sábado, 4 de setembro de 2021

Novas denúncias de ex-funcionário sobre esquema das ‘rachadinhas’ sacodem a família Bolsonaro

“Ela ficava com 80% do meu salário”, afirma ex-assessor de Flávio Bolsonaro, sobre a ex-mulher do presidente, Ana Cristina Valle, apontada como a comandante do esquema

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) atrás de seu pai, o presidente Jair Bolsonaro, em uma imagem de janeiro de 2021.UESLEI MARCELINO / REUTERS

A família Bolsonaro voltou ao centro do noticiário brasileiro nesta semana, em um novo escândalo revelado por mais um ex-assessor do clã. Desta vez, Marcelo Luiz Nogueira de Santos, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas), e que se diz muito próximo à família, denunciou e detalhou um esquema chefiado pela advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). De acordo com ele, Ana Cristina era quem comandava, nos gabinetes do então deputado estadual Flávio Bolsonaro e do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos), todo o esquema das rachadinhas, que consiste em contratar funcionários fantasmas pelos gabinetes e reter tudo, ou a maior parte, de seus salários.

“Ela ficava com 80% do meu salário”, denunciou Nogueira ao portal Metrópoles. De acordo com ele, o esquema teria sido realizado ao longo de anos, e Ana Cristina ficava até mesmo com uma parcela do 13º salário, das férias e até da restituição do imposto de renda. “[Ela] tirava o proporcional que a gente recebia. O 13º, férias, essas coisas todas”, disse o ex-funcionário ao UOL. O enredo narrado por Nogueira aos jornalistas envolve detalhes pessoais da família, expõe a intimidade dos Bolsonaro e dá mais informações sobre um caso que já está nas mãos da Justiça.

Tanto Flávio quanto Carlos Bolsonaro são alvos de inquéritos que apuram, separadamente, a contratação de funcionários fantasmas em seus gabinetes. Nesta semana, tornou-se pública a determinação da Justiça do Rio de Janeiro de quebrar os sigilos bancários e fiscal de Carlos, de Ana Cristina Valle e de outras 25 pessoas e sete empresas. O Ministério Público do Rio de Janeiro, que abriu as investigações em julho de 2019 sobre as contratações de Carlos Bolsonaro, afirma ter indícios de que vários assessores não cumpriam expediente na casa. Assim, Carlos pode se somar ao irmão, Flávio, que, em outubro do ano passado, foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no caso das rachadinhas.

Os filhos do presidente teriam passado a comandar eles mesmos o esquema depois que Bolsonaro pai descobriu que Ana Cristina o traía com um segurança da família. Segundo Nogueira, o presidente pediu o divórcio em 2007 e teria autorizado que Carlos e Flávio comandassem o recolhimento dos pagamentos de seus supostos funcionários.

Nogueira conta que começou a trabalhar para a família quando ingressou no gabinete de Flávio Bolsonaro. Ali, ele diz que prestou serviços de atendimento ao público e correspondências de 2003 a 2007, e depois disso acabou se tornando uma espécie de assessor direto de Ana Cristina. No total, trabalhou por 14 anos com a família, chegando até a cuidar de Jair Renan Bolsonaro, o filho mais novo do presidente. “Era sozinho, ninguém tinha tempo para ele”, disse. Ele diz não ter como provar todas as denúncias que está fazendo. Mas a proximidade com a família é atestada pelas redes sociais. Há cerca de dois meses, Jair Renan publicou uma foto no Instagram ao lado de Nogueira, para fazer uma homenagem de aniversário. Na legenda, o caçula chama Nogueira de “grande amigo” e afirma que ele “ensinou muito, especialmente a como me tornar uma pessoa boa”.

De acordo com as acusações públicas, até mesmo a mansão onde Ana Cristina vive hoje com o filho, Jair Renan, no Lago Sul, em Brasília, teria sido comprada por meio de um esquema. O imóvel estaria registrado em nome de laranjas “para evitar escândalo”, segundo ele.

O ex-funcionário é o segundo ex-assessor de Flávio Bolsonaro que denuncia o esquema de devolução de salários. Em novembro do ano passado Luiza Souza Paes confirmou ao Ministério Público do Rio de Janeiro que repassava mais de 90% do seu salário a Fabrício Queiroz. Luiza apresentou extratos bancários para comprovar que, de 2011 a 2017, repassou 160.000 reais a Queiroz. Apontado como o operador das rachadinhas, Queiroz chegou a ser preso no ano passado, mas está em liberdade desde março deste ano.

“Fiel e apaixonado”

As denúncias que recaem sobre os Bolsonaro e sua ex-mulher surgem às vésperas da manifestação do 7 de setembro, para quando o presidente convocou seus aliados para irem às ruas em seu apoio. Carolina de Paula, cientista política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj, avalia que dificilmente as declarações de Luiz Nogueira causarão algum impacto nos atos da próxima terça-feira.

Em maio, ela e outros pesquisadores realizaram um levantamento com os eleitores que votaram no presidente em 2018, para o Data Iesp. “O que vimos é que a questão das rachadinhas para o público mais fiel ao presidente, que é composto de pessoas mais velhas e associadas à religião, não cola”, afirmou. “Eles não veem as rachadinhas como uma prática de corrupção, dizem ser algo ligado à cultura brasileira e não acham que Bolsonaro é responsável pelo ato dos filhos”, explica. E é esse público que estará nas ruas no próximo dia 7, segundo ela. “Por isso, [as denúncias de agora] não vão ter impacto no 7 de setembro”, afirma. “A não ser que ocorra algo muito forte com Bolsonaro. Mas ainda assim, depende do que for, porque é um público muito fiel e apaixonado”.

Por outro lado, existe um público decepcionado com o presidente que pode ser mais impactado por essas novas denúncias. “São pessoas que votaram nele por causa do discurso da Lava Jato e agora estão arrependidas”, explica Carolina. “Dentro desse grupo, que faz críticas a Bolsonaro, embora ainda o apoie, essas novas denúncias vão repercutir, porque elas solidificam as dúvidas que eles já estavam levantando”. Pedro Estevam Serrano, professor de Direito da PUC-SP, concorda com ela. “Bolsonaro tem um discurso moralista em relação à corrupção e isso [a denúncia das rachadinhas] o desgasta diante de uma parte do eleitorado dele, que é muito cioso diante das questões de corrupção”, afirma.

No entanto, Serrano esclarece que, no âmbito jurídico, não há implicações para o presidente até o momento. “Só se houver alguma forma de participação dele no crime”, diz. “O que se pode cogitar é que ele pode ter tido o poder de interromper a conduta, ter tido ciência da conduta, e não a interrompeu, mas para isso é preciso investigar”. Para Leonardo Yarochewsky, advogado criminalista e doutor em ciências penais pela UFMG, não é por que os filhos cometem crime que os pais serão responsabilizados. “Não há uma implicação direta pelo crime praticado pelos filhos”, diz. “Agora, se Bolsonaro cometer outros crimes em decorrência disso, como, por exemplo, obstrução da justiça, ou seja, impedir que a investigação ocorra, aí sim ele pode responder por isso”.

A reportagem tentou contato com o senador Flavio Bolsonaro, mas não recebeu retorno do recado deixado em seu gabinete. No gabinete do vereador Carlos Bolsonaro, ninguém atendeu. A reportagem não conseguiu contato com Ana Cristina Valle.

MARINA ROSSI, de São Paulo para o EL PAÍS, 03 SET 2021 

Bolsonaristas desafiam o STF em busca de recursos e apoio para as manifestações do 7 de Setembro

Militantes projetam 500.000 pessoas em Brasília no feriado da terça-feira. Eles mudaram a chave Pix bloqueada por Alexandre de Moraes, que mandou prender um dos organizadores dos atos nesta sexta

O presidente Bolsonaro durante evento no dia 2, em Brasília.ADRIANO MACHADO / REUTERS

Emulando o presidente Jair Bolsonaro, militantes que o apoiam cegamente têm se unido nas críticas do mandatário ao Supremo Tribunal Federal (STF) para promover os atos do próximo dia 7 de Setembro, quando se celebra a Independência do Brasil. Alguns deles até descumprem decisões judiciais para incentivar os apoiadores a seguirem para Brasília e São Paulo em uma manifestação de apoio a Bolsonaro e que defende a destituição dos 11 ministros do STF, assim como a recriação do voto impresso, ainda que a medida tenha sido rejeitada pela Câmara dos Deputados. E a reação do STF levou um dos promotores dos atos à prisão.

Nesta sexta-feira, o presidente repetiu seu discurso autoritário e afirmou, sem citar nomes, que os atos servirão como um ultimato a um ou dois ministros do Supremo. O recado foi dado a Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, que atualmente também preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Nós não criticamos instituições ou Poderes. Somos pontuais. Não podemos admitir que uma ou duas pessoas que, usando da força do poder, queiram dar novo rumo ao nosso país”, afirmou durante evento em Tanhaçu (BA).

Neste mesmo dia, o jornalista Wellington Macedo, que havia sido proibido de usar as redes sociais para falar sobre a manifestação, acabou preso em Brasília. No último domingo, juntamente com outro investigado, Macedo participou de uma transmissão ao vivo em que reforçou as críticas ao Judiciário, em um material que servia como propaganda para os atos pró-Governo.

Também estava no encontro virtual o caminhoneiro Marcos Antônio Pereira Gomes, que nas redes é conhecido como “Zé Trovão, a voz das estradas”. Ambos são apontados como organizadores dos atos antidemocráticos. Entre grupos bolsonaristas, havia a informação de que Trovão também foi preso, o que não foi confirmado pelo STF ou pela Polícia Federal. Quem promoveu a reunião foi o blogueiro governista Oswaldo Eustáquio, que já foi detido no âmbito do inquérito das fake news, mas acabou libertado.

As provocações do caminhoneiro foram duras. Sem provas, ele acusou ministros de venderem sentenças. “Já que eu tô lascado, eu vou falar. Estão só que vendem os habeas corpus”, disse. E completou: “Quer me prender, me prenda no meio do povo, não na minha casa”. As provocações se amplificaram nos dias 30 e 31 de agosto. Ele enviou vídeos a outros blogueiros e youtubers da extrema direita, convocando para o protesto, e ainda concedeu entrevista à emissora de rádio Jovem Pan News, que é alinhada a Bolsonaro.

A proibição de que esses bolsonaristas usassem as redes foi decidida por Alexandre de Moraes, um dos dois ministros do STF com quem Bolsonaro comprou briga e de quem pediu o impeachment —pleito já rejeitado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Desde o dia 20 de agosto, Moraes proibiu que fossem feitas doações financeiras para o movimento do qual Trovão e Macedo fazem parte. Ainda assim, o grupo driblou a decisão e mudou a chave Pix —o código de acesso bancário— para receber as doações. Antes, os valores eram creditados ao site bolsonarista Brasil Livre. Agora, elas caem na conta de Luiz Antonio Mozzini, que usa o codinome de Luís Mussini, e é produtor musical de diversos artistas sertanejos, como Sérgio Reis, outro dos investigados por esses atos antidemocráticos.

Doações

Procurado pelo EL PAÍS, Mussini alegou desconhecer a proibição e disse que as doações vinham de todo o Brasil. “Quem doa são brasileiros que querem o bem do país. É uma movimentação que não é partidária”, alegou. Os recursos, segundo anúncio feito pelo grupo no YouTube, seriam usados para bancar um acampamento que pretende reunir até 50.000 pessoas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. “Vamos dar um processo de limpeza geral no Brasil. E com isso precisamos de sua doação”, diz o enunciado.

Indagado sobre os custos do espaço e sobre qual valor já teria sido arrecadado, Mussini não respondeu. Entre os bolsonaristas, ele é apontado como uma das pessoas mais próximas do cantor Sérgio Reis, que anunciou atos radicais durante o protesto, como o fechamento de estradas por até três dias, mas voltou atrás depois de virar alvo da mesma operação da Polícia Federal que envolveu o jornalista Macedo e o caminhoneiro Zé Trovão.

Durante a mesma live do domingo passado, Mussini admitiu que estava fora de casa, em Florianópolis (SC), havia dias. A preocupação era de que, assim como dez dos investigados, a Polícia Federal cumprisse um mandado de busca e apreensão na casa deles. “Não é por medo. A pessoa se preserva. Para preservar o celular e o computador que uso para o trabalho. A gente acaba sendo tratado como bandido, mas a gente não é bandido. Estamos lutando pelo bem do nosso país, para que possamos ter liberdade de expressão”, disse na ocasião.

Outro que participa da coordenação dos atos bolsonaristas é o militar da reserva Amarildo dos Santos, que se identifica como investigador particular e criador do movimento Brasil Verde e Amarelo. À reportagem, ele disse esperar 500.000 pessoas em Brasília para demonstrar apoio ao presidente, boa parte delas vindas em 150 ônibus fretados com recursos próprios. “Estávamos arrecadando dinheiro para trazer mais gente, mas o Alexandre de Moraes bloqueou”, disse. Em um dos vídeos que publicou, Santos diz que quem precisasse de recursos para viajar até a cidade poderia procurá-lo. Ao EL PAÍS, contudo, alegou que estava bancando apenas os próprios custos de sua viagem.

O caminhoneiro Zé Trovão e o jornalista Wellington Macedo, durante transmissão no YouTube no dia 29 de agosto. Eles haviam sido proibidos de usar as redes (REPRODUÇÃO)

Enquanto os coordenadores tentam angariar apoios financeiros, nos grupos no WhatsApp e no Telegram há dezenas de pessoas oferecendo vagas em caravanas para participar dos atos. Os preços variam desde 30 reais, entre o interior de São Paulo e a capital paulista, até de 500 reais, entre estados da região Sul e do Nordeste para Brasília —estas com direito a hospedagem. Na visão de Santos, os atos da próxima terça-feira não representam nenhum risco à democracia. “Não dá para agradar todo mundo. Nem Jesus conseguiu. Nós estamos lutando por liberdade de expressão”, alegou. Do ato, estarão de fora as críticas ao combate à pandemia de covid-19, que já vitimou quase 600.000 brasileiros; à crise energética; às rachadinhas da família Bolsonaro; à inflação, de quase 9%; ao alto preço da gasolina, de quase 7 reais, ou ao dólar a 5,2 reais.

A base de apoio ao presidente que vai às ruas nos próximos dias se escora, principalmente, em militares da reserva, evangélicos, caminhoneiros e produtores rurais. Este último grupo promete transportar centenas de pessoas em cerca de cinquenta ônibus provenientes do Mato Grosso, segundo relatou o deputado estadual bolsonarista Gilberto Cattani (PSL). Em princípio, a Associação de Produtores de Soja era uma das financiadoras extraoficiais do ato. Porém, depois que o seu presidente nacional, Antonio Galvan, passou a ser investigado no mesmo inquérito que Sérgio Reis, Zé Trovão e Macedo, a instituição desistiu de agir. Mas ele não se absteve de pressionar as instituições. Quando foi intimado a depor no âmbito desse inquérito, Galvan chegou à sede da Polícia Federal em Sinop (MT) acompanhado por um tratoraço. Dezenas de tratores se enfileiraram para “escoltar” o fazendeiro.

Quem ainda se apresenta à frente das manifestações no momento é a Associação Nacional de Defesa dos Agricultores, Pecuaristas e Produtores da Terra (Andaterra). Um de seus representantes, o diretor Jeferson da Rocha, foi procurado pela reportagem, mas não respondeu aos contatos. Entre os evangélicos, os maiores incentivadores dos atos são os pastores Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e Claudio Duarte, da Igreja Batista. Não há indícios de que eles estejam arrecadando recursos, ou fazendo mais do que discursar em favor do presidente.

AFONSO BENITES, de Brasília, em - 03 SET 2021 para o EL PAÍS. 

Bolsonaro acena para base radical e veta punição a fake news em projeto sobre crimes contra a República

Projeto aprovado pelo Congresso substitui a Lei de Segurança Nacional e tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito. Bolsonaro também vetou aumento de pena para militares golpistas

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de entrega da Medalha do Mérito Desportivo Militar, no Rio de Janeiro, em 1º de setembro.ANDRE COELHO / EFE

Em um aceno à sua base eleitoral mais radical —inclusive a que está dentro dos quartéis— o presidente Jair Bolsonaro vetou na quarta-feira parte do projeto aprovado no Congresso que tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito. Este texto substitui a Lei de Segurança Nacional (LSN), chamada de “entulho da ditadura” pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski em referência ao fato de a legislação ter sido criada durante os anos de chumbo. O Governo vinha usando a LSN para perseguir opositores nos últimos anos. No total, o mandatário barrou cinco pontos da nova lei, sendo que dois deles podem ter impacto direto para seus apoiadores extremistas: a punição para atos de “comunicação enganosa em massa”, as chamadas fake news, e o aumento da pena por crimes contra o Estado de Direito quando cometidos por funcionários públicos —dentre eles militares e policiais. Cabe ao Congresso agora analisar os vetos do presidente, o que não tem prazo para ocorrer.

Caso sejam mantidos, estes vetos podem ter um impacto relevante nas eleições de 2022, e também têm potencial para inflamar ainda mais o discurso golpista de Bolsonaro que ganha força dentro dos quartéis. Nos últimos meses, o presidente tem frequentemente colocado em xeque a realização do pleito do ano que vem caso não haja voto impresso (proposta que já foi derrotada na Câmara). Ele e vários de seus apoiadores são alvos de um inquérito no Supremo Tribunal Federal que investiga a disseminação de fake news, e em agosto a Corte incluiu no processo a apuração dos ataques feitos sem provas pelo mandatário contra o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas.

Desde a campanha eleitoral que o levou ao Planalto em 2018, o principal núcleo político e familiar de Bolsonaro tem sido criticado pelo uso indiscriminado de notícias falsas nas redes sociais, o que, segundo especialistas, tem potencial para influenciar os rumos da próxima eleição presidencial. Carlos Bolsonaro, por exemplo, é apontado como o cabeça do gabinete do ódio, uma espécie de central de fake news que operaria de dentro do Planalto.

Os ataques do presidente contra o sistema eleitoral ganharam força este ano em meio ao derretimento da popularidade do mandatário, e fizeram com que o Tribunal Superior Eleitoral adotasse uma postura mais ativa para rebater as acusações infundadas. Isso colocou o presidente da corte, ministro Luis Roberto Barroso, em rota de colisão com Bolsonaro. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o magistrado afirmou que irá atrás dos “profissionais” de fake news nas eleições. “Nós pretendemos ir atrás mesmo, com Polícia Federal e o que seja necessário para impedir esse tipo de atuação”, disse.

Ao vetar o artigo que previa punição para quem espalha “comunicação enganosa em massa” o Governo alegou que este trecho iria contra o interesse da população ao não definir claramente quem seria alvo da punição: quem compartilhou ou quem gerou o conteúdo replicado. “A redação genérica tem o efeito de afastar o eleitor do debate político, o que reduziria a sua capacidade de definir as suas escolhas eleitorais, inibindo o debate de ideias, limitando a concorrência de opiniões”, diz Bolsonaro na justificativa do veto enviada ao Senado. Ainda segundo o Planalto, o texto aprovado pelo Congresso “enseja dúvida se haveria um ‘tribunal da verdade’ para definir o que viria a ser entendido por inverídico a ponto de constituir um crime punível”.

Aceno aos militares golpistas

Já o veto ao aumento da pena por crimes contra o Estado de Direito cometidos por militares pode acirrar ainda mais os ânimos de setores golpistas dentro das Forças Armadas e das polícias. O presidente alegou que o artigo aprovado pelo Congresso seria “uma tentativa de impedir as manifestações de pensamento emanadas de grupos mais conservadores”. Mas a decisão tem como pano de fundo a participação de membros destas corporações na política nacional, que ficou sob os holofotes desde que Bolsonaro levou militares da ativa para dentro do Governo. A questão se acirrou ainda mais no último mês, após o mandatário convocar uma série de atos para o dia sete de setembro que devem contar com reivindicações golpistas e contra o poder Judiciário e Legislativo. Integrantes das forças de segurança simpatizantes ao presidente sinalizaram que devem aderir aos protestos, aumentando ainda mais o temor de uma ruptura institucional e a associação da tropa com bandeiras antidemocráticas.

No final de agosto o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), rival político do presidente, afastou o coronel da Polícia Militar paulista Aleksander Lacerda, então comandante de Policiamento do Interior da região de Sorocaba, que estava usando suas redes sociais para convocar policiais para o ato no dia da Independência, bem como atacando presidentes de outros poderes da Republica. O regulamento interno da corporação veda a participação de seus integrantes em atos político-partidários. Para evitar a adesão ilegal de policiais aos atos, a Corregedoria da PM de São Paulo determinou que todo o efetivo da força terá que trabalhar durante os protestos para reforçar o “patrulhamento disciplinar”.

GIL ALESSI, de São Paulo para o EL PAÍS, em  02 SET 2021 

Blogueiro bolsonarista é preso por ordem de Moraes

Wellington Macedo já havia sido alvo de busca e apreensão em agosto e estaria organizando atos violentos contra a democracia no dia 7 de setembro, segundo PGR. Caminhoneiro youtuber está foragido.

Moraes é relator do inquérito contra Macedo, que também investiga o cantor Sérgio Reis e o deputado Otoni de Paula

A Polícia Federal prendeu nesta sexta-feira (03/09) o blogueiro bolsonarista Wellington Macedo, que é investigado em um inquérito aberto em agosto no Supremo Tribunal Federal sobre a organização de atos contra a democracia e o Estado de direito.

A prisão preventiva de Macedo foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, relator do inquérito, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). Ele já havia sido alvo de busca e apreensão em 20 de agosto ao lado de outros bolsonaristas, como o cantor Sérgio Reis e o deputado federal Otoni de Paula (PSC-RJ).

Macedo se apresenta como coordenador nacional da "Marcha da Família" e estaria organizando protestos no feriado de 7 de setembro para pressionar o Senado a destituir os ministros do Supremo. Segundo a PGR, o ato organizado por Macedo era "violento e antidemocrático".

A Polícia Federal, que executou a prisão, confirmou a ação, mas não deu maiores detalhes sobre o caso.

A investigação contra Macedo e outros bolsonaristas se soma a outros dois inquéritos no Supremo sob a relatoria de Moraes que tratam de temas semelhantes: o inquérito sobre fake news e atos democráticos, arquivado em julho e substituído pelo inquérito sobre as milícias digitais, que resultou na prisão do ex-deputado Roberto Jefferson, denunciado pela PGR por incitação ao crime, homofobia e calúnia.

O inquérito contra Macedo e os demais apoiadores do presidente foi aberto a pedido do Ministério Público. Os outros dois inquéritos foram instaurados de ofício pelo Supremo, o que vinha sendo alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro e de uma ação da Advocacia-Geral da União.

Caminhoneiro youtuber foragido

Moraes também determinou a prisão do caminhoneiro Marcos Antônio Pereira Gomes, conhecido como Zé Trovão, outro bolsonarista alvo do mesmo inquérito contra Macedo.

Responsável pelo canal de Youtube "Zé Trovão a voz das estradas", ele é acusado de incitar atos violentos contra o Congresso e o Supremo e descumpriu ordens cautelares que haviam sido determinadas por Moraes.

O ministro do Supremo havia ordenado o bloqueio de uma chave Pix que vinha recebendo doações para organizar atos no dia 7 de setembro, mas na quarta-feira Zé Trovão anunciou uma nova chave Pix com o mesmo objetivo.

O advogado de Zé Trovão, Levi de Andrade, afirmou ao portal UOL que ele não se entregará à Polícia Federal pelo menos até o dia 7 de setembro. Ele diz que seu cliente não cometeu nenhum crime e que o mandado de prisão contra Zé Trovão seria inconstitucional.

Atos no dia 7 de setembro

A prisão de Macedo e a ordem de prisão contra Zé Trovão integram uma iniciativa judicial da PGR, com aval do Supremo, para reprimir e desarticular organizadores de atos contra a democracia e o Estado de direito.

Jair Bolsonaro e seu círculo próximo vêm estimulando seus apoiadores a irem às ruas no dia 7 de setembro com o objetivo de fortalecer as investidas do presidente contra o Supremo e as urnas eletrônicas. Há receio em diversos estados que policiais militares também atendam à convocação.

Na sexta-feira, o presidente afirmou que os atos de 7 de setembro seriam um "ultimato" para dois ministros do Supremo – ele não mencionou nomes, mas, além de Moraes, que foi alvo de um pedido de impeachment apresentado por Bolsonaro já arquivado pelo presidente do Senado, Luis Roberto Barroso, que também preside o Tribunal Superior Eleitoral, é alvo de frequentes ataques dos bolsonaristas.

Protestos contra o presidente também estão previstos em diversas capitais no dia 7 de setembro.

Deutsche Welle Brasil, em 03.09.21

STF se prepara para risco de ataques ao prédio e 'todos os cenários possíveis no 7 de setembro

Preocupado com o potencial de os protestos de 7 de setembro serem violentos, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu planos para "todos os cenários possíveis"- de manifestação pacífica a tentativas de depredação e invasão do edifício.

A BBC News Brasil apurou que a maioria dos ministros pretende evitar tomar decisões com alto impacto no governo federal até as manifestações (Reuters)

Enquanto isso, conforme apurou a BBC News Brasil, a maioria dos ministros do STF decidiu colocar o pé no freio, até a próxima terça (7/9), em decisões que tenham impacto direto no governo federal, como as referentes ao pagamento de precatórios que possam significar gastos aos cofres públicos.

O objetivo seria evitar "colocar lenha na fogueira" às vésperas dos atos convocados para o Dia da Independência, em defesa do governo do presidente Jair Bolsonaro. Ainda assim, o clima entre os ministros é de preocupação e atenção à adesão de policiais militares aos protestos e à reação de Bolsonaro caso haja violência ou ataques ao Congresso ou Supremo.

Todo o efetivo de segurança do STF vai estar presente, como costuma ocorrer quando há protestos na Esplanada dos Ministérios. Mas dessa vez houve intensa interlocução com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal para garantir reforço das forças de segurança do DF, como PM, Detran e Polícia Civil.

Segundo fontes do Supremo, os ministros vão observar atentamente a prevalência e força, durante os protestos, de mensagens antidemocráticas, como cartazes e gritos de ordem em defesa do fechamento do STF e do Congresso.

A quantidade de pessoas nas ruas também servirá como termômetro para eles avaliarem os reais riscos de tentativas futuras de quebra democrática.

7 de setembro: ministros do STF estarão atentos à reação de Bolsonaro caso haja violência ou ataques ao Congresso ou Supremo (Reuters)

Em pronunciamento nesta quinta, na retomada do julgamento sobre o marco temporal das terras indígenas, o presidente do STF defendeu "respeito à integridade das instituições democráticas e seus membros" durante as manifestações.

"Num ambiente democrático, manifestações públicas são pacíficas. Por sua vez, a liberdade de expressão não comporta violências e ameaças", disse.

Revista e manifestantes longe da Praça dos Três Poderes

Para tentar mitigar riscos de manifestantes tentarem invadir o Congresso e o Supremo, ou até jogar bombas caseiras nos edifícios, o Governo do DF decidiu restringir os atos à Esplanada dos Ministérios.

Isso significa que os manifestantes não poderão "descer" a avenida em direção à Praça dos Três Poderes, onde ficam Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal.

A decisão foi vista por integrantes do Congresso e do STF como indicativo de que existe, na Secretaria de Segurança do DF, a expectativa de manifestantes tentarem depredar os prédios públicos.

Em Brasília, há temor de que manifestações no 7 de setembro cheguem à depredação de prédios públicos (Reuters)

Segundo o governo do DF, pelo menos 13 grupos pró-bolsonaro e três de esquerda devem promover manifestações no dia 7 de setembro.

Além de bloquear a passagem para a Praça dos Três Poderes, as forças de segurança vão fazer revistas para tentar interceptar armas brancas, armas de fogo, bombas caseiras, garrafas de vidro e outros objetos que possam ameaçar a segurança.

Nas comunicações com a equipe de segurança do Supremo e do Congresso, o governo do DF tem tentado tranquilizá-los sobre temores de que a própria PM em operação no dia possa agir com menos comprometimento no controle dos protestos.

À BBC News Brasil, a Polícia Militar do Distrito Federal informou que "as ações da PMDF são pautadas na observância dos direitos humanos e nos princípios constitucionais" e que vai atuar "para garantir a segurança dos manifestantes e a integridade do patrimônio público ou privado''.

Pela legislação brasileira, nenhum policial da ativa pode participar de atos políticos com símbolos que remetam às instituições onde eles atuam. Só podem participar de manifestações se estiverem à paisana, como cidadãos comuns, desarmados.

Se descumprirem essa regra, podem ser enquadrados no Código Penal Militar pelos crimes de motim ou revolta (quando há dois ou mais envolvidos). E as penas podem chegar a 20 anos de prisão em regime fechado.

Mas há expectativa de que número significativo de policiais da reserva ou de folga no dia compareçam aos protestos.

Nathalia Passarinho, de Londres para a BBC News Brasil em Londres, em 03.09.21

Como líderes evangélicos usam redes para apoiar ato pró-Bolsonaro

 "Todo esse movimento tem por finalidade ameaçar as instituições do nosso país. Essas pessoas defendem o fechamento do STF (Supremo Tribunal Federal), essas pessoas defendem o fechamento do Congresso Nacional. 

Logo, essas pessoas agem contra a democracia, contra o estado democrático de direito", declara o pastor Rodrigo Coelho, do Rio de Janeiro, em um vídeo compartilhado nas redes sociais.

"Dia sete de setembro só devem ficar em casa as pessoas que estão enfermas, que têm comorbidades sérias ou aqueles que querem ser escravizados vivendo sem liberdade", afirma o pastor Samuel Munguba Júnior em um vídeo compartilhado em suas redes sociais no início deste semana.

Ele declara que as pessoas devem ir às ruas na próxima terça-feira (07/09) para lutar a favor do país, da família e dos princípios de Deus. Discursos semelhantes têm sido adotados por outros líderes evangélicos nas redes sociais para convocar os fiéis para a manifestação pró-Bolsonaro.

Um dos principais representantes do segmento é o pastor Silas Malafaia. Em 23 de agosto, ele compartilhou um vídeo no qual líderes evangélicos convocam os fiéis para o ato na Avenida Paulista.

"Eu estou capitaneando, sim. Estou na frente disso, chamando tudo que é líder. E nunca, na história desse país, os evangélicos se mobilizaram para um ato como esse", diz Malafaia à BBC News Brasil. Segundo ele, evangélicos de todo o país estão se organizando para participar de manifestações em suas cidades.

Os evangélicos, que segundo pesquisas recentes compõem cerca de 30% da população brasileira, representam um grupo significativo para Bolsonaro. Uma pesquisa Datafolha de maio deste ano apontou que 24% da população em geral considera o governo ótimo ou bom. Já apenas entre a população evangélica, esse número corresponde a 33%.

Em 2018, a pesquisa Datafolha na véspera do segundo turno projetou que sete em cada 10 eleitores evangélicos votariam em Bolsonaro contra o petista Fernando Haddad.

Em maio deste ano, a pesquisa Datafolha ilustrou um cenário diferente de 2018 entre o bolsonarismo e as igrejas evangélicas. O levantamento mostrou que 35% dos evangélicos escolheriam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em um primeiro turno. Já Bolsonaro teria 34% dessa população. Conforme a pesquisa, cada candidato tem 45% das intenções de voto desses religiosos em um eventual segundo turno entre os dois.

"Existe um desembarque das forças em torno do bolsonarismo. Cada vez mais, o Bolsonaro está restrito ao que chamamos de bolsonarismo raiz, grupo do qual os evangélicos fazem parte", aponta Vinícius do Valle, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP).

"Mas os evangélicos representam um grupo muito heterogêneo no Brasil. Nas eleições de 2018, o Bolsonaro conseguiu certa hegemonia entre os evangélicos e manteve isso por muito tempo, mas hoje está em crise. Hoje a gente não vê a quantidade de pastores defendendo o Bolsonaro como antes da pandemia", acrescenta Valle, que há uma década estuda a relação entre política e as igrejas evangélicas.

No meio evangélico, há pastores que se manifestaram contra a presença de fiéis na manifestação de sete de setembro.

"Todo esse movimento tem por finalidade ameaçar as instituições do nosso país. Essas pessoas defendem o fechamento do STF (Supremo Tribunal Federal), essas pessoas defendem o fechamento do Congresso Nacional. Logo, essas pessoas agem contra a democracia, contra o estado democrático de direito", declara o pastor Rodrigo Coelho, do Rio de Janeiro, em um vídeo compartilhado nas redes sociais.

'Em todo o Brasil vai ter evangélico na rua'

Os líderes religiosos estão organizando, segundo o pastor Malafaia, meios de transporte para os fiéis, bandeira e faixas para participarem de atos em São Paulo, Brasília ou em outras cidades pelo país.

"Isso vai ser em todo o Brasil. Em todo o Brasil vai ter evangélico na rua. Não é só em São Paulo e no Rio de Janeiro. Vai ter caravana de tudo quanto é jeito no Brasil", afirma Malafaia.

"Aqui no Rio de Janeiro, estamos colocando um trio elétrico gigante. Mas isso não tem nome de igreja, porque igreja é acima disso. Nós, cidadãos, é que somos evangélicos, então não vai ter nome de igreja nenhuma", completa o pastor.

Malafaia argumenta que a convocação dos fiéis para os atos é fundamental porque, segundo ele, atualmente a liberdade de expressão está em jogo no país.

"Estamos vendo o STF rasgar a Constituição, uma das coisas mais vergonhosas, e com a conivência da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e de grande parte da mídia", declara.

O "ataque à Constituição Federal" ao qual Malafaia e outros líderes evangélicos utilizam como argumento para a convocação aos atos é referente a decisões recentes do STF, que incomodaram Bolsonaro e seus aliados.

Entre essas decisões estão medidas como uma determinação do ministro do STF Alexandre Moraes, no início de agosto, para incluir o presidente Jair Bolsonaro entre os investigados no inquérito sobre divulgação de informações falsas.

Outro ponto criticado por religiosos bolsonaristas são as investigações da Polícia Federal sobre ataques de "milícias digitais". Segundo as apurações, são atos feitos para desestabilizar instituições como o STF e atentar contra a democracia. Em meados de agosto, o ex-deputado Roberto Jefferson foi preso após as investigações apontarem que ele é parte do núcleo político desse grupo.

Apesar de muitos pastores não citarem o presidente nas convocações dos fiéis nas redes sociais para os atos, o discurso desses líderes religiosos é totalmente alinhado ao de Bolsonaro. Outra pauta que eles defendem, a favor do presidente, é o voto impresso, derrotado na Câmara dos Deputados.

"Claro que sabemos que também é (ato) de apoio ao presidente. É evidente", afirma Malafaia.

"A igreja não apoia ninguém. Nós, evangélicos, apoiamos. Nós, evangélicos, não vamos participar de ato de partido político. Mas (ato) de apoio ao presidente, vamos participar. Não tenha dúvida nenhuma", acrescenta o pastor.

Malafaia destaca que uma das maiores movimentações entre evangélicos em sete de setembro deve ocorrer em Manaus (AM). O pastor afirma que os evangélicos da região esperam que 500 mil pessoas saiam às ruas da capital amazonense na manifestação pró-Bolsonaro.

O pastor Renê Terra Nova, de Manaus, também tem feito diversas publicações em suas redes sociais para convocar os fiéis para o ato na terça-feira.

Terra Nova afirma que está apoiando o Brasil, mas diz que no atual contexto isso significa que precisa estar ao lado de Bolsonaro.

"No atual cenário, o governo Bolsonaro está lutando pelo país, e esse é o sonho de qualquer cidadão sério. O Governo Bolsonaro está com nosso apoio, mas não estamos indo às ruas por causa de uma pessoa, mas por causa da plataforma que defendemos - Deus, Pátria e Família, e a nossa liberdade", diz Terra Nova à BBC News Brasil.

Para convencer os fiéis, o discurso dos líderes costuma ser extremo, como o de Munguba Júnior que afirma que aqueles que não participarem do ato querem ser escravizados.

"Quando falo sobre uma possível escravidão, estamos defendendo a liberdade do povo. Vamos fazer oração no local (do ato) pedindo para que Deus nos livre do comunismo. Se o comunismo for implantado, seguramente a liberdade vai embora", diz Munguba à BBC News Brasil.

A "ameaça comunista", segundo o pastor, se tornará real se um partido de esquerda como o PT for eleito para governar o país. Esse argumento é utilizado por religiosos bolsonaristas para reforçar a ideia de que a participação nos atos é uma espécie de "luta do bem contra o mal".

Munguba, que é de Fortaleza (CE), afirma que o vídeo que publicou para convocar para os atos vale para todo o país, pois argumenta que sua igreja, Seven Church, é acompanhada por fiéis de diferentes regiões do Brasil.

'Somos cristãos, mas não defendemos o que essas pessoas defendem'

As convocações de Malafaia e seus aliados incomodaram pastores que compõem o Movimento Resistência Reformada, um grupo de lideranças evangélicas que se opõe às medidas de Bolsonaro.

"Somos cristãos, mas não defendemos o que essas pessoas defendem, por isso nos posicionamos. Não queremos, de forma alguma, que o Brasil se torne uma teocracia, que é o que essas lideranças almejam. Isso tudo é lamentável", declara o pastor Rodrigo Coelho, líder do Resistência Reformada.

Pastor Rodrigo Coelho divulgou vídeo para pedir que fiéis não participem de atos pró-Bolsonaro

Quando notaram o crescente apelo de líderes como Malafaia para que os fiéis participassem das manifestações, os membros do movimento, cerca de 100 líderes religiosos no Brasil e alguns do exterior, publicaram um vídeo contrário a isso.

"Você, nesse lugar, é tão somente massa de manobra, tão somente uma pessoa sendo manipulada (por pastores bolsonaristas) para que essas pessoas possam permanecer no poder e permanecer com os seus privilégios. Não se permita isso. Não se permita ser cooptado por essa gente", diz Coelho, em trecho de vídeo compartilhado por ele nas redes sociais.

O pastor argumenta que o principal objetivo do movimento é defender os direitos humanos e se posicionar contra os "desmandos do Bolsonaro" e de seus aliados.

"O movimento nasce no contexto do governo Bolsonaro, mas vai além dele, porque a gente crê que o governo Bolsonaro vai passar. Decidimos nos posicionar (contra o ato de sete de setembro) porque é um absurdo o que acontece no Brasil, sobretudo o apoio de parte da igreja evangélica", declara Coelho.

"O Silas já apoiou toda a classe política, de direita ou esquerda, e me parece fazer qualquer coisa para estar no poder e ter privilégios de quem transita no Palácio (do Planalto). Mas na verdade, a gente entende que lugar de profeta é fora do Palácio, denunciando quem faz coisa errada", completa.

Os vídeos de religiosos convocando para os atos alcançaram mais de um milhão de visualizações nas diferentes redes sociais. Coelho não tem dados exatos sobre o alcance do vídeo feito por ele contra os chamados para esses atos, mas admite que a visualização foi muito menor.

"A gente faz isso de forma orgânica, enquanto esse pessoal (como Malafaia) patrocina os posts. Esse pessoal está desesperado porque o governo, a cada dia mais, enfrenta momentos ruins", declara.

"Porém, estamos satisfeitos em saber que chegamos em vários lugares com o nosso vídeo. Várias pessoas do Brasil têm entrado em contato para manifestar apoio. Isso prova que nas igrejas evangélicas há pessoas que não estão alinhadas a essas lideranças religiosas e a esse governo", completa o pastor.

Evangélicos e Bolsonaro

O racha entre evangélicos sobre o apoio a Bolsonaro não abala aqueles que têm convocado os atos a favor do presidente.

Pesquisas apontam queda no apoio de evangélicos a Bolsonaro (Getty Images)

Pastores ligados ao presidente afirmam que o apoio ao governo segue em alta entre esses religiosos. Malafaia diz, apenas com base em experiência própria, que cerca de 80% dos evangélicos apoiam Bolsonaro.

"Conheço o mundo evangélico. Isso é uma piada (as pesquisas que indicam queda no apoio ao presidente entre os evangélicos). Tenho acompanhado o Bolsonaro em vários lugares. No mínimo, uns 50% das pessoas que estão em aeroportos e nos lugares em que o presidente está são evangélicos", declara Malafaia.

Especialistas ressaltam que a retórica de Bolsonaro de ser perseguido injustamente enquanto tenta combater um mal maior, que seria a esquerda ou uma "constante ameaça comunista", vai no sentido do que as igrejas evangélicas pregam entre os fiéis da luta do bem contra o mal.

No atual cenário, segundo o cientista político Vinícius do Valle, o presidente tenta resgatar o discurso de que se trata do bem contra o mal no Brasil para tentar reunir o maior número de apoiadores. "Ele diz que os bolsonaristas podem salvar o presidente do mal se forem contra o STF", diz o especialista.

"Os evangélicos surgem como uma das poucas forças que permanecem fiéis ao presidente, como os militares e muitos ruralistas, ainda que de forma reduzida atualmente", acrescenta Valle.

O especialista ressalta que as inúmeras convocações de líderes religiosos não significam a garantia de presença massiva dos evangélicos nos atos de sete de setembro.

"Os evangélicos não seguem à risca os posicionamentos dos pastores. Além disso, dentro da própria igreja há diferentes lideranças, que nem sempre seguem o mesmo posicionamento. O pastor que fala diretamente com o público nem sempre tem o mesmo discurso do pastor que é presidente da igreja", afirma Valle.

Além disso, fatores como a alta do desemprego, a crise econômica e o aumento dos preços de itens básicos têm feito, conforme os especialistas, com que muitos evangélicos abandonem o bolsonarismo.

O cientista Felipe Nunes, da Quaest, empresa de inteligência de dados, afirma que o eleitor brasileiro é mais pragmático do que ideológico. "O brasileiro avalia o seu bem-estar. No atual momento, com a qualidade de vida caindo, com o aumento da inflação, falta de crescimento econômico e a percepção de que as coisas não vão melhorar, isso tudo recai sobre a imagem do presidente", diz à BBC News Brasil.

Em razão disso, segundo ele, uma parcela dos mais pobres entre os evangélicos começou a se afastar do presidente. "Um resultado econômico ruim leva os evangélicos mais pobres a sofrer na carne com tudo o que está acontecendo e colocam na conta do presidente", explica Nunes.

Vinícius Lemos - @oviniciuslemos, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 03.09.21

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Ultradireita alemã: pequena nas urnas, gigante nas redes sociais

Mesmo estagnada em intenções de voto no mundo "offline", AfD monopoliza engajamentos nas redes, enquanto siglas tradicionais patinam na área. Seu trunfo: declarações ultrajantes e incentivos do algoritmo do Facebook.

Algoritmos do Facebook favorecem mensagens incendiárias da AfD

Clique, curta e compartilhe: as redes sociais são a espinha dorsal da estratégia de campanha do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) desde 2013. E o alcance da legenda nessa área só aumentou desde então.

Nas redes alemãs, a política parece existir de forma invertida: partidos de massa no mundo "offline", como a União Democrata-Cristã (CDU), da chanceler federal Angela Merkel, são nanicos. Já a AfD, que não participa de nenhum governo estadual e cuja bancada no Parlamento não tem poder para frear iniciativas governamentais, mantém uma influência desproporcional nas redes. 

Em 2021, a apenas um mês das eleições federais de setembro e que vão decidir a sucessão de Merkel, a AfD aparece empacada com entre 10% e 11% das intenções de voto - percentual similar ao que o partido conquistou no pleito de 2017.

Mas quem olhar para plataformas como Facebook, Instagram e YouTube pode ter a impressão que o partido é muito maior.

O tamanho da AfD nas redes

Analisando as estatísticas de perfis nas redes sociais de figuras da classe política alemã entre 12 e 15 de agosto, nota-se que Alice Weidel, vice-presidente do partido e colíder da bancada da AfD no Parlamento, é de longe a política alemã com mais interações online.

Mesmo que ela não tenha, de acordo com pesquisas, chance de se tornar a próxima chanceler federal, os vídeos de Weidel foram vistos 4,9 milhões de vezes nesse período de quatro dias. O número de comentários, curtidas e compartilhamentos supera qualquer coisa publicada por outros políticos. Tal engajamento nas redes é precioso no mundo das redes, já que implica que os usuários se identificam tanto com o conteúdo a ponto de disseminá-lo ainda mais.

A deputada de ultradireita Alice Weidel. Ela consegue mais engajamentos que outros políticos alemães

A AfD tem oficialmente 32 mil filiados na Alemanha. A tradicional CDU tem muito mais: 430 mil, com idade média de 59 anos, a mesma do candidato do partido à chancelaria, Armin Laschet, que espera ser o sucessor de Merkel.

Nas redes sociais, o desempenho de Laschet é pífio em comparação a Weidel, de 42 anos. Seu burocrático slogan de campanha "A proteção inteligente do clima é uma tarefa transversal" só mobilizou alguns poucos usuários, acumulando não mais do que algumas centenas de likes, compartilhamentos e comentários (muitas vezes com tom negativo) no Twitter e Facebook. No período entre 12 e 15 de agosto, os vídeos de Laschet acumularam apenas 320 mil visualizações.

Facebook: a meca da AfD

Em entrevista à DW, Marcus Schmidt, assessor de imprensa do grupo parlamentar da AfD, admite: "Sem o Facebook, não acredito que a AfD pudesse ter se tornado um sucesso tão rapidamente."

Usar o Facebook como um canal para seus apoiadores permite que a AfD contorne os meios de comunicação tradicionais e espalhe suas mensagens diretamente - mensagens muitas vezes abertamente racistas, nacionalistas e repletas de fake news.

O Facebook continua sendo a plataforma de engajamento mais importante da AfD. Cerca de 84% das interações de Alice Weidel nas redes sociais foram registradas nessa plataforma.

Embora o Partido Verde e especialmente o Partido Liberal-Democrata - chefiado por Christian Lindner, que tem experiência em redes sociais - tenham intensificado seus esforços nas mídias, Weidel ainda aparece bem à frente de todos os seus concorrentes em interações totais.

Mensagens incendiárias

Fundada em 2013, como uma sigla majoritariamente eurocética moderada que contava com vários liberais, a AfD rapidamente se converteu de maneira veloz em um agrupamento ultranacionalista e anti-imigração entre 2014 e 2015. Como resultado, vários fundadores deixaram a sigla, afirmando que o partido havia se tornado um veículo "iliberal", que se distanciou do seu propósito original.

Hoje, a AfD é um guarda-chuva para diferentes grupos de ultradireita, como ultraconservadores, fundamentalistas cristãos e ultranacionalistas. Muitos membros também são acusados regularmente de nutrir simpatias pelo nazismo.

Postagens bem-sucedidas da AfD nas redes buscam despertar emoções: alimentando o medo em relação aos imigrantes, ao crime e à queda na mobilidade social, enquanto tentam atiçar raiva contra a chanceler federal Merkel e as "elites" do país. Publicações vívidas e provocativas e bordões emocionais são fundamentais para a estratégia de mídia social dos ultradireitistas.

Weidel, por exemplo, usou com sucesso recentemente a expressão "república das bananas" ao falar sobre as recentes enchentes devastadoras na Alemanha. "Os que estão no poder deixaram a Alemanha se degenerar em uma república das bananas, na qual os cidadãos não podem ser alertados e protegidos contra desastres", disse ela.

Várias postagens semelhantes viralizaram com a mesma intensidade.

Notícias falsas e desinformação têm sido parte integrante das campanhas da AfD desde o início. Às vezes, políticos da sigla lançam boatos de que Merkel furou seu período de quarentena (algo que ela não fez), em outras oportunidades, colocam falas na boca de adversários políticos. 

Tudo que importava é a atenção. Em outros casos, a AfD mantém relações estreitas com youtubers de extrema direita. Em novembro, deputados do partido foram acusados de autorizar a entrada de algumas figuras dessa cena na internet no prédio do Parlamento, em Berlim. Na ocasião, os youtubers ofenderam e abordaram de maneira agressiva políticos de outras siglas - e tudo foi transmitido. 

O chefe da equipe de mídia social do grupo parlamentar da AfD, Mario Hau, nega que a sigla dissemine material falso ou calunioso. "Fazemos tudo isso com base em, por exemplo, dados e pesquisas. Não produzimos notícias falsas."

O efeito bola de neve de provocações planejadas

A forma como as redes sociais funcionam garante que a AfD receba o máximo de atenção, de acordo com Felix Kartte, conselheiro da Reset Tech, uma organização sem fins lucrativos que defende a regulamentação das mídias sociais.

Emocionais, ousadas, radicais e vigorosas - são essas as postagens que atraem comentários, são compartilhadas e influenciam os algoritmos, explica Kartte.

"As plataformas oferecem aos comentários mais extremos uma vantagem sistêmica porque seus algoritmos e sistemas de recomendação são configurados para privilegiar esse tipo de conteúdo, já que ele é mais envolvente", diz Kartte. Isso faz com que opiniões controversas ou incendiárias acabem sendo super-representadas nas redes sociais. E os partidos populistas podem usar isso a seu favor, mesmo que tenham pouco apoio dos eleitores nas urnas.

A deputada da AfD Beatrix von Storch e o presidente Jair Bolsonaro. Ultradireitistas sabem explorar as redes

Um documento interno de estratégia do partido AfD para a campanha das eleições gerais de 2017 deixou claro qual é a estratégia do partido. O memorando pedia que os candidatos da sigla e apoiadores fizessem "provocações cuidadosamente planejadas" como meio de gerar manchetes e chamar a atenção dos eleitores. Até mesmo a reação negativa e críticas de adversários às provocações são encaradas como ativos pelo partido.

"Quanto mais eles tentam estigmatizar a AfD por causa de palavras provocativas ou ações, melhor para o perfil da AfD. Ninguém dá à AfD mais credibilidade do que nossos adversários políticos", apontava o documento.

E a produção de declarações ultrajantes que reverberam não só nas redes sociais como na imprensa tradicional é uma especialidade da AfD.

Em 2017, o atual colíder da bancada da AfD no Parlamento Alexander Gauland disse que os alemães deveriam ter orgulho dos soldados que lutaram nas duas guerras mundiais. Em 2016, ele já havia provocado indignação ao ofender o zagueiro da seleção alemã Jérôme Boateng, que tem origem africana, afirmando que nenhum alemão gostaria de ter "como vizinho" alguém como o jogador.

Em janeiro de 2017, Björn Höcke, deputado da AfD no parlamento estadual da Turíngia, chamou o Memorial do Holocausto em Berlim de "monumento da vergonha". Höcke também é autor de um livro que encampa teorias conspiratórias populares na extrema direita, como a chamada "grande troca populacional", que sustenta que governos europeus, com a cooperação das "elites", conspiram para trocar a população branca por imigrantes muçulmanos ou africanos.

Juan Carlos Medina Serrano, cientista político da Universidade de Munique que estuda a estratégia de mídia social da AfD há vários anos, afirma que a sigla é adepta de projetar conteúdo polarizador para se tornar viral: "Outros partidos não produzem esse tipo de conteúdo agressivo. Portanto, suas mensagens são menos compartilháveis."

Moldado para se tornar viral

Medina Serrano vê semelhanças com o caso da AfD e o uso bem-sucedido das mídias sociais pelo ex-presidente americano Donald Trump - mas também uma diferença importante. Enquanto a campanha presidencial de Trump em 2016 usou uma grande quantidade de publicidade paga - a AfD quase não recorre a esse tipo de estratégia. Em vez disso, depende de conteúdo orgânico.

Publicações da AfD nas redes. Mensagens provocativas, ataques e fake news

A AfD também usa "uma narrativa de 'não estamos tendo tempo suficiente na mídia, então nos apoie nas redes sociais'", explica Medina Serrano. Essa narrativa ajuda o partido a se posicionar como um outsider antiestablishment e incentiva os eleitores em potencial a obter informações diretamente com a AfD.

Os seguidores também são repetidamente instados a compartilhar o conteúdo para aumentar o alcance do partido, prossegue Medina Serrano. Os políticos e funcionários do partido incentivam um "envolvimento constante com sua comunidade", respondendo constantemente aos comentários dos usuários.

Por outro lado, Serrano também aponta que a AfD é adepta do uso de robôs.

Antes da eleição para o Parlamento Europeu em 2019, checadores da emissora pública alemã ARD identificaram várias contas recém-criadas no Twitter, que mostravam fotos de mulheres jovens que interagiam com outros perfis semelhantes e retuitavam o conteúdo umas das outras. Um exemplo foi o caso de "Beate", cujo perfil inicialmente pertencia a uma página russa de dicas de beleza e que passou por um processo de metamorfose para se tornar uma ultradireitista. Sua conta conseguiu mil seguidores em um mês - incluindo vários membros do bloco parlamentar da AfD e outros perfis de mulheres jovens com sinais de serem robôs.

O uso de tais contas falsas é difícil de quantificar ou provar, admite Medina Serrano.

Campanha do "Velho Oeste"

As empresas de mídia social têm algumas regras antidiscurso de ódio para suas plataformas, que chegaram a causar alguns problemas para a AfD no passado.

A deputada Beatrix von Storch, uma figura influente do partido, se tornou uma das primeiras a ser sancionadas por leis contra discurso de ódio nas redes sociais em janeiro de 2018, quando sua conta no Twitter chegou a ser bloqueada temporariamente por causa de um tuíte racista.

Regras de campanha na Alemanha foram desenhadas para o mundo "offline". Redes são o "velho oeste", segundo especialistas

Recentemente, ela se encontrou com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, outra figura que ganhou projeção nacional graças a uma mistura de declarações ultrajantes e preconceituosas e uma atuação agressiva nas redes sociais - também suspeita de usar ferramentas irregulares de impulsionamento e robôs. Tal como Bolsonaro, Von Storch vem divulgando mensagens contra o que chama de "censura" contra "conservadores" nas redes sociais pelas plataformas.

Mas mesmo o caso da sanção contra Von Storch foi raro na Alemanha.

No mundo "offline", a Alemanha tem regras e restrições rígidas para a campanha eleitoral, como limitar o tempo que os outdoors da campanha podem ficar nas ruas ou restringir os horários dos anúncios da campanha na TV. Mas não há equivalente na campanha online, que permanece pouco regulamentada.

A campanha de mídia social é "basicamente o Velho Oeste", destaca Felix Kartte, "E isso beneficia a AfD."

A AfD também rejeita apelos para selar um compromisso voluntário de todos os partidos para executar uma campanha eleitoral justa e transparente. Em entrevista à DW, o porta-voz do grupo parlamentar da AfD, Marcus Schmidt, classifica as iniciativas com um mero "show" para desacreditar seu partido.

Em vista da crescente importância das mídias sociais, uma aliança civil de associações e iniciativas da Alemanha está pedindo um comprometimento voluntário dos partidos políticos com campanhas eleitorais justas e transparentes na internet. Mensagens políticas pagas teriam que conter um aviso claro. E os comentários de ódio nas postagens devem ser excluídos pelos partidos.

Para Kartte, o espaço desproporcional conquistado pela AfD pelas plataformas de mídia social representa um perigo para a democracia.

Deutsche Welle Brasil, em 30.08.2021

Entidades do agronegócio divulgam manifesto em defesa da democracia

Texto afirma que Brasil precisa de "paz e tranquilidade" e valoriza "alternância de poder em eleições legítimas e frequentes". Meio empresarial articula outro manifesto para ser divulgado após feriado de 7 de setembro.

Iniciativa tomou corpo após investidas crescentes de Bolsonaro contra urnas eletrônicas e instituições como o STF

Sete entidades que representam o agronegócio no Brasil divulgaram nesta segunda-feira (30/08) um manifesto no qual expressam preocupação com os "atuais desafios à harmonia político-institucional" no país e possíveis reflexos na estabilidade econômica e social, e reforçam a importância do Estado democrático de direito.

"Somos responsáveis pela geração de milhões de empregos, por forte participação na balança comercial e como base arrecadatória expressiva de tributos públicos. Assim, em nome de nossos setores, cumprimos o dever de nos juntar a muitas outras vozes responsáveis, em chamamento a que nossas lideranças se mostrem à altura do Brasil e de sua história agora prestes a celebrar o bicentenário da independência", afirma o texto.

"A Constituição de 1988 definiu o Estado democrático de direito no âmbito do qual escolhemos viver e construir o Brasil com que sonhamos. Mais de três décadas de trajetória democrática, não sem percalços ou frustrações, porém também repleta de conquistas e avanços dos quais podemos nos orgulhar. Mais de três décadas de liberdade e pluralismo, com alternância de poder em eleições legítimas e frequentes", escrevem as entidades.

O manifesto é assinado pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), Associação Brasileira das Indústrias de Tecnologia em Nutrição Vegetal (Abisolo), Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), Associação Brasileira de Produtores de Óleo de Palma (Abrapalma), Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg) e Croplife Brasil.

Outros setores elaboram segundo manifesto

A iniciativa ocorre em meio a articulações no meio empresarial para tornar públicos posicionamentos críticos sobre o governo Jair Bolsonaro, após investidas crescentes do presidente e de seu entorno contra a legitimidade das urnas eletrônicas e contra instituições como o Supremo Tribunal Federal, além de ameaças às eleições de 2022.

A Federação da Indústria do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) também preparam um manifesto em favor da democracia, mas adiaram a divulgação após o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, vinculados ao governo federal, afirmarem que deixariam a Febraban se ela apoiasse o documento.

Esse segundo manifesto deve ser divulgado após o feriado de 7 de setembro, Dia da Independência, quando são esperados atos a favor e contra o governo em diversas capitais do país.

Em 20 de agosto, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços do cantor Sérgio Reis, do deputado federal bolsonarista Otoni de Paula (PSC-RJ) e de outras oito pessoas investigadas por incitar atos contra a democracia e o Estado de direito, supostamente vinculados aos atos em 7 de setembro.

"Paz e tranquilidade"

O texto divulgado pelas entidades do agronegócio nesta segunda-feira afirma que o desenvolvimento econômico e social do Brasil depende de "paz e tranquilidade" para seguir avançando na construção de uma nação "que reconhece a maioria sem ignorar as minorias, que acolhe e fomenta a diversidade, que viceja no confronto respeitoso entre ideias que se antepõem, sem qualquer tipo de violência entre pessoas ou grupos".

"Somos uma das maiores economias do planeta, um dos países mais importantes do mundo, sob qualquer aspecto, e não nos podemos apresentar à comunidade das nações como uma sociedade permanentemente tensionada em crises intermináveis ou em risco de retrocessos e rupturas institucionais. O Brasil é muito maior e melhor do que a imagem que temos projetado ao mundo. Isto está nos custando caro e levará tempo para reverter", escrevem os signatários.

"As amplas cadeias produtivas e setores econômicos que representamos precisam de estabilidade, de segurança jurídica, de harmonia, enfim, para poder trabalhar. Em uma palavra, é de liberdade que precisamos — para empreender, gerar e compartilhar riqueza, para contratar e comercializar, no Brasil e no exterior. É o Estado democrático de direito que nos assegura essa liberdade empreendedora essencial numa economia capitalista, o que é o inverso de aventuras radicais, greves e paralisações ilegais, de qualquer politização ou partidarização nociva que, longe de resolver nossos problemas, certamente os agravará", afirma o texto.

Deutsche Welle Brasil, em 30.08.2021

Anni Horribiles

Por José Sarney

Na História da Humanidade passamos por períodos bons e períodos maus. A própria Terra atravessou transformações gigantescas até sua formação atual, que continua e continuará até que, nas previsões atuais, o Sol esquente até se tornar uma gigante vermelha em cinco bilhões de anos, se esfrie — e ninguém ainda chegou à conclusão do que então acontecerá com ela, Terra, talvez seja simplesmente absorvida pela estrela.

Do mesmo modo os continentes sofrem transformações geográficas e são vítimas do mundo cão, com a infinidade de furacões e terremotos, que, apesar de exaustivas e intensas pesquisas, somos impotentes em evitar. Mas não nos acostumamos com eles, que continuam a provocar catástrofes enquanto nos amedrontamos com palavras como “tsunami”.

Os países também sofrem seus anos de baixo e alto astral. Na Inglaterra, em 1992, no desespero das guerras dos tabloides sobre a família real, que sofria muitos ataques e problemas, tendo por carro-chefe os escândalos em torno da Princesa Diana, a rainha Elizabeth chamou aquele de annus horribilis.

Agora o mundo pode dizer a mesma coisa com a epidemia do Coronavirus. O Brasil, que, como outros países, sofre a surpresa da epidemia, enfrenta uma série de crises de natureza política — em estado de desintegração com vazio de lideranças —, de natureza econômica — com a inflação em alta, o mesmo com os juros —, e agora, para aguçar nossas desgraças, surge o fantasma da crise da energia e da falta de água nas grandes cidades. Os reservatórios estão vazios e atravessamos uma seca que atinge nosso território continental, com agravamento das queimadas em todo o País e a incapacidade de conjurar essa catástrofe ecológica.

Não há dúvida de que estamos vivendo um período de aquecimento da Terra, com os dados já existentes do aumento de um grau desde a Revolução Industrial, com a maior frequência de fenômenos como El Niño — o aquecimento das águas dos oceanos em determinadas regiões do Pacífico, com reflexos mundiais, mas em especial na América do Sul. Exacerbam-se enchentes e secas. Até o Rio Grande do Sul, há cinco anos, enfrenta um regime de invernos irregulares com consequências na lavoura e na economia.É com sentimento de tristeza que vemos se repetir o desastre no Pantanal, que, no ano passado, teve um terço do seu território queimado — metade em áreas ocupadas pelo homem —, já perdeu três quartos da sua superfície de água e talvez não tenha capacidade de sobreviver. Na Amazônia vemos também se repetirem os picos de destruição. Vemos o restinho — 12% — que sobrevive da Mata Atlântica ser atingido de maneira recorde. Os produtores deviam perceber o prejuízo das queimadas para as safras e para a reputação de nossa agricultura e ajudar a combatê-las.

E agora não temos medidas de prevenção da crise hídrica, aumentando o risco de apagão elétrico e desabastecimento d’água nas cidades. Era só o que nos faltava.

Ainda bem que não temos família real.

José Sarney, o autor deste artigo, foi Governador do Maranhão e Presidente da República. Publicado originalmente n'O Estado do Maranhão, em 29.08.2021

EUA veem com preocupação democracia brasileira mas consideram que Forças Armadas não participariam de golpe

Quando o Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, e o Assessor Especial do presidente americano Joe Biden, Juan González, entraram no gabinete de Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto, no último dia 5, não esperavam uma conversa de melhores amigos. 

Mas o que encontraram foi descrito à BBC News Brasil como "nonsense" e "tenso" por oficiais americanos.

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro cumprimenta o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, no Palácio do Planalto (Reprodução / Embaixada dos Estados Unidos no Brasil)

Do encontro sobraram não só uma foto de um aperto de mão de Sullivan, de máscara, e Bolsonaro, sem máscara e oficialmente não vacinado, mas também uma preocupação dos americanos com a saúde da democracia brasileira, diante das alegações sem provas do presidente brasileiro de fraude eleitoral nas urnas eletrônicas.

Originalmente, a agenda dos enviados de Biden ao Brasil não teria a democracia brasileira como destaque principal.

A pauta deles incluía oferecer ao país o status de parceiro global da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), condição que dará acesso ao Brasil à compra de equipamentos de guerra de última linha, além de sessões de treinamento militares com os americanos em bases nos EUA.

Por outro lado, a missão americana pretendia pressionar o Brasil a estabelecer — e cumprir — metas de redução de desmatamento ambiciosas e dissuadir o Brasil de usar equipamentos da gigante chinesa de telecomunicações Huawei em sua rede 5G — um dos argumentos dos americanos foi, inclusive, o de que a empresa poderia não entregar os materiais contratados pelo governo Bolsonaro por crise de matérias-primas.

A conversa, no entanto, saiu do script normal com insinuações de Bolsonaro de que o pleito americano de 2020 havia sido roubado — o que faria de Joe Biden um presidente ilegítimo.

A administração Biden sempre esteve ciente de que Bolsonaro defendia publicamente as falsas alegações de Trump sobre as eleições. O republicano fazia múltiplas acusações ao sistema eleitoral dos EUA, questionando tanto aos votos de papel quanto àqueles depositados em urna eletrônica, mesmo antes do dia da votação. Bolsonaro foi o último líder do G-20 a reconhecer a vitória de Biden.

O que os americanos não esperavam é que Bolsonaro dissesse tais coisas diante de Sullivan e Gonzalez, ambos altos representantes do governo a serviço dos democratas há anos.

Segundo autoridades com conhecimento dos fatos, ambos ouviram o suficiente para deixar o encontro preocupados com a democracia no Brasil. Sullivan foi às redes sociais enunciar que a "gestão Biden defende um hemisfério seguro e democrático".

Juan Gonzalez apontou paralelos entre comportamentos de Trump e Bolsonaro (Alan Santos / Presidência da República)

Já Juan Gonzalez fez uma coletiva de imprensa sobre a viagem para Brasil e Argentina na qual falou, na maior parte do tempo, da democracia brasileira. "Fomos muito diretos em expressar nossa confiança na capacidade de as instituições brasileiras conduzirem uma eleição livre e limpa e enfatizamos a importância de não ser minada a confiança no processo de eleições, especialmente porque não há indício de fraude nas eleições passadas", disse Gonzalez, sobre o teor da conversa com Bolsonaro.

A Cartilha Trump

Dentro do governo americano, tanto no Executivo quanto no Congresso, tem ganhado força a percepção de que Bolsonaro segue estritamente a cartilha que Trump adotou ao tentar se perpetuar no poder: denunciar fraudes sem prova, antes mesmo do pleito ocorrer, e criar descrença em parte do eleitorado sobre o processo eleitoral, a ponto de levar a cenas como a invasão do Capitólio por apoiadores, em 6 de janeiro.

A diplomacia de Biden não deixou de notar, por exemplo, o interesse do ex-estrategista de Trump, Steve Bannon, nas eleições de 2022, no Brasil.

O próprio Gonzalez foi explícito sobre o assunto. "Fomos sinceros sobre nossa posição, especialmente em vista dos paralelos em relação à tentativa de invalidar as eleições antes do tempo, algo que, é óbvio, tem um paralelo com o que aconteceu nos Estados Unidos."

Em Washington, a percepção é de que a imagem de Bolsonaro sofreu um abalo significativo como um possível interlocutor após a visita.

"Acho que o governo Biden, especialmente depois dessa reunião em Brasília, vê Bolsonaro como uma figura errática, ou pelo menos como alguém que age de uma forma muito excêntrica e difícil de prever. Ele diz coisas que parecem ir contra seu próprio interesse nacional. Por que ele iria querer brigar com o novo governo dos EUA dizendo que a eleição (americana) foi fraudada? Dá pra entender o porquê Trump faz isso, já que ele quer disputar a presidência de novo e fazer disso um tema, mas para um líder estrangeiro dizer esse tipo de coisa é, no mínimo, estranho", afirma Melvyn Levitsky, ex-secretário executivo do Departamento de Estado e embaixador no Brasil entre 1994-1998.

Militares longe do golpe

Levitsky, que hoje é professor de políticas internacionais da Universidade de Michigan, afirma que nessa situação, os americanos vão jogar (quase) parados, sem qualquer ação que possa soar como interferência nas eleições brasileiras.

Bolsonaro em cerimônia militar de 2018: EUA não veem como provável a possibilidade de que as Forças Armadas embarquem em uma eventual aventura golpista do presidente. (Reuters)

E isso também porque a diplomacia americana não vê como provável a possibilidade de que as Forças Armadas embarquem em uma eventual aventura golpista de Bolsonaro. Reservadamente, autoridades dos EUA citaram as ações recentes do ex-comandante do Exército, o general Edson Pujol, e de seu atual líder, o general Paulo Sérgio de Oliveira, como sinais de anteparos ao presidente no uso político das forças armadas. Em discurso no dia do soldado, Oliveira afirmou que o Exército quer ser respeitado "nacional e internacionalmente" e tem "compromisso com os valores mais nobres da Pátria e com a sociedade brasileira em seus anseios de tranquilidade, estabilidade e desenvolvimento".

"Eu conhecia muito bem os militares brasileiros. E embora faça algum tempo que não fale com eles, meu senso é de que os militares estavam muito subordinados ao governo civil e eu não acho que isso mudou. Não acho que os militares queiram entrar de vez na política. Seria devastador para eles fazer isso. E se isso acontecesse, seria devastador para as relações entre Brasil e Estados Unidos também", afirma Levitsky.

É essa percepção que explica, em parte, porque os americanos não viram problemas em oferecer ao Brasil uma posição como parceiro global na Otan que fortalece diretamente o Exército brasileiro. Se avaliasse haver tendência golpista nas forças, esse não teria sido um caminho para Biden, asseguram os diplomatas. Além disso, nem todos os parceiros globais da Otan são países de democracia perfeita — a Turquia, por exemplo, é tido como um deles.

Por fim, para os militares brasileiros a possibilidade de acessar contratos de vendas de armamento de ponta e participar em treinamentos com os americanos é algo de que eles provavelmente não estariam dispostos a abrir mão em troca da tentativa de um golpe ao lado de Bolsonaro. É o que argumenta Ryan Berg, cientista-político especialista em regimes autoritários na América Latina do Centro de Estratégias e Estudos Internacionais (CSIS, na sigla em inglês).

"A visão do governo dos EUA é que, embora os movimentos de Bolsonaro sejam muito preocupantes, com desfile de tanques pelas ruas de Brasília e atos para desacreditar as eleições, ainda assim o Congresso rejeitou o voto impresso e isso, para o governo dos Estados Unidos, indica que as instituições do Brasil são mais fortes do que algumas pessoas gostam de dizer. O governo dos EUA tem muita confiança que os militares brasileiros não ficariam do lado do Bolsonaro se ele tentasse cometer algum tipo de autogolpe, como vimos com Trump, na invasão do Capitólio em 6 de janeiro", afirma Ryan Berg.

O futuro das relações EUA-Brasil

Cúpula do clima organizada por Joe Biden, em abril, da qual Bolsonaro participou (Reuters)

É consenso entre diplomatas e especialistas internacionais americanos que os EUA não podem e nem querem virar as costas para o Brasil. Primeiro porque o país, com suas florestas tropicais, é visto como chave para avançar no combate ao aquecimento global, pauta prioritária do governo Biden.

Segundo, porque a China tenta ganhar espaço na América Latina a passos largos, e os americanos não estão dispostos a ceder, ao principal rival, espaço de influência na segunda maior democracia do continente — ainda mais com a disputa do 5G a pleno vapor.

E terceiro, porque, em que pesem as ações de Bolsonaro sobre a democracia brasileira ou sobre o meio ambiente, seu governo promoveu um alinhamento ideológico com os Estados Unidos no continente, adotando tom duro contra Venezuela e Cuba, algo bastante valorizado no Departamento de Estado.

No entanto, dada a percepção de que "Bolsonaro não é um líder plenamente confiável", como afirma Levitsky, os próximos movimentos na relação dependerão de seu governo. E a diplomacia americana diz que não vai se furtar da possibilidade de se engajar com outros atores políticos, em diferentes níveis de poder e sem a intermediação do Executivo federal, para fazer avançar sua agenda.

Foi exatamente o que fez, há um mês, o Enviado Climático de Biden, John Kerry. Diante de promessas não cumpridas e do mal-estar que representava a presença do então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que os americanos veem como envolvido em um possível esquema de tráfico ilegal de madeira amazônica para os EUA, Kerry driblou Brasília e se reuniu por uma hora e meia com os governadores do Fórum de Governadores, que inclui quase todos os Estados.

Na semana seguinte, Jake Sullivan não esteve apenas no Palácio do Planalto, mas fez também uma reunião com governadores do Consórcio da Amazônia Legal.

"Há uma percepção dos EUA de que o governo federal infelizmente não vai avançar muito na questão do desmatamento. Então falar com os governadores não chega a ser uma exclusão do governo federal, mas uma forma de jogar nas duas vias", afirmou à BBC News Brasil o governador do Maranhão, Flávio Dino (PSB), que esteve no encontro com Kerry.

Depois de três meses sem encontros com a equipe de Kerry, na última semana, técnicos do Ministério do Meio Ambiente e representantes do Itamaraty retomaram conversas com os americanos. Isso acontece a menos de três meses da Conferência do Clima, em Glasgow, na Escócia, encarada pelos americanos como a última grande oportunidade para que o governo Bolsonaro mostre algum avanço na agenda ambiental.

Consultado pela BBC News Brasil, o Departamento de Estado afirmou, por meio de um porta-voz, que "esperamos ver progressos adicionais à medida que o Brasil avança para combater o desmatamento ilegal e reduzir suas emissões de gases do efeito estufa, em linha com os compromissos assumidos pelo presidente Bolsonaro na Cúpula dos Líderes sobre o Clima realizada em abril".

O Itamaraty defende que as metas de redução de desmatamento (que deve ser zerado até 2030) e de emissões (zero até 2050) são as mais ambiciosas entre os países em desenvolvimento. Reservadamente, no entanto, diplomatas envolvidos nas negociações com os americanos reconhecem "dificuldades internas do governo" para entregar reduções expressivas no desmatamento ainda em 2021. Dados do INPE mostram que o acumulado de desmatamento entre janeiro e julho deste ano é o maior desde 2016.

Para o embaixador Levitsky, até a eleição do próximo ano, EUA e Brasil devem levar uma relação "em banho-maria". De um lado, os americanos não demonstram grandes expectativas de novos compromissos de Bolsonaro, a quem veem majoritariamente voltado à agenda eleitoral doméstica.

Por outro, preferem ver quem assumirá o país pelos quatro anos seguintes para tentar implementar qualquer ação fora das relações rotineiras. E já avisaram a Bolsonaro que reconhecerão como presidente quem quer que a Justiça Eleitoral aponte como vencedor do pleito em outubro de 2022.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington, DC, em 30 agosto de 2021

Intervenção armada é crime inafiançável e imprescritível

 


terça-feira, 24 de agosto de 2021

Brasil perdeu 15% das áreas de água doce em três décadas

Pantanal foi bioma que mais viu água desaparecer da superfície, seguido por Caatinga e Amazônia. Desmatamento, barragens, hidrelétricas e mudanças climáticas são apontados como causas para o rápido fenômeno.    

Imagem aérea mostra danos causados por incêndios no Pantanal em setembro de 2020

"O Pantanal está morrendo": imagem mostra danos causados por incêndios no Pantanal em setembro de 2020

O baixo nível atual dos reservatórios que mergulhou o Brasil numa crise hídrica não parece ser um fato isolado. Em todo o país, a água doce disponível para consumo vem desaparecendo da superfície num ritmo assustador: 15,7% dela foram perdidos nos últimos 35 anos. Foram 31 mil km² de área inundada que evaporaram definitivamente nesse período – como se todo o Sistema Cantareira, que abastece a região metropolitana de São Paulo, tivesse sido esvaziado 16 vezes.

O cálculo faz parte de uma iniciativa inédita do MapBiomas, que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia, e disponibilizado numa plataforma online gratuita a partir desta segunda-feira (23/08). A análise da série histórica foi feita por meio de imagens de satélites obtidas a partir de 1985, ano em que começaram a ser registradas.

A tendência de queda de água superficial foi registrada em todos os seis biomas do país. O mais afetado foi o Pantanal, a maior planície inundável do planeta. De 1985 a 2020, o decréscimo foi de 68%.

"São dados alarmantes. É um sinal de que o Pantanal está secando como um todo, que ele está morrendo. Uma área úmida sem água perde seu principal atributo ecológico", avalia Cássio Bernadino, coordenador de projetos do WWF-Brasil que participou do levantamento.

Jacaré morto em área seca no Pantanal, em setembro de 2020

A região com o rio mais volumoso do planeta, a Amazônia, também não passou incólume pelo fenômeno. No período analisado, a redução observada foi de 10,4%. "Isso é uma enormidade para a maior bacia hidrográfica do mundo", ressalta Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas.

A água doce que escorre para o oceano não tem voltado para abastecer o continente em forma de chuvas.

Colapso da máquina natural de chuva

A análise evidenciou o impacto do corte das árvores na Amazônia na própria região. Onde a mata nativa some, o entorno fica mais seco. Uma demonstração vem da zona conhecida como arco do desmatamento, por onde a devastação histórica avança mais rápido sobre a floresta. É nessa fronteira agrícola que propriedades rurais estão construindo reservatórios descontroladamente.

"O sujeito está na bacia Amazônica, a maior do país, e a água não dá mais conta, ele precisa fazer reservatório para o período de seca. São mais de 50 mil reservatórios, a grande maioria irregular, algo que, até então, não aparecia nos mapas", diz Azevedo sobre uma das descobertas do levantamento. 

Toda essa situação provoca uma série de impactos graves em cadeia. Como esses reservatórios estão localizados nas cabeceiras dos rios, há menos água escoando para os cursos dos rios e para onde está a floresta. Isso desregula de forma preocupante o funcionamento da máquina natural de produção de chuvas que é a Amazônia.

"Já temos menos árvores bombeando água para a atmosfera [por causa do desmatamento] e menos água chegando até as árvores. Menos água sendo bombeada significa menos chuva", detalha Azevedo.

Os estragos dessa "quebra de produção" não se restringem à Amazônia. Como é de lá que partem grandes fluxos de umidade para todo o continente, os chamados rios voadores, a diminuição das chuvas é sentida em vários pontos do país.

"Para evitar a piora, é preciso parar o desmatamento, e isso está na governança do Brasil. A primeira razão pra isso é para manter as chuvas, evitar as secas. É preciso recuperar floresta em larga escala para que ela recicle essa água", sugere Azevedo.

O único jeito de a água perdida voltar para o continente é pela chuva. Por isso o papel vital da floresta: ela funciona como uma enorme bomba que recicla a água do sistema.

Por que a água secou

Depois do Pantanal (68%), os biomas que mais secaram foram Caatinga (17,5%), Amazônia (10,4%), Mata Atlântica (1,4%), Cerrado (1,3%) e Pampa (0,5%).

Dentre os motivos apontados pelos pesquisadores para o cenário em todas essas regiões estão as mudanças climáticas, com períodos secos cada vez mais prolongados e os úmidos mais concentrados.

Um exemplo recente da Amazônia vem do rio Negro. A cheia extrema da última temporada, que atingiu o nível mais elevado medido nos últimos 120 anos, inundou a maioria dos 62 municípios do Amazonas e causou grandes prejuízos à região, já fortemente abalada pela pandemia.

Quando observado na série histórica, o Negro, por outro lado, tem perdido a sua potência. Os dados do MapBiomas mostram uma tendência de decréscimo de superfície de água em sua sub-bacia, com uma redução de mais de 3.600 km².

"Quando a chuva fica muito concentrada, até há cheias, como ocorreu no Amazonas, mas depois a seca é muito mais prolongada. As cheias não dão mais conta dos estragos provocados pelas secas. Com isso, tudo vai ficando cada vez mais seco", detalha Azevedo.

Além das mudanças climáticas, o desmatamento, a construção de barragens e de hidrelétricas, a poluição e superexploração dos recursos hídricos influenciam o panorama. Alguns casos observados indicam uma relação desproporcional entre fronteiras agrícolas e perda de água: quanto maior o avanço das grandes áreas de cultivos sobre a mata nativa, mais rápido o recurso hídrico some da superfície.

Nos últimos 15 anos, a expansão de grandes plantações ao longo do rio São Francisco provocou uma redução de 10% na água superficial. Na região do baixo São Francisco, próxima à foz, a intrusão marinha compromete o encontro do rio com o mar e a sobrevivência de comunidades ribeirinhas.

A água no planeta

Cerca de 97,5% da água na Terra estão no oceano. Da porção doce (2,5%), apenas 1% não está congelada nas geleiras ou no mar. 

A maior parte dessa água doce (90%) está no no subterrâneo. O que sobra em lagos e rios equivale a 0,1% de toda a água doce disponível do planeta. "É dessa pouca água que estamos perdendo", alerta Azevedo.

Deutsche Welle Brasil, em 24.08.2021