segunda-feira, 5 de julho de 2021

No Senado, a CPI das "rachadinhas"

Áudio reforça indícios de esquema de desvio de dinheiro público operado pela família Bolsonaro. Em gravação, ex-cunhada de Bolsonaro afirma que irmão foi demitido pelo atual presidente porque não repassava seu salário para o clã.

Áudio vem à tona quando Bolsonaro tem nome vinculado a suspeita de corrupção com vacina e enfrenta protestos de rua

Um áudio de uma ex-cunhada de Jair Bolsonaro divulgado nesta segunda-feira (05/07) envolve diretamente o presidente no esquema ilegal de desvio de parte do salário de assessores parlamentares, conhecido como "rachadinha" e considerado crime de peculato, pelo qual seu filho Flávio já foi denunciado e seu filho Carlos é investigado.

Andrea Siqueira Valle, irmã da segunda esposa do presidente, afirma no áudio que Bolsonaro, que foi deputado federal de 1991 a 2018, determinou a exoneração do irmão caçula dela, André Valle, assessor no seu gabinete na Câmara dos Deputados de 2006 a 2007, porque ele não devolvia o valor do salário como combinado.

"O André dava muito problema, porque o André nunca devolveu o dinheiro certo que tinha que ser devolvido, entendeu? Tinha que devolver R$ 6 mil, o André devolvia R$ 2 mil, R$ 3 mil. Foi um tempão assim até que o Jair pegou e falou: 'Chega. Pode tirar ele, porque ele nunca me devolve o dinheiro certo'", diz Andrea na gravação, revelada pelo portal UOL.

Envolvimento de coronel

No áudio, Andrea também afirma que, quando estava lotada no gabinete de Flávio, parte de seu salário era recolhida por seu tio, o coronel da reserva do Exército Guilherme dos Santos Hudson, colega de Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras nos anos 1970, que foi assessor de Flávio de junho a agosto de 2018 e é investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Andrea diz que ficava com cerca de R$ 1 mil e repassava R$ 7 mil para o esquema.

Segundo o UOL, Andrea foi funcionária fantasma da família Bolsonaro por 20 anos, divididos entre os gabinetes de Jair na Câmara Federal, de Carlos na Câmara Municipal do Rio e da Flávio na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Ela também é investigada pelo Ministério Público fluminense.

Seu irmão, André, foi assessor de Carlos de agosto de 2001 a fevereiro de 2005 e de fevereiro a novembro de 2006. Em novembro de 2006, ele foi nomeado assessor do gabinete de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, onde ficou até outubro de 2007 e ganhava cerca de R$ 6 mil.

Menção a Queiroz

Em outra gravação divulgada pelo UOL, Márcia Aguiar, esposa de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio e um dos operadores do esquema, que chegou a ser preso em junho de 2020, afirma que Jair Bolsonaro seria o "01" e "não vai deixar" seu marido voltar a atuar como antes, devido às investigações no Ministério Público do Rio de Janeiro e à publicação de reportagens detalhando suas atividades.

Entre outros pontos, a investigação do Ministério Público identificou que Queiroz, amigo de Bolsonaro desde a década de 1980, depositou um cheque de R$ 24 mil na conta de Michelle Bolsonaro. A filha de Queiroz, Nathalia Melo de Queiroz, também foi funcionária do gabinete de Bolsonaro na Câmara de dezembro de 2016 a outubro de 2018.

A prática de "rachadinha" é tratada pelas autoridades como crime de peculato, que é a subtração ou apropriação indevida de valores ou bens por um servidor público, como um parlamentar.

O que há de novo

Diversas investigações do Ministério Público e reportagens já haviam apontado detalhes do suposto esquema de "rachadinha" e de como Bolsonaro e seus filhos Flávio, Carlos e Eduardo nomearam dezenas de pessoas com vínculos de parentesco entre si por meio de um rodízio entre seus gabinetes na Câmara dos Deputados, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e na Câmara Municipal do Rio.

Quebras de sigilos bancários apontaram que era comum entre assessores da família Bolsonaro a prática de sacar em dinheiro vivo praticamente todo o salário, para supostamente devolver a maior parte do valor por meio de operadores. Flávio responde a uma ação penal sobre o tema, e Carlos é investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.

A novidade é um áudio afirmando diretamente que o presidente tinha conhecimento e comandava o suposto esquema da "rachadinha", revelado em um momento que Bolsonaro vê seu nome vinculado a suspeitas de corrução ligadas à pandemia de covid-19 e enfrenta uma sequência de protestos contra seu governo.

A CPI da Pandemia no Senado está investigando acusações de corrupção envolvendo a compra e a negociação de vacinas pelo governo, e forças opositoras realizaram desde o final de maio três protestos de rua que contaram com milhares de pessoas em todas as regiões do país – o último, neste sábado, teve as suspeitas de corrupção como um dos temas centrais.

Como o áudio refere-se a um fato ocorrido antes de Bolsonaro ter tomado posse como presidente, ele não pode ser eventualmente condenado pelo caso até o fim de seu mandato. Há uma discussão jurídica sobre se um presidente poderia ser investigado por fatos anteriores ao mandato, o que já ocorreu uma vez, em 2017, com Michel Temer.

Parlamentares vinculam Bolsonaro a corrupção

A divulgação do áudio provocou impacto no meio político e foi comentada por diversos parlamentares, que destacaram o envolvimento do presidente e usaram o escândalo para fortalecer o pedido por seu impeachment.

No Twitter, o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) disse que a gravação mostrava que Jair Bolsonaro era "o grande chefe de desvios", e João Amoêdo, que foi candidato a presidente em 2018 pelo Novo, escreveu: "Rachadinha é crime. A reconstrução do Brasil começa com o impeachment do presidente da República."

O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ), usou o episódio para comparar a família Bolsonaro a uma máfia. "Tudo o que acontece na família Bolsonaro passa por Jair. Quem manda é o patriarca. É assim que as máfias funcionam".

Gleisi Hoffmann, presidente nacional do PT e deputada federal pelo Paraná, afirmou que "Jair, o verdadeiro 01, foi entregue pela ex-cunhada" e destacou: "Pegar salário de funcionário é peculato, é crime, corrupção na veia".

O senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Pandemia, disse ao UOL que solicitará a convocação de Andrea para que ela esclareça se sabe algo sobre a atividade de militares no governo Bolsonaro e sobre o suposto "ministério paralelo" que atuaria na gestão federal

Frederick Wassef, advogado de Bolsonaro e em cuja casa em Atibaia Queiroz estava escondido quando foi preso, afirmou que os fatos descritos por Andrea são "inverídicos" e que "jamais existiu qualquer esquema de rachadinha no gabinete do deputado Jair Bolsonaro ou de qualquer de seus filhos".

Maguns Cardoso, advogado de Ana Cristina Valle e sua família, disse ao UOL em nota que seus clientes não irão se manifestar.

Deutsche Welle Brasil, em 05.07.2021

Bolsonaro na lista mundial dos "predadores da liberdade de imprensa"

Brasileiro aparece ao lado de líderes de Cuba, Nicarágua e Venezuela em relatório da ONG Repórteres Sem Fronteiras. Entidade destaca ataques de Bolsonaro a jornalistas mulheres e retórica belicosa.

Bolsonaro e sua base consideram a imprensa um "inimigo do Estado", segundo a RSF

O presidente Jair Bolsonaro é um dos 37 líderes de todo o mundo que a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) considera "predadores da liberdade de imprensa", em lista divulgada nesta segunda-feira (05/07) que inclui ainda os chefes de Estado da Síria, Bashar al-Assad, e da China, Xi Jinping.

Na América Latina, Bolsonaro está acompanhado dos líderes de outros três países: Miguel Díaz-Canel, de Cuba, Daniel Ortega, da Nicarágua, e Nicolás Maduro, da Venezuela.

Estão ainda no rol o chefe de Estado russo, Vladimir Putin, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman, e, pela primeira vez, um líder de um país da União Europeia (UE), o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán.

A lista dos "predadores da liberdade de imprensa" foi elaborada pela primeira vez há 20 anos, e sua última edição havia sido divulgada em 2016.

Retórica belicosa e ataques a jornalistas mulheres

Bolsonaro foi incluído na lista devido às suas ações contrárias aos meios de comunicação social desde que chegou ao poder, que incluem insultos, humilhações e "ameaças vulgares", segundo a RSF. 

Durante seu mandato, "o trabalho da imprensa brasileira tornou-se extremamente complexo", salientou a organização, que criticou Bolsonaro pela "retórica belicosa e grosseira", amplificada por pessoas de seu entorno e "uma base organizada" que propaga ataques com o objetivo de "desacreditar a imprensa, apresentada como inimigo do Estado".

Os principais alvos dos seus ataques são mulheres jornalistas, analistas políticos e a Rede Globo, chamada por Bolsonaro de "TV funerária" por noticiar as mortes causadas pela covid-19. De acordo com a RSF, a Globo foi alvo de 180 ataques no ano passado por parte do presidente.

O relatório também ressalta os "ataques sexistas e misóginos" contra jornalistas mulheres como um "forte marcador" do bolsonarismo. "Muitas mulheres jornalistas foram vítimas de ataques sexistas e são obrigadas a trabalhar em um ambiente tóxico, à mercê do linchamento digital de partidários do presidente", afirma a entidade.

O Brasil caiu quatro posições no último ranking de liberdade de imprensa da organização, referente a 2020, quarto ano consecutivo de queda. Na 111ª colocação, o país entrou na "zona vermelha", que caracteriza um cenário difícil para a atuação jornalística, ao lado de países como Afeganistão, Emirados Árabes Unidos e Guatemala.

Em entrevista à DW Brasil em maio, o diretor da RSF na América Latina, Emmanuel Colombié, afirmou haver uma estratégia estruturada de ataques a jornalistas no Brasil, que vai do presidente à sua base de apoiadores e cria um "ambiente tóxico" para a atuação dos profissionais de imprensa. 

Membro da UE incluído

Outro destaque da lista da RSF é Orbán, o primeiro líder de um país da UE a ser adicionado a esse rol. Desde que regressou ao poder, em 2010, Orbán tem minado de forma reiterada "o pluralismo e a independência dos meios de comunicação social", criticou a RSF.

A entidade acusa o primeiro-ministro húngaro de transformar o serviço público de rádio e televisão em um "órgão de propaganda" e de ter reduzido os meios de comunicação privados ao silêncio, graças a manobras político-econômicas e à compra de empresas de comunicação por alguns oligarcas ligados ao seu partido, o Fidesz.

Nicarágua e Arábia Saudita

A RSF ressalta ainda que Ortega, presidente da Nicarágua, tem submetido a imprensa de seu país a "asfixia econômica e censura judicial" desde que iniciou seu terceiro mandato consecutivo, em novembro de 2016, em um processo que agravado recentemente tendo em vista a próxima eleição presidencial, prevista para novembro.

A organização afirma que Ortega reforçou "seu arsenal de censura" com ações judiciais "abusivas" contra os seus opositores, sejam políticos ou veículos de mídia. Um dos principais alvos é a família Chamorro e a jornalista e também candidata presidencial Cristiana Chamorro.

Bin Salman, da Arábia Saudita, tem concentrado poder em suas mãos desde que foi nomeado sucessor no reino por seu pai, em 2017, e levado a cabo uma "barbárie sem limites", segundo a Repórteres Sem Fronteiras. A entidade diz que o país no Oriente Médio é "uma das maiores prisões do mundo para os jornalistas" e que muitos estão encarcerados sem saber a quais acusações respondem.

Khashoggi também está por trás da morte do jornalista Jamal Khashoggi, que era articulista do jornal americano Washington Post e foi assassinado e esquartejado no consulado saudita de Istambul em 2018, segundo relatório de inteligência do governo dos Estados Unidos.

Duas mulheres na lista

Pela primeira vez, a lista também inclui duas mulheres "predadoras da liberdade de imprensa".

Uma delas é a chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, por se comportar como "uma marionete" nas mãos do presidente chinês, Xi Jinping, na aplicação de políticas "liberticidas contra a imprensa" que levaram em junho ao fechamento do último jornal diário independente da ilha, o Apple Daily, e à prisão de seu fundador, Jimmy Lai.

A outra é a primeira-ministra de Bangladesh, Sheikh Hasina, que comanda o país desde 2009 e que, graças a uma lei de 2018 sobre segurança digital, promoveu ações judiciais contra mais de 70 jornalistas e blogueiros, segundo a Repórteres Sem Fronteiras.

Deutsche Welle Brasil, em 05.07.2021

Brasil registra mais 695 mortes por covid-19 em 24 horas

País já soma mais de 525 mil óbitos ligados ao coronavírus. Autoridades confirmam ainda mais de 22 mil novos casos da doença em 24 horas, e total de infectados vai a 18,7 milhões.

Três funcionários com roupa laranja caminham ao lado de camnhão com cinco caixões. Eles estão em um cemitério, com muitos túmulos humildes, marcados por cruzes azuis de madeira. Três pessoas com máscara caminham perto. Uma mulher segura uma corona. 

Brasil tem a oitava maior taxa de mortalidade do mundo.

O Brasil registrou oficialmente 695 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta segunda-feira (05/07).

Também foram confirmados 22.703 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 18.792.511 e os óbitos somam 525.112.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 17.151.673 pacientes haviam se recuperado da doença até esta segunda-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 249,9 no país, a 8ª maior do mundo.

A média móvel de novas mortes (soma dos óbitos nos últimos sete dias e a divisão do resultado por sete) ficou em 1.574, e a média móvel de novos casos, em 49.158.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 605 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,7 milhões) e Índia (30,5 milhões).

Ao todo, mais de 184 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, e 3,98 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença, segundo dados da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos.

Deutsche Welle Brasil, em 05.07.2021

Com distritão, Câmara teria aumento de homens brancos, mais velhos e reeleitos, aponta levantamento

Pesquisa do GLOBO com ferramenta do RenovaBR que simula resultado da última eleição com novo sistema, em debate no Congresso, mostra que Legislativo teria menor diversidade

Plenário da Câmara em sessão no último dia 24 de junho: distritão tem ganhado apoio de parlamentares para reforma política Foto: Pablo Valadares / Câmara dos Deputados

O distritão, sistema em debate na reforma política que tramita na Câmara, teria favorecido a eleição de deputados federais homens, brancos, de meia-idade e com mais recursos e bagagem política caso estivesse em vigor em 2018. A constatação foi feita pelo GLOBO a partir de levantamento com base em uma ferramenta, criada pelo movimento de renovação política RenovaBR, que simula os resultados da última disputa por cadeiras na Câmara e nas assembleias legislativas caso os mais votados em cada estado fossem eleitos, como prevê o distritão, sem levar em consideração quociente partidário e votos de legenda, como ocorre no sistema proporcional em vigor.

Segundo o levantamento do GLOBO, que considera o “perfil médio” dos deputados eleitos em 2018 de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com o distritão subiria de 63 para 78, uma variação de 24%, o número de parlamentares do sexo masculino e que se declaram brancos, acima de 55 anos, que já estavam no exercício do mandato e gastaram mais de R$ 500 mil para se reelegerem. Para especialistas, esta simulação sugere que o distritão dificulta a renovação e o aumento da diversidade no Legislativo, por favorecer nomes mais conhecidos e máquinas partidárias mais robustas.

No sistema proporcional, a distribuição de vagas considera a fatia de cada partido dentro do quociente eleitoral, que é calculado pela relação entre o total de votos válidos e as cadeiras disponíveis. São considerados também a ordem de votação dos candidatos dentro das siglas e o percentual de eleitores que digitou o número da legenda na urna. Por conta disso, nem sempre os candidatos individualmente mais votados ocupam as cadeiras disponíveis. Defensores deste sistema dizem que ele valoriza os partidos e favorece a pluralidade dos eleitos, enquanto o distritão tornaria as campanhas mais caras e personalistas.

— É claro que uma simulação não capta todas as mudanças de estratégia que ocorreriam em um sistema distinto, mas é interessante como, no distritão, sempre que aparece viés é algo pró-establishment. Há um aumento de homens mais velhos e que já ocupam cargo, em detrimento de mulheres e negros. Isso gera mais concentração de poder, dá mais força a quem já tem — avaliou o cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getulio Vargas (FGV).

De acordo com a diretora-executiva do RenovaBR, Irina Bullara, a ferramenta tem o intuito “pedagógico” de contribuir, com números, para o debate sobre prós e contras da eventual adoção do distritão. Ela afirma que deve apresentar o simulador para a deputada federal Renata Abreu (Podemos-SP), relatora da reforma eleitoral na Câmara.

— Não se trata de advogar por modelo A ou B, mas de dar o maior número de informações possíveis sobre as nuances que o distritão pode trazer para cada segmento, estado ou partido. Seja qual for o sistema, um tema caro a nós é a representatividade. Um debate baseado em dados é a melhor forma de evitar decisões equivocadas — afirma Bullara.

Apoio na Câmara

Em entrevista ao GLOBO na última semana, Abreu avaliou que o distritão tem conquistado apoios de parlamentares na Câmara. Por ser debatido dentro de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), o distritão precisa dos votos de 308 deputados em dois turnos para avançar ao Senado, onde o projeto também teria de ser aprovado por três quintos da Casa. Para a relatora da reforma política, o distritão poderia tornar as eleições “mais baratas” por induzir os partidos a lançarem menos candidatos.

— Hoje já existe personalismo nas campanhas. Além disso, os partidos são obrigados a financiar uma quantidade de candidatos que não cabe nos recursos disponíveis — argumenta Abreu.

A simulação da vigência do distritão em 2018 aponta que haveria queda na representação de mulheres e de deputados negros e indígenas, grupos que já são minoria na Câmara atualmente. Já o número de reeleitos, de deputados mais velhos e de eleitos com campanhas mais caras subiria até 8%.

No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que partidos devem distribuir proporcionalmente recursos para candidatos negros. Além disso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) adotou o entendimento de reservar no mínimo 30% dos recursos do fundo eleitoral para mulheres. A cota de verba para candidaturas femininas foi incluída no relatório do novo código eleitoral, apresentado pela deputada Margarete Coelho (PP-PI) no último mês, e também é defendida por Renata Abreu para a PEC da reforma política.

A cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, pesquisadora de sistemas eleitorais e professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), diz que o fim das coligações proporcionais, que incidirá na eleição para deputado estadual e federal pela primeira vez em 2022, já cria um temor de menor representatividade e de “oligarquização”, por favorecer as maiores máquinas partidárias.

— Os dados corroboram que o distritão é um dos piores sistemas eleitorais para o Brasil, ainda mais agora. Vai na contramão do caminho para uma democracia com maior representatividade, respeitando a heterogeneidade brasileira. Tanto as mulheres quanto a população negra manteriam esta atual subrepresentação escandalosa — disse Braga.

Caso o distritão estivesse em vigor nas eleições de 2018, 64 cadeiras, o equivalente a 12% da Câmara, teriam mudado de ocupantes; 14 deputados reeleitos no sistema proporcional ficariam de fora, mas outros 33 que disputavam novo mandato seguiriam na Casa graças ao critério majoritário.

Com um sistema diferente, 46 deputados novos, que se elegeram pela primeira vez em 2018, não teriam conseguido uma cadeira na Câmara. A última eleição levou um total de 243 deputados novos à Casa, a maior taxa de renovação desde 1989. Já a lista dos que seriam beneficiados pela adoção do distritão na última eleição inclui veteranos da política, como os ex-deputados Leonardo Picciani (MDB-RJ), José Carlos Aleluia (DEM-BA) e Airton Cascavel (Republicanos-RR), este último ex-assessor especial do Ministério da Saúde na gestão de Eduardo Pazuello.

O levantamento aponta ainda que os 64 deputados que entrariam pelo distritão gastaram, no total, R$ 76 milhões em suas campanhas, 84% a mais do que os parlamentares que perderiam suas vagas. Os deputados que entrariam são também mais ricos, de acordo com as declarações de bens feitas ao TSE. Ao todo, esses parlamentares somam R$ 147,1 milhões em bens, 58% acima do valor declarado pelos que ficariam de fora.

Nos estados

Nas assembleias legislativas, os dados também apontam que parlamentares com mandato e campanhas mais caras seriam os principais beneficiados pelo distritão. Mesmo entre mulheres, que teriam ligeiro aumento na participação em assembleias — passando de 163 para 175 deputadas estaduais —, o distritão favoreceria quase exclusivamente candidatas brancas com campanhas acima de R$ 100 mil: seriam 15 eleitas a mais neste grupo. Entre candidatas com menor gasto, entraria somente mais uma deputada negra, e seis parlamentares brancas deixariam de se eleger.

Assim como na Câmara, o PSL seria o partido com maior perda de deputados estaduais com o distritão. Em 2018, no embalo da popularidade do então presidenciável Jair Bolsonaro, o partido teve líderes de votação em sete estados, o que favoreceu o fenômeno dos “puxadores de voto” — parlamentares com votações altas que ajudam a eleger correligionários.

— No sistema proporcional, a grosso modo, você não tem votos “desperdiçados”. Ele procura respeitar o tamanho da representatividade de todos os grupos em cada eleição. Para evitar uma excessiva pulverização, há regras como a cláusula de barreira. Já o distritão não tem meio-termo. A vontade de muita gente fica de fora — afirmou Cláudio Couto.

Bernardo Mello, O Globo, em 05/07/2021 - 04:30

Governo destina R$ 2,1 bi via orçamento secreto para Saúde

Executivo volta a repassar emendas do relator-geral, agora para fundos municipais de saúde; transferências ocorrem em meio a denúncias de corrupção na compra de vacinas

 

       Presidente Jair Bolsonaro conversa com o ministro Marcelo Queiroga durante cerimônia no Palácio do Planalto. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 29/06/2021

Em meio a denúncias de corrupção na compra de vacinas, o governo Jair Bolsonaro voltou a disponibilizar recursos via orçamento secreto e autorizou o repasse de R$ 2,1 bilhões em emendas do relator-geral do Orçamento para fundos municipais de saúde. A transferência das verbas está prevista em 28 portarias assinadas na semana passada, entre 28 e 30 de junho, pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.

Orçamento secreto inclui outros três ministérios, e negociação ocorreu até por WhatsApp

A modalidade de emendas de sigla RP9 foi criada pelo governo para beneficiar redutos eleitorais em troca de apoio político, como revelou série de reportagem do Estadão. Um relatório da equipe técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) divulgado no dia 25 pelo jornal avaliou que o uso das emendas de relator fere a Constituição. Essas verbas são executadas sem a identificação dos parlamentares que pedem o direcionamento dos recursos. O instrumento permite ao Executivo concentrar entre apoiadores a escolha do destino de bilhões de reais.

Ao aprovar as contas de 2020 do governo Jair Bolsonaro, o plenário do TCU recomendou, no último dia 30, quando as últimas portarias eram enviadas pela Saúde para publicação no Diário Oficial, que o governo ampliasse a publicidade das informações sobre as demandas parlamentares por repasses dos bilhões de emendas de relator. O ministro do TCU Benjamin Zymler disse que “claramente” essas emendas se contrapõem aos princípios orçamentários de transparência e universalidade.

Levantamento do Estadão/Broadcast mostra que a liberação de emendas de relator na Saúde é a maior do tipo no Orçamento de 2021. O dinheiro corresponde a 26% dos R$ 7,8 bilhões destinados à pasta da Saúde nessa modalidade. A reportagem apurou no Congresso e no governo que a destinação do dinheiro foi feita para agradar a base em um momento em que o Planalto enfrenta uma enxurrada de denúncias e tenta manter seus apoios no Legislativo “alinhados”.

Os principais beneficiados com verbas de relator nessa primeira leva da pasta da Saúde foram os fundos municipais de saúde de São Gonçalo-RJ (com R$ 53 milhões), Duque de Caxias (R$ 25 milhões) e Curitiba (R$ 24 milhões). Em maio, o Estadão revelou que o governo federal criou um orçamento paralelo para beneficiar deputados e senadores aliados e distribuiu a verba extra por meio de ofícios de parlamentares, muitos ainda em sigilo.

No total, o Orçamento deste ano prevê R$ 17,2 bilhões de emendas de relator, priorizando além da saúde o Desenvolvimento Regional, chefiado por Rogério Marinho, um dos principais executores de verbas do orçamento secreto.

Na manhã da última sexta-feira a reportagem questionou a assessoria da Saúde se a pasta definiu a lista de municípios beneficiados ou se a iniciativa partiu do relator-geral do orçamento, o senador Márcio Bittar (MDB-AC). Também perguntou sobre os critérios adotados para a seleção. Até a conclusão desta edição, o ministério não retornou o contato. Bittar também foi procurado e não respondeu aos questionamentos. Por sua vez, a Secretaria de Governo da Presidência da República informou que “não tem ingerência sobre a distribuição de recursos, e não dá aval sobre dotações dos órgãos ministeriais”.

Portarias

Os repasses de verbas estão descritos nas portarias assinadas por Marcelo Queiroga que habilitaram a transferência de recursos do Fundo Nacional da Saúde (FNS) para fundos municipais. Pelo processo orçamentário, essa é uma das últimas etapas antes de o dinheiro ser efetivamente depositado nesses fundos, que depende agora apenas de autorização de pagamento pela própria pasta.

Pela compilação dos dados, a reportagem constatou que foram contemplados um total de 2.904 municípios dos 26 estados e do Distrito Federal. A liberação dos recursos ocorre após a sanção do Orçamento, em 22 de abril deste ano, e da publicação da portaria que definiu os procedimentos para a liberação das emendas, em 25 de maio. A edição desses atos era necessária para destravar o uso da verba.

A destinação das verbas para os fundos municipais se deu após o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, o servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, afirmarem à CPI da Covid, no dia 25, que Bolsonaro sabia de denúncias de corrupção na pasta. Segundo o deputado, ao ser informado de irregularidades nas negociações para a compra da vacina Covaxin, Bolsonaro disse se tratar de um “rolo” do líder do governo Ricardo Barros (Progressistas-PR).

No dia 28, primeiro dia útil após o depoimento do parlamentar na CPI, foram assinadas 23 portarias destinando um total de R$ 1,85 bilhão, publicadas no Diário Oficial da União do dia seguinte. Em 30 de junho, outras cinco portarias foram assinadas para liberar R$ 191 milhões. O dinheiro contemplará cerca de quatro mil propostas na área de atenção à saúde básica.

Até o novo lote de liberações, o governo só tinha empenhado R$ 64,9 milhões de emendas de relator, uma pequena fração do total autorizado para o ano até agora (R$ 16,8 bilhões). Durante o mês de junho deste ano, até o dia 18, o governo empenhou R$ 8,9 milhões, sendo a maior parte (R$ 8,6 milhões) para o Ministério da Educação. Em maio, o volume empenhado em emendas de relator-geral chegou R$ 56 milhões.

STF

O Supremo Tribunal Federal analisa os aspectos constitucionais da emenda de relator-geral. Os partidos Novo e PSOL pediram a suspensão dos pagamentos previstos no orçamento de 2021. A Procuradoria-Geral da República também conduz investigação preliminar sobre suspeitas de superfaturamento nas compras de máquinas pelo Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados.

 Lorenna Rodrigues e Breno Pires, O Estado de S.Paulo, em 04 de julho de 2021 | 23h59/ COLABORARAM ANDRÉ SHALDERS e DANIEL WETERMAN

Deputado da base bolsonarista apoiou grupo religioso em oferta paralela de vacinas ao Ministério da Saúde

Roberto de Lucena, que recomendou a associação na aquisição de imunizantes em negociação com empresa Davati, é autor de PL que libera a compra dos fármacos sem repasse ao SUS

Na foto pastor, Amilton Gomes, da Senah, esteve no Ministério da Saúde junto a Dominguetti (o primeiro da foto à esquerda), o diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, Lauricio Monteiro Cruz (ao meio) e major da Força Aérea Hardaleson Araújo de Oliveira (segundo à direita)

As negociações paralelas de vacinas entre a ONG Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), presidida pelo reverendo Amilton Gomes de Paula, a empresa Davati Medical Supply e o Ministério da Saúde contaram com apoio do deputado federal Roberto de Lucena (Podemos-SP). É o que revela uma carta de recomendação assinada pelo deputado a que a Agência Pública teve acesso.

No dia 1º de julho, a Pública mostrou que o reverendo esteve à frente de uma negociação paralela de imunizantes com o Ministério da Saúde e, depois, com Prefeituras e governos estaduais.

Roberto de Lucena é membro da Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FremhPaz), fundada em 2019, com a participação de Amilton Gomes. Ele também é autor de um projeto de lei que pretende liberar a compra de vacinas por empresas privadas sem a obrigação de repasse ao Sistema Único de Saúde (SUS), conforme prevê a legislação atual.

Na carta obtida pela reportagem, o deputado diz que apoia “a Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah) na aquisição de vacinas para o governo brasileiro, a preço humanitário”. “Parabenizo esta importante agência humanitária pelo excelente desempenho, na pessoa do reverendo Dr. Amilton Gomes de Paula, na interlocução entre laboratórios e Governo”, escreveu sobre a organização evangélica.

A reportagem procurou o deputado que enviou nota dizendo que foi procurado no dia 11 de março, na condição de presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos Humanos e pela Justiça Social, “por representantes da Senah, instituição humanitária sem fins lucrativos, com conexões em organizações internacionais como a ONU, que se propunha a auxiliar o governo brasileiro na obtenção de vacinas contra a covid 19”. Lucena afirmou que assinou o documento “em atenção ao gesto da entidade” de lhe procurar via frente parlamentar. “Foi a única iniciativa tomada neste contato feito com meu gabinete”, diz a nota.

“Por fim, importante destacar que esses apoiamentos (sic) são comuns no dia a dia do Parlamento a todas entidades que apresentem sugestões que tenham por finalidade colaborar com propostas legislativas ou ações de Governo, constituindo um ato político sem qualquer relação com intermediação de natureza comercial”, conclui a nota do deputado, que integra a base do presidente Jair Bolsonaro na Câmara e chegou a ser cotado para assumir o Ministério do Turismo em dezembro do ano passado, no lugar de Marcelo Álvaro Antônio (PSL).

Deputado Roberto de Lucena apoiou Senah na aquisição de vacinas para o governo brasileiro a “preço humanitário”; carta assinada pela organização religiosa ofereceu vacina a prefeituras por US$ 11..

Projeto de Lei de deputado desobriga empresas de doação de vacina ao SUS

Roberto de Lucena também atuou para liberar vacinas à iniciativa privada. Ele é autor do projeto de lei 1066/2021, apresentado em 25 de março deste ano, que autoriza a aquisição e comercialização de imunizantes da covid-19 por empresas e as libera da obrigação de repassar as vacinas ao SUS.


“As vacinas adquiridas pelos Estados, Municípios e pessoas jurídicas de direito privado, nos termos desta Lei, não precisam ser doadas aos Sistema Único de Saúde devendo ser utilizadas conforme a necessidade do comprador”, diz a proposta apensada ao PL 3982/2020, esse de autoria de sete deputados do Partido Novo. No momento, o PL aguarda a designação do relator na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público.


Na justificativa de seu projeto, Lucena alega que “não faz sentido a iniciativa privada entrar na briga por vacinas para, posteriormente, doar ao Poder Público”. “Como diz o ditado popular: ‘Cada macaco no seu galho’”, acrescenta. Segundo o texto, efeitos adversos das doses oferecidas por empresas seriam responsabilizados a partir do Código de Defesa do Consumidor. A assessoria do deputado respondeu à reportagem que “a compra pela iniciativa privada retira sobrecarga do SUS”. “Toda iniciativa que ajude a colocar vacina no braço do brasileiro, desonerando o SUS, é válida, na visão do parlamentar”, acrescentou.

O deputado protocolou o texto na Câmara dos Deputados depois de sancionada a lei 14.125, em 10 de março, que autoriza empresas a comprarem vacinas contra o coronavírus com registro ou autorização temporária de uso no Brasil dado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por empresas, desde que as doses sejam totalmente repassadas ao SUS enquanto durar a imunização de grupos prioritários. Após esse período, metade delas deve ser doada ao SUS e o restante deve ser aplicado gratuitamente.

Já o projeto de Lucena permite a comercialização das vacinas “aprovadas por autoridades sanitárias estrangeiras”, ou com “autorização para uso emergencial ou com registro na Agência Nacional de Vigilância (Anvisa)”. Quando o texto foi proposto, a vacina da Astrazeneca contava com a liberação da Anvisa para uso emergencial desde 17 de janeiro de 2021.

Conforme a Pública mostrou, desde março, a Senah passou a oferecer, junto com o representante da Davati, doses de imunizantes da AstraZeneca e da Johnson a Estados e municípios. Em uma carta encaminhada aos gestores, a entidade oferece as doses no valor de 11 dólares a unidade, com prazo de entrega de até 25 dias. O valor seria três vezes maior que o fechado pelo governo federal para a mesma vacina da AstraZeneca com a Fiocruz, que foi de 3,16 dólares, e o dobro do valor do Instituto Sérum, de 5,25 dólares. A oferta chegou à prefeitura de Ijuí (RS), por exemplo, em 23 de março.

Em depoimento à CPI da covid-19, o policial militar Luiz Paulo Dominguetti afirmou que foi por meio da Senah que teve acesso ao então secretário-executivo do Ministério da Saúde Elcio Franco e ao então diretor do Departamento de Imunização, Laurício Monteiro Cruz.

Dominguetti, Amilton Gomes e Laurício se reuniram na Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, conforme uma foto postada pelo reverendo em suas redes sociais em 4 de março. O major da Força Aérea Hardaleson Araújo de Oliveira, antigo conhecido do reverendo, também participou do encontro.

O policial militar Dominguetti (à esquerda) com o reverendo Amilton Gomes de Paula, ao lado. No centro da foto, o diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, Lauricio Monteiro Cruz, seguido de major da Força Aérea.

PM Dominguetti ofereceu vacinas para todo Brasil e América Latina, diz reverendo

Na quinta-feira passada (01/07), pouco antes de Dominguetti falar na CPI, o reverendo Amilton Gomes concedeu uma entrevista à Pública em que afirmou ter sido procurado pelo policial, que disse dispor de vacinas “a preço humanitário de 3,50 dólares”. ”Dominguetti ofereceu vacina para o Brasil inteiro, para a América Latina”, afirmou. Segundo o reverendo, o primeiro contato da Davati com a Senah ocorreu em fevereiro. “Ele (o policial) estava tentando pelo governo federal e não estava conseguindo”, afirmou.

Uma troca de e-mails entre Amilton Gomes e Laurício Monteiro divulgada pelo Jornal Nacional, da TV Globo, mostra que, a partir de então, o reverendo teria passado a intermediar as negociações entre o Governo federal e a Davati. De acordo com o veículo, no dia 23 de fevereiro Laurício enviou uma mensagem a Amilton agradecendo a Senah, “na apresentação da proposta comercial para fornecimento de 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca”.

Segundo ele, depois que Dominguetti garantiu que a empresa teria as vacinas, passou a conversar diretamente com o presidente da Davati, Hernan Cárdenas. “O Hernan falou que tinha a vacina sim, que daria para colocar, mas o negócio não andou porque não apareceu documento da vacina. Não andou porque não apareceu nada que comprovasse que eles tinham a vacina”, justificou.

Na CPI, o policial Dominguetti afirmou que chegou ao Ministério da Saúde junto à Senah. À Pública, reverendo presidente da Senah disse que Dominguetti “estava tentando [negociar vacinas] pelo governo federal e não estava conseguindo”. (EDILSON RODRIGUES / EDILSON RODRIGUES/AG�NCIA SENADO)

O reverendo também negou ter oferecido vacinas para as prefeituras, apesar de a carta encaminhada ao município de Ijaí, no Rio Grande do Sul, com a proposta dos imunizantes, ter sua assinatura. “Se ofereceram vacina, ofereceram sem a minha autorização”, disse. Segundo ele, a carta teria sido iniciativa de um dos diretores da Senah, Renato Gabbi, à sua revelia. “O Gabbi, foi chamado a atenção, eu chamei a atenção dele”, insistiu.

Em troca de mensagens com a reportagem, Gabbi afirmou que como “agente humanitário”, atua em diversas atividades. “Nós não negociamos, não vendemos nada, apenas informamos e auxiliamos quando necessário sobre assuntos que sejam de grande necessidade em todos os países [em] que a Senah atua. A Senah é uma instituição séria”, sublinhou.

A entrevista da Pública com o reverendo foi interrompida quando, no início de seu depoimento à CPI, Dominguetti falou sobre a Senah. Nesse momento, Amilton Gomes encerrou a conversa por telefone e informou que a entidade enviaria uma nota, não encaminhada até o fechamento desta edição. A reportagem procurou a assessoria de imprensa da empresa Davati, que também não respondeu. Já a assessoria da AstraZeneca enviou nota informando que a “AstraZeneca não disponibiliza a vacina por meio do mercado privado ou trabalha com qualquer intermediário no Brasil. Todos os convênios são realizados diretamente via Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e Governo Federal.”

Grupo religioso circula por ministérios e inaugurou embaixada em Brasília

Além de atuar no Legislativo federal, o reverendo Amilton Gomes também conta com apoio do primeiro escalão do Governo federal para as ações de interesse da Senah. Em 21 de agosto de 2019, por exemplo, a entidade publicou em suas redes sociais uma foto de um encontro do reverendo e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, identificando também o coronel do Exército Brasileiro Augusto Cesar Barbosa Vareda, da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (Seaf) do Ministério da Agricultura.

Reverendo se reuniu com a ministra Damares representando a Senah em 2019, mesma organização pela qual tratou de vacinas com o Ministério da Saúde.

No dia, a agenda de Damares não tem registros do encontro com nenhum dos indicados na postagem. A reportagem também não encontrou registros da reunião na semana. Na publicação, o presidente da organização anunciou que “grandes coisas estão por vir” e que “o Senah está avançando”. Na data, um sábado, a agenda da ministra está vazia.

Em outubro de 2019, a Senah comemorou a inauguração das instalações da “Embaixada Mundial Humanitária pela Paz entre Brasil e Israel” na sede da Senah no município de Águas Claras, no Distrito Federal. A embaixada está ligada à Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FremhPaz), criada em setembro do mesmo ano pelo deputado federal Fausto Rui Pinato (PP/SP). Ela contou com a assinatura de 197 deputados e 19 senadores.

Reverendo inaugurou embaixada para relações Brasil-Israel ligada à Senah em 2019, com a presença de parlamentares

Na postagem que celebrou a abertura da embaixada, uma nota da Senah (que à época ainda se chamava Senar) junto à Associação dos Ministros Evangélicos de Monte Mor afirmou que a empreitada contava com “apoio total do presidente Jair Messias Bolsonaro”.

Em 2019, organização postou “SENAR USA sauda a todos e ao Presidente Jair Messias Bolsonaro!”. Reverendo tem trânsito nos EUA, como mostram fotos de viagens publicadas pela organização.

Em 2019, organização postou “SENAR USA sauda a todos e ao Presidente Jair Messias Bolsonaro!”. Reverendo tem trânsito nos EUA, como mostram fotos de viagens publicadas pela organização.

Além do reverendo Amilton Gomes, participaram do evento Alfredo Brito, identificado pela nota como presidente da Senah em São Paulo; Gilvan Máximo secretário de Ciência e Tecnologia do DF; Yossi Shelley, embaixador de Israel no Brasil.

Reportagem de Bruno Fonseca e Alice Maciel, originalmente publicada na Agência Pública. Reproduzida por EL PAÍS, em 04.07.21

Acadêmica mapuche presidirá Constituinte que vai escrever as leis do Chile pós-ditadura Pinochet

Elisa Loncón, da etnia indígena chilena mais numerosa, vai comandar 155 representantes que terão no máximo um ano para acertar um texto que permita ao país superar sua crise política

A acadêmica Elisa Loncón em discurso após ser eleita presidenta da Constituinte do Chile. (JAVIER TORRES / AFP)

A Assembleia Constituinte de 155 membros, que terá no máximo 365 dias para redigir uma nova Constituição, foi instalada neste domingo no Chile e elegeu uma indígena mapuche, a acadêmica de 58 anos Elisa Loncón, como sua presidenta. É um sinal político para as mulheres, em um órgão conjunto formado por 77 mulheres e 78 homens graças ao impulso do movimento feminista. É um sinal sobretudo para os povos indígenas, sempre excluídos das grandes decisões do Estado e que enfrentam um conflito histórico de terras no sul do país. A nova líder, nascida em uma comunidade humilde de Araucanía, agradeceu por sua nomeação com uma bandeira mapuche nas mãos e suas primeiras palavras foram em mapudungún, a língua da etnia.

“Saudações ao povo chileno, do norte da Patagônia e do mar até a cordilheira”, disse Loncón em seu primeiro discurso, que depois proferiu em espanhol. Prometeu “mudar a história” do país e fez um apelo à unidade: “Esta força é para todas as pessoas, para todos os setores e regiões, para todas as nações originárias que nos acompanham, para todas as organizações de diversidade sexual. Esta saudação é para as mulheres que caminharam contra qualquer sistema de dominação”. A dirigente da Constituinte assegurou que o órgão que vai presidir “transformará o Chile em um país multinacional e intercultural” e pediu o cuidado com a “mãe terra e das águas”, algumas das principais demandas buscadas pelos povos indígenas. “Este sonho é o sonho dos nossos antepassados. É possível, irmãos, irmãs, colegas, refundar o Chile”, disse a doutora em Linguística, que em seu primeiro discurso se referiu aos crimes contra crianças indígenas descobertos recentemente no Canadá.

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Loncón obteve 96 votos, com o apoio dos indígenas, dos socialistas e da Frente Ampla de esquerda, a que posteriormente se juntaram no segundo turno os constituintes do Partido Comunista e da Lista Popular, formada por independentes que se dizem contra o sistema capitalista.

A Constituinte será composta por 155 membros, que foram eleitos em meados de maio. Como nunca antes no mundo, mulheres e homens são representados igualmente. Tem uma segunda peculiaridade: as 17 cadeiras reservadas para as 10 nações originárias, o maior número já estabelecido internacionalmente para os povos indígenas em uma assembleia desse tipo. Com a direita encurralada, a centro-esquerda diminuída e a forte irrupção da esquerda independente, os constituintes terão no máximo um ano para chegar a acordo sobre um novo texto que permita ao Chile canalizar a crise política, institucional e social que ameaça seu caminho rumo ao desenvolvimento.

Alguns representantes, como o acadêmico Agustín Squella, chegaram sozinhos aos jardins da sede do Congresso. Mas muitos chegaram com seus companheiros de lista, assim como os representantes dos povos indígenas. Os sete constituintes mapuches, por exemplo, realizaram uma cerimônia tradicional no Cerro Santa Lucía, um parque urbano no centro da capital. Os 27 integrantes da Lista Popular convocaram uma manifestação no local onde surgiram, a Plaza Italia, epicentro dos protestos. Eles marcharam pelo centro de Santiago, em uma convocatória que foi autorizada pelo Governo de Sebastián Piñera, apesar da complexa situação de saúde devido à covid-19. Esses constituintes não apenas fizeram um chamado às marcha, como também a caminhar até as portas do Congresso.

Foi no âmbito desta concentração que ocorreram incidentes entre os manifestantes e a polícia, os chamados Carabineros. Representantes da Lista Popular interromperam o início da solenidade, chegando a gritar com o representante do Tribunal de Qualificação Eleitoral, que tinha a missão de chefiar provisoriamente a Constituinte neste domingo até a eleição da presidência. Eles deixaram a sede do Congresso denunciando repressão policial, pois argumentaram que a cerimônia não poderia continuar nessas condições. Enquanto a Juventude Comunista informava que um de seus representantes havia sido agredido pelos Carabineros, a instituição policial indicou que dois de seus funcionários ficaram feridos. Após acusações cruzadas, no entanto, a instalação da Constituinte continuou quando o chefe da cerimônia anunciou que não havia repressão, nem detidos, nem feridos. Depois das 13h, os constituintes assumiram seus cargos, com um juramento verbal conjunto que todo o Chile pôde observar, através das transmissões ao vivo de todos os canais de televisão.

De imediato, os 155 representantes começaram a votar para eleger a presidência. A escolha era amplamente esperada, porque lançaria luz sobre as forças internas dentro da Constituinte. A presidência não tem apenas uma importância simbólica, mas também um imenso poder no desenrolar das discussões, apesar de suas atribuições ainda não terem sido regulamentadas. Foi uma eleição totalmente aberta, embora houvesse algum consenso de que o cargo deveria ser preenchido por uma mulher. “Seria um bom sinal ao povo do Chile se a Constituinte fosse presidida por uma mulher indígena mapuche”, disse Elisa Loncón, a agora eleita presidenta, em entrevista ao EL PAÍS.

No Chile fala-se de um dia histórico, pois com a instalação da Constituinte se dá o ponta pé inicial em um ano importante e complexo, no qual os 155 representantes de diferentes origens, com grande índice de atomização e com a direita diminuída, deverão chegar a acordo sobre uma nova Constituição que vai ser submetida a um plebiscito no segundo semestre de 2022. Mas, para chegar a este domingo, 4 de julho, foi um longo processo. A atual Constituição, é de 1980, escrita durante a ditadura de Augusto Pinochet, ainda que o texto tenha também a assinatura do socialista Ricardo Lagos, que em 2005 realizou importantes reformas em alguns dos seus pontos mais autoritários. Desde o final da década de 1980, cinquenta modificações foram aplicadas à Carta atual, tanto no fim da ditadura quanto em sucessivos governos democráticos. Em outubro de 2019, quando a democracia chilena estava em perigo em um contexto de agitação social, a classe política como um todo deu uma solução institucional para o conflito, oferecendo um processo constituinte. A exceção foi o Partido Comunista, que, no entanto, aderiu ao processo e obteve seis membros na assembleia instalada neste domingo.

Desde que, em meados de maio, os chilenos elegeram 155 constituintes, com apenas 43,41% de participação, o ambiente político tem sido marcado por tensões. No início de junho, 34 dos eleitos propuseram seis “garantias democráticas” para o funcionamento da assembleia, nas quais afirmam que o órgão não deveria se subordinar às normas acordadas pela classe política em 15 de novembro de 2019, o texto que fez com que o processo se tornasse possível. “Chamamos a efetivar a soberania popular da Constituinte, expressa tanto nos regulamentos como nas normativas que devem ser aplicadas, sem nos subordinarmos a um Acordo de Paz que os povos nunca assinaram”, disse este grupo formado por independentes, que inclui povos indígenas e a Lista Popular, um movimento anticapitalista que alcançou 25 cadeiras. É uma das questões que começarão a ser resolvidas a partir deste domingo no Chile: se a maioria da Constituinte vai respeitar alguns acordos, como um quórum mínimo de dois terços para aprovar determinadas normas constitucionais.

O Chile começará a redefinir questões fundamentais. A Constituinte vai discutir o regime político e sistema de governo, pois há certo consenso de que o presidencialismo chileno ―exacerbado, mesmo no contexto latino-americano― apresentou deficiências ao lidar com as revoltas de outubro de 2019. Serão debatidas a descentralização e a regionalização, num Estado fortemente centralizado na capital. Os 155 constituintes devem pactuar diversas questões relacionadas aos povos indígenas, como seu reconhecimento expresso na Constituição ou a multinacionalidade, o que implicaria em autodeterminação. É uma questão central, dados os problemas históricos de relacionamento entre o povo Mapuche e o Estado chileno, que mantêm a área de Araucanía em um conflito secular. O órgão constituinte discutirá o modelo de desenvolvimento econômico, o destino de instituições como o Tribunal Constitucional, o modelo de Estado ―direitos econômicos e sociais são debates acalorados― e temas especialmente sensíveis para os mercados, como a autonomia do Banco Central.

ROCÍO MONTES, de Santiago Do Chile para o EL PAÍS, em 04 JUL 2021 

Acelerar a vacinação é essencial no Brasil, mas sem freio nos contágios não haverá controle da pandemia

Imunização em massa deve ser acompanhada de medidas de isolamento social. Tipo de imunizante tampouco é relevante. Chile, que usou Coronavac, e Israel, que usou Pfizer, retomam medidas sanitárias

Uma paciente com covid-19 é transportada em um hospital montado em um ginásio de esportes em Santo André, São Paulo. (MIGUEL SCHINCARIOL / AFP)

As vacinas ajudam sim, mas sozinhas não fazem mágica no controle da pandemia de covid-19. Que o diga nosso vizinho Chile, país líder da vacinação na América Latina e que teve que voltar a colocar 70% população em quarentena após a alta de contágios de coronavírus entre março e abril de 2021. Uma onda que foi mais forte do que a primeira —registrada em junho de 2020— mesmo com 45% de sua população, 7 dos 19 milhões de habitantes, vacinados à época. No Brasil, o temor é que caminhemos para o mesmo desfecho que o país andino.

Com 31% da população brasileira vacinada com pelo menos uma dose, e apenas 11,7% com as duas, há a sensação em boa parte dos vacinados de que a normalidade nunca esteve tão perto. Em São Paulo, não é raro ver bares e restaurantes lotados. Um cenário que se repete em praticamente todas as capitais do país. Nas ruas, nos shoppings, nas rodoviárias, nos aeroportos, aonde quer que se vá, há uma mescla de cansaço com a vida em suspensão que a pandemia nos trouxe e a ansiedade por um futuro de retomada daquela vida, trancada em março de 2020.

No entanto, especialistas advertem para os riscos de depositar apenas na vacinação a confiança para o fim da pandemia. Apesar da cobertura vacinal ampla, ou seja, uma porcentagem alta da população vacinada —uma realidade ainda distante para o Brasil— ser um dos principais fatores para o controle da crise sanitária, senão o principal, o controle das taxas de transmissão dos vírus, dos casos ativos e do índice de leitos ocupados também são fundamentais para a volta à normalidade. O avanço da vacinação deve ser acompanhada de medidas escalonadas de levantamento das restrições.

O médico infectologista Ricardo Paul Kosop explica que para uma pessoa ser considerada imunizada à covid-19, ela deverá ter tomado as duas doses da vacina e ter observado o período mínimo após a imunização, que em geral é de duas a quatro semanas, o que permitirá que o organismo crie uma resposta imune robusta. No entanto, enfatiza que não basta apenas a vacinação, mais do que nunca é necessário uma atitude coletiva. O médico afirma que apesar de uma pessoa imunizada não desenvolver um quadro grave da doença ou até mesmo não apresentar sintomas, ela pode sim ser uma portadora da doença, e transmitir para os que ainda não foram vacinados, aumentando, também, o risco da disseminação de novas variantes. Outra regra repetida é que importa qual a fatia da população total foi completamente imunizada.

Neste (último) domingo, o Brasil contabilizou quase 28.000 novos casos, e, na média dos últimos 7 dias, o número de novos contágios está em torno de 50.000. Até agora, 524.417 já morreram vítimas da covid-19 no Brasil e média de mortes diárias está em torno de 1.500 por dia, entre as mais altas do mundo.

Com 60% dos 9,3 milhões de cidadãos vacinados com as duas doses da vacina da Pfizer-BioNTech, Israel é outro claro exemplo de como a imunização não elimina a necessidade de medidas de controle e distanciamento social. Dez dias após levantar a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais fechados, as autoridades sanitárias do país reintroduziram a sua obrigatoriedade em razão da alta de novo casos de infecção —70% deles pela variante delta da covid-19. Um repique que coincide com o aumento de voos vindos do exterior, autorizados em principio apenas para os residentes. Reino Unido, Estados Unidos e a cidade de Sidney também recrudesceram as medidas de controle e distanciamento social em decorrência da disseminação da cepa indiana.

O médico Ricardo Paul Kosop afirma que há o risco destas novas cepas desenvolverem algum grau de resistência a mecanismos como as vacinas caso a circulação delas seja facilitada. “Quando há muita gente infectada ao mesmo tempo e há uma nova variável, como é o caso das novas cepas, forma-se uma fórmula complexa. E, se para complementar há um grande número de pessoas vacinadas parcialmente (com apenas uma dose) e que circulam, dá-se chance para o vírus se adaptar, em um esquema darwiniano puro. É o mesmo raciocínio do que acontece com as bactérias e antibióticos, mas com mecanismos distintos”, explica o infectologista.

Escolher vacina não tem sentido

Por isso, o médico argumenta, o isolamento social continuará sendo essencial nos próximos meses, como uma medida de controle que trabalhará em conjunto com a vacinação. “O vírus que não circula não replica. Se ele não replica, ele não sofre mutação e se não sofre mutação, ele não ficara resistente nem à vacina, nem a tratamentos”, complementa Kosop.

O reforço vacinal (aplicação de uma terceira dose) é uma das possibilidades colocadas em mesa pela Organização Mundial da Saúde (OMS), principalmente para os grupos mais vulneráveis. No Chile, que teve que voltar a impor a quarentena à sua população, a viabilidade da terceira dose já é estudada pelos cientistas do país. Caso seja segura, o Ministério da Saúde e das Ciências do país avalia apostar em duas estratégias: uma dose de reforço do mesmo laboratório das duas doses prévias, ou uma combinação de imunizantes de farmacêuticas diferentes. A Pfizer também já anunciou que uma terceira dose será “provavelmente” necessária.

O caso do Chile é especialmente importante do ponto de vista do Brasil porque o país usou majoritariamente Coronavac, de tecnologia chinesa, uma das vacinas mais utilizadas em território brasileiro. De acordo com um estudo em grande escala realizado com a informação de 10,5 milhões de chilenos e divulgado em abril, a vacina tem 80% de efetividade para prevenir mortes, 14 dias depois da segunda dose.

No Brasil, o Instituto Butantan também conduziu uma vacinação em massa com a Coronavac na cidade de Serrana, no interior de São Paulo, e encontrou resultados a serem celebrados: o imunizante foi efetivo em 89% para evitar a internação de pacientes críticos em UTIs, em 85% para prevenir as hospitalizações e 67% para impedir a infecção sintomática da doença. Os primeiros resultados preliminares mostraram que a vacinação diminuiu em 95% o número de mortes por covid-19 enquanto a crise sanitária se intensificava em cidades vizinhas que não tiveram vacinação em massa.

Os números reforçam o que os especialistas repetem há semanas: salvo situações muito específicas, como a das gestantes, todas as vacinas aprovadas no Brasil pela Anvisa (AstraZeneca, Coronavac, Pfizer e Janssen) são seguras e oferecem proteção, ainda que não de 100%. Por isso, não faz sentido ficar escolhendo qual tomar. A chamada falha vacinal, quando, mesmo com as duas doses, o indivíduo adoece, é esperada, já que depende também da situação do imunizado. Os números mostram, no entanto, que é raro.

O certo é, ainda que sejam publicados cada vez mais estudos, ainda é cedo para saber com clareza o poder de proteção de cada vacina em um cenário real e até que ponto evitam infecções assintomáticas. Também não se sabe quanto tempo dura a imunidade, algo que só o tempo dirá.

STEPHANIE VENDRUSCOLO para o EL PAÍS, em 04 JUL 2021 

Sarney: reforma política ‘é a mais necessária e urgente’

A reforma sem forma

Não há palavra mais usada e gasta no vocabulário político do que reforma. Quando as coisas precisam mudar e parecem gastas o caminho a que se lança mão é o apelo a reforma. Vem do Império o primeiro chamado forte a ela, para conjurar a República que já surgia. E veio do conselheiro Nabuco de Araújo, conservador que se tornou liberal e bradou, num momento de grandes dificuldades: “OU A REFORMA OU A REVOLUÇÃO!”

Dizia que se não se fizesse uma grande reforma no sistema político inevitavelmente viria a revolução. E aos trancos e barrancos fomos avançando em reformas parciais, a mais profunda delas a reforma eleitoral do Conselheiro Saraiva, que criou o voto direto.

Passei cinquenta e um anos no Congresso, Deputado Federal e Senador, e tornei-me o político que mais tempo passou no Senado Federal. Em todos estes anos não se passou uma só legislatura sem que houvesse uma reforma salvadora para ser votada — e nunca uma sequer foi completamente aprovada.

A mais ruidosa que presenciei não era uma reforma, mas um cacho delas, que o Governo João Goulart propôs sem que se soubesse exatamente o que era em seu conjunto, e cuja síntese, consolidada no famoso Comício das Reformas de 13 de março de 1964, de que até o Ministro do Exército participou e no qual o Presidente da República pronunciou um discurso violento, que precipitou outros atos pelo reformismo — como o dos Cabos e o dos Marinheiros —, o fez vítima da manifestação militar que nos levou a um regime autoritário que durou vinte anos.

Estas considerações que faço é para dizer que a mais necessária e urgente de todas as reformas é a política, que perdeu a oportunidade de ser feita na Constituição de 1988 e não foi construída até hoje. Assim, entramos num regime híbrido, parlamentarista e presidencialista, que, não se sustentando nas pernas, partiu para o chamado “presidencialismo de coalizão”, que é apenas uma real politics, em que o governo vive na corda bamba, fazendo concessões e criando instabilidade. O resultado são governos em que se vive de ameaças de impeachment contra o Presidente e contra os Ministros da Corte Suprema, e qualquer marola, a ser resolvida pelos partidos, pode bater num processo de impedimento.

Não há país que possa conviver com esse modo de governar. Precisamos ter a coragem de partir para o parlamentarismo, em que as crises derrubam os Gabinetes, mas não abalam a República.

Assim vivemos entre o dilema do tempo da capital no Rio de Janeiro — “a Vila Militar vai descer!” ou “Golpe!” — ou o de agora — o impeachment e os problemas militares. Isso não pode continuar. Assim a reforma urgente que temos que fazer é tornar o País governável.

As opções são a reforma política para valer, saindo do presidencialismo de coalizão, adotando um regime parlamentarista ou semipresidencialista e, para acabar com a multidão de partidos, o voto distrital misto — ou continuar vivendo de emendas constitucionais e medidas provisórias em pleno terremoto político.

José Sarney foi Deputado Federal, Governador do Maranhão, Senador e Presidente da República. Publicado originalmente n'O Estado do Maranhão, em 27.06.2021

domingo, 4 de julho de 2021

A lei e a família

O Estado deve investigar com isenção todos os fatos suspeitos. Não existe imunidade ou impunidade por parentesco, sejam quais forem os envolvidos

O Estado Democrático de Direito exige a investigação de fatos suspeitos e indícios de crime. Ninguém está acima da lei. Para isso, é fundamental que as instituições possam, dentro de suas respectivas competências, funcionar de forma independente.

O governo Bolsonaro atua em sentido contrário à elucidação dos fatos, seja negando qualquer possibilidade de corrupção no governo federal – daí que toda investigação seria por princípio desnecessária –, seja tentando que as instituições operem dentro de uma lógica de lealdade pessoal. O critério já não seria apenas a lei, mas principalmente as relações pessoais.

Tal modo de agir do governo Bolsonaro não é nenhum segredo. Ao explicar no ano passado a escolha que havia feito para o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Bolsonaro foi explícito: “Kassio Nunes já tomou muita tubaína comigo. (...) A questão de amizade é importante, né?”.

Diante desse exercício do poder despudoradamente antirrepublicano, são especialmente relevantes duas recentes decisões do Supremo, determinando o prosseguimento de investigações que envolvem o presidente Jair Bolsonaro e três de seus filhos.

No dia 28 de junho, os senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO) enviaram ao STF notícia-crime pedindo a abertura de inquérito para investigar se o presidente Bolsonaro cometeu crime de prevaricação no caso da negociação da vacina indiana Covaxin. De forma um tanto esquisita, tendo em vista a gravidade dos fatos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) não tomou nenhuma providência. Disse que era preciso esperar o término da CPI da Pandemia.

Diante dessa passividade – muito conveniente, por sinal, aos interesses do Palácio do Planalto –, a ministra Rosa Weber foi contundente. “No desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República. Até porque a instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito não inviabiliza a apuração simultânea dos mesmos fatos por outros atores investidos de concorrentes atribuições, dentre os quais as autoridades do sistema de justiça criminal.”

Na decisão, a ministra Rosa Weber determinou a reabertura de vista dos autos à PGR. Então, só então, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pediu a abertura de inquérito contra o presidente Jair Bolsonaro a respeito da acusação de prevaricação. Vê-se como é importante insistir na defesa do Direito.

O segundo caso em que o Supremo precisou contornar o desinteresse da PGR em contrariar Jair Bolsonaro refere-se à investigação dos atos antidemocráticos. Apesar de a Polícia Federal ter encontrado indícios de crime, a PGR pediu o arquivamento do Inquérito (INQ) 4.828, que apurava a realização e o patrocínio desses atos.

Em deferência às atribuições do Ministério Público, o ministro Alexandre de Moraes acolheu o pedido da PGR, arquivando o INQ 4.828. No entanto, na mesma decisão, o ministro determinou a abertura de um novo inquérito com o objetivo de investigar grupos que atacam a democracia.

“A análise dos fortes indícios e significativas provas apresentadas pela investigação realizada pela Polícia Federal aponta a existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político absolutamente semelhantes àqueles identificados no Inquérito 4.781, com a nítida finalidade de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito”, escreveu Alexandre de Moraes.

Na decisão, os três filhos mais velhos do presidente – Flávio, Carlos e Eduardo – são mencionados na condição de arrolados pela Polícia Federal como possíveis integrantes de organização criminosa destinada a atacar a democracia.

O Estado deve ser capaz de investigar com isenção todos os fatos suspeitos, sejam quais forem os envolvidos. Não existe imunidade ou impunidade por parentesco. Numa República, todo cidadão é responsável perante a lei pelos seus atos, sem discriminações nem privilégios.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 03 de julho de 2021 | 23h50

Centrão e militares estão no foco das suspeitas de corrupção no governo Bolsonaro

Relatos de corrupção na compra de vacinas envolvem, até agora, nomes do Exército e apadrinhados do bloco de apoio ao governo no Congresso
       

Foto Marcos Correa / Presidência da República

As suspeitas de corrupção na compra de vacinas contra a covid-19 envolveram, até agora, militares do Exército e apadrinhados do Centrão, duas sólidas bases de sustentação do governo de Jair Bolsonaro. O organograma dos fatos sob investigação evidencia uma aliança pragmática entre os dois setores pelo controle das verbas do Ministério da Saúde, o maior orçamento entre as 22 pastas. De uma ponta a outra, as tratativas para a importação de imunizantes passaram pelas mãos de nomes indicados pelo grupo do Congresso ao qual Bolsonaro se aproximou para barrar ameaças de impeachment.

Os indicados políticos foram mantidos ou apoiados por militares que assumiram o ministério no ano passado e, durante a pandemia, controlaram cifras bilionárias. A dobradinha entre Centrão e Exército se concentrou no Departamento de Logística da pasta, onde estão as principais suspeitas de irregularidades e um histórico de loteamento e denúncias de fraudes. Ao menos desde o governo de Michel Temer, o setor é controlado pelo Progressistas, do senador Ciro Nogueira (PI) e do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PR).

Os três diretores que passaram pelo posto acumulam denúncias de corrupção e mau emprego de dinheiro público. Dois deles foram reabsorvidos pelo governo Bolsonaro. Davidson Tolentino é diretor da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), a estatal do Centrão, desde julho. Em maio de 2020, Tiago Queiroz virou secretário de Mobilidade do Ministério do Desenvolvimento Regional, um dos principais cargos da pasta de Rogério Marinho.

Apesar da narrativa de Jair Bolsonaro de acabar com o loteamento em cargos técnicos, a tradição foi mantida na Saúde. O nome do agora ex-diretor de logística, Roberto Dias, foi indicado pelo Centrão ao ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (DEM). Oficialmente, a sugestão foi do ex-deputado Abelardo Lupion (DEM-PR), mas Dias saiu diretamente do governo do Paraná, de Cida Borghetti, mulher de Ricardo Barros, para a cadeira de diretor do Ministério da Saúde. 

Com o protagonismo de Mandetta como condutor do combate à pandemia e defensor de posições científicas, Bolsonaro tirou o ministro do cargo. Nada disso abalou a permanência de Dias, homem do Centrão, no posto. Os titulares seguintes da pasta – Nelson Teich, Eduardo Pazuello e o atual Marcelo Queiroga – mantiveram o diretor. 

De 2019 para cá, Dias autorizou mais de R$ 20 bilhões em pagamentos. Ele só caiu na última terça-feira, após um policial militar de Minas Gerais dizer que ouviu pedido de propina do então diretor. Integrantes da CPI suspeitam que a denúncia pode ter sido “plantada” pelo governo para atrapalhar a linha principal de investigação.

Caso Covaxin recebeu aval de indicados

O avanço das investigações da CPI da Covid no Senado indica que militares e representantes do Centrão no Ministério da Saúde consentiram com o processo de compra da vacina indiana Covaxin. As suspeitas envolvendo o caso levaram o presidente Jair Bolsonaro a ser alvo de um inquérito no Supremo Tribunal Federal. 

Além do ex-diretor de logística Roberto Dias, o general Eduardo Pazuello manteve também na pasta da Saúde um nome da confiança do deputado Wellington Roberto (PL-PB). Arnaldo Correia de Medeiros virou secretário de Vigilância em Saúde. O parlamentar é líder do partido comandado pelo ex-deputado Valdemar Costa Neto, condenado no mensalão. 

A nomeação ocorreu em junho passado, quando o general comandava interinamente o ministério e Bolsonaro consolidava seu casamento com o Centrão. O secretário substituiu Wanderson Oliveira, servidor federal e especialista em epidemias.

Medeiros participou da primeira reunião no ministério, em novembro, com representantes da Precisa – empresa que faz a intermediação da Covaxin, produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech. A Precisa pertence a Francisco Maximiano, um empresário que é réu com Ricardo Barros em um processo de 2018 referente à compra de medicamentos quando o atual líder do governo foi ministro. Foi Dias, o diretor ligado ao Centrão, quem deu a ordem de empenho de R$ 1,6 bilhão para compra da Covaxin mesmo com inconsistências no processo. 

As principais suspeitas pairam sobre o ex-diretor, apontado como um dos chefes que exerceram pressão sobre o servidor ao qual cabia liberar os trâmites para importação da vacina indiana.

O nome dele surgiu em depoimentos do chefe da Divisão de Importação do ministério, o servidor de carreira Luis Ricardo Fernandes Miranda, irmão do deputado Luis Miranda (DEM-DF). Antes das denúncias dos irmãos Miranda, Bolsonaro, governistas e aliados das Forças Armadas vinham sendo criticados por omissão, pela ineficiência e pelo desprezo à ciência na pandemia. 

Ao assumir o ministério, Pazuello levou consigo ao menos 20 militares da ativa e da reserva. O caso Covaxin, atinge três deles. Coronel Elcio Franco, ex-número 2 da pasta, o tenente-coronel Alex Marinho, coordenador-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos, e coronel Marcelo Pires, diretor responsável pela coordenação do Plano Nacional de Operacionalização das Vacinas anticovid, ligado a Elcio Franco.

Políticos, servidores e militares citados negam irregularidades. Ricardo Barros diz não ter participado de nenhuma tratativa relacionada à compra da Covaxin. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), afirmou que Eduardo Pazuello e Elcio Franco não encontraram “irregularidades contratuais” no processo. Roberto Dias disse acreditar que o servidor denunciante se equivocou ou intencionalmente o envolveu. Ao Estadão, Wellington Roberto afirmou que Arnaldo Medeiros é um quadro técnico com histórico de bons serviços públicos prestados. Marcelo Pires não atendeu às chamadas. Alex Marinho disse que não se manifestaria. Flávio nega ser próximo a Maximiano. O empresário, em manifestação à CPI, disse que a contratação seguiu todas as regras legais.

Vinicius Valfré, O Estado de S.Paulo, em 03 de julho de 2021

Pressão sobre Bolsonaro passa a englobar tema da corrupção

Escândalos com vacinas ampliam pauta dos protestos e atraem parte dos que ajudaram a eleger o presidente. Presença constante nas ruas mostra que pode haver custo político ao se aproximar do governo.

Em São Paulo, ato ocupou nove quarteirões da Avenida Paulista e teve participação do PSDB

Adversários do governo Jair Bolsonaro realizaram neste sábado (03/07) atos em cidades de todas as unidades da federação, dando sequência à série de protestos antigoverno iniciada em 29 de maio e ampliada em 19 de junho. Como novidade, houve a inclusão do tema da corrupção, com alusões aos escândalos sobre compra de vacinas, e a adesão de parte de setores da centro-direita e direita.

O número de 312 cidades com atos neste sábado, segundo a Central de Movimentos Populares (CMP), um dos organizadores, foi menor do que o do protesto anterior, quando houve protestos em mais de 400 municípios. Mas as manifestações foram significativas em diversas capitais e na Avenida Paulista, principal termômetro do país, onde ocupou nove quarteirões, segundo o jornal Folha de S.Paulo.

Cartazes e discursos vinculando Bolsonaro a acusações de corrupção apareceram com frequência, marcando uma diferença em relação aos protestos anteriores, que foram centrados na falta de vacinas e nas mortes provocadas pela má gestão da pandemia. O novo tom foi resumido no mote "Não era só negacionismo, é também corrupção", registrado em diversas placas erguidas por manifestantes.

A pauta anticorrupção estruturou os movimentos que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff e é central para parte do eleitorado que votou em Bolsonaro e está hoje insatisfeito com o governo. Neste sábado, o tema estava vinculado ao escândalo da compra da vacina indiana Covaxin, que envolve Bolsonaro e o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), e ao suposto pedido de propina de 1 dólar por dose em uma oferta suspeita de venda de doses da AstraZeneca, ambos explorados pela CPI da Pandemia.

Em algumas cidades, manifestantes mostravam cédulas falsas de 1 dólar manchadas de sangue. Na Avenida Paulista, havia figuras de Bolsonaro e Barros vestidos de presidiários segurando sacos de dinheiro. Em Belo Horizonte, um grande boneco inflável representava o presidente vestido de preto com uma foice e segurando uma caixa de "cloropina" – referência híbrida a propina e cloroquina.

Mais verde e amarelo nas ruas

Outra tendência nos atos deste sábado foi o maior uso da bandeira do Brasil e das cores verde e amarela, que haviam sido fartamente utilizadas pelos movimentos de centro-direita e direita durante os atos contra Dilma e depois foram apropriadas por Bolsonaro. O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ) foi um dos que optaram por usar verde e amarelo. "Essas cores representam alegria e união do povo. Essas cores não podem e nunca vão representar a divisão do país que esse governo genocida está fazendo", disse.

Os protestos foram convocados majoritariamente por forças e partidos de centro-esquerda e esquerda, mas houve a participação de setores da centro-direita e direita, notada especialmente em São Paulo, onde o PSDB paulistano levou militantes e faixas da legenda à Avenida Paulista. O Livres, movimento liberal que integrava o PSL antes da filiação de Bolsonaro à legenda, também participou do ato. O deputado Júnio Bozzella (PSL-SP), ex-aliado do presidente, incentivou a ida à manifestação. O cantor Lobão, entusiasta das manifestações contra Dilma e da eleição de Bolsonaro, também apoiou e divulgou as imagens do protesto.

A participação da centro-direita e da direita nas ruas, porém, segue restrita. O Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua (VPR), que lideraram os atos contra a Dilma e defendem o impeachment de Bolsonaro, decidiram não participar da manifestação, que também não recebeu apoio de lideranças nacionais de partidos desse espectro.

A presença do PSDB no ato de São Paulo tampouco foi livre de atritos. Um membro do partido de extrema esquerda PCO tentou agredir os tucanos, e foi contido por outros militantes de esquerda. Membros do PCO também queimaram bandeiras tucanas, e o diretório nacional do PSDB – que não participou dos atos – postou uma foto das bandeiras em chamas no Twitter com a mensagem "O 'diálogo' da esquerda!'".

Como nas outras duas manifestações, houve homenagens a vítimas da covid-19 e cartazes lembrando parentes e conhecidos mortos pela doença. "Cadê a vovó?", estampava o cartaz segurado por uma criança com o pai. "Bolsonaro: Meu marido fez seu tratamento precoce quando precisava de vacina e agora está morto!", exibia uma mulher. Em João Pessoa, dezenas ergueram fotos de pessoas que morreram na pandemia, enquanto um manifestante no carro do som lia o nome de cada vítima.

Houve atos também em 35 cidades do exterior de 16 países, segundo a CMP, como em Berlim, Colônia, Hamburgo e Freiburg, na Alemanha, Londres, Bruxelas, Barcelona e Los Angeles.

Qual é o impacto para Bolsonaro?

Um dos objetivos dos organizadores dos atos contra o governo é pressionar parlamentares a abrirem um processo por crime de responsabilidade do presidente, fortalecido por um "superpedido" de impeachment protocolado por diversos partidos e movimentos na quarta.

As condições para a abertura de um processo do tipo estão distantes no momento. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que não analisará as denúncias antes do fim da CPI da Pandemia, e há apenas cerca de 100 deputados federais abertamente favoráveis ao impeachment – são necessários 342.  Além disso, Bolsonaro estruturou uma aliança pragmática com o Centrão, grupo de partidos que apoia o governo em troca de cargos ou verbas do Orçamento.

A presença de manifestantes nas ruas, porém, pode fazer com que alguns deputados reconsiderem o apoio ao governo se avaliaram que seguir do lado de Bolsonaro causará prejuízos eleitorais, diz a cientista política Simone Viscarra, professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco.

"Conforme aumenta o número de pessoas participando dos atos, os políticos locais e estaduais vão ver e pensar: 'Olha, a adesão foi grande, melhor não me aproximar dessa pessoa'. E isso pode vir a afetar os apoios municipais e estaduais ao governo", afirma. "Se o eleitor está insatisfeito, os políticos tendem a se mover de maneira a manter seu eleitorado."

Ela pondera não haver certeza se as manifestações seguirão crescendo em número de apoiadores, e diz que o fato de as eleições ocorrem apenas no ano que vem pode dar a Bolsonaro o tempo necessário para que ele recupere parte do apoio que perdeu nos últimos meses, a depender de suas políticas e da economia.

A cientista política Tassia Rabelo, professora da Universidade Federal da Paraíba, tem avaliação semelhante. "Os protestos cumprem um papel importante, mas não são definitivos para a queda. Enquanto tiver apoio no Congresso, particularmente do Lira, é muito difícil. Mas os protestos podem ajudar a mudar o clima. A depender da pressão, os políticos que já estão fazendo o cálculo de 2022 começam a reavaliar", diz.

Mesmo que consiga manter o apoio dos deputados, a realização frequente de protestos deve impor ao presidente custos maiores para manter sua proteção no Congresso, diz Emerson Cervi, professor de ciência política da Universidade Federal do Paraná. "O efeito para o governo é o clássico aumento do custo de governabilidade. Esses movimentos pressionam parlamentares, e eles 'cobram' mais caro o apoio", afirma.

A popularidade de Bolsonaro está em nível baixo, mas é superior à de Dilma e de Fernando Collor quando eles sofreram impeachment. Segundo pesquisas realizadas nas últimas duas semanas por Ipec, PoderData e Extra/Idea, cerca de metade da população (de 50% a 54%) considera o governo Bolsonaro ruim ou péssimo, enquanto cerca de um quarto (de 23% a 28%) considera seu governo ótimo ou bom. Quando Dilma caiu, apenas 13% consideravam seu governo ótimo ou bom, e Fernando Collor pontuava 9% quando renunciou ao mandato.

Deutsche Welle Brasil, em 04.07.21

Brasil registra 830 mortes por covid em 24 horas

País teve 27,8 mil novos casos da doença, o que eleva a quase 18,8 milhões o total acumulado desde o início da epidemia. Total de óbitos já ultrapassa 524 mil.

Taxa de mortalidade do país é a 9ª mais alta do mundo

O Brasil registrou oficialmente neste domingo (04/07) 830 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Também foram confirmados 27.783 novos casos da doença. Com isso, o total oficial de infecções registradas no país desde o início da pandemia chega a 18.769.808, com os óbitos acumulados somando 524.417.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 17.033.808 pacientes haviam superado a doença até este domingo.

Já a taxa de mortalidade do Brasil por grupo de 100 mil habitantes subiu para 249,5, a 9ª mais alta do mundo, atrás apenas de alguns pequenos países europeus, do microestado de San Marino e do Peru, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

A média móvel de novas mortes (soma dos óbitos nos últimos sete dias e a divisão do resultado por sete) ficou em 1.563, e a média móvel de novos casos, em 49.887.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam 605,5 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,7 milhões) e Índia (30,5 milhões).

Ao todo, cerca de 183,65 milhões contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 3,974 milhões de mortes associadas à doença.

Deutsche Welle Brasil, em 04.07.21

A lenda do Jair honesto

Ainda afirmar que Bolsonaro está do lado da lei e da ordem é uma piada de mau gosto. O bolsonarismo pode até ter algo contra a corrupção e a criminalidade – mas só a dos outros, escreve Philipp Lichterbeck.

"Governo Bolsonaro minou sistematicamente a luta contra a corrupção iniciada durante a presidência de Dilma Rousseff"

É claro que Jair Bolsonaro tem razão quando diz não poder saber tudo o que acontece nos 22 ministérios de Brasília. Consequentemente, não se pode responsabilizá-lo por cada ocorrência neles. No entanto, ele é responsável pela nomeação dos ministros, pelos aliados que procura e pelo espírito reinante em seu governo.

Além disso, Bolsonaro provavelmente não está dizendo a verdade, quando afirma nada ter sabido das irregularidades na encomenda da Covaxin. Segundo testemunhas, ele foi informado, mas não agiu. Ao que parece, tolerou e acobertou a suposta corrupção.

Seja como for, chama a atenção o governo brasileiro ter imposto altos obstáculos a todos os fabricantes de vacinas com representações diretas no país. Eles foram ignorados, suas ofertas, consideradas caras demais, ou se rejeitaram suas condições contratuais. Para os fornecedores com intermediários – no caso da Covaxin, registrados sob um endereço duvidoso em Cingapura – de repente essas ressalvas deixarem de ser relevantes. É o caso de se perguntar por quê.

Após a recente acusação de que o chefe de logística do Ministério da Saúde teria coletado subornos em nome de "um grupo dentro do ministério", alguns meios de comunicação escrevem que o governo Bolsonaro está passando por seu primeiro escândalo de corrupção. Isso é uma piada de mau gosto, e quem afirma tal coisa está caindo na armadilha da lenda bolsonarista sobre o "Jair honesto", um outsider meio grosso, porém sincero e defensor da lei e da ordem.

A versão que agora vem sendo repetida nas redes bolsonaristas é a de que esse governo não é corrupto. Isso é tão equivocado quanto a afirmação de que Bolsonaro seja um patriota, zele pela família ou respeite a Deus. Assim como conseguiu monopolizar os conceitos de patriotismo, família e Deus, ele conseguiu, diante de uma oposição fraca e desarticulada, reivindicar para si a luta contra a corrupção.

Basta enumerar alguns fatos para refutar esses mitos. As últimas férias de Natal do presidente Bolsonaro custaram ao contribuinte brasileiro nada menos que R$ 2,4 milhões. Ainda não estão explicados os 27 depósitos no valor de R$ 89 mil do suspeito de corrupção Fabrício Queiroz para a esposa do presidente, Michelle Bolsonaro. Também restam dúvidas sobre a compra de Flávio Bolsonaro de uma mansão em Brasília por R$ 6 milhões – o 20º imóvel adquirido pelo filho do presidente em 16 anos.

O fato é, antes, que este governo minou sistematicamente a luta contra a corrupção iniciada durante a presidência de Dilma Rousseff. Já em fevereiro de 2020, a ONG Transparência Internacional criticava as constantes "interferências políticas nas nomeações e destituições em postos fundamentais" para a luta contra a corrupção.

Bolsonaro, por exemplo, rompeu a tradição de nomear o procurador-geral da República entre a trinca eleita pelos integrantes do Ministério Público Federal. Assim como o chefe do antigo Coaf, que persegue a lavagem de dinheiro, ele substituiu o chefe da Polícia Federal do Rio de Janeiro (justamente a cidade em que seu filho Flávio é investigado por peculato, lavagem de dinheiro e supostamente liderar uma organização criminosa).

Desconfiar dos moralistas

Por diversas vezes, ainda, o presidente entregou cargos de ministro a suspeitos de corrupção, como o ex-chefe da pasta do Meio Ambiente Ricardo Salles (que no cargo aparentemente continuou a violar as leis), ou o do Turismo Marcelo Álvaro Antônio, ou o ex-secretário de Comunicação da Presidência da República Fabio Wajngarten.

Mais recentemente, Bolsonaro nomeou como ministra da Secretaria de Governo a deputada Flávia Arruda, do Partido Liberal (PL), presidido pelo ex-deputado Valdemar Costa Neto, condenado no mensalão. A lista poderia seguir adiante, aqui apenas os exemplos mais destacados: o atual líder do governo Bolsonaro na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP), foi alvo de operação do Gaeco do Paraná, suspeito de receber propina da Galvão Engenharia. E o atual líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB), é suspeito de ter recebido R$ 10 milhões em suborno de empreiteiras, quando era ministro da Integração Nacional. Esses são dois dos mais importantes apoios desse "governo honesto".

A tudo isso, somem-se os delitos e infrações pequenos e maiores do presidente para mostrar que não se pode admitir por um segundo sequer a afirmação desse governo de que estaria do lado da lei e da ordem: não respeitar a obrigatoriedade de máscara, encorajar garimpeiros e madeireiros ilegais, ofender e ameaçar jornalistas, recomendar medicamentos ineficazes à população, constantes mentiras e distorções da verdade, etc.

O bolsonarismo pode até ter algo contra a corrupção e a criminalidade – mas só a dos outros. Quem crê em outra coisa, caiu na esparrela da máquina de propaganda bolsonarista. É preciso sempre desconfiar dos moralistas.

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria  Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 04.07.2021