasileiro estão nos próprios alimentos consumidos.

Segundo dados da Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães e Bolos Industrializados), o consumo de macarrão instantâneo movimentou R$ 3,2 bilhões em 2020, ante R$ 2,7 bilhões em 2019.

Em toneladas, o consumo cresceu de 167 mil para 189 mil entre os dois anos, refletindo o aumento da prática de cozinhar em casa durante a pandemia, mas também a perda de renda da população, que recorre ao miojo como um alimento barato.

Nos açougues, em meio aos preços proibitivos da carne, consumidores recorrem a cortes antes desprezados pela maioria, como pés e miúdos de galinha.

"Antes da pandemia se vendia cerca de 100 quilos de pé de frango no mês, agora estamos vendendo em torno de 250 quilos", disse José Carlos Viale, dono de um açougue em São José do Rio Preto, ao Diário da Região.

"Sempre teve saída, mas as pessoas compravam em menor quantidade e para tratar animal. Agora, temos famílias que chegam a comprar dois quilos de pé e pescoço por semana", relatou o empresário ao jornal.

Geisa Stefanini, de 32 anos, morreu após ter parte do corpo queimado ao tentar cozinhar com álcool (Reprodução Redes Sociais).

6) Aumento das queimaduras provocadas por cozinhar com álcool

Diante da alta do preço dos alimentos e do botijão de gás, muitas famílias têm tido que escolher entre a compra de comida ou do combustível.

Em agosto, o preço médio do botijão de gás de 13 kg estava em R$ 93, segundo a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), mas já superava os R$ 100 em diversos Estados brasileiros, como Mato Grosso (R$ 114), Rondônia (R$ 111), Amapá (R$ 109), Roraima (R$ 109) e Pará (R$ 102).

Em meio aos preços proibitivos, as notícias de queimados por cozinhar com álcool se multiplicam. Isso num momento em que o acesso ao álcool etílico mais inflamável, com concentração de 70%, foi popularizado pela pandemia.

Em Goiás, segundo o portal Metrópoles, em menos de dois meses, pessoas de três famílias diferentes sofreram queimaduras e foram internadas depois de usarem álcool para cozinhar.

Na mesma situação, um homem morreu, em julho, em Goiânia, com 50% do corpo queimado.

Em 27 de setembro, morreu Geisa Stefanini, de 32 anos, que teve parte do corpo queimado após usar álcool combustível para cozinhar em sua casa em Osasco, na Grande São Paulo, segundo o G1. O bebê dela de 8 meses teve 18% do corpo queimado, mas sobreviveu.

BBC News Brasil, em 05.10.21

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Investigados por fake news, empresários bolsonaristas têm ‘offshores’ em paraísos fiscais

Otávio Fakhoury declarou empresas milionárias à Receita Federal, conforme determina a lei; Marcos Bellizia não informou se ‘offshore’ é de conhecimento das autoridades brasileiras

Marcos Bellizia e Otávio Fakhoury durante evento de conservadores CPAC Brasil em 2019 (REPRODUÇÃO/FACEBOOK)

Os empresários bolsonaristas Otávio Fakhoury e Marcos Bellizia, investigados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no inquérito das fake news — que apura o financiamento e a disseminação de notícias falsas e ataques contra ministros da Corte —, são donos de offshores nas Ilhas Virgens Britânicas, paraíso fiscal no Caribe. Fakhoury, presidente do PTB de São Paulo e alvo da CPI da Pandemia, também possui uma empresa sediada no Panamá, cujos ativos chegam a 3 milhões de dólares. “Todas estão dentro da lei”, diz ele, que apresentou comprovantes do Imposto de Renda à Agência Pública.

As informações constam nos Pandora Papers, arquivos inéditos analisados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) em parceria com mais de 600 jornalistas de 151 veículos — dentre os quais, a Pública — em 117 países e territórios. Os 11,9 milhões de documentos foram obtidos a partir de bases de dados de 14 escritórios especializados na criação e gestão de offshores em todo o mundo.

Manter negócios e contas bancárias fora do país não é crime, desde que sejam declaradas anualmente à Receita Federal — a não ser em caso de saldos de contas correntes e aplicações financeiras inferiores a R$ 140, bens móveis abaixo de R$ 5 mil e ações e quotas de uma mesma empresa de valor menor de R$ 1 mil — e ao Banco Central, quando os ativos superam R$ 1 milhão.

Mesmo quando não é ilegal, a prática dificulta o rastreamento dos valores, como explica o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutor em Direito Tributário, Gustavo Fossati. “Todo dinheiro ou patrimônio relacionado à offshore é muito pouco ou quase nada monitorado, ao passo que se estivesse no Brasil seria altamente monitorado”, observou, falando em tese — ou seja, sem conhecimento dos pormenores dos casos e da identidade dos empresários. O advogado explica que, como regra geral, os países onde os investidores possuem offshores os protegem em relação aos sigilos bancário e fiscal.

Fakhoury durante depoimento à CPI da Pandemia no Senado em 30 de setembro (LEOPOLDO SILVA/AGÊNCIA SENADO)

Membro da CPI da Pandemia, o senador Humberto Costa (PT-PE) afirmou durante o depoimento de Otávio Fakhoury à comissão, na última quinta-feira (30/09), que parte do dinheiro que financia as fake news no Brasil vem de offshores, conforme apontam as investigações que obtiveram a quebra de sigilo bancário de sites e blogueiros acusados de disseminar notícias falsas.

O empresário Marcos Bellizia não informou à Pública se declarou sua empresa à Receita Federal ou ao Banco Central, conforme determina a lei. Ele se justificou dizendo que está afastado da militância bolsonarista e por isso não concede mais entrevistas, limitando-se a refutar as acusações. “As suas informações estão erradas”, disse primeiro por mensagem, o que repetiu ao telefone. Tentamos contato ainda com Alexandre Bellizia, irmão de Marcos e também apontado como dono da offshore, mas não obtivemos resposta.

Já Otávio Fakhoury afirmou que faz as declarações anualmente e apresentou à reportagem seus comprovantes de Imposto de Renda, referentes ao ano de 2019, que incluem suas duas offshores. O empresário disse que mantém os negócios no exterior como uma estratégia de “planejamento fiscal”, para fugir dos tributos brasileiros. “Você faz investimento dentro dela [da offshore] e ela só é tributada quando você traz o dinheiro de volta do Brasil”, explicou. O imposto cobrado no Brasil pode chegar a até 27% do capital investido no exterior pela pessoa física.

As offshores de Fakhoury

A primeira offshore de Fakhoury, a Violett Investments, foi constituída em maio de 2009 nas Ilhas Virgens Britânicas, com capital inicial de 50 mil dólares. Ela foi aberta com a assessoria do Trident Trust, um dos maiores provedores de serviços de criação e gestão de offshores do mundo.

No momento da abertura da empresa, Faka — como é conhecido pelos amigos —, com 36 anos de idade, havia acabado de perder o emprego no banco de investimentos Lehman Brothers, até então o quarto maior dos EUA, que faliu devido à crise econômica de 2008 no país, conhecida como crise do subprime. À época, ele era o diretor de câmbio do banco norte-americano no Brasil.

O empresário contou que todo o dinheiro que ganhou no período em que morou fora do país, de 2000 a 2005, está nesta offshore, além de recursos enviados daqui. Com esse dinheiro ele diz que investe “no mundo inteiro”. “Lá é só onde está a empresa. De lá você pega e manda o dinheiro para uma corretora nos Estados Unidos, uma corretora na Europa e compra ações”, explicou, acrescentando que também investe em renda fixa, moedas, commodities, ouro e contrato futuro de ouro e petróleo. “Eu faço do meu telefone”, disse, em tom de brincadeira.

Em janeiro de 2017, quando já tocava os negócios imobiliários da família no Brasil, passou a ser acionista também da Amboy Finance SA, criada em 2004 pelo escritório de advocacia panamenho Alemán, Cordero, Galindo & Lee (Alcogal), responsável pela abertura e manutenção de quase metade das empresas de políticos que aparecem nos Pandora Papers. A offshore era de propriedade de seu pai, Oscar Fakhoury, que faleceu em 2016 e a deixou de herança para o filho e a esposa, Dora Carone Fakhoury, mãe de Otávio.

A empresa tinha um capital de 6,6 milhões de dólares (de acordo com avaliação feita em 31 de dezembro de 2016), alocados no UBP Bank, em Genebra, na Suíça. Esse dinheiro, dividido em partes iguais, foi transferido para outras duas empresas, ambas abertas por intermédio do Alcogal: a Resby Finance SA, de Otávio, criada em janeiro de 2017; e a Calmoran Overseas SA, de Dora, que já existia desde julho de 2015. Faka também apresentou à reportagem a declaração de imposto de renda da offshore da mãe referente a 2019. A Amboy foi dissolvida em outubro de 2017.

Otávio Fakhoury recebeu a reportagem da Agência Pública no escritório da sua família na Avenida Faria Lima, em São Paulo (GUILHERME PETERS/AGÊNCIA PÚBLICA)

Irritado ao ser questionado sobre suas empresas offshore, Fakhoury desaconselhou a publicação da reportagem. “Já que você está fazendo jornalismo investigativo, acho que uma boa conclusão é você fazer um julgamento do que achou da minha pessoa”, disse durante entrevista concedida no dia 10 de setembro em seu escritório na Avenida Faria Lima, principal centro financeiro de São Paulo. “Um cara transparente, que não tem nada a esconder. Que tem plena convicção de que sempre agiu dentro da moralidade e da legalidade, das duas coisas, às vezes as coisas são legais, mas se não passa no meu crivo moral, eu não faço”, completou.

Faka alega que foi o responsável por regularizar a offshore herdada do pai junto à Receita Federal, que antes não era declarada, de acordo com ele. “Pagamos uma multa no Banco Central, se eu não me engano”, conta. “O recurso era muito antigo, [existia] desde 1980. Não é lavagem de dinheiro, não é crime, entendeu? É da época que não tinha outra maneira”, justifica.

O despertar político de Faka

Otávio Fakhoury diz ter herdado da família os valores conservadores. Em entrevistas e nas redes sociais, ele se orgulha da atuação que seu pai e tio, Oscar e Roberto Fakhoury, estudantes do Mackenzie, tiveram na chamada “batalha da Maria Antônia” durante a ditadura militar. O episódio marca o confronto, que culminou em uma morte e dezenas de feridos, entre estudantes da faculdade particular como o pai e o tio de Faka, simpáticos ao regime, e os da Universidade de São Paulo, acusados de serem “comunistas”.

Inspirado nos ensinamentos de Olavo de Carvalho, ele despertou para a militância política em 2013, aos 40 anos de idade, ao assistir de “camarote”, da janela de seu escritório às manifestações que marcaram o país naquele ano. Desde então, ele apoia e financia movimentos que estiveram ao lado de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.


Imagem de capa do Twitter de Fakhoury mostra seu pai e tio durante manifestações a favor da ditadura militar (REPRODUÇÃO/TWITTER)

Fiel aliado do presidente, o empresário foi apontado pela CPMI das fake news na Câmara dos Deputados, instaurada em setembro de 2019, como suspeito de financiar páginas e perfis associados com a disseminação de informações falsas durante a campanha de 2018 e a orquestração de ataques em massa contra opositores políticos. Em 2020, ele virou alvo dos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos — este último também aberto pelo STF e arquivado em julho de 2021, após pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras.

O ministro Alexandre de Moraes, no entanto, abriu nova linha de apuração para verificar a existência de uma organização criminosa digital voltada a atacar as instituições, que incluiria investigações sobre a participação de Fakhoury.

Dados obtidos junto à CPI da Pandemia e revelados pela Pública mostram que o empresário financiou também outras organizações conservadoras, como o Instituto Força Brasil, do qual é vice-presidente. De acordo com as documentos, ele transferiu R$ 310 mil para a entidade, investigada por ter participado das negociações paralelas de vacinas junto ao Ministério da Saúde e por ter disseminado notícias falsas sobre vacinação, uso de máscaras e “tratamento precoce” contra a covid-19.

Ainda segundo informações levantadas pela CPI, Fakhoury repassou R$ 50 mil para o Centro de Estudos da Liberdade, ou Farol da Liberdade, idealizado pelos irmãos Abraham e Arthur Weintraub — ex-ministro da Educação e ex-assessor da Presidência, respectivamente —, e doou R$ 65 mil para o Instituto Conservador Liberal, fundado pelo deputado federal e filho 03 do presidente da República, Eduardo Bolsonaro (PSC-SP). Em seu depoimento à comissão, Fakhoury se descreveu como “filantropo” e disse que apoia entidades nas quais acredita. Dentre as organizações às quais doou recursos ao longo da sua história de militância, também está o Nas Ruas, movimento ao qual Marcos Bellizia fez parte.

No Nas Ruas, Bellizia foi responsável por organizar manifestações a favor de Jair Bolsonaro na Av. Paulista em São Paulo (REPRODUÇÃO/FACEBOOK)

As empresas de Bellizia

Formado no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de São Paulo (CPOR) em 1989, Bellizia se aproximou da militância bolsonarista durante a pré-candidatura de Jair Bolsonaro para a presidência da República, entre 2017 e 2018. O empresário fundou o Brasil Acima de Tudo, grupo responsável por convocar manifestações a favor da candidatura de Jair Bolsonaro na cidade de São Paulo durante a campanha eleitoral, e que depois se fundiu com o Nas Ruas, movimento criado em 2011 pela hoje deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP).

Bellizia atuou como porta-voz do Nas Ruas, ao lado do também empresário Tomé Abduch, até maio de 2020, quando se tornou alvo do inquérito das fake news no STF. Fora da militância política, ele trabalha como consultor de empresas, tendo atuado em multinacionais como AmBev e Nestlé em seus primeiros anos de carreira.

De acordo com os documentos do Pandora Papers, Marcos Bellizia e seu irmão Alexandre são beneficiários finais da empresa Duncan Investors Ltd, constituída em 2012 nas Ilhas Virgens Britânicas — ou seja, são eles quem recebem os rendimentos da empresa no exterior. “Você pode ter uma cadeia societária com várias camadas, mas ao final de qualquer cadeia societária, por mais complexa que seja, por mais jurisdições que envolva, você tem sempre uma pessoa de carne e osso. Esse é o UBO — ultimate beneficial owner, ou beneficiário final”, aponta um segundo especialista em direito tributário ouvido pela reportagem, que preferiu não se identificar por não conhecer os detalhes do caso.

A Ducan Investors também foi criada pelo escritório de advocacia Trident Trust e atua na área de investimentos financeiros. De acordo com os documentos obtidos pelo ICIJ e analisados pela Pública, o capital da empresa é composto por ações e fundos de investimento não identificados, operando através de uma conta no banco suíço UBP.

Além dos irmãos Bellizia, consta como acionista da Ducan Investors Ltd a SG Consultoria, firma brasileira sediada em São Paulo, que tem os irmãos como sócios. Ela é a principal acionista da offshore, com 8,9 mil participações. Marcos e Alexandre têm 5 mil participações cada um. Não foi possível identificar o montante em dinheiro equivalente ao seu capital.

A SG possui um capital social de R$ 3 milhões, segundo a Receita Federal no Brasil. Fundada em dezembro de 2010, seu objeto social é: outras sociedades de participação, exceto holdings; consultoria em tecnologia da informação; tratamento de dados; provedores de serviços de aplicação e serviços de hospedagem na internet.

A direção da Duncan Investors está a cargo de outra offshore, a Darthmouth Securities Ltd, também sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. A empresa, por sua vez, é diretora de mais de 50 offshores em países como o Panamá e o Reino Unido, conforme registro da OpenCorporates.

O advogado explica que ter outras empresas estrangeiras na diretoria de offshores é comum, por facilidades burocráticas e de idioma, mas que a estratégia também pode ser usada como uma “camada de privacidade” para os verdadeiros donos. “Não é sigilo, não vai ocultar quem é o sócio da empresa, mas vai deixar menos exposto. Se você amanhã olhar essa empresa fazendo um investimento e pegar o contrato social dela, não vai necessariamente saber quem é o beneficiário final. Ou seja, fica menos escancarado, fica menos na vitrine”, diz.

Caminhos cruzados

Desde que passou a ser investigado no inquérito das fake news, Bellizia tem se mantido longe dos holofotes. Em 26 de maio de 2020, afastou-se do movimento Nas Ruas. “Acredito que eu não me encaixo mais no projeto do NR”, escreveu em suas redes sociais, anunciando sua associação ao movimento Avança Brasil, que se apresenta como o “maior movimento conservador do Brasil”. Seu nome aparece como parte do Conselho Administrativo da organização, ao lado do autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, mas o empresário não participa de manifestações ou eventos relacionados.

No dia seguinte ao anúncio, sua casa foi alvo de busca e apreensão no âmbito do inquérito das fake news, do STF. Bellizia teve seu celular, computadores e documentos apreendidos pela Polícia Federal e suas redes sociais foram bloqueadas por ordem judicial. “Eu sofro censura. Tive minha rede no Facebook cancelada, eu tive meu Twitter cancelado”, disse, em entrevista ao programa “Café Vip — Nos Bastidores da Política”, produzido pelo PTB e exibido no YouTube em fevereiro de 2021.

Era a primeira vez que o empresário visitava a sede do partido em São Paulo. Alguns meses depois, ele seria nomeado Secretário de Finanças do diretório estadual da legenda. Na ocasião, Bellizia anunciou que está escrevendo um livro sobre a sua experiência como investigado pela Polícia Federal. “Um diário sobre o que acontece com a vida de uma pessoa depois que ela começa a ser perseguida”, definiu, ventilando como possível título para a obra “Castigo sem crime”, um trocadilho com o clássico “Crime e Castigo”, do escritor russo Fiódor Dostoiévski.

Para Bellizia, as investigações do STF fazem parte de uma grande conspiração. “Por que foi feito esse inquérito? As mortes da covid-19 iriam aumentar, o desemprego iria aumentar. E as pessoas — que eu não posso falar quem — imaginavam que a popularidade do presidente da República Jair Bolsonaro iria cair e ia ter a cassação do presidente da república pelo TSE”, conjecturou durante a entrevista ao programa do PTB, levantando suspeitas sobre seus ex-colegas de ativismo. “Curiosamente nenhuma outra pessoa do Nas Ruas foi envolvida no inquérito. Realmente é muito estranho porque uma pessoa vai parar no inquérito e as outras não”, disse.

Se o inquérito fez Bellizia se afastar do Nas Ruas, por outro lado, ele o aproximou de outras pessoas investigadas por fake news, como Otávio Fakhoury.

Faka foi apoiador de dois dos movimentos dos quais Bellizia fez parte — Nas Ruas e Avança Brasil — tendo financiado caminhões para manifestações de rua organizadas por eles.

Ao lado de Roberto Jefferson, Otávio Fakhoury tomou posse como presidente do diretório paulista do PTB em julho de 2021 (PTB SÃO PAULO)

Foi também Fakhoury que o apresentou ao ex-deputado Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB. “Um dia, o Otávio me ligou e disse ‘vem aqui no meu escritório que o Roberto Jefferson vem aqui.’ E eu fiz questão de conhecê-lo, porque eu acho ele o máximo. Eu acho que o Brasil deve a ele a democracia”, contou na mesma entrevista ao PTB.

Jefferson, que hoje se encontra preso no âmbito do inquérito das milícias digitais — uma continuidade do inquérito dos atos antidemocráticos —, é amigo familiar dos Fakhoury desde 2002. “O meu pai teve uma experiência política com Jefferson onde ele honrou a palavra. Então ele falou ‘filho, política em Brasília é assim, político tem todas, mas esse cara aí, ele honra a palavra’”, contou o empresário.

Otávio continuou mantendo contato com Jefferson, com quem compartilha ideários considerados antidemocráticos. Em conversa no Whatsapp com o ex-deputado, em 12 de maio de 2020, Fakhoury compartilhou uma “proposta de plebiscito para dissolver a alta instância do judiciário” ao que o petebista respondeu com ideia ainda mais radical de demitir os 11 ministros do STF, além de cassar todas as concessões de rádio e TV ligadas à rede Globo. “Isso quer dizer o seguinte, amigo: ato institucional. Só que eu não posso dizer isso dessa forma, porque isso me leva pra cadeia”, disse em áudio.

A partir de 2020, sob a presidência de Roberto Jefferson, o PTB deu uma guinada à extrema direita. O ex-deputado, conhecido por seu envolvimento no escândalo do Mensalão, reformulou o estatuto do partido, incluindo pautas conservadoras como a “criminalização da cristofobia”, a “proibição da legalização da maconha” e a “defesa da vida desde a concepção”. Para Fakhoury, “o PSL era para ser esse partido, não deu certo, depois o Aliança [do Brasil] não saiu”.

Apesar de estar no meio político há anos, tendo ocupado cargo na executiva do PSL, o PTB é o primeiro partido ao qual Fakhoury se filiou. “É o único partido que eu vi com o estatuto virado mais para direita. O estatuto mesmo, como regra”, explica. Após a prisão do ex-deputado Roberto Jefferson, Fakhoury, como presidente do diretório em São Paulo, se tornou um dos principais porta-vozes da legenda.

Bellizia também fez parte da nova diretoria executiva do PTB em São Paulo, ao lado de Fakhoury. Seu nome ainda consta no site do partido como Secretário de Finanças do diretório paulista, mas uma pessoa ligada à legenda disse que ele foi substituído no cargo pelo também empresário Patrick Folena, líder do movimento Avança Brasil. À reportagem, Bellizia afirmou não atuar mais na sigla, mas não explicou os motivos do seu afastamento.

Marcos Bellizia, Luciano Hang e Otávio Fakhoury se aproximaram após virarem alvos de inquéritos no STF (REPRODUÇÃO/TELEGRAM)

Outro investigado que se aproximou de Marcos Bellizia desde o início do inquérito das fake news foi Luciano Hang, dono das lojas Havan. “Ele me falou: ‘Bellizia, o melhor certificado de patriota é estar no inquérito. Porque quem não está no inquérito é que você tem que desconfiar’”, relatou Bellizia também em entrevista ao programa do PTB.

Os dois também já se conheciam da militância bolsonarista. Hang é apoiador declarado de Jair Bolsonaro e foi parceiro do Nas Ruas enquanto Bellizia fazia parte do movimento. Os dois participaram de lives e manifestações a favor de pautas governistas.

Já Fakhoury conta que só passou a conhecer Hang depois que ambos foram incluídos nos inquéritos do STF, apesar de estarem juntos em grupos de Whatsapp de apoio ao presidente. Acompanhado de Bellizia, ele fez uma visita à sede da Havan, na cidade de Brusque, em Santa Catarina, em abril deste ano. A reunião marcou o primeiro encontro entre Hang e Faka.

Além de serem alvos de investigações no STF, os três empresários têm em comum o fato de serem donos de offshores em paraísos fiscais. Reportagem da Revista Crusoé mostrou que Hang se associou a uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, às vésperas das eleições presidenciais de 2018.

Em depoimento à CPI da Pandemia, Luciano Hang admitiu ser dono de empresas no exterior. “Temos contas no exterior, offshore no exterior, devem ser duas ou três, todas declaradas na Receita Federal”, afirmou. A comissão no Senado Federal investiga se o empresário usou suas offshores para financiar blogueiros bolsonaristas fora do país.

Colaboraram Laura Scofield e Raphaela Ribeiro.

Esta é uma reportagem da Agência Pública e foi publicada originalmente no EL PAÍS.

Na investigação do Brasil participaram: Anna Beatriz Anjos, Alice Maciel, Yolanda Pires, Raphaela Ribeiro, Ethel Rudnitzki e Natalia Viana (Agência Pública); Guilherme Amado e Lucas Marchesini (Metrópoles), José Roberto Toledo, Ana Clara Costa, Fernanda da Escóssia, Allan de Abreu (Piauí); Fernando Rodrigues, Mario Cesar Carvalho, Guilherme Waltenberg, Tiago Mali, Nicolas Iory, Marcelo Damato e Brunno Kono (Poder360) e Marina Rossi, Regiane Oliveira (EL PAÍS)

ALICE MACIEL / ANNA BEATRIZ ANJOS / ETHEL RUDNITZKI (AGÊNCIA PÚBLICA) para o EL PAÍS, 03 OCT 2021 - 19:15 BRT

Brasileiros com ‘offshores’ nos ‘Pandora Papers’ devem à União 16 bilhões de reais em impostos

66 dos maiores devedores brasileiros de impostos, muitos investigados por esquemas de corrupção, mantêm milhões depositados fora do Brasil, em paraísos fiscais.

O empresário Eike Batista e o 'influencer' Jonathan Couto aparecem no Pandora Papers.

Os documentos dos Pandora Papers mostram que 66 dos maiores devedores brasileiros de impostos, cujas dívidas somam 16,6 bilhões de reais, mantêm offshores com milhões depositados em paraísos fiscais. Dentre eles, estão desde o empresário Eike Batista e o inventário do ex-deputado José Janene, estrela do Mensalão e morto em 2010, até desconhecidos do público em geral, mas que figuraram em esquemas de corrupção sob investigação da Polícia Federal.

Offshores são empresas em paraísos fiscais, muito populares entre as pessoas mais ricas do mundo. Elas são criadas por motivos que vão desde economizar no pagamento de impostos —um drible fiscal suavemente chamado de eficiência tributária — até a proteção de ativos contra o risco político ou confiscos, como o que ocorreu no Brasil em 1990. Por estarem localizadas em países com pouca transparência e fiscalização, as offshores também são usadas por quem quer ocultar patrimônio ou por corruptos ou integrantes de organizações criminosas que desejam esconder dinheiro sujo. No Brasil, é permitido ter offshores, desde que declaradas à Receita Federal e, quando seus ativos ultrapassam 1 milhão de dólares, ao Banco Central.

Quando uma pessoa tem seu nome inscrito na Dívida Ativa, o Governo Federal pode pedir ao Judiciário a penhora de bens e a retenção de valores para tentar forçar o pagamento da dívida. Isso é mais difícil em caso de bens no exterior, mesmo quando os bens são declarados.

Para chegar à lista, a reportagem selecionou os nomes de todos os devedores com débitos somados superiores a 20 milhões de reais inscritos na Dívida Ativa da União. Depois disso, esses nomes foram buscados no banco de dados do Pandora Papers. Os resultados foram analisados para excluir casos de homônimos. Ao fazer o cruzamento, o Metrópoles considerou apenas as dívidas em nome da pessoa física e não as relacionadas a eventuais empresas detidas por essas pessoas. Isso porque muitas vezes as dívidas de pessoas jurídicas também são inscritas para as físicas.

Os nomes identificados foram contatados, seja por meio da assessoria de imprensa, seja por outros canais, para que informassem se declararam à Receita Federal e ao Banco Central a abertura da offshore e explicassem a razão de terem criado as empresas.

Leia a seguir alguns dos principais casos de devedores com offshores citados em documentos do Pandora Papers. E, abaixo, a lista completa dos 65 devedores.

Eike Batista

O empresário que chegou a ser a pessoa mais rica do Brasil tem hoje um débito de 3,8 bilhões de reais inscrito na Dívida Ativa. O nome dele está ligado a duas offshores diferentes, a Farcrest Investment e Green Caritas Trust.

A Farcrest foi criada em abril de 2006. Na época, ele ainda estava longe do pico na sua carreira, em 2012, quando foi listado como o sexto homem mais rico do mundo.

A Green Caritas Trust, criada em dezembro de 2011, tinha como objetivo declarado repassar 2,5 milhões de euros para a filantropia. Os recursos viriam de um outro trust no Panamá, o Blue Diamond Trust, que detinha participações em mais de oito empresas. Trusts são estruturas patrimoniais utilizadas na proteção de ativos. Na prática, ele funciona como um contrato entre um trustee, que administra o patrimônio, e o beneficiário, que é o dono dos bens. O documento de criação da offshore aponta a intenção de fazer repasses para a Unicef e outras caridades.

A declaração da finalidade do Green Caritas fez com que fosse mais suave a diligência de risco feita sobre Eike pela Asiaciti Trust, empresa que conduziu os trâmites burocráticos para criar a offshore. “Dado o baixo valor dessa estrutura e o fato de que é puramente para caridade não há necessidade de diligências adicionais”, diz o documento.

Procurado por meio de seu advogado, Eike Batista não respondeu até o fechamento desta reportagem. As transferências para caridade, portanto, não foram confirmadas.

Claudio Rossi Zampini

O empresário Cláudio Rossi Zampini possui negócios de ramos diversos em São Paulo, como a CRZ Telecomunicações e a Flamingo Táxi Aéreo. Zampini aparece diretamente ou indiretamente no quadro social de nove companhias. Ele também possui débitos somados de 1,3 bilhão de reais inscritos na Dívida Ativa da União, referentes a inscrições entre 2014 e 2019.

Zampini aparece como o dono de três offshores criadas entre 2008 e 2011 nas Ilhas Virgens Britânicas. Não há muitas informações sobre a mais antiga, a Lizza Properties, estabelecida em março de 2008, nem sobre a mais recente, Encinita Holdings, criada em 2011.

A segunda é a Flamingo Jet Air, que aparece nos documentos do Pandora Papers como propriedade da Flamingo Táxi Aéreo, uma das empresas de Zampini em São Paulo. O empresário aparece como diretor da offshore. Essa companhia foi estabelecida em 2010. Em 2017 ele informou que a ela detinha 650.000 dólares em um portfólio de investimentos mantido no banco Merril Lynch Miami, nos Estados Unidos.

No mesmo formulário em que ele informa os valores, Zampini afirma ser o dono do Hotel Braston, em São Paulo. Entretanto, no quadro social da empresa não aparece o nome de Claudio e sim o de Andrea Regina de Souza Freiberg e a Blue Cloud Participações. A Blue Cloud por sua vez é de propriedade de uma offshore, a Blue Cloud Enterprises Inc., com sede nas Ilhas Virgens Britânicas.

As relações entre a Blue Cloud e Zampini são abordadas em um processo de 2011 do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Nele, é apontada que a criação da Blue Cloud seria um “subterfúgio para para dissimular a gerência de fato exercida por Claudio Rossi Zampini”. Por conta desse entendimento, o hotel foi incluído no polo passivo de ação sobre a dívida de Claudio. O documento agora revelado, em que o próprio afirma ser o dono do hotel, corrobora o entendimento da Justiça.

Questionado sobre a razão para manter as offshores e por que as ocultou, Claudio não respondeu até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.

Jonathan Couto de Souza

Jonathan Couto de Souza é mais conhecido por sua carreira como cantor e influenciador digital do que por sua atividade empresarial na Clean Indústria e Comércio de Cigarros, na qual possui 21% do capital. Ele ficou conhecido por conta de seu casamento, encerrado neste ano, com a influenciadora Sarah Pôncio, casal que é figura frequente nos sites de sobre celebridades.

Souza tem uma dívida de 1,2 bilhão de reais inscrita na Dívida Ativa da União e o acervo possui uma offshore, a Ranfed Investments. Criada em 2016, a empresa não consta na declaração de bens feita por Jonathan em 2020, quando se candidatou para o cargo de vereador no Rio de Janeiro. Procurado por meio de sua produtora, ele não respondeu. O espaço segue aberto para manifestações.

Gustavo Amaral Rossi

Gustavo Amaral Rossi é empresário do setor de postos e tem 543 milhões de reais inscritos na Dívida Ativa da União. Ele foi investigado na operação Rosa dos Ventos, da Polícia Federal, cujo inquérito foi instaurado no início de 2016. A investigação apurava um suposto esquema do pai dele, Miceno Rossi Neto, para sonegar impostos e lavar dinheiro em vendas de combustível, além de crimes contra a organização do trabalho, evasão de divisas, e fraudes envolvendo pedras preciosas e títulos da dívida pública. O esquema envolveria o uso de empresas laranjas para evitar o pagamento de impostos e, assim, aumentar os lucros.

Segundo documentos do Pandora Papers, sua offshore, a Infinity Inc, com sede nas Ilhas Seychelles, foi aberta em dezembro de 2018, quando ele já era investigado pela PF. No processo de diligência conduzido antes da abertura da offshore, a SFM, empresa de Dubais especializada em criar offshores, descobriu que ele tinha sido alvo de uma investigação de corrupção da Polícia Federal, o que não foi um impedimento para que ele conseguisse abrir a empresa.

Procurado por meio da sua advogada, Amaral Rossi não respondeu ao Metrópoles. O espaço segue aberto para manifestações.

Alberto Davi Matone

Um dos usos comuns para offshores é para a compra de de imóveis. Foi o que fez Alberto Davi Matone, fundador do Banco Matone, vendido para a J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Baptista em 2011 e mais tarde transformado no banco Original. Com dívidas com a União que totalizam 92,8 milhões de reais, Matone criou em janeiro de 2013 a Northbush Associates, cujo único ativo é uma mansão em Coral Gables, cidade na Flórida, comprada por 1,8 milhão de dólares em junho de 2014.

O registro de imóveis do condado de Miami-Dade, onde fica Coral Gables, não aponta nenhuma transação após essa data, o que indica que ela ainda é da propriedade de Matone. Além disso, a Northbush Associates aparece como proprietária da casa.

O lote tem mais de 2.000 metros quadrados, sendo 516 deles de área construída. A casa de dois andares, cinco quartos e cinco banheiros é uma relíquia cuja construção começou há quase 100 anos, em 1926. Matone não respondeu aos questionamentos do Metrópoles. O espaço segue aberto para manifestações.

Inventário de José Janene

O ex-deputado José Janene, morto em 2010, aparece como o representante de duas offshores sediadas no Panamá, a Corliss Enterprises e a Kleman Investments. Ambas foram criadas em junho de 2003 quando ele iniciava o terceiro mandato na Câmara dos Deputados.

Janene ficou conhecido por ser um dos pivôs do escândalo do Mensalão, o que quase levou à cassação do seu mandato. Ele acabou absolvido pelo plenário da Câmara em uma votação secreta no fim de 2006.

Caso estivessem declaradas no Brasil, as offshores precisariam estar declaradas no inventário de Janene. A reportagem tentou contato com o representante legal da viúva de Janene para esclarecer a questão, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto para manifestações.

Mario Kenji Erie

O empresário Mario Kenji Erie, dono das lojas de roupas Makenji —muito forte na Região Sul, com 19 unidades espalhadas por Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina— foi uma das figuras centrais de uma investigação de corrupção da Polícia Federal, a operação Alcatraz, de 2019. A investigação apura suspeitas de corrupção, lavagem de dinheiro e fraude em procedimentos licitatórios na compra de equipamentos eletrônicos pelo governo de Santa Catarina.

Há duas offshores de Mario no banco de dados do Pandora Papers: a Flufnstuf Services e a MRKG Enterprises. A primeira foi criada em 2016 e, segundo declarações prestada, teria ativos de somente 10.000 dólares. O objetivo seria manter investimentos financeiros. Já a MRKG foi criada no ano seguinte, com o mesmo propósito. Não há uma estimativa dos valores transferidos para a companhia, mas o documento aponta que os recursos vieram de rendimentos obtidos com seu trabalho e de aplicações financeiras.

Kenji Erie não respondeu aos questionamentos do Metrópoles. O espaço segue aberto para manifestações.

Corina de Almeida Leite

Dona da Cia Agropecuária Monte Alegre, especializada em confinamento de gado e com diversos prêmios internacionais, e sócia da Adecoagro, empresa de Luxemburgo que é uma das maiores em atuação no agronegócio do Centro-Oeste, a empresária Corina de Almeida Leite tem 27,4 milhões de reais inscritos na Dívida Ativa da União. Corina mantém uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas desde 2006, a Etiel Societé Anonyme, que, segundo um documento do Pandora Papers, detinha 500.000 dólares em ações da Adecoagro em 2016.

De acordo com Corina, a offshore está “devidamente declarada na Receita Federal e no Banco Central do Brasil”. A dívida, por sua vez, “está sendo discutida na Justiça, onde foi julgada pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região e anulada, por ter sido inscrita indevidamente, referente a um financiamento que já tinha sido pago”. Segundo ela, nada se refere à offshore. Em consulta feita em 22 de setembro deste ano, o nome dela continuava na Dívida Ativa.

Na investigação do Brasil participaram: Anna Beatriz Anjos, Alice Maciel, Yolanda Pires, Raphaela Ribeiro, Ethel Rudnitzki e Natalia Viana (Agência Pública); Guilherme Amado e Lucas Marchesini (Metrópoles), José Roberto Toledo, Ana Clara Costa, Fernanda da Escóssia, Allan de Abreu (Piauí); Fernando Rodrigues, Mario Cesar Carvalho, Guilherme Waltenberg, Tiago Mali, Nicolas Iory, Marcelo Damato e Brunno Kono (Poder360) e Marina Rossi, Regiane Oliveira (EL PAÍS). Publicado por EL PAÍS, em 04.10.21

Luciano Hang, o empresário patriota que dribla os impostos no Brasil

Investigação feita pelo EL PAÍS nos arquivos do ‘Pandora Papers’ revelou que o empresário manteve por quase vinte anos uma empresa em um paraíso fiscal no valor de 112,6 milhões de dólares.

O empresário bilionário brasileiro Luciano Hang (Brusque, 58 anos) se define como “patriota que luta pelo Brasil” em sua conta no Instagram. Dono de uma fortuna de 14,3 bilhões de reais, segundo a revista Forbes, Hang orgulha-se do número de empregos que gera no Brasil por meio de sua rede varejista, a Havan. Também é dono de agência de publicidade, postos de gasolina e até usina hidrelétrica. Hang adota um guarda-roupa verde e amarelo espalhafatoso para provar seu amor à pátria. O empresário só não se veste de patriota quando o assunto é o retorno que os impostos podem proporcionar ao país.

Uma investigação feita pelo EL PAÍS e outros veículos brasileiros nos arquivos do Pandora Papers revelou que o empresário manteve por quase vinte anos uma empresa em um paraíso fiscal, no valor de 112,6 milhões de dólares, conforme constava em um extrato de outubro de 2018 (cerca de 416 milhões de reais na época). Por todo esse tempo, Hang não comunicou ao Governo brasileiro sobre a existência de sua empresa, o que configura crime de sonegação fiscal. Os arquivos do Pandora Papers reúnem 11,9 milhões de documentos confidenciais de 14 sociedades de advogados do Caribe, Singapura, Hong Kong, Chipre, dentre outros paraísos fiscais ao redor do mundo.

A empresa de Hang no exterior atende pelo simpático nome de Abigail Worldwide. É por meio dela que o dono da rede de varejo Havan faz seus investimentos no Brasil e em outros países, com uma vantagem que poucos têm: pagar pouco ou quase nada de impostos. Isso porque Abigail está registrada nas Ilhas Virgens Britânicas, um paraíso fiscal. Ao todo, foram quase vinte anos economizando em tributos que ele pagaria se tivesse esse mesmo dinheiro aplicado no Brasil, que poderiam chegar a até 34%, dependendo da renda. A Receita Federal brasileira considera paraísos fiscais os locais que tributam a renda com alíquota inferior a 20% ou cuja legislação protege o sigilo sobre a composição societária das empresas. Na lista de mais de 60 países que respondem a esses critérios estão as Ilhas Virgens Britânicas, onde a Abigail foi aberta.

Os investimentos da Abigail estão principalmente em ações e títulos de dívida (debêntures) de empresas, muitas delas brasileiras, como Vale, Petrobras e Natura.

Mas se Hang é exibicionista em tudo que o diz respeito à Havan, o mesmo não se pode dizer de sua relação com a Abigail. Embora ela esteja com o empresário desde 1999, só foi apresentada ao Brasil em 2020, quando Hang decidiu lançar um ambicioso plano de abertura de capital da Havan, em plena pandemia. Foi nesse momento que os investidores brasileiros souberam que Abigail integrava o patrimônio da varejista Havan desde 31 de outubro de 2016. Com um dote atualizado em 478,5 milhões de reais (conforme a cotação do dólar de junho de 2020), como consta no prospecto de abertura para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Não há nada de errado legalmente com a Abigail. No mundo dos investidores ela é conhecida como empresa de prateleira (shelf company, no termo em inglês), ou seja, uma companhia aberta em paraíso fiscal, que pode ficar até anos sem atividade à espera de alguém que lhe dê um destino. São compradas por pessoas que têm uma certa pressa de ter uma empresa no exterior — para fechar acordos ou receber pagamentos com clientes estrangeiros, por exemplo —, pois são constituídas num prazo mínimo, em até 48 horas. Mas também são alvo de quem precisa dar uma cara de antiguidade ao seu negócio, já que algumas estão abertas há anos. Era o caso da Abigail, que permaneceu por três anos na prateleira. Foi aberta em 07 de outubro de 1996 em outro paraíso fiscal, na ilha de São Cristóvão e Neves, já com esse nome de origem hebraico, que batizou mulheres especialmente nos anos 50 no Brasil.

A Abigail cruzou o caminho de Hang em 1999, quando os negócios da Havan começaram a ter problemas na Receita Federal. A intermediadora da negociação de compra da offshore foi a Trident Trust, companhia que tem braços em diversos paraísos fiscais e oferece soluções discretas para pessoas ou organizações que querem manter suas atividades ocultas, segundo fontes do mercado. É um serviço análogo ao prestado pela Mossack Fonseca, o escritório de advocacia panamenho que ficou famoso após ter seus documentos revelados pela imprensa mundial em 2016, no que ficou conhecido como Panamá Papers.

Na época em que Hang comprou a Abigail, ele era investigado por suspeita de sonegação de impostos na Havan. A rede crescia a olhos vistos no mercado brasileiro. Inaugurada em 1986 numa saleta de 45 metros quadrados, no pequeno município de Brusque, no sul do país, a Havan se transformou na rede que hoje contabiliza 163 lojas físicas, em 18 dos 27 estados brasileiros. Soma mais de 22.000 colaboradores.

Uma importação ilegal chamou a atenção do Ministério Público de Santa Catarina, que passou a monitorar o empresário desde o início dos anos 1990, conforme explica a procuradora da República Ela Wiecko. À época, Wiecko era subprocuradora do MP de Santa Catarina e integrava a equipe que investigava os movimentos de Hang. Havia indícios de que a empresa não emitia notas por todos os produtos que vendia em suas lojas. O lucro dessa operação — ou seja, o dinheiro não declarado ao fisco — poderia estar seguindo para o exterior, o que poderia explicar a origem do caixa da Abigail. No entanto, não é possível saber de onde surgiu o dinheiro investido. A reportagem procurou o empresário, que não respondeu a esses questionamentos.

Cerco da Justiça

Luciano Hang chegou a responder na Justiça pela acusação de ter simulado vendas da Havan, mentido em seus livros contábeis, falsificado notas, fraudado o fisco e criado contratos sociais “que não correspondiam à realidade”, de acordo com os autos. Após uma investigação iniciada em 1999, foi autuado em 117 milhões de reais pela Receita Federal e em 10 milhões de reais pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Porém, escapou por meio de um programa de refinanciamento que permitiu que pagasse a dívida de quase 130 milhões de reais na época, em suaves prestações.

Esse acordo se tornou parte do folclore jurídico, já que seriam necessários 115 anos para que o empresário quitasse sua dívida com o fisco. A ação penal acabou sendo considerada nula após a 1a Vara da Justiça Federal em Itajaí julgar a denúncia inepta em 2008 por falta de provas. Ao EL PAÍS, Wiecko afirma que “é possível afirmar que a Havan estava enviando dinheiro para o exterior” naquela época. Em outros processos também por evasão de impostos, Hang chegou a ser condenado à prisão. Após sucessivos recursos, no entanto, escapou porque o tempo do processo prescreveu na Justiça.

Embora o cerco se fechasse sobre os negócios do empresário, o MP nunca detectou a existência da Abigail no paraíso fiscal. Foi somente ao flertar com o mercado de capitais, quando protocolou a abertura de capital da Havan, que Hang tomou o cuidado de apresentar a Abigail para a Receita Federal. Ele se beneficiou da lei de repatriação de recursos, sancionada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2016. A lei ofereceu as condições mais favoráveis possíveis para quem tinha dinheiro não declarado no exterior e queria legalizá-lo: redução de taxas e multas, que até então poderiam chegar a até 150% do valor não declarado, para apenas 30% sobre o montante total.

Dados do Banco Central mostram que o programa de repatriação fez com que dobrasse o número de pessoas que declararam possuir dinheiro no exterior. Nessa operação, ingressaram no país cerca de 10 bilhões de dólares que viviam à sombra da legalidade. O saldo da Abigail fazia parte desse montante. Seus anos de ostracismo, porém, pesaram na avaliação do mercado diante das ambições de Hang de abrir o capital da rede fundada por ele.

Ainda que no papel a Havan apresente bons resultados — o balanço da empresa anuncia que faturou 10,5 bilhões de reais em 2020, com crescimento de 16,6% do lucro líquido — , isso não convenceu potenciais investidores, que analisaram os números da empresa na sua primeira tentativa de abertura de capital, em outubro do ano passado. Vários problemas foram apontados, a começar pela aparição repentina de Abigail.

A empresa levantou dúvidas. Por qual razão incorporar uma companhia que mantém recursos tão altos em um paraíso fiscal? Por que investir em outros negócios que não sua própria empresa? À reportagem, Hang afirmou que “a Havan realiza investimentos diversificados e os mesmos encontram-se abarcados pela legislação brasileira. Não havendo nenhum tipo de irregularidade nisso”. Por meio de sua assessoria de imprensa, o empresário também disse que “como a empresa promove importações, os investimentos em moeda estrangeira proporcionam uma cobertura natural para a empresa, trazendo proteção para o negócio, tendo em vista a oscilação do câmbio mundial”.

Em um momento em que as instituições buscam cumprir princípios cada vez mais rígidos de boa governança, essas dúvidas acenderam um alerta no mercado. O empresário percebeu o incômodo dos investidores, que não aceitaram avaliar a Havan em 100 bilhões de reais, como ele esperava. E acabou desistindo de levar adiante, ao menos por enquanto, a ideia de ter sua empresa cotada na bolsa. Também pesou contra Hang as ações na Justiça mencionadas no próprio plano de abertura de capital. O Ministério Público do Trabalho acusa o empresário de ter coagido seus funcionários a votarem em Jair Bolsonaro em 2018. Aos investidores, a Havan informou que, caso perca o processo, terá de pagar 25 milhões de reais.

Aos 3,8 milhões de seguidores nas redes sociais, porém, Hang faz marketing do empresário bem-sucedido. “Criar emprego, gerar desenvolvimento e trazer alegria para as pessoas, não tem preço”, diz em uma postagem. “O Brasil que queremos só depende de nós”, estampa a camiseta verde e amarela adotada como uniforme por Hang. “Ser empreendedor no Brasil é ser herói”, ele diz em outra publicação, que leva uma foto dele mesmo vestido de super-herói.

O heroísmo de Hang inclui a intimidade com o poder. O empresário propaga as pautas bolsonaristas, como a defesa da cloroquina, o voto impresso, e a falta de uso de máscara. É também alvo de investigação no Supremo Tribunal no inquérito sobre as fake news, para apurar a existência de uma rede de propagação de notícias falsas com o objetivo de realizar ataques virtuais e desestabilizar a democracia do país. 

Também foi parar na CPI da Pandemia por supostamente fazer do gabinete paralelo da Saúde, que orientou Bolsonaro no combate à pandemia, acusado de financiar o movimento contra as medidas adotadas por governadores e prefeitos para conter o avanço do vírus. Chegou a ser questionado pelo relator Renan Calheiros, sobre contas no exterior, o que ele admitiu, mas negou financiar sites de notícias falsas. “Temos contas no exterior, temos offshore, deve ser umas duas ou três, declaradas na Receita Federal, e auditadas”, disse o empresário durante a audiência.

Ele responde ainda no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a uma ação por ter realizado supostos atos de abuso de poder econômico, fraude e ilicitude em captação e gastos de campanha nas eleições de 2018. Hang é acusado de ter financiado disparos de mensagens de WhatsApp em massa para favorecer Bolsonaro. Também fez o chamado “impulsionamento” no Facebook: investiu usando uma ferramenta da própria rede social para que o alcance de sua mensagem pedindo votos para Bolsonaro fosse turbinado, prática considerada ilegal pelo TSE. Hang confirmou à CPI ter impulsionado conteúdo pró-Bolsonaro nas eleições, como mostrou reportagem do EL PAÍS na época. Disse, porém, que não sabia que aquilo era proibido. “Tiramos do ar e pagamos multa”, afirmou.

Na minuta de abertura de capital da Havan, o empresário é colocado como um dos fatores de risco de seu próprio negócio. Ali, é reconhecido que a empresa “poderá ter sua reputação impactada de forma adversa em caso de eventual condenação do senhor Luciano Hang”.

Na investigação do Brasil participaram: Marina Rossi e Regiane Oliveira (EL PAÍS); Anna Beatriz Anjos, Alice Maciel, Yolanda Pires, Raphaela Ribeiro, Ethel Rudnitzki e Natalia Viana (Agência Pública); Guilherme Amado e Lucas Marchesini (Metrópoles); José Roberto Toledo, Ana Clara Costa, Fernanda da Escóssia, Allan de Abreu (Piauí); Fernando Rodrigues, Mario Cesar Carvalho, Guilherme Waltenberg, Tiago Mali, Nicolas Iory, Marcelo Damato e Brunno Kono (Poder360). Publicado por EL PAÍS, em 04.10.21.