quinta-feira, 24 de junho de 2021

Brasil registra 2.042 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas e se aproxima dos 510 mil óbitos

Outros 72.613 testes positivos do coronavírus foram registrados nesta quinta-feira, 24

Enterro no Cemitério Campo da Esperança, em Brasília.  Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

O Brasil registrou 2.042 novas mortes pela covid-19 nesta quinta-feira, 24. A média semanal de vítimas, que elimina distorções entre dias úteis e fim de semana, ficou em 1.870, abaixo dos 1.915 registrados na véspera.

Nesta quinta-feira, o número de novas infecções notificadas foi de 72.613. No total, o Brasil tem 509.282 mortos e 18.243.391 casos da doença, a segunda nação com mais registros, atrás apenas dos Estados Unidos. Os dados diários do Brasil são do consórcio de veículos de imprensa formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL em parceria com 27 secretarias estaduais de Saúde, em balanço divulgado às 20h. Segundo os números do governo, 16,5 milhões de pessoas estão recuperadas da doença.

O Estado de São Paulo mantém um número alto de mortes por coronavírus, com 781 óbitos nesta quinta-feira. Outros quatro Estados também superaram a barreira de 100 óbitos no dia: Minas Gerais (209), Rio de Janeiro (186), Rio Grande do Sul (124) e Bahia (104).

O balanço de óbitos e casos é resultado da parceria entre os seis meios de comunicação que passaram a trabalhar, desde 8 de junho de 2020, de forma colaborativa para reunir as informações necessárias nos 26 Estados e no Distrito Federal. A iniciativa inédita é uma resposta à decisão do governo Bolsonaro de restringir o acesso a dados sobre a pandemia, mas foi mantida após os registros governamentais continuarem a ser divulgados.

Nesta quinta-feira, o Ministério da Saúde informou que foram registrados 73.602 novos casos e mais 2.032 mortes pela covid-19 nas últimas 24 horas. No total, segundo a pasta, são 18.243.483 pessoas infectadas e 509.141 óbitos. Os números são diferentes do compilado pelo consórcio de veículos de imprensa principalmente por causa do horário de coleta dos dados.

João Ker, O Estado de S.Paulo, em 24 de junho de 2021 

Metade dos brasileiros considera governo Bolsonaro ruim ou péssimo, mostra pesquisa Ipec

Parcela da população insatisfeita com gestão federal sobe de 39% para 49% em quatro meses, aponta levantamento; dois em cada três desaprovam o desempenho pessoal do presidente na condução do país

Metade do eleitorado brasileiro avalia negativamente o governo Jair Bolsonaro, e menos de um quarto se mostra satisfeito com ele, segundo pesquisa de opinião do instituto Ipec. Desde fevereiro, a parcela da população que considera a gestão ruim ou péssima teve aumento expressivo, de 39% para 49%. Já os que a consideram boa ou ótima diminuíram de 28% para 24%.

Além de pedir aos entrevistados que avaliassem o governo como um todo, o Ipec também perguntou se aprovam ou desaprovam a forma como Bolsonaro conduz o País e se confiam ou não no presidente. Os que desaprovam somavam 58% em fevereiro e passaram para 66% agora, enquanto o nível de desconfiança subiu de 61% para 68%. Apenas 30% aprovam o desempenho pessoal de Bolsonaro e confiam nele. 

O nível de insatisfação com o governo é maior entre as mulheres – 55% o consideram ruim ou péssimo, ante 44% dos homens. Entre as quatro diferentes faixas de renda, não há diferenças significativas na avaliação negativa, com no máximo dois pontos porcentuais acima ou abaixo dos 50% gerais.

Já o recorte regional mostra diferenças significativas. As maiores taxas de ruim ou péssimo estão no Nordeste e no Sudeste, que empatam nos 52%. O Norte e o Centro-Oeste têm 43% de insatisfeitos, e o Sul, 42%. 

Entre evangélicos, o governo é considerado bom ou ótimo por 29%, e ruim ou péssimo por 42%. Os católicos, por sua vez, somam 22% e 50%, respectivamente. 

Criado por ex-executivos do Ibope, o Ipec ouviu 2002 pessoas entre os dias 17 e 21 de junho, em 141 municípios brasileiros. A margem de erro da pesquisa é de dois pontos porcentuais para mais ou para menos.

Caio Sartori e Daniel Bramatti, O Estado de S.Paulo, em 24 de junho de 2021 

Bolsonaro pode ter cometido três crimes ao não informar a PF suspeita de corrupção na vacina

Especialistas avaliam que o presidente pode ter cometido crimes que se enquadram na lei do impeachment

                      O presidente da República Jair Bolsonaro. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Ao não relatar à Polícia Federal suspeitas de corrupção envolvendo a compra pelo Ministério da Saúde da vacina indiana Covaxin, o presidente Jair Bolsonaro pode ter cometido crimes de prevaricação, de condescendência com o crime e, até mesmo, de responsabilidade, segundo especialistas ouvidos pelo Estadão.

Bolsonaro foi alertado de possível ilegalidade na compra da vacina pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) e pelo irmão dele, Luís Ricardo Fernandes Miranda, servidor do Ministério da Saúde, no dia 20 de março.

(PF não recebeu ordem de Bolsonaro para investigar suspeita de corrupção na compra da Covaxin, dizem fontes da corporação)

Mensagens trocadas entre o deputado e o ajudante de ordens de Bolsonaro comprovam que o político informou ao Palácio do Planalto das suspeitas. Segundo seu relato, o presidente teria informado que iria encaminhar a denúncia para a PF, o que não ocorreu segundo delegados da cúpula da instituição.

O episódio levou o presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM), a pedir informações ao diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, para saber se Bolsonaro entrou em contato para solicitar que as suspeitas de irregularidades fossem apuradas. Como mostrou o Estadão, o governo comprou a Covaxin por um preço 1.000% maior do que, seis meses antes, era anunciado pela própria fabricante. Foi a vacina mais cara comprada pelo governo e a única a ter um intermediário nas negociações.

Porém, antes que a imagem do presidente fosse ligada a eventuais crimes, o senador Jorginho Mello (PL-SC), aliado do Planalto e integrante da tropa de choque do governo na CPI da Pandemia, se prontificou em dizer que Bolsonaro comunicou o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello sobre o suposto esquema de corrupção na aquisição de vacinas. Assim, teria o general prevaricado em vez do presidente.

“O ministro Onyx (disse) que quando esse deputado esteve falando de assuntos, falando não sei mais o que, o presidente falou imediatamente com o ministro Pazuello para pedir ‘ó, vê um assunto aí da Covaxin’ e o ministro foi ver, viu, e como não tinha nada depois de três meses eles estão requentando o assunto”, disse o senador em entrevista coletiva no Senado.

O Código Penal explica o crime de prevaricação como o ato de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício” em benefício próprio. Acácio Miranda, mestre em Direito Penal pela Universidade de Granada, na Espanha, avalia que caso seja confirmada a falta de interesse em solicitar a instauração de investigação de possíveis atos de corrupção na estrutura do governo, Bolsonaro – ou Pazuello – prevaricou.

“O presidente da República não tem o poder investigatório, mas ele deveria obrigatoriamente conduzir a documentação para a Polícia Federal investigar”, diz Antonio Golçaves, pós-doutor em ciência jurídica pela Universidade Nacional de La Matanza, na Argentina. Ele ainda sustenta que, em última instância, a função de solicitar abertura de investigação criminal é de Bolsonaro, e não de Pazuello. A análise não é partilhada por outros juristas.

Para Matheus Feliveni, doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP), não há base jurídica para imputar crime de prevaricação ao presidente, pois não estaria dentro de suas funções de ofício investigação. No entanto, ele avalia que Bolsonaro pode incorrer no crime de condescendência criminosa – quando um gestor público deixa de responsabilizar ou não leva à autoridade competente crime cometido por seus subordinados.

O jurista Antonio Gonçalves vai além: “uma coisa não exclui a outra. Nesse caso, pode haver uma cumulação na tipificação”. Segundo ele, Bolsonaro pode ter prevaricado e sido condescendente com o crime. Os três especialistas ouvidos pelo Estadão julgam haver margem para que o presidente seja enquadrado na Lei 1079/1950, relativa aos crimes de responsabilidade que levam ao impeachment – caso fique comprovada a ocorrência dos crimes.

Quando em posse do cargo, o presidente da República não pode ser julgado por crimes comuns descritos no código penal. Ele responde apenas a crimes de responsabilidade. Sendo assim, Feliveni vê margem para que Bolsonaro seja enquadrado nos incisos V e VII da lei do impeachment, que falam, respectivamente, da probidade administrativa e do legal emprego dos recursos públicos.

A crise da vacina indiana no governo chega a mais uma etapa que compromete o alto escalão, mas surge antes da falta de notificação à PF. O deputado federal Luis Miranda diz ter ido ao encontro de Bolsonaro apresentar as suspeitas sobre a compra da Covaxin acompanhado de seu irmão Luís Ricardo Fernandes Miranda, servidor do Ministério da Saúde.

Em depoimento ao Ministério Público Federal, Luís Ricardo afirmou ter recebido “pressões anormais” para a aquisição da vacina indiana. A dupla deve depor à CPI da Covid nesta sexta, 25.

O contrato da Covaxin também entrou na mira do Ministério Público Federal. A compra de 20 milhões de doses da vacina por R$ 1,6 bilhão já era investigada no âmbito civil, mas a Procuradoria pediu que o caso também seja acompanhado na esfera criminal. A procuradora da Luciana Loureiro Oliveira, do Distrito Federal, viu indícios de crime na contratação e apontou ‘interesses divorciados do interesse público’.

“A omissão de atitudes corretiva da execução do contrato, somada ao histórico de irregularidades que pesa sobre os sócios da empresa Precisa e ao preço elevado pago pelas doses contratadas, em comparação com as demais, torna a situação carecedora de apuração aprofundada, sob duplo aspecto cível e criminal, uma vez que, a princípio, não se justifica a temeridade do risco assumido pelo Ministério da Saúde com essa contratação, a não ser para atender a interesses divorciados do interesse público.”

Weslley Galzo, de Brasília para O Estado de S. Paulo, em 4 de junho de 2021

Famílias de vítimas da covid-19 recorrem à PGR para responsabilizar Bolsonaro por conduta na pandemia

O documento aponta que Bolsonaro incentivou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, prejudicou a vacinação no Brasil, estimulou aglomerações enquanto cientistas orientavam o isolamento social e defendeu uma teoria de "imunidade de rebanho" sem qualquer respaldo científico.

Paola Falceta ao lado dos pais em fotografia de 2017: a morte da mãe fez com que ela criasse associação junto com amigo (Arquivo Pessoal)

No fim do ano passado, o advogado Gustavo Bernardes, de 46 anos, enfrentou duras complicações da covid-19. Ele ficou intubado por dias e os médicos chegaram a duvidar se o paciente sobreviveria.

"Me despedi da minha família por ligação de vídeo, antes de ser intubado. Um médico chegou a dizer para a minha irmã que achava que eu não resistiria", diz Bernardes à BBC News Brasil.

O advogado se recuperou e recebeu alta hospitalar. Meses após viver o período mais difícil de sua vida, decidiu buscar a responsabilização daquele que ele aponta como o principal culpado pela dramática situação da pandemia no país: o presidente Jair Bolsonaro.

Por meio de uma representação criminal na Procuradoria-Geral da República (​PGR), protocolada em 9 de junho, ele pede que seja oferecida uma denúncia contra Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que o presidente seja processado criminalmente pela condução da pandemia.

Bernardes é presidente da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico). Ele explica que, apesar de a medida protocolada na PGR estar em nome dele, ela representa todas as pessoas que compõem a associação e tiveram quadro grave de covid-19 ou perderam familiares para a doença. "É uma iniciativa coletiva", ressalta o advogado.

Ele assinala que a medida foi a forma que membros da Avico encontraram para fazer com que Bolsonaro seja responsabilizado pelo modo como tem conduzido a crise sanitária no país.

A representação afirma que a conduta do presidente da República diante da pandemia é uma "estratégia federal cruel e sangrenta de disseminação da covid-19, perfazendo um ataque sem precedentes aos direitos humanos no Brasil".

O documento aponta que Bolsonaro incentivou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19, prejudicou a vacinação no Brasil, estimulou aglomerações enquanto cientistas orientavam o isolamento social e defendeu uma teoria de "imunidade de rebanho" sem qualquer respaldo científico.

A reportagem questionou o Palácio do Planalto sobre os apontamentos listados na representação da Avico. Porém, não houve respostas até a conclusão deste texto.

'Não aguentava mais a falta de ar'

Advogado Gustavo Bernardes foi intubado com covid-19 no fim do ano passado. Em junho, ele protocolou representação em nome da Avico na PGR

Em novembro passado, Bernardes enfrentou uma batalha pela vida em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital de Porto Alegre (RS).

Após ser diagnosticado com a covid-19, exames apontaram que 25% de seus pulmões haviam sido afetados pela doença. Ele foi internado em 23 de novembro. Nos dias seguintes, o quadro de saúde do advogado piorou cada vez mais. "Chegou um momento em que não conseguia nem segurar o meu celular ou comer. Além disso, sentia uma falta de ar tão grande que nem conseguia dormir", relata o advogado.

"Cheguei a falar para um médico que se não fizessem nada, iria desistir porque não aguentava mais a falta de ar", diz Bernardes à BBC News Brasil.

Os médicos decidiram que o advogado deveria ser intubado. Minutos antes, ele se despediu da irmã, que era o principal apoio dele naquele momento, em uma videochamada. "Foi horrível ter me despedido da minha irmã. Disse que não sabia se iria me recuperar, pedi para ela ficar bem e cuidar dos meus sobrinhos", conta.

Ele, que se considera uma pessoa saudável e sem fatores de risco para agravar a covid-19, chegou a ser desenganado pelos médicos. Após complicações, o advogado conseguiu melhorar e passou pelo procedimento de retirada do tubo, após 10 dias de intubação.

Bernardes ficou quase um mês internado. Em 20 de dezembro, ele recebeu alta hospitalar e passou a lidar com as complicações deixadas pela covid-19.

"Tive lapso de memória, não reconhecia meu corpo, tive dores nas articulações, taquicardia e precisei reaprender a andar. Fiquei na casa da minha família e recebi apoio para evoluir", comenta.

Enquanto Bernardes enfrentava o período de recuperação em casa, uma amiga dele, a assistente social Paola Falceta, começava a viver a fase mais difícil de sua vida.

No fim de janeiro, a mãe de Paola, Italira Falceta, de 81 anos, foi internada em um hospital público de Porto Alegre para passar por uma cirurgia cardiovascular.

Após o procedimento cirúrgico, a idosa foi encaminhada para um quarto coletivo na unidade de saúde para se recuperar. A assistente social acredita que foi justamente nesse período que a mãe foi infectada pelo novo coronavírus.

"Um dos médicos testou positivo. Depois, escutamos vários outros casos de pessoas que também tinham testado positivo ali. E a minha mãe acabou pegando o coronavírus também", relata Paola.

A assistente social, que passou alguns dias junto com a mãe após a cirurgia, também testou positivo para a covid-19, assim como a irmã dela e um sobrinho. Os três tiveram sintomas, mas se recuperaram. Já Italira não resistiu às complicações da doença.

Paola relata que os últimos dias de vida da mãe foram traumáticos. Na época, início de fevereiro, a região Sul do país começava a enfrentar o pior período da pandemia.

Italira passou semanas em um quarto de isolamento na unidade de saúde. Não havia vaga em UTI para a idosa, em razão da sobrecarga no sistema de saúde no período.

Italira Falceta morreu em 2 de março, aos 81 anos, após enfrentar complicações da covid-19 (Arquivo Pessoal)

Paola conta que os médicos disseram que dificilmente Italira sobreviveria às complicações da covid-19. Isso porque, segundo ela, os profissionais de saúde disseram que a situação da idosa era grave por causa da idade dela, por ela ter doença pulmonar obstrutiva crônica e em razão da saúde fragilizada porque ainda se recuperava da cirurgia.

Os médicos avaliaram que ela não era elegível para ser intubada. "Falaram que havia um monte de gente precisando (de intubação) e, provavelmente, ela morreria. Eles acabam escolhendo pacientes que têm melhores condições de ser intubados e sobreviver", relata Paola.

"Perguntaram para a gente se mesmo assim a gente queria (que ela fosse intubada) e a gente disse que sim, mas mesmo assim não ocorreu. O hospital é ótimo, o problema foi a lotação e a disputa de vida ou morte por causa do colapso da saúde. Isso foi bem nos dias em que houve colapso da saúde em Porto Alegre", acrescenta.

Após semanas, a idosa deixou o isolamento e foi encaminhada para outro quarto, pois foi constatado que ela não estava mais com o coronavírus. Nesse período, diz Paola, Italira já estava extremamente debilitada pelas complicações da covid-19 e os médicos disseram que ela sobreviveria poucos dias.

No novo quarto, Paola acompanhou a mãe na noite de 1º de março. Na data, ela ajudou a dar banho em Italira e se emocionou com o quanto a mãe estava fragilizada.

Horas depois, na madrugada de 2 de março, a equipe médica constatou que a idosa não tinha mais os sinais vitais. "Aquilo foi horrível. Primeiro uma técnica de enfermagem viu a situação da minha mãe, depois chamou a chefe da enfermagem. Por fim, dois residentes chegaram e confirmaram que ela havia morrido. Foi a pior cena da minha vida", relembra.

Cerca de duas semanas antes da morte da idosa, o pai de Paola, de 82 anos, foi vacinado contra a covid-19. O idoso não havia tido contato com Italira durante a internação dela, pois os filhos evitaram que ele se expusesse ao vírus.

Caso a vacinação no Brasil tivesse começado antes e fosse mais rápida, acredita Paola, os pais poderiam ser imunizados antes da cirurgia de Italira. "E ela estaria com a gente até agora", diz a assistente social.

A Avico

A morte da mãe motivou Paola a buscar uma forma de responsabilizar autoridades pela conduta na pandemia no Brasil, que atualmente tem mais de 500 mil mortes pela covid-19.

"10 dias depois da morte dela, percebi que precisava fazer algo. Estava muito incomodada com o que estava acontecendo", diz.

Ela conta que decidiu procurar algumas pessoas em busca de ajuda até que se lembrou que Bernardes havia sido intubado meses antes. No passado, os dois haviam atuado juntos em organizações não governamentais (ONGs) de Porto Alegre.

"Várias pessoas me desencorajaram. Mas quando falei com o Gustavo sobre (a possibilidade de fazer algo pelas vítimas ou familiares de vítimas da covid-19), ele me falou sobre a possibilidade de montar uma associação", lembra Paola.

Paola e Gustavo seguram cartaz enquanto outras diversas pessoas protestam e carregam mensagens contra o governo federal

Paola e Gustavo seguram faixa da Avico durante protesto de 19 de junho (Arquivo Pessoal)

Bernardes também estava incomodado com a situação da pandemia no Brasil e tinha vontade de fazer algo em relação ao tema, após o período em que passou no hospital.

Ele diz que a conversa com Paola o motivou a pensar em alguma iniciativa para responsabilizar autoridades brasileiras que tenham adotado medidas equivocadas durante a pandemia.

A ideia de criar a Avico surgiu após o advogado assistir a um documentário sobre a "Noi Denunceremo" (em português "Nós denunciaremos"), uma associação italiana na qual parentes de vítimas e sobreviventes da covid-19 cobram o governo local sobre omissões e ações equivocadas no enfrentamento à pandemia.

A "Noi Denunceremo" começou como um grupo de Facebook em março de 2020, no qual italianos compartilhavam as histórias de familiares vítimas da covid-19. Diante de diversos relatos de negligência de autoridades, os responsáveis pelo grupo decidiram transformá-lo em uma instituição sem fins lucrativos, que passou a coletar histórias para que elas se tornassem queixas formais ao Ministério Público.

Assim como a associação italiana, Bernardes e Paola também consideram que o principal objetivo da Avico é apoiar familiares ou as próprias vítimas da covid-19 e responsabilizar gestores que não adotaram medidas adequadas no combate à pandemia.

"Fizemos uma reunião com mais três pessoas que enfrentaram a covid-19 e também participaram, no passado, da militância do movimento ligado à aids. Discutimos um estatuto e divulgamos nas redes no fim de março", relata Bernardes.

Dias depois, conta o advogado, já havia mais de 20 pessoas de diferentes lugares do país interessadas em ajudar a associação. Em 8 de abril, fizeram a assembleia de fundação da Avico.

"A gente não achava que tivesse tanta repercussão, mas saiu na mídia de todo o país e fomos procurados por muita gente querendo algum tipo de orientação", diz o advogado.

Segundo Paola, que é vice-presidente da Avico, há 17 pessoas, incluindo ela e Bernardes, que são consideradas fundadoras da associação. Além disso, atualmente há 125 membros de diferentes regiões do país, sendo que 45 são familiares de vítimas da covid-19 e os demais são voluntários. De acordo com a assistente social, há 210 inscrições na fila de espera para participar da associação.

A iniciativa tem dado apoio aos seus membros por meio dos voluntários. "Temos grupos virtuais que dão suporte às pessoas", explica Bernardes.

Ele conta que há diversos grupos, como para suporte ao luto, para apoio jurídico, para iniciativas solidárias, para acompanhar crianças e adolescentes que perderam parentes ou foram afetados pela covid-19 e para questões relacionadas às vacinas.

Há algumas semanas, a Avico deu entrada no registro do CNPJ — ainda não há prazo para a conclusão do procedimento. O cadastro será fundamental para ações futuras da associação, como para mover ações judiciais ou para receber apoio financeiro de seus associados.

Representação na PGR

Bolsonaro entrega uma caixa de hidroxicloroquina a emas no jardim do Palácio da Alvorada (Reuters)

Um dos itens citados em representação contra Bolsonaro é que ele defendeu o uso da cloroquina e hidroxicloroquina contra a covid-19

A primeira medida da Avico contra um gestor foi a representação criminal protocolada contra Bolsonaro na PGR, instituição que tem competência para investigar o presidente.

Bernardes explica que protocolou a medida em seu nome, na qualidade de presidente da Avico, pois ainda não pode fazer a representação diretamente pela associação porque ainda aguarda o registro do CNPJ dela. Mas ele ressalta que todos os membros da Avico apoiam a iniciativa e querem que Bolsonaro seja responsabilizado.

Na representação, há cinco itens que a Avico aponta que comprovam como Bolsonaro contribuiu para que o país se tornasse o segundo do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, em mortes pela covid-19 em números absolutos.

O primeiro item citado na representação é a "ineficiência na condução da vacinação". O documento menciona que por diversas vezes Bolsonaro se posicionou contra a obrigatoriedade da vacinação, por meio de sucessivas declarações sobre o tema, como quando questionou a eficácia da CoronaVac por ser uma vacina "da China".

Ainda sobre o item, a representação cita que o governo federal "apostou em poucas vacinas" e faltou planejamento para a imunização no país. Outro apontamento é de que o Ministério da Saúde falhou em campanhas eficientes para esclarecer à população sobre a necessidade da máxima cobertura vacinal para eficiência do controle da doença.

No mesmo item, é citado que Bolsonaro defendeu uma "imunidade de rebanho", que não tem respaldo científico, para afirmar que a pandemia poderia ser controlada por meio da contaminação do maior número possível de pessoas, sem considerar a aplicação de vacinas. Essa "imunidade" defendida pelo presidente é criticada por especialistas, que apontam que ela dá origem a diversas variantes, que costumam ser versões mais graves do vírus, e culmina em milhões de mortes e sequelas.

Ainda no primeiro item, a Avico menciona que a imunização no país foi prejudicada pela falta de respostas do governo brasileiro às ofertas de milhões de vacinas da Pfizer no ano passado.

No segundo item, a representação menciona que Bolsonaro estimulou o "tratamento precoce" contra a covid-19, por meio de remédios que não têm comprovação científica contra a doença.

O documento cita que Bolsonaro propagou o uso de hidroxicloroquina e cloroquina para pacientes com covid-19, mesmo com entidades como a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) se manifestando contra o uso da medicação para a doença.

"Em resumo, a prescrição de um tratamento precoce que, como já se argumentou à exaustão, é de ineficácia comprovada, instala na população, muitas vezes forçada a sair às ruas para trabalhar e sustentar-se em meio à grave crise também econômica que se instalou no país, o sentimento de que existe uma forma simples e medicamentosa de combater o vírus e, o que é ainda pior, de preveni-lo, permitindo a propagação de cepas cada vez mais transmissíveis e letais da covid-19", menciona trecho da representação.

O documento ressalta que o governo federal multiplicou a produção do medicamento durante a pandemia, mesmo sem qualquer respaldo para que ele fosse utilizado contra a covid-19.

"Para além da completa ausência de comprovação da eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 e da existência de indícios de seus nefastos efeitos colaterais - o que por si só configura grave crime -, a defesa de sua utilização pelo governo federal tem custado valores astronômicos aos cofres públicos", diz trecho da representação.

No terceiro item, a representação destaca que Bolsonaro criticou por diversas vezes o isolamento social, medida considerada fundamental por especialistas para evitar a propagação do coronavírus.

O documento cita que Bolsonaro promoveu inúmeras aglomerações desde o começo da pandemia. Além disso, pontua que Bolsonaro criticou por diversas vezes o uso de máscaras e deixou de usar o item, fundamental para evitar a propagação do coronavírus, em vários eventos oficiais.

No quarto item, a representação da Avico afirma que Bolsonaro conduziu o Ministério da Saúde de forma autoritária durante a pandemia. O documento menciona que Bolsonaro exonerou ou "deu causa á demissão" de ministros da Saúde em "momentos críticos e pontuais para uma boa condução da crise".


Com mais de 500 mil mortes pela covid-19, Brasil é o segundo país em números absolutos em óbitos pela doença  (Reuters)

Os afastamentos ou exonerações, diz a representação, sempre tiveram um objetivo muito claro: o de que a gestão da pandemia deveria ocorrer exatamente nos termos defendidos por Bolsonaro. 

"Ou seja, sem respeito às medidas de isolamento e/ou distanciamento social e com apelo a um tratamento ineficaz de nome "kit covid", o que reforça o fato de que o desastre por trás da gestão do cenário pandêmico reside na figura do presidente", menciona trecho da representação.

Por fim, o documento protocolado na PGR afirma que a postura de Bolsonaro configura violação aos direitos humanos. "A condução da pandemia levada a efeito pelo representado (Bolsonaro) revela uma sádica estratégia federal de disseminação da covid-19, um ataque sem precedentes aos direitos humanos no Brasil", diz trecho da representação.

Todos os apontamentos que constam na representação são feitos com base em informações de especialistas, reportagens, publicações sobre a pandemia e declarações de Bolsonaro desde o início do ano passado.

Após apresentar os argumentos, a Avico pede que a PGR adote providências para que uma denúncia seja oferecida ao STF para que Bolsonaro "seja processado criminalmente" pelos crimes: perigo para a vida ou saúde de outrem; subtração, ocultação ou inutilização de materiais de salvamento; infração de medida sanitária preventiva; emprego irregular de verbas ou rendas públicas e prevaricação.

Em nota à BBC News Brasil, a PGR afirma que a representação está em andamento sob sigilo. "Desta forma, não temos acesso a detalhes sobre a tramitação", informa a assessoria de imprensa do órgão. Não há prazo para que a Procuradoria-Geral da República decida se oferecerá denúncia ao STF contra Bolsonaro ou se arquivará o pedido da Avico.

Medidas sobre a condução da pandemia

O presidente da Avico afirma que a representação criminal é apenas o início das medidas que serão tomadas pela associação contra Bolsonaro ou outras autoridades que possam ter colaborado para a explosão de casos de covid-19 no país.

"Achamos que nosso primeiro ato deveria ser contra o Bolsonaro, porque ele está sabotando as ações de enfrentamento à pandemia. Em vez de ajudar a população, ele está ajudando o vírus. Muitas pessoas nos procuraram, desde o início, para perguntar quando a Avico faria algo contra o Bolsonaro, porque diziam que ele é o responsável por muitas mortes no país", afirma Bernardes.

"Agora estamos em um processo de construção de ações coletivas de indenização contra a União, tanto para familiares de vítimas da covid-19 quanto para sobreviventes", acrescenta o advogado.

Além da medida protocolada pela Avico, a PGR já recebeu outras representações criminais contra Bolsonaro, por entidades que também pedem que ele seja responsabilizado pela conduta na pandemia. Uma delas é da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que, segundo a assessoria de imprensa da Procuradoria-Geral da República, também segue em sigilo.

A principal apuração sobre a conduta do governo federal na pandemia atualmente é a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid-19, que tem ouvido pessoas ligadas ao governo federal e cientistas.

Para Bernardes, a medida protocolada pela Avico na PGR tem um valor simbólico por se tratar de um ato feito por uma associação que representa sobreviventes e familiares de vítimas da covid-19.

"É realmente importante para a gente fazer isso, porque mostra que não somos sujeitos passivos desses desmandos no país. Mostra que a sociedade civil também pode ser protagonista nessa luta. Queremos que a sociedade civil seja ouvida e protagonista no enfrentamento à pandemia. E me parece que enfrentar a pandemia é sinônimo de enfrentar esse governo", assinala o advogado.

Vinícius Lemos - @oviniciuslemos, da BBC News Brasil em S. Paulo, em 24.06.21

Se ritmo de vacinação não mudar, Brasil pode ter 211 mil novas mortes até fim do ano, diz estudo

Pesquisadores constataram que, se Brasil mantiver taxa de vacinação atual, de 360 mil pessoas por dia, haverá entre 188 mil a 211 mil novas mortes por covid até o fim do ano, dependendo da eficácia do imunizante (Mário Tama / Getty Images)

Se o ritmo de vacinação atual não mudar, o Brasil pode ter até 211 mil mortes por covid do fim de junho à virada do ano, diz um novo estudo realizado por pesquisadores brasileiros.

Atualmente, o país vacina, em média, 360 mil pessoas por dia. Em contrapartida, se o Brasil quadruplicar a imunização (para 1,44 milhão), cerca de 50 mil vidas seriam salvas, acrescenta a pesquisa.

Os cálculos foram feitos por especialistas em Ciência da Computação das universidades de São João del-Rei (UFSJ) e Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais.

Eles usaram modelos matemáticos levando em conta variantes como casos ativos, taxa de imunização, eficácia das vacinas, mortalidade entre vacinados e não vacinados e transmissão do vírus.

A partir daí, simularam três cenários:

Cenário 1: Taxa de vacinação fixa de 360 mil por dia e eficácias de 50%, 75% e 90%.

Cenário 2: Taxa de vacinação fixa de 720 mil por dia e eficácias de 50%, 75% e 90%.

Cenário 3: Taxa de vacinação fixa de 1,44 milhão por dia e eficácias de 50%, 75% e 90%.

"Em todas as simulações realizadas, consideramos que toda vacina leva 35 dias para desencadear a resposta imune e é considerada na taxa de vacinação diária somente a quantidade de aplicações de primeira dose. A população máxima a ser vacinada é limitada em 160 milhões, o que corresponde ao número de pessoas aptas à imunização, de acordo com o Programa Brasileiro de Imunização", dizem os pesquisadores.

E constataram que, se o Brasil mantiver a taxa de vacinação atual, de 360 mil pessoas por dia, haverá entre 188 mil a 211 mil novas mortes por covid até o fim do ano, dependendo da eficácia do imunizante. No primeiro caso, 90%. No segundo, 50%.

A Coronavac, a vacina mais prevalente no Brasil, tem uma eficácia geral de 50,38%, segundo o Instituto Butantan, de São Paulo.

Já se o país duplicar a taxa de vacinação atual, para 720 mil pessoas por dia, o modelo prevê 23.467 mortes a menos (redução de 23%), quando comparado com a taxa de vacinação do Cenário 1.

E essa taxa fosse quatro vezes maior, a simulação prevê que o Brasil poderia reduzir o número de óbitos em 28%, com 45.765 vidas salvas até o fim do ano.

"Se considerarmos somente um aumento na eficácia da vacina (de 75% para 90%), e mantivermos a taxa em 360 mil por dia, teríamos 6.476 óbitos a menos no final dos 365 dias".

Segundo os pesquisadores, no atual ritmo de vacinação, a covid não seria totalmente controlada até o fim do ano, "independentemente da eficácia da vacina, pois o número de casos ativos ainda seria significante (199.383 casos ativos, no melhor cenário)".

Covid já matou mais de 500 mil no Brasil (Getty Images)

"Além disso, com essa taxa não seria atingido o objetivo de 160 milhões de pessoas imunizadas até dezembro, como anunciado pelo atual ministro da Saúde, em 11/06/2021", acrescentam.

Eles concluem que "nesse contexto, as projeções sugerem que a taxa de vacinação continua sendo mais importante do que a eficácia da vacina para mitigar a pandemia e, principalmente, reduzir o número de óbitos".

"Porém, os números projetados de mortes ao longo do ano são muito altos em qualquer cenários estudado, os quais simulam apenas o impacto da vacinação no enfrentamento da pandemia. Assim, nosso estudo sugere que mesmo com a vacinação, as medidas não farmacológicas, como distanciamento social e uso de máscaras, são de fundamental importância para prevenir a propagação da doença e diminuir o número de mortes ao longo do ano".

O Brasil superou a marca de 500 mil mortes por covid-19 em 19 de junho. Atualmente, é o segundo país do mundo com o maior número de óbitos pela doença, atrás apenas dos EUA, com cerca de 600 mil mortos.

Projeções indicam, no entanto, que o Brasil deve superar os EUA nos próximos meses.

Luis Barrucho,da BBC News Brasil em Londres, em 24.06.21, às 17:17hs

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Como privatização da Eletrobras deve encarecer cerveja, carne e leite

Medida provisória aprovada pelo Congresso gera R$ 400 bilhões em custos aos consumidores, estima Fiesp; valor deve impactar custos da indústria

Cerveja, carne, leite e material de construção mais caros. E além de tudo isso, uma conta de luz ainda mais salgada do que a atual.

Segundo representantes da indústria e de entidades de defesa do consumidor, esses podem ser alguns dos efeitos da MP (medida provisória) de privatização da Eletrobras, aprovada na segunda-feira (21/06) pelo Congresso e que agora aguarda sanção presidencial - o que deve acontecer num prazo de até 15 dias, que vence em 6 de julho.

O governo contesta as estimativas dos especialistas e afirma que a desestatização da gigante do setor elétrico pode reduzir a conta de luz entre 5% e 7% já a partir do próximo ano.

Segundo o secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord, a economia seria possível com a destinação de R$ 48 bilhões para atenuar as tarifas dos consumidores por meio da CDE (Conta de Desenvolvimento Energético). O dinheiro seria aportado ao longo dos anos, após a privatização da empresa.

O Ministério da Economia estima que a desestatização pode gerar R$ 100 bilhões aos cofres públicos, sendo R$ 20 bilhões numa oferta primária de ações e outros R$ 80 bilhões em potenciais ofertas secundárias, que aproveitariam o aumento de valor de mercado da empresa. Segundo Mac Cord, o valor faria da operação a "maior privatização já vista no país".

A expectativa é de que essa oferta primária - que representará a privatização da empresa, ao reduzir a parcela do governo no capital dos atuais 61% para 45% - seja concluída até fevereiro de 2022.

Para os representantes da indústria e dos consumidores, no entanto, os potenciais benefícios da arrecadação de recursos com a venda das ações serão mais do que compensados pela alta de custos resultantes de quatro pontos problemáticos da MP de privatização.

Entenda esses quatro pontos e como isso vai chegar no seu bolso.

Com a privatização, energia atualmente vendida mais barata pela Eletrobras passará a ser comercializada a preços de mercado. (CRÉDITO,ARQUIVO/AGÊNCIA BRASIL)

1. Venda de energia mais cara após a privatização

A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) estima que a MP de privatização da Eletrobras, da forma como foi aprovada pelo Congresso, deve gerar um custo adicional de R$ 400 bilhões aos consumidores ao longo dos próximos 30 anos.

A maior parcela desse custo, de R$ 300 bilhões nos cálculos da entidade, será resultado da venda a preços de mercado de uma energia comercializada atualmente mais barata pela Eletrobras, devido ao fato de ser produzida por usinas hidrelétricas antigas, cujos investimentos já foram amortizados ao longo dos anos de operação.

"O projeto de capitalização da Eletrobras foi apresentado em 2017, ainda no governo Michel Temer [MDB]", lembra Carlos Cavalcanti, diretor do departamento de Infraestrutura da Fiesp.

"Nesse projeto, a atratividade para o novo investidor - o bônus, o prêmio que está prometido para ele - é a chamada 'descotização' das usinas que tiveram seu preço de geração reduzido em 2013", explica o representante do setor industrial.

No ano anterior àquele, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou uma medida provisória (MP 579) que causou grandes desequilíbrios no setor elétrico. Por outro lado, essa MP resultou na redução do custo de produção de energia de um grupo de hidrelétricas da Eletrobras para cerca de R$ 100 por MWh (megawatt-hora), comparado a R$ 200 por MWh das usinas que vendem energia a preços de mercado.

"A 'descotização' significa vender essa energia a preços de mercado, então ela vai passar de R$ 100, para R$ 200", diz Cavalcanti. "Estão tentando convencer o consumidor de que a hora que você aumenta o preço de R$ 100 para R$ 200, vai abaixar o valor da energia elétrica. Não há matemática no mundo que sustente isso.

Contratação de termelétricas de regiões onde não há produção de gás vai exigir construção de gasodutos e linhas de transmissão, cujos custos irão para a conta de luz (CRÉDITO,AGÊNCIA PETROBRAS/DIVULGAÇÃO)

2. Obrigação de construir termelétricas a gás onde não há oferta do combustível

Um segundo fator que deve gerar custos adicionais para os consumidores foi uma obrigação criada pelos parlamentares na tramitação da MP de contratação pelo governo de 8 GW (gigawatts) em termelétricas a gás natural, que devem ser instaladas em sua maioria em Estados das regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste.

É o que se chama em política de "jabuti" - uma norma incluída na tramitação de um projeto de lei ou medida provisória que não tem relação com o tema em discussão. O termo tem origem no ditado popular "jabuti não sobe em árvore", que se refere a fatos que não acontecem de forma natural.

"Houve uma interferência direta do Legislativo no planejamento energético", avalia Clauber Leite, coordenador do programa de Energia e Sustentabilidade do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

"No planejamento, técnicos fazem estudos para atender a demanda com o menor preço possível, usando mecanismos como leilões, que consideram as vocações de cada região do país. Isso é feito através da EPE, a Empresa de Pesquisa Energética", explica. "O que aconteceu na MP foi uma reserva de mercado que desconsidera qualquer planejamento."

Pela MP aprovada, as novas termelétricas vão operar na base do sistema, isto é, de forma permanente e não apenas quando as demais fontes estiverem gerando de forma insuficiente. E com uma inflexibilidade de 70%, o que significa que elas vão operar obrigatoriamente 70% do tempo, mesmo que outras fontes mais baratas e limpas possam atender a demanda num determinado momento.

Além disso, como a produção de gás natural do Brasil vem principalmente do pré-sal, em alto mar, será necessário construir gasodutos e linhas de transmissão para integrar essas usinas ao sistema. A Fiesp estima que a construção dessa infraestrutura pode gerar um custo adicional de R$ 50 bilhões aos consumidores em 20 anos.

Na terça-feira (22/06), o secretário Diogo Mac Cord argumentou que o preço de geração da energia nessas usinas é mais barato do que o de usinas a óleo diesel e que, por conta disso, essa medida também contribuirá para reduzir o valor da conta de luz.

MP cria reserva de mercado para pequenas centrais hidrelétricas, que produzem energia mais cara do que outras fontes renováveis. (CRÉDITO,DIVULGAÇÃO/AGÊNCIA BRASIL)

Outro "jabuti" incluído pelos parlamentares na MP da Eletrobras foi a obrigação de contratar PCHs (pequenas centrais hidrelétricas), usinas de pequeno porte e alto custo de geração, devido à ausência de ganhos de escala.

"A obrigatoriedade de contratação de pequenas centrais hidrelétricas vai contra toda a lógica do setor elétrico: a fonte é a menos competitiva dentre as renováveis, pressionando os custos finais da energia", escreveu o Idec, em nota divulgada em meados de junho. "Não há, portanto, qualquer razão técnica, econômica e social para tratamento diferenciado para essa tecnologia."

A Fiesp estima que a reserva de mercado para PCHs representa quase R$ 30 bilhões de custos adicionais em 20 anos, na comparação com outras renováveis mais competitivas.

4. Renovação de contratos de eólicas incentivadas

Por fim, a quarta medida que deve gerar custos adicionais para os consumidores foi a prorrogação de contratos de energia de eólicas incluídas no Proinfa (Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica).

"Essas usinas tiveram subsídio durante 20 anos e os contratos estão sendo prorrogados ao custo de energia de um leilão de usinas novas. Nesse tipo de leilão, as usinas ainda precisam ser construídas, então o custo da energia contempla a amortização dos investimentos", explica Clauber Leite, do Idec.

Assim, pelo que foi aprovado na MP, os contratos dessas usinas, que são antigas e já tiveram seus custos de instalação amortizados, estão sendo prorrogados a esse preço mais alto.

"Isso vai encarecer a tarifa para os consumidores em geral", avalia o especialista.

A Fiesp estima que o custo adicional com essa prorrogação do subsídio será de cerca de R$ 20 bilhões em 20 anos.

Custo da energia elétrica representa 48% do preço do leite, estima Abrace 

Mas como tudo isso chega no preço da cerveja, da carne e do leite?

Todos esses bilhões em custos adicionais vão encarecer a conta de luz dos consumidores nos próximos anos, explicam os especialistas.

Mas o efeito não para por aí. Isso porque a energia elétrica representa uma parte relevante dos custos da indústria e do setor de serviços.

Assim, esse aumento de preço da energia deverá também ser repassado aos produtos que consumimos, assim como acontece quando o diesel e o gás natural são reajustados.

Segundo levantamento da Abrace (Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres), o custo com energia elétrica representa 48% do preço do leite, 34% do valor da carne, 28% do que pagamos na cerveja e 10% do gasto em materiais de construção e açúcar.

"Este acréscimo de custo pode representar, por exemplo, um aumento de 10% no leite e 7% na carne para todos os brasileiros", estimou a Abrace, em comunicado publicado em maio.

Esse impacto se adiciona a um cenário que já é de pressão nas tarifas, com reajustes que podem chegar a 20% ou 30% em 2022, por causa da situação dos reservatórios em meio à crise hídrica e de aumentos que foram evitados pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) em meio à pandemia, alertou ainda a entidade.

Dois terços do impacto da alta de preços da energia elétrica se dá nos produtos ou serviços consumidos pela população, estima o setor produtivo.

Por exemplo, o vergalhão de aço, o cimento e o vidro, usados na reforma de residências, vão sofrer os efeitos desse aumento de custos. O frango congelado e a carne, que usam muita energia em seus processos produtivos, também devem ficar mais caros. O salão de beleza, com seus diversos equipamentos elétricos, pode ter de cobrar mais dos consumidores.

Ou seja, o impacto indireto é maior do que o efeito direto sobre as contas de luz.

Em fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro entregou pessoalmente ao Congresso a MP de privatização da Eletrobrás (CRÉDITO,MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL)

E há chance disso ser revertido na sanção presidencial?

Os especialistas acreditam que não, por dois motivos.

O primeiro deles é que os "jabutis" incluídos pelos parlamentares na medida provisória serviram de moeda de troca para que ela fosse aprovada rapidamente no Congresso.

"A MP só avançou por causa dos jabutis, então foram os jabutis que carregaram ela nas costas, do contrário, ela não teria sido aprovada", diz o representante do Idec.

Um segundo ponto é que a MP foi redigida pelo Congresso de forma a, na prática, impossibilitar qualquer veto presidencial.

"O artigo 1 da MP basicamente inviabiliza o Executivo de vetar qualquer coisa ali. Ele foi construído de uma forma que, se for vetado, inviabiliza a privatização, mas ele contém também a maioria desses jabutis", explica o especialista.

"Então a MP foi construída de uma forma proposital para que não haja veto. O que pode acontecer é uma judicialização", avalia Leite.

Desde 2015, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que o "contrabando legislativo" na forma de jabutis é inconstitucional, o que dá espaço para que os partidos recorram da MP de privatização da Eletrobras na corte superior.

Representantes dos trabalhadores da Eletrobras lamentam o açodamento para aprovação da proposta em meio à crise sanitária.

"Nesse contexto de pandemia, qual é a relevância e a urgência para privatizar a Eletrobras?", questiona Nailor Gato, funcionário da Eletronorte e coordenador do Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE).

"Temos 14 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados, milhões sem alimento e sem vacina, em meio à maior crise sanitária da história do país. Faltou debate com a sociedade", avalia o sindicalista.

Thais Carrança - @tcarran, da BBC News Brasil em São Paulo - 23.06.21 às 04:45hs

Brasil ultrapassa Índia e volta a ser líder mundial em mortes diárias por coronavírus

Fiocruz aponta que 18 Estados e Distrito Federal estão com taxas de ocupação de UTIs acima de 80%, nível considerado crítico pela instituição; oito deles estão acima de 90%

Covas sendo abertas em cemitério de Manaus (CRÉDITO,REUTERS)

Em meio ao avanço da terceira onda da pandemia, o Brasil ultrapassou a Índia e voltou à liderança do número de mortes diárias por covid-19 registradas, em média. São mais de 2.000 óbitos registrados por dia.

É a terceira vez que o Brasil ocupa o topo desse ranking durante a pandemia. Nas duas primeiras, isso durou quase dois meses: do início de junho ao fim de julho de 2020 e do início de março ao fim de abril de 2021.

Na terceira e atual, o país latino-americano voltou à liderança em 20/06, com 2.051 registros de mortes diárias, em média. A Índia registrou naquele dia 1.753 mortes, menos da metade de seu recorde de 4.190 óbitos no fim de maio.

Quando a comparação leva em conta o número de mortes por 1 milhão de habitantes, o Brasil aparece em sétimo lugar, segundo ranking elaborado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido. Está atrás de Paraguai, Suriname, Seychelles, Colômbia, Argentina e Uruguai.

Atualmente, o Brasil está entre os 10 países com mais mortes por covid em qualquer tipo de comparação.

E a situação vem piorando nas últimas semanas. Diversos Estados estão com UTIs lotadas e filas crescentes por vagas, e o número de óbitos tem crescido na maioria dessas localidades, principalmente entre pessoas com menos de 60 anos.

A última vez que o país havia registrado média de mais de 2.000 mortes por dia foi no início de maio, quando a pandemia recuava em território nacional. A tendência de queda começou em abril, quando o país bateu recorde de 3.068 mortes por dia, e durou até a primeira semana de junho. Desde então a pandemia voltou a avançar no país.

Atualmente, mais de 500 mil pessoas morreram da doença no país, atrás apenas dos Estados Unidos, com mais de 600 mil mortes.

Mas a tendência é que o Brasil ultrapasse os EUA nos próximos meses porque o país norte-americano tem conseguido controlar o avanço da pandemia e ampliado a vacinação de sua população.

Especialistas brasileiros apontam, no entanto, que o Brasil está mais perto de se tornar líder no ranking mundial de mortes do que parece.

Análises apontam que em meados de junho o Brasil já pode ter ultrapassado a marca de 600 mil mortes por casos confirmados ou suspeitos de covid-19, 100 mil a mais que os dados do Ministério da Saúde. Essa diferença ocorre por causa da demora para inserir dados das mortes no sistema nacional. A correção desse atraso permite, portanto, "prever o agora" (nowcasting) e ter uma imagem menos distorcida da real situação atual do país.

Inverno pode agravar situação, diz Fiocruz

Em seu boletim mais recente sobre a pandemia, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) afirmou que 18 Estados e o Distrito Federal estão com taxas de ocupação de UTIs acima de 80%, nível considerado crítico pela instituição. Oito deles estão acima de 90%.

Para a Fiocruz, o início do inverno no hemisfério Sul tende a agravar a situação do país, dado o comportamento sazonal de doenças respiratórias graves. Ou seja, mais pessoas em lugares fechados e condições climáticas que favorecem o espalhamento do coronavírus.

"O sistema de saúde ainda apresenta grande sobrecarga para o cuidado de alta complexidade à covid-19, estando sob risco de não ter capacidade de responder a eventuais aumentos na demanda por cuidados", informou a instituição.

A idade média dos pacientes que morrem por casos confirmados de covid-19 tem caído. No início da pandemia, era de 62 anos. Atualmente, gira em torno de 52 anos.

A Fiocruz lembra que essa mudança está relacionada, entre outros motivos, ao avanço da vacinação nas faixas etárias mais velhas, mas o nível de vacinação completo da população inteira ainda é muito baixo: 15%. Esse patamar está bem distante do patamar estimado para controlar a transmissão do vírus, de 75%.

Mortes por covid na pandemia inteira em números absolutos

Além disso, a instituição ressalta que, para além da vacinação dos mais velhos, os números absolutos de internação e morte dos mais jovens têm crescido ao redor do país.

"Possivelmente o cenário atual de rejuvenescimento prosseguirá e poderá perpetuar um cenário obscuro de óbitos altos até que este grupo etário esteja devidamente coberto pela vacina."

A proporção de mortes por covid daqueles acima de 90 anos caiu 70%. Por outro lado, cresceu 189% entre pessoas de 20 a 29 anos.

Enquanto a vacinação não chega ao patamar ideal, a Fiocruz ressalta a importância de medidas como uso de máscaras profissionais (N95 ou PFF2), evitar espaços fechados e distanciamento social sempre que possível.

BBC News Brasil, em 23.06.2021

terça-feira, 22 de junho de 2021

Pressionado pelas ruas, Bolsonaro diz que estar até agora à frente do governo é ‘milagre’

Em conversa com apoiadores, presidente também afirma que, se depender dele, 'todo mundo que quiser' terá arma no Brasil

Dois dias depois de manifestações de rua em defesa do impeachment, o presidente Jair Bolsonaro classificou como “milagre” o fato de ainda estar à frente do governo. Em conversa com apoiadores diante do Palácio da Alvorada, nesta segunda-feira, 21, Bolsonaro mais uma vez distorceu fatos e disse existir uma “jogada política” para inflar o número de mortes causadas pela pandemia de covid-19, com o objetivo de provocar desgaste à sua gestão.

“As mortes parecem que interessam para a TV Funerária”, criticou o presidente, numa referência às mais de 500 mil vidas perdidas pelo novo coronavírus. “A TV Funerária entrou em êxtase quando atingiu as quinhentas mil mortes”, emendou ele, numa referência à Rede Globo.

Presidente disse ter certeza de que entregará o Brasil 'melhor'. Foto: Gabriela Biló/Estadão

Horas antes, em Guaratinguetá (SP), Bolsonaro havia retirado a máscara de proteção facial enquanto dava entrevista e, aos gritos, mandou a repórter Laurene Santos, da TV Vanguarda, afiliada da Rede Globo, calar a boca. Disse ser  alvo de “canalhas” e pediu “pergunta decente”, mostrando descontrole.

No fim do dia, já em Brasília, Bolsonaro afirmou a eleitores que o aguardavam na entrada do Alvorada, sede da residência oficial, que continua no Palácio do  Planalto por milagre. “Cada um tem a religião que quer, né? Para mim, são dois milagres: estar vivo e estar eleito. E outro, o terceiro: estar no mandato ainda”, destacou.

Em campanha pela reeleição, Bolsonaro disse ter certeza de que entregará o Brasil “melhor”. “Quando, eu não sei. Vocês que vão dizer se vai ser final de vinte...”, comentou, sem completar a frase. Pesquisas recentes de diferentes institutos indicam queda de popularidade de Bolsonaro, que tem como principal adversário o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Serial killer

Um apoiador citou o caso do criminoso Lázaro Barbosa, conhecido como “serial killer do Distrito Federal”, que a Polícia tenta capturar há duas semanas, sem sucesso. “Parece que ele tentou invadir uma casa aí, não entrou porque o cara estava armado. Não é o Estatuto do desarmamento que vai dar tranquilidade para você”, afirmou Bolsonaro. “No que depender de mim, todo mundo que quiser vai ter arma. Os vagabundos têm”.

O presidente também mencionou reportagem do Estadão mostrando que o problema de muitos que perderam o emprego na pandemia se agravou com a falta de merenda para os filhos, com as escolas fechadas. “De vez em quando, eles escrevem a verdade”, ironizou. “Tem muito moleque – a gente sabe disso – que vai para a escola atrás da merenda”.

Durante a conversa, outro eleitor disse a Bolsonaro que, apesar das críticas, ele não mudou o estilo nem assumiu o “politicamente correto” apenas para agradar. “Olha, se servir para alguém aí...”, iniciou o presidente, dirigindo-se aos apoiadores. “Eu fiquei 28 anos na política (como deputado federal). E o caminho para você perder o mandato é querer agradar a todo mundo. É igual em casa. Se disser ‘sim’ para o outro, 100% do tempo, não dá certo”.

Rafael Beppu, Gustavo Cortês e Pedro Caramuru, Brasília e São Paulo, em 22 de junho de 2021


Bandeira nacional não é exclusiva dos atos golpistas, nem a do PT é a única nos atos de oposição

Manifestações contra o governo também mostram faixas, cartazes e manifestantes em cores neutras ou ostentando o verde e amarelo, que é de todos, não de bolsonaristas nem de petistas. Leia o artigo de Eliane Cantanhede, publicado hoje n'O Estado de S. Paulo. Imperdível!

Manifestação. Grupo anti-Bolsonaro, durante ato em junho Foto: Tiago Queiroz / Estadão

As ruas não estão mais dominadas só por atos golpistas, que a pretexto de apoiar o presidente Jair Bolsonaro atacam o Supremo, o Congresso e a mídia e pedem a volta do regime militar. As ruas, agora, voltaram a ter manifestações que, além de serem contra o presidente Jair, defendem a democracia, as vacinas e a vida. E com bons motivos.

Os dois grupos promovem aglomerações, mas um segue o “mito”, com muitos sem máscara, e o outro segue a ciência, como todo mundo de máscara, sim, senhor. Mas há duas grandes novidades: a bandeira verde e amarela do nosso Brasil não é mais exclusividade dos atos golpistas e as bandeiras vermelhas não são mais as únicas nas manifestações de oposição a Bolsonaro.

As imagens das multidões de sábado, em São Paulo, Brasília e por aí afora, são salpicadas de vermelho do ex-presidente Lula, dos sindicatos e movimentos sociais ligados ao PT, mas elas mostram também faixas, cartazes e manifestantes em cores neutras ou ostentando o verde e amarelo, que é de todos, não de bolsonaristas nem de petistas.

Não é correto menosprezar os atos pró-Bolsonaro e antidemocracia, mas também não se pode deixar correr solta a fake news que apontava 1,3 milhão de pessoas na “motociata” em São Paulo. Pela polícia, eram uns 12 mil e, pelo pedágio, pouco mais de 2 mil. Seja quantos forem, o fato é que tinha bastante gente, mas essa gente não é a maioria.

Do outro lado, o desafio é ampliar o leque de adesões, replicando o principal e mais consequente movimento de massas deste País, as “diretas, já”. A esquerda, mais organizada, sai na frente, mas não é dona das manifestações, da oposição, nem da condenação à ação nefasta na pandemia devastadora.

Se as manifestações forem “do PT”, milhares que são contra Bolsonaro, mas não votam em Lula, ficarão em casa. Vão da centro-esquerda até a direita que se recusa a ser confundida com esta direita absurda no poder, anticiência, antiambiente, anticultura, anti-educação, antivacina, antimáscara. E merece espaço para protestar.

Essa maioria silenciosa não engole a provocação do presidente ao atacar uma jornalista e a mídia nacional ontem, dois dias depois da marca dos 500 mil mortos: “Tudo o que eu falei sobre a covid, infelizmente para vocês, deu certo”. É uma loucura. Bolsonaro acorda todo dia ruminando: “como vou irritar o povo brasileiro hoje?” E seu estoque é inesgotável: “gripezinha”, jet ski nos cem mil mortos, “não sou coveiro”, a pandemia “no finalzinho” em novembro, condenar a máscara, processar governadores por isolamento social, negar o número de mortos...

Tudo isso é chocante, patológico, mas nada é mais irresponsável do que o desleixo, a ignorância e a péssima gestão das vacinas, que poderiam ter começado a chegar em dezembro, mas só engrenaram, mesmo assim aos solavancos, depois de o governador João Doria e o Butantan deixarem o governo federal comendo poeira.

Os vídeos de Bolsonaro combatendo a vacina, em vez de combater a pandemia, são incontestáveis. Ele atacou a “vacina chinesa do Doria” e desprezou a Pfizer, mas comprou, rapidinho, e bem mais caro, a Covaxin. É esquisito, como a implicância. Tanto que o general Luiz Eduardo Ramos tomou a vacina escondido do chefe: “Eu quero viver, pô. Se a ciência e a medicina ‘tão’ dizendo que é a vacina, quem sou eu para me contrapor?”. E quem é Jair Bolsonaro para se contrapor?

Ao dizer que tudo o que falou “deu certo”, o presidente mobiliza a grande massa indignada para mais e mais protestos. Como “deu certo”? Os 500 mil mortos são a prova macabra de que ele falou tudo errado, fez tudo errado e colhe o que plantou. E, como a cloroquina não colou, a nova obsessão é o voto impresso. Assim como ameaça a vida, ameaça a democracia.

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo, em 22 de junho de 2021 | 03h00.

Um Partido Militar

A participação dos militares no governo é movimento consciente e organizado, diz coronel. Tema para o embaixador Rubens Barbosa.

O papel das Forças Armadas e a relação entre civis e militares são tópicos de grande atualidade. Acontecimentos recentes mostram a delicadeza do assunto. Nos EUA o poder civil (presidente Trump) quis envolver os militares na política e na França militares da reserva pediram abertamente a seus colegas da ativa que derrubassem o presidente Macron. Na França, a ministra da Defesa tomou medidas para sufocar o início de rebelião dos militares da reserva. Nos EUA, o chefe do Estado-Maior conjunto das Forças Armadas fez pronunciamento dizendo que os militares não participam da política e se dissociou publicamente de Trump.

Em artigo no número atual da revista Interesse Nacional (www.interessenacional.com.br), o coronel da reserva Marcelo Pimentel oferece uma nova visão sobre o papel das Forças Armadas no atual cenário político ao descrever a participação dos militares no governo como um movimento consciente e organizado. Pimentel indica que existe um Partido Militar no governo. “A direção é composta por núcleo restrito que controla, dirige, orienta e gerencia o governo, o presidente e as próprias narrativas, sempre no sentido da facilitação do objetivo comum a todo partido: a conquista do poder (já alcançado) e sua manutenção (em processo)”. O Partido Militar não pode ser confundido com mera “ala militar” em oposição a uma “ala ideológica” no governo. “Há dois anos e meio, o Brasil possui, de fato, um governo militar controlado por partido informal que manobra os processos narrativos para ocultar a operação de seu mais evidente agente – o capitão”. “Embora assuma papel central-catalisador nos processos de politização/militarização que integram o fenômeno, o presidente não é figura dirigente e deliberante no Partido”.

Nem sempre é assim, mas essa interpretação explicaria a crescente participação de militares da ativa e da reserva no governo (mais de 6 mil, segundo o TCU), com interesses concretos que buscariam ser preservados, e a politização das Forças Armadas (14 dos 17 generais de Exército que integravam o Alto Comando do Exército em 2016 ocupam cargos políticos no governo). Todos com “autorização dos comandantes das três forças para ser nomeado ou admitido para cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, inclusive da administração indireta”.

A influência dos militares no governo justificaria a atitude presidencial de ressaltar que os militares estão engajados no seu projeto político (“meus generais”, “minhas Forças Armadas”, “os militares é quem decidem como o povo vai viver”). Explicaria também a observação de Bolsonaro ao general Villas Bôas “o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, a designação e a saída de um oficial-general da ativa para o Ministério da Saúde, a não punição desse general, que participou de evento político, e, até aqui, de sargento que, em encontro virtual, apoiou o governo. A politização das Polícias Militares, como se viu em diversos incidentes estaduais, culminando com a violenta repressão de uma manifestação pacífica no Recife, e a modificação da legislação para permitir armar a população, como foi dito publicamente, passaram a representar preocupação para o Partido Militar por fugirem de seu controle imediato.

A politização dos militares e a militarização da política podem criar uma divisão nas Forças Armadas, pela erosão da hierarquia e da disciplina, com consequências imprevisíveis, como assinalaram o ex-ministro Raul Jungmann e, principalmente, o general Santos Cruz. A substituição do ministro da Defesa e dos três comandantes das Forças singulares pode ser vista como uma atitude de cautela em relação à eventual divisão dentro do Partido Militar.

Apesar das informações de que os militares não admitiriam a volta de Lula e das declarações presidenciais de que não aceitará o resultado das eleições, que seriam fraudadas sem o voto impresso, vozes autorizadas garantem que as Forças Armadas, como instituição de Estado, não apoiarão nenhuma ameaça à ordem democrática e respeitarão a Constituição. Caso o Partido Militar pretenda manter-se no poder, com ou sem o atual presidente, como observou Pimentel, coloca-se um grande desafio para a sociedade civil. Cabe ao Legislativo e ao Judiciário exercerem papel mais ativo nas questões que dizem respeito à manutenção da ordem constitucional, da democracia e da estabilidade institucional pelo estreitamento da relação civil-militar com o lado que publicamente se coloca contra a politização das Forças Armadas.

O Congresso daria relevante contribuição para reafirmar a supremacia do poder civil se decidisse examinar questões que dizem respeito à participação de militares da ativa no Executivo e sobre a designação de ministro da Defesa. A indicação de militares da ativa para cargos no governo deveria seguir norma pela qual qualquer representante das Forças Armadas e da Polícia Militar que aceitar convite para integrar o Executivo, em qualquer nível, deveria passar automaticamente para a reserva. Por outro lado, a chefia do Ministério da Defesa, normalmente civil, poderia ser ocupada por oficial militar se o indicado estiver na reserva por pelo menos sete anos e, caso não preencha esse requisito, com a expressa autorização do Congresso, como ocorre nos EUA.

Rubens Barbosa, o autor deste artigo, é Presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional e membro da Academia Paulista de Letras. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 22 de Junho de 2021.

500 mil mortos

Bolsonaro não se sentiu obrigado a dirigir nenhuma palavra de conforto e pesar quando a terrível marca de 500 mil mortos foi atingida. É como se as vítimas não fossem dignas de luto

Há algo de profundamente perturbador quando parte da sociedade, estimulada pela desumanidade do governo de Jair Bolsonaro, considera natural a morte de meio milhão de conterrâneos na pandemia de covid-19. O choque é ainda maior quando se constata que muitos desses brasileiros mortos poderiam ter sobrevivido, não fosse a inépcia criminosa do governo, resultado direto do comportamento irresponsável do presidente.

Bolsonaro não se sentiu obrigado a dirigir nenhuma palavra de conforto e pesar quando a terrível marca de 500 mil mortos foi atingida. É como se essas vítimas não fossem dignas de luto.

O ministro das Comunicações, Fábio Faria, foi didático ao explicar por que não se deveria lamentar a morte de 500 mil brasileiros. No Twitter, escreveu: “Em breve vocês verão políticos, artistas e jornalistas ‘lamentando’ o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do ‘quanto pior, melhor’. Infelizmente, eles torcem pelo vírus”.

Na lógica bolsonarista, portanto, comover-se ou revoltar-se com a morte de meio milhão de brasileiros equivale a “torcer pelo vírus” contra o Brasil. O importante, segundo o sequaz do presidente, é “comemorar” vacinas que Bolsonaro sabotou (e continua a sabotar, duvidando de sua eficácia) e os milhões de curados de uma doença cuja letalidade média é de 1% no mundo, mas que no Brasil superou 4% em março, segundo a Fundação Oswaldo Cruz. Ou seja, o Brasil do ministro Fábio Faria poderia ter mais vacinas e menos óbitos, mas escolheu deliberadamente ter menos imunizantes e incitar seus cidadãos a se exporem a uma doença fatal.

Ao menosprezar os que morreram, o governo os trata como fracos que faleceriam de qualquer maneira, seja pela idade, seja por terem “comorbidades”. Em março passado, quando mais uma vez estimulou os brasileiros a ignorarem medidas de isolamento social, Bolsonaro disse que “temos que enfrentar os problemas, respeitar obviamente os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades”. A respeito dos mortos, declarou na mesma ocasião: “Chega de frescura, de mimimi! Vão ficar chorando até quando?”.

Depreende-se que, para Bolsonaro e sua grei, a covid deve servir para realizar uma espécie de “seleção natural”: os que sobrevivem à pandemia se provam fortes o bastante para integrar a comunidade nacional idealizada pelo bolsonarismo; já os que morrerem não passaram no teste.

A isso se dá o nome de darwinismo social, ideologia que parece nortear Bolsonaro desde sua posse, influenciando ministros como Fábio Faria e Paulo Guedes – aquele para quem há brasileiros que passam fome porque a classe média desperdiça comida, e não em razão do desemprego que o governo nada faz para mitigar.

Ou seja, os delitos do governo Bolsonaro na pandemia não são somente de ordem jurídica ou administrativa, mas sobretudo moral. É como se o presidente não reconhecesse os milhares de mortos como cidadãos do país que ele julga governar.

Nessa nação delirante, ganha cidadania plena somente quem devota fé absoluta em Bolsonaro – a ponto de tomar remédios sem eficácia só porque foram propagandeados pelo presidente e de deixar de tomar vacinas eficazes só porque foram desacreditadas por Bolsonaro.

Para os “fortes” do país de Bolsonaro, o uso de máscara e as restrições de movimento, essenciais para conter a disseminação do coronavírus, são atentados às “liberdades” de que se julgam titulares e que estão acima do direito à saúde e à vida dos demais brasileiros. São, ademais, sinais de covardia, incompatíveis com a imagem viril que pretendem imprimir ao país que inventaram.

As manifestações de opositores do presidente no sábado passado em cerca de 200 cidades do País mostram, contudo, que cada vez menos cidadãos estão dispostos a viver no país do bolsonarismo ou a participar do experimento social-darwinista liderado pelo presidente da República. Exige-se nas ruas que o presidente pelo menos se envergonhe da marca de meio milhão de mortos, como faria qualquer chefe de Estado decente. Para sentir vergonha, no entanto, é preciso tê-la.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 22 de junho de 2021 

Governo comprou vacina indiana Covaxin por preço 1.000% mais alto do que o estimado pelo fabricante

Contrato de aquisição do imunizante foi intermediado por empresa acusada de fraude

Documentos do Ministério das Relações Exteriores mostram que o governo comprou a vacina indiana Covaxin por um preço 1.000% maior do que, seis meses antes, era anunciado pela própria fabricante. Telegrama sigiloso da embaixada brasileira em Nova Délhi de agosto do ano passado, ao qual o Estadão teve acesso, informava que o imunizante produzido pela Bharat Biotech tinha o preço estimado em 100 rúpias (US$ 1,34 a dose).

Em dezembro, outro comunicado diplomático dizia que o produto fabricado na Índia “custaria menos do que uma garrafa de água”. Em fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde pagou US$ 15 por unidade (R$ 80,70, na cotação da época) – a mais cara das seis vacinas compradas até agora.

A Covaxin foi desenvolvida com o estatal Conselho Indiano de Pesquisa Médica Foto: Jaipal Singh/EFE

A ordem para a aquisição da vacina partiu pessoalmente do presidente Jair Bolsonaro. A negociação durou cerca de três meses, um prazo bem mais curto que o de outros acordos. No caso da Pfizer, foram quase onze meses, período em qual o preço oferecido não se alterou (US$ 10 por dose). Mesmo mais barato que a vacina indiana, o custo do produto da farmacêutica americana foi usado como argumento pelo governo Bolsonaro para atrasar a contratação, só fechada em março deste ano.

Diferentemente dos demais imunizantes, negociados diretamente com seus fabricantes (no País ou no exterior), a compra da Covaxin pelo Brasil foi intermediada pela Precisa Medicamentos. A empresa virou alvo da CPI da Covid, que na semana passada autorizou a quebra dos sigilos telefônico, telemático, fiscal e bancário de um de seus sócios, Francisco Maximiano. O depoimento do empresário na comissão está marcado para amanhã.

Os senadores querem entender o motivo de o contrato para a compra da Covaxin ter sido intermediado pela Precisa, que em agosto foi alvo do Ministério Público do Distrito Federal sob acusação de fraude na venda de testes rápidos para covid-19. Na ocasião, a cúpula da Secretaria de Saúde do governo do DF foi denunciada sob acusação de ter favorecido a empresa em um contrato de R$ 21 milhões.

A Precisa tem como sócia uma outra empresa já conhecida por irregularidades envolvendo o Ministério da Saúde – a Global Gestão em Saúde S. A. Ela é alvo de ação na Justiça Federal do DF por ter recebido R$ 20 milhões da pasta para fornecer remédios que nunca foram entregues. 

O negócio foi feito em 2017, quando o ministério era chefiado pelo atual líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), do Centrão. Passados mais de três anos, o ministério diz que ainda negocia o ressarcimento.

Em depoimento ao Ministério Público, um servidor do Ministério da Saúde aponta “pressões anormais” para a aquisição da Covaxin. O funcionário relatou ter recebido “mensagens de texto, e-mails, telefonemas, pedidos de reuniões” fora de seu horário de expediente, em sábados e domingos. Esse depoimento está em poder da CPI.

O servidor assegurou que esse tipo de postura não ocorreu em relação a outras vacinas. O coordenador-geral de Aquisições de Insumos Estratégicos para Saúde do Ministério da Saúde, Alex Lial Marinho, foi apontado como o responsável pela pressão.

O interesse do Brasil na Covaxin foi registrado formalmente em carta de Bolsonaro ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em 8 de janeiro. Na ocasião, o brasileiro informou ter incluído o imunizante no Plano Nacional de Imunização.


Vacina Covaxin é produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech Foto: Divulgação/Bharat Biotech

Acordo. Quatro dias depois, a Bharat Biotech anunciou em seu site que havia assinado um “acordo com a Precisa Medicamentos para fornecimento de Covaxin para o Brasil”. Segundo o anúncio da empresa, o embaixador do País na Índia, André Aranha Corrêa do Lago, havia expressado o interesse do governo brasileiro em adquirir o imunizante indiano.

Nos meses anteriores, a embaixada brasileira havia feito uma verdadeira “pesquisa de mercado” dos imunizantes indianos disponíveis para a venda. Um telegrama enviado por Lago em 31 de agosto do ano passado detalhava cinco iniciativas relativas a vacinas no país asiático. Uma delas era a Covaxin, que usa uma versão inativada do vírus Sars-CoV-2, tecnologia menos avançada do que a usada pela Pfizer.

Quatro meses depois, em dezembro, o ministro-conselheiro da embaixada Breno Hermann relatou uma conversa com Lisa Rufus, relações públicas da Bharat Biotech, na qual ela citou que “uma dose da Covaxin custará ‘menos que uma garrafa de água’”.

O valor da vacina foi tópico de outro telegrama, em 15 de janeiro. Dessa vez, o embaixador dizia ao Itamaraty que o governo indiano vinha sendo criticado pelo preço que havia pagado pela Covaxin (US$ 4,10).

O Ministério da Saúde fechou o contrato para a aquisição de 20 milhões de doses da Covaxin por R$ 1,6 bilhão em 25 de fevereiro, antes mesmo de assinar com a Pfizer e com a Janssen, por US$ 10 a dose em ambos os casos. As duas fabricantes já concluíram os testes de seus imunizantes, enquanto os estudos de fase 3 da vacina indiana – a última etapa – ainda estão incompletos.

O acordo da Covaxin previa o fornecimento de 6 milhões de unidades já em março, mas condicionava a um aval da Agência Nacional Nacional de Saúde (Anvisa), que só foi dado no dia 4 deste mês. Ainda assim, a autoridade sanitária impôs uma série de condições para que o governo distribua a vacina, como um plano de monitoramento de quem receber as doses, o que, segundo a Anvisa, ainda não foi apresentado.

Detalhes do contrato foram contados pelo sócio da Precisa ao embaixador do Brasil na Índia em um encontro em março. Segundo Maximiano, além das 20 milhões de doses, o Ministério da Saúde tem a opção de compra de outras 12 milhões de unidades. “Maximiano frisou que, ainda que tenha sido a Precisa Medicamentos a assinar contrato com o governo brasileiro, o pagamento, que, segundo os termos do contrato, só poderia ocorrer após licenciamento da vacina no Brasil, será feito diretamente pelo Ministério da Saúde à companhia indiana”, aponta o relato do embaixador. 

Ao pedir as quebras de sigilo do empresário, porém, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirma que a Precisa receberá R$ 500 milhões pelo negócio.

Questionada, a Precisa informou que “o preço da vacina é estabelecido pelo fabricante”, mas não informou se recebeu comissão pelo negócio. "O mesmo preço praticado no Brasil foi estabelecido para outros mercados. Em agosto, quando a vacina estava na fase 2 de testes clínicos, não havia ainda como dimensionar o preço final. Em janeiro, a Bharat Biotech comercializou a vacina internamente, para o governo indiano, praticando um valor menor do que o comercializado para fora da Índia. Isso porque o país é codesenvolvedor da vacina e disponibilizou recursos para auxiliar no seu desenvolvimento", diz, em nota.

Sobre a denúncia de irregularidades na venda de testes ao governo do DF, a empresa diz ter cumprido “todas as exigências legais” e que já prestou esclarecimentos às autoridades.

Também procurado, o Ministério da Saúde se limitou a dizer que o pagamento das vacinas será feito “somente após a entrega das doses”.

Julia Affonso, O Estado de S.Paulo, em 22 de junho de 2021 | 05h00

sábado, 19 de junho de 2021

O mundo enfrenta uma peste; o Brasil, duas

É impossível não responsabilizar o governo pela tragédia da covid-19. A gestão desastrosa não é só culpada por inúmeras mortes, mas também por a pandemia ainda estar longe de acabar, escreve Philipp Lichterbeck.


Meio milhão de brasileiros morreram de covid-19. É como se a população de Florianópolis tivesse sido dizimada. Isso faz do Brasil um dos dez países com a maior taxa de mortalidade do mundo, ou seja, o número de mortes em proporção ao tamanho da população. E a mortandade ainda não terminou. Atualmente, uma média de 2 mil pessoas são vítimas do vírus todos os dias. A sociedade brasileira se habituou um pouco à morte e à violência: entre 40 mil e 50 mil pessoas são assassinadas aqui todos os anos, e entre 30 mil e 40 mil morrem no trânsito.

Mas meio milhão de mortes de covid-19 em apenas pouco mais de um ano deveria levar à reflexão. Especialmente porque o verdadeiro número de mortos é provavelmente maior do que isso. O Instituto de Métricas e Avaliação da Saúde (IHME), sediado em Seattle, acredita que existe uma significativa subnotificação de mortes por covid-19 no Brasil. Os cientistas estimam que mais de 600 mil brasileiros podem ter morrido do vírus.

Culpar apenas o governo Jair Bolsonaro por isso seria simplista. Muitos brasileiros aproveitaram todas as oportunidades para desafiar as regras pandêmicas mais simples: o uso de máscara, o distanciamento social, evitar aglomerações, especialmente em locais fechados. Festas eram recorrentes, assim como praias, bares e restaurantes lotados.

Ao mesmo tempo, é impossível não responsabilizar o governo pelo desastre no Brasil. Com uma gestão pandêmica desastrosa, ele não é apenas culpado por inúmeras mortes de covid-19, mas também pelo fato de que a pandemia simplesmente não vai acabar.

É importante lembrar, neste momento, o absurdo e desumano espetáculo que Bolsonaro deu ao longo do curso da pandemia. Ele negou, xingou, semeou dúvidas, sabotou. Ele chamou a covid-19 de "gripezinha"; instou as pessoas a resistir às ações dos governadores; até hoje ele promove a hidroxicloroquina, comprovadamente ineficaz contra a doença; repetidamente gerou aglomerações sem usar máscara; recusou a entrega antecipada de vacinas; depois espalhou dúvidas sobre a eficácia das vacinas; agora ele afirma que o número de mortes foi inflado. Após 15 meses da pandemia, é difícil pensar em alguém que teria levado o Brasil a um patamar pior.

É claro que se pode discutir se a esquerda ou a direita tem melhores propostas de soluções para os desafios do Brasil. O que é inquestionável é que o governo deve ser liderado por alguém que leve o povo a sério e tente evitar danos a ele. Mas a única coisa que Bolsonaro leva a sério é ele mesmo. A única coisa que ele protege são os interesses de seu clã familiar. A pandemia, por outro lado, ele não só não conseguiu conter – ele ativamente agiu para acelerá-la. É por isso que é correto que uma CPI esteja atualmente lançando luz sobre o que aconteceu dentro do governo. Já está claro que a gestão da pandemia por Bolsonaro tem características criminosas. Rejeitou a perícia científica e promoveu a ineficaz hidroxicloroquina, que pode causar graves efeitos colaterais.

Quem conhece o presidente sabe que ele não encontrará frases apropriadas sobre as 500 mil mortes por covid-19. Ele não vai achar uma única palavra sincera de simpatia, arrependimento ou compaixão. Se falar, seu discurso provavelmente servirá para propagar mentiras e meias verdades. Como a que ele levou a pandemia a sério desde o início; ou que foi o seu governo que levou vacinas aos brasileiros. Também é possível que Bolsonaro afirme que sempre queria manter a economia brasileira funcionando. Mas, para isso, ele tinha que ter combatido a pandemia, em vez de estendê-la sem parar.

Dizem que é nas crises que se revela a verdadeira grandeza de uma pessoa ou de um governo.

Mais de sete em cada dez brasileiros conhecem agora alguém que morreu de covid-19. Era impossível evitar que pessoas morressem do vírus. As condições econômicas e sociais, especialmente dos pobres, eram propensas à propagação do vírus, e a estrutura deficitária dos hospitais públicos fez aumentar a letalidade, ou seja, o número de mortos em relação aos infectados.

Mas o fato de meio milhão de pessoas já terem sido enterradas e de o Brasil não só enfrentar uma possível terceira onda, mas também correr o risco de produzir novas variantes do vírus, deve-se a um governo que não serve a ninguém, senão a si mesmo.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais na Alemanha, Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 19.06.2021