terça-feira, 15 de junho de 2021

Brasil cai em ranking de combate à corrupção; relatório cita 'nomeações de Bolsonaro' e 'desmantelamento da Lava Jato'

O Brasil é o país que mais caiu em um ranking latino-americano que mede a capacidade de cada nação de combater a corrupção.

      O Uruguai é o país mais bem colocado no ranking de capacidade de combate à corrupção                                                                              (Getty Images)

O ranking, divulgado nesta terça-feira (15/06), se chama Índice de Capacidade de Combate à Corrupção (CCC) e é elaborado pela entidade empresarial americana Americas Society/Council of the Americas (AS/COA) e pela consultoria britânica Control Risks.

O texto do relatório citou entre os fatores o "desmantelamento da operação Lava Jato em fevereiro deste ano" e a nomeação pelo governo do presidente Jair Bolsonaro de "pessoas percebidas como menos independentes para o comando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal".

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O Brasil já vinha em queda desde 2019, quando o ranking foi criado. Mas no mais recente relatório o Brasil foi o país com o maior recuo entre os 15 países analisados.

A maior parte dos índices que tentam medir corrupção é baseada em pesquisas de percepção da população. No entanto, o CCC tenta mapear a capacidade de cada país de acordo com 14 variáveis, como a independência das instituições jurídicas, a força do jornalismo investigativo e o nível de recursos disponíveis para combater crimes de colarinho branco.

O Brasil ocupa agora a 6ª posição na América Latina, tendo sido ultrapassado por Peru e Argentina na mais recente edição. As primeiras posições são ocupadas por Uruguai, Chile e Costa Rica, nessa ordem.

Nomeados de Bolsonaro

Os autores usam as 14 variáveis para atribuir pontuações a cada um dos países — que nesta edição variaram de 7,8 (do Uruguai, o país com maior capacidade de combate à corrupção) a 1,4 (da Venezuela).

A pontuação do Brasil é de 5,07 — uma queda de 0,45 em relação à nota obtida em 2020. Essa foi a maior queda entre todos os países do ranking.

Entre as variáveis medidas estão a capacidade legal (como independência do judiciário e acesso à informação pública), democracia e instituições políticas (como qualidade do cumprimento da lei) e sociedade civil e mídia (como qualidade do jornalismo investigativo, melhorias na educação e comunicação em redes sociais).

"Na categoria capacidade legal (com uma queda de quase 9% desde 2020), o país teve declínios na independência de suas agências anticorrupção e do Ministério Público", diz o texto do relatório.

'Acabei com a Lava-Jato': as medidas de Bolsonaro que já enfraqueceram a operação

"O Índice reflete a nomeação pelo governo do presidente Jair Bolsonaro de pessoas percebidas como menos independentes para o comando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. As investigações sobre corrupção transnacional também perderam ímpeto, e a operação Lava Jato foi desmantelada em fevereiro de 2021."

"A única melhora na capacidade legal do Brasil foi um ligeiro aumento da independência judicial, graças a iniciativas recentes para reforçar a separação entre poderes."

Os autores também afirmam que a pandemia de coronavírus afetou a capacidade de combate à corrupção no Brasil.

"O Brasil registrou queda de 11% na categoria democracia e instituições políticas, onde o estado das relações entre os poderes executivo e legislativo foi um fator decisivo. O capital político de Bolsonaro diminuiu durante a pandemia, levando seus aliados a recorrerem à política de troca de favores, negociação de cargos e uso de fundos públicos para conseguir apoio no Congresso", diz o texto.

"Níveis elevados de polarização política também reduziram a capacidade de mobilização dos grupos da sociedade civil. Em parte, isso reflete uma leve redução na categoria sociedade civil e mídia. No entanto, uma variável dessa categoria, a qualidade da imprensa, aumentou 3%. Um ecossistema de mídia vibrante no Brasil continua a exercer uma vigilância significativa sobre problemas de corrupção."

O relatório ainda aponta três áreas consideradas "críticas" que precisam ser monitoradas por todos:

- a pressão sobre líderes escolhidos pelo governo para o Ministério Público e da Polícia Federal para que protejam o presidente e seu círculo íntimo de investigações de corrupção

- a nomeação de um segundo juiz por Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal ainda em 2021, que seria um indicador de quanto o governo pretende aumentar sua influência no judiciário

- novas decisões judiciais que beneficiaram réus da Lava-Jato, como aconteceu com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A BBC News Brasil entrou em contato com o governo federal para obter uma resposta sobre as críticas feitas pelo relatório da AS/COA e ControlRisks, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

'Patamar ruim'

O mau desempenho do Brasil no índice CCC da AS/COA e da ControlRisks é replicado em outros índices dedicados a medir combate à corrupção.

Um dos índices mais famosos do mundo — o da Transparência Internacional — mostra que "o Brasil permanece estagnado em um patamar ruim".

Em 2020, o Brasil melhorou sua nota de percepção — de 35 para 38 pontos — mas essa oscilação aconteceu dentro da margem de erro da pesquisa.

"Isto significa que a percepção da corrupção no Brasil permanece estagnada em patamar muito ruim, abaixo da média dos BRICS (39), da média regional para a América Latina e o Caribe (41) e mundial (43) e ainda mais distante da média dos países do G20 (54) e da OCDE (64)", disse a Transparência Internacional.

O Brasil ocupa a 94ª posição em um ranking de 180 países — atrás de Colômbia, Turquia e China, e empatado com Etiópia, Cazaquistão, Peru, Sérvia, Sri Lanka, Suriname e Tanzânia.

Em outubro de 2020, a Transparência havia publicado a atualização de um relatório chamado "Brasil: retrocessos nos marcos jurídicos e institucionais anticorrupção", em que listava interferências políticas do governo de Bolsonaro que prejudicaram a autonomia do Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário e dizia que o primeiro ano do mandato do procurador-geral Augusto Aras foi marcado por "um alinhamento descarado com o presidente Bolsonaro".

Covid-19

O relatório divulgado nesta terça-feira pela AS/COA e ControlRisks revela que a América Latina como um todo sofreu retrocessos no combate à corrupção no ano passado.

"Em vários países, a pandemia de covid-19 levou governos e cidadãos a focar em outras prioridades urgentes, o que deu espaço para que políticos diminuíssem a autonomia e os recursos de órgãos judiciais sem desencadear indignação da opinião pública ou manifestações de rua como as testemunhadas em anos anteriores."

"O Índice mostra que os esforços para combater a corrupção são mais necessários em 2021 do que nunca", disse em nota o vice-presidente de política da AS/COA, Brian Winter.



"A América Latina está entre as regiões mais afetadas pela pandemia. Com os governos sob crescente pressão financeira e os sistemas de saúde em muitos países severamente afetados, os efeitos perniciosos da corrupção na sociedade são ampliados."

Confira abaixo a lista completa do Índice de Capacidade de Combate à Corrupção (CCC) de 2021:

1. Uruguai - 7,80

2. Chile - 6,51

3. Costa Rica - 6,45

4. Peru - 5,66

5. Argentina - 5,16

6. Brasil - 5,07

7. Colômbia - 4,81

8. Equador - 4,77

9. Panamá - 4,55

10. República Dominicana - 4,38

11. México - 4,25

12. Paraguai - 4,08

13. Guatemala - 3,84

14. Bolívia - 2,43

15. Venezuela - 1,40

Fonte: BBC News Brasil, em 15.06.2021

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Com 928 mortes nas últimas 24 horas, Brasil passa de 488 mil óbitos por Covid-19

No último dia, o país teve 40.865 pessoas diagnosticadas com infecção pelo novo coronavírus, totalizando 17.454.861 casos até agora

Profissional de saúde transporta paciente com Covid-19 na cadeira de rodas em Santo André, em São Paulo. Foto: MIGUEL SCHINCARIOL / AFP

Após registrar 928 mortes por Covid-19 nas últimas 24 horas, o Brasil acumula 488.404 óbitos pela doença até esta segunda-feira (14). Os dados foram reunidos pelo consórcio de veículos de imprensa formado por O GLOBO, Extra, G1, Folha de S.Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, que compila informações divulgadas pelas secretarias estaduais de Saúde.

No último dia, o país teve 40.865 pessoas diagnosticadas com infecção pelo novo coronavírus, totalizando 17.454.861 casos até agora.

A média móvel de sete dias do número diário de mortes no país agora está em 1.970, o que representa variação de 5% (tendência de estabilidade) nas últimas duas semanas. Os três estados com maior aumento (ou menor redução) percentual no número de mortes são Amazonas (41%), Acre (35%) e Paraíba (26%).

A média móvel de sete dias se refere aos números de mortes e casos do dia e dos seis anteriores. A medida é comparada com a média de duas semanas atrás para indicar se há tendência de alta, estabilidade ou queda na epidemia. O cálculo é um recurso para conseguir enxergar a tendência dos dados abafando o "ruído" causado pelos finais de semana, quando a notificação de mortes se reduz por redução de mão-de-obra.

Das 27 unidades da federação, 7 estão com o número de óbitos em viés de elevação nas últimas duas semanas, e 5 estão com os números em queda. Outras 15 permaneceram em tendência estável (variação menor de 15% para mais ou para menos).

Levando em conta o número diário de resultados positivos em diagnósticos, a última quinzena teve variação de 9% (tendência de estabilidade) em escala nacional.

O Brasil conseguiu aplicar a primeira dose de vacina contra Covid-19 até agora em 55.740.512 pessoas (26,32% da população), e 23.742.688 já receberam a segunda dose, o que representa uma cobertura vacinal completa de 11,21%.

O três estados que mais avançaram agora em aplicação da primeira dose foram Mato Grosso do Sul (36,11%), Rio Grande do Sul (33,19%) e Espírito Santo (31,15%). Os que mais estão atrasados na aplicação da vacina são Amapá (17,12%), Acre (17,53%) e Roraima (17,56%).

Até a manhã desta segunda-feira, o Brasil ocupava o 2º lugar entre os países que mais registraram mortes por Covid-19 até agora, segundo dados do projeto Our World In Data, ligado à Universidade de Oxford. Os cinco países que notificaram mais óbitos desde o início da pandemia são, do primeiro ao quinto, Estados Unidos, Brasil, Índia, México e Peru.

Ao longo dos últimos 7 dias, o Brasil foi o 2º país que mais teve mortes pelo coronavírus, com 13.996 registradas no período. Os cinco países com maiores números absolutos em óbitos por Covid-19 nesta semana foram, em ordem, Índia, Brasil, Argentina, Colômbia e Peru.

O número relativo de pessoas mortas pela doença no país é de 2.293,0 por milhão de habitantes. No grupo de 58 países com mais de 20 milhões de habitantes no mundo, o Brasil ocupa o 2º lugar em mortalidade proporcional por Covid-19. Os países que lideram a lista de mortes em relação a suas populações são Peru, Brasil, Itália, Polônia e Argentina.

Bruno Alfano, O Globo, em 14/06/2021 - 20:00 / Atualizado em 14/06/2021 - 20:03

Bolsonaro racha o País e juristas da CPI separam o que é só grotesco do que é crime do presidente

Mais do que um ato populista, de campanha antecipada, Bolsonaro entrou num avião lotado com um intuito: radicalizar a divisão da sociedade brasileira. Leia aqui o comentário de Eliane Cantanhede n'O Estado de São Paulo.

Ao entrar num avião lotado, sem ter por que nem para que, o presidente Jair Bolsonaro colheu uma cena e um momento do Brasil: um grupo estridente ao fundo, gritando “fora, Bolsonaro!”, “genocida” e “assassino” e um outro, próximo à cabine do piloto, tirando fotos e reagindo com “mito, mito, mito”. No centro da aeronave, porém, a grande maioria dos passageiros permaneceu sentada em seus assentos, em silêncio, só observando.

Mais do que um ato populista, de campanha antecipada, Bolsonaro fez a papagaiada com um intuito: radicalizar a divisão da sociedade brasileira, rachar o País entre os dele, que são machos, não usam máscara, tomam cloroquina e andam de avião e moto, e todos os demais, “maricas”, de máscaras, que deviam viajar “de jegue”.

A diferença é que o grupo “dele” é armado: militares, policiais, milícias, civis adoradores de revólveres e tiros, tudo embolado com a velha política e religiões que nadam em dinheiro. Do outro lado, em meio a bandeiras vermelhas, tem de tudo, da esquerda à direita, mas, se houver armas, estão mais para peixeiras do que fuzis.

Só há um ponto comum entre machos e “maricas”, os do avião e do jegue, os das motos e do juízo, os dos fuzis e das peixeiras, os da terra plana e da ciência, os da Amazônia e das cinzas, os da institucionalidade e das sombras, os com máscara e sem máscara: as vacinas! Aí não tem mito nem ideologia, é botar o braço na mira.

Bolsonaro teve sucesso em tumultuar, confundir e dividir os cidadãos quanto a isolamento social, máscaras e cloroquina, na contramão da ciência e do mundo civilizado, mas perdeu feio quando atirou despudoradamente contra as vacinas. Pesquisas, filas e declarações de Norte a Sul mostram, sem sombra de dúvidas, que o brasileiro quer se vacinar. E sabe que este é um... direito.

Se jamais recuou no resto, o presidente foi obrigado a capitular na vacina, sua grande e única inflexão na pandemia. E não foi pela ciência ou consciência, mas por oportunismo. Além de a população exigir imunização, há o fator João Doria, que não incomoda só com suas “calças apertadinhas”, mas pela audácia de sair na frente, bancar a Coronavac e registrar a foto da primeira brasileira vacinada em solo nacional.

Desde junho de 2020, a Pfizer e o Butantan se esgoelavam para abastecer o Brasil, enquanto o governo dava de ombros para eles e para os relatórios de embaixadas brasileiras, talvez porque Bolsonaro, além de não dar o braço para a vacina, não quisesse dar o braço a torcer e admitir, finalmente, que não era “uma gripezinha”. Assim, o tempo passou, dezembro chegou sem vacinas, e com aumento de casos e mortes. O governo só acordou em 2021.

Foi o ciúme de Doria que chacoalhou Bolsonaro, quando o governador anunciou o início da vacinação para janeiro e deu aos brasileiros o que ele se recusava a dar: esperança. A partir daí, as coisas ficaram na mesma em relação a máscaras, isolamento e cloroquina, mas mudaram radicalmente quanto a vacinas e até os filhos do presidente viraram pró vacina desde criancinhas. O paizão liberou, só não ao ponto de arregaçar as mangas – nem para sua dose, nem para combater a pandemia.

O que a CPI busca, com um conselho de juristas instalado sexta-feira e municiado com uma montanha de documentos e depoimentos, é algo bem concreto: separar o que é só grotesco do que é criminoso, o que é falação do que pode ser, objetivamente, tipificado como crime do presidente da República numa pandemia que caminha para 500 mil mortos em pouco mais de um ano. Vem pedido de processo por aí.

PS: Marco Maciel foi praticamente uma unanimidade, como homem bom e político com ideais e princípios, desses que fazem muita falta, mais ainda em meio às trevas.

Eliane Cantanhêde é comenarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal (PE) e do Telejornal Globo News "Em Pauta. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 12 de junho de 2021.

Por que envolver o Exército em crise política?

Bolsonaro age para destruir e desmoralizar as instituições; com seguidores extremistas, alimenta fanatismo que terminará em violência. Alerta o General Santos Cruz em artigo exclusivo para O Estado de São Paulo.

A resposta é simples: o sonho chavista de poder do presidente que tenta usar o Exército em seu projeto pessoal. O Brasil não é a terra do ídolo inspirador do presidente e não vai se transformar em algo similar. Aqui, “EB” quer dizer Exército Brasileiro e não “Exército Bolsonarista”. O Exército enfrenta o mesmo problema das outras instituições brasileiras: o risco de erosão. Infelizmente, a mentalidade anarquista do presidente age para destruir e desmoralizar as instituições, e banalizar o desrespeito pessoal, funcional e institucional. Junto com seguidores  extremistas, alimenta um fanatismo que certamente terminará em violência.

Para aventuras políticas pessoais, instituições sólidas e funcionais são sempre um imenso obstáculo. Projetos populistas e totalitários, não importa seu matiz ideológico, não avançam sem subverter a ordem, sem corromper as instituições. E uma das instituições mais sólidas é o Exército (assim como a Marinha e a Força Aérea). Ao invés de recuperação e aperfeiçoamento das instituições, assistimos ao agravamento da situação existente e a erosão da Saúde, Justiça, Meio Ambiente e Educação.

O presidente tenta também desmoralizar o sistema eleitoral, mas não apresenta as provas de fraude que diz possuir. Semeia dúvidas sobre o Tribunal de Contas da União, valendo-se de relatório e dados falsos. No orçamento da União, apresenta uma nova forma de “mensalão” – o chamado orçamento secreto. Nas Relações Exteriores, graças ao Senado, escapamos do vexame da quase nomeação de um embaixador esdrúxulo junto aos EUA, e agora temos à frente a investida demagógica de uma nomeação para a África do Sul. Oxalá o Senado poupe o Brasil de mais essa.

Esse é o contexto em que se desenvolve mais uma tentativa de erosão de uma das instituições de maior prestígio do Brasil – o Exército Brasileiro. O caso do general no palanque, em mais um evento populista promovido pela autoridade maior, é da alçada do comandante da Força, que decidiu dentro das suas atribuições. Problemas disciplinares são resolvidos diariamente por todos os comandantes, nos diversos níveis. Não é esse o problema. O problema é muito maior e mais grave. É político. E tem um responsável – o presidente. Para realizar seu projeto pessoal, ele vem testando o Exército frequentemente. Isso é deliberado. É projeto de poder. Não acontece só por despreparo, irresponsabilidade e inconsequência. Isso é processo planejado, que vem sendo adotado e tentado de forma sistemática. É também um processo covarde, pois as consequências são sempre creditadas a outras pessoas e instituições. Ocorre que a responsabilidade pessoal e funcional está muito bem definida e o responsável maior deve arcar com as consequências.

É covardia transferir essa conta ao Exército. E é totalmente inaceitável a tentativa permanente de arrastar o Exército para o erro histórico de assumir um protagonismo político em apoio a uma aventura pessoal perseguida de forma paranoica. O Exército não é e não pode ser uma ferramenta de uso pessoal, partidário ou de intimidação política. A missão do Exército não é auxiliar uns e outros em disputas eleitorais e em jogo de poder, dividindo os brasileiros. O Exército tem uma missão constitucional definida.

O Brasil precisa de paz, de união nacional, de governo que trabalhe e promova o desenvolvimento socioeconômico com boa administração. O Brasil precisa de políticas públicas sensatas, de combate à corrupção, eliminação de privilégios e redução da desigualdade. Precisa de vacina e emprego. É preciso que o voto da maioria sirva para governar para o bem de todos e não para interesses pessoais, familiares ou de grupos. O Brasil não merece uma polarização entre quem já teve oportunidade de governar e se perdeu em demagogia e escândalos de corrupção e quem mostra diariamente que tem como objetivo um projeto de poder semelhante, apenas com sinal trocado.

O País não pode ficar entre dois polos que se alimentam e se comportam como cabos eleitorais um do outro. O Brasil não merece mais erosão em suas instituições. Ao contrário, nossas instituições precisam de melhorias e aperfeiçoamentos. A democracia depende do aperfeiçoamento institucional constante. O Exército Brasileiro, assim como as outras instituições que compõem a Nação, não pode continuar a ser covardemente prejudicado por causa de um projeto de poder pessoal e populista.

Carlos Alberto dos Santos Cruz é General da Reserva e ex-Ministro da Secretaria de Governo. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 12 de junho de 2021.

A desinformação e o retrocesso

É falaciosa a ideia de que a impressão do voto traz segurança às eleições      

No dia 9 de junho, em Comissão na Câmara dos Deputados que debateu a reforma eleitoral e a PEC do voto impresso, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, afirmou: “O enfrentamento às notícias falsas é a causa da humanidade neste momento”. Mesmo admitindo alguma dose de exagero, é preciso reconhecer que a afirmação não está muito distante da realidade.

Os efeitos da desinformação são graves, pondo em risco o funcionamento das instituições democráticas e os fundamentos de uma sociedade. A difusão de mensagens distorcidas desvirtua o debate público, corrói a confiança nas relações humanas e cria inúmeros problemas.

A desinformação é causa de retrocesso; por exemplo, na saúde pública. Ao longo dos últimos anos, campanhas com mensagens distorcidas contra a vacinação fizeram com que muitas famílias deixassem de vacinar seus filhos, o que provocou o ressurgimento de doenças que há muito estavam superadas ou, ao menos, controladas.

Trata-se de uma triste constatação. A humanidade foi capaz de gerar soluções para problemas graves, no caso, vacinas contra doenças que causavam morte, incapacidade e sofrimento. No entanto, essas soluções foram rejeitadas em razão de manipulação da informação. Muitas pessoas foram enganadas a ponto de pensarem que o melhor para os seus filhos era privá-los das vacinas específicas para cada idade.

Tal quadro revela como é grave o tema das fake news. A manipulação decorrente da desinformação pode pôr por terra conquistas fundamentais da civilização. O fenômeno é paradoxal. Os mais impressionantes avanços tecnológicos são também ocasião para retrocessos aparentemente ilimitados.

É necessário, portanto, estar alerta. Nos dias de hoje, os danos da mentira e do engano podem ocorrer de forma sistêmica e numa velocidade inimaginável tempos atrás. É preciso respeitar e defender a liberdade de expressão de todos, mas não cabem ingenuidades. O direito de comunicar e defender as ideias e convicções pessoais não equivale a uma autorização para enganar e prejudicar os outros ou para atacar as instituições.

Um caso atual é a campanha de desinformação contra as urnas eletrônicas. Como lembrou o presidente do TSE, o atual sistema foi implantado em 1996 e “nunca se documentou um caso de fraude desde então”. No entanto, nos últimos anos, em especial desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, observa-se uma ativa campanha de corrosão da confiança da população no sistema eleitoral.

“O nosso processo eleitoral eletrônico é seguro, transparente e, sobretudo, auditável”, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso. O atual sistema de votação e apuração passa por 10 etapas de auditoria.

No entanto, do mesmo modo que no caso das vacinas, para alguns a realidade pouco importa. Nas redes sociais, há uma campanha massiva de difusão de desconfiança, dizendo que não se pode “confiar em software” e que só o voto impresso seria auditável. Observa-se uma intensa manipulação de conceitos, com o inegável intuito de distorcer os fatos.

É uma falácia a ideia de que a impressão do voto traz segurança às eleições. A rigor, um sistema assim representa evidente retrocesso, pois fará com que o critério final de verificação seja a recontagem manual de votos – o que é comprovadamente o sistema mais passível de fraude, além de aumentar o risco de quebra do sigilo do voto.

“Nós estamos criando um problema para resolver um problema que não existe”, disse o presidente do TSE, em relação à PEC 135/19. Eventual volta da apuração manual de voto é precisamente o que pode produzir a maior fragilidade do sistema eleitoral.

Esse cenário de rejeição das vacinas e de defesa do voto impresso – de ativa busca pelo retrocesso – torna-se possível porque a desinformação não apenas distorce as mensagens, mas produz e dissemina desconfiança. O fenômeno das fake news inunda o debate público de irracionalidade e ressentimento e, não raro, de ódio e violência.

O enfrentamento da desinformação deve ser uma prioridade. Não é tema acessório – envolve diretamente o coexistir em sociedade.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 14 de junho de 2021 | 03h00

O avanço das milícias digitais

Técnicas de desinformação seguem evoluindo, turbinadas por novas tecnologiasEm tese, as redes sociais podem ser um vigoroso instrumento de difusão da democracia, onde os cidadãos podem se encontrar para debater, empatizar, fazer concessões e construir consensos. 

No último ano, a pandemia e mais especificamente as eleições nos EUA forçaram muitas mídias a aprimorar seus sistemas de alerta à desinformação, suspender contas falsas e elevar padrões de qualidade da informação e da civilidade nas praças virtuais. Mas, na prática, as evidências sugerem que esses esforços têm sido insuficientes.

Segundo o inventário anual da Manipulação Organizada das Mídias Sociais do Oxford Internet Institute, a atividade das milícias digitais (cyber troops) – definidas como “atores governamentais ou partidários empenhados na manipulação da opinião pública online” – continua a crescer. “A desinformação industrializada tornou-se mais profissionalizada, e foi produzida em larga escala por grandes governos, partidos políticos e empresas de relações públicas”. Em 2019, o inventário identificou 70 países onde as mídias sociais foram amplamente utilizadas para disseminar propaganda e desinformação sobre política. Em 2020 foram 81.

“De campanhas de desinformação sobre o coronavírus promovidas pela China, Rússia e Irã a forças policiais na Bielorrússia alvejando ativistas com campanhas de desinformação e difamação ou empresas privadas usando propaganda computacional para apoiar eleições, muitos atores políticos estão encontrando modos de explorar tecnologias das redes sociais para disseminar propaganda online.”

Em 57 dos 81 países verificou-se a utilização de contas automatizadas (os chamados “bots políticos”) para amplificar certas narrativas e sufocar outras. Cada vez mais comuns são as contas com “curadoria humana” utilizadas para se engajar em conversas por meio de comentários ou de mensagens privadas. Contas como essas, verdadeiras ou falsas, foram identificadas em 79 países.

As mensagens mais comuns são os ataques à oposição ou campanhas de difamação. Um exemplo são as calúnias a ativistas de Hong Kong por milícias digitais apoiadas pelo Partido Comunista Chinês. Esse tipo de mensagem foi identificado em 94% dos países estudados. Depois vêm as campanhas para amplificar artificialmente o apoio a governos e partidos (90%); a supressão da participação por meio da “trolagem” ou intimidação (73%); e as cada vez mais frequentes narrativas projetadas para acirrar a divisão e a polarização entre os cidadãos (48%). No Brasil funcionam todos esses tipos de mensagens.

A estratégia de comunicação predileta é a criação de desinformação ou mídias manipuladas via websites de fake news, memes, imagens e vídeos. Contrariamente às expectativas, a utilização da tecnologia deep fake ainda é relativamente baixa. Outra tática comum é o uso de “trolagem”, vazamento de dados privados e intimidação.

Há ainda um mercado em ascensão de empresas contratadas para perfilar segmentos específicos da população e alvejá-los com anúncios políticos. Embora essa técnica baseada em dados não seja em si irregular, ela é frequentemente empregada para disseminar desinformação e narrativas falsas. Desde 2009, o inventário identificou mais de 65 empresas operando em 48 países por meio de contratos que somam US$ 60 milhões. Mas, segundo os próprios pesquisadores, essas cifras são defasadas.

As derrotas na guerra à desinformação se devem a uma multiplicidade de fatores. Aos investimentos de governos autoritários, partidos políticos e empresas de relações públicas se somam políticas de vigilância frouxas, escolhas de design tecnológico pobres e passividade das lideranças das mídias sociais. Esses aspectos precisam ser urgentemente ponderados pelas autoridades públicas e pela sociedade civil. Mas, considerando que as técnicas de desinformação seguem evoluindo e serão turbinadas por novas tecnologias – como a Inteligência Artificial, a Realidade Virtual ou a Internet das Coisas – o cenário mais realista num futuro próximo é que a indústria da desinformação deve se expandir antes de arrefecer.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 14 de junho de 2021 

O ‘evangelho’ segundo Bolsonaro

Ante o risco de insatisfação popular, muito concreto, Bolsonaro recorreu a quase todo o seu repertório de falsidades para que o País mude de assunto

O oitavo Mandamento diz que não se deve dar falso testemunho. No “evangelho” do presidente Jair Bolsonaro, contudo, esse mandamento caducou.

Ao discursar numa igreja evangélica em Anápolis (GO), na quarta-feira passada, Bolsonaro fez um sermão repleto de mentiras, tão evidentes que nem era preciso ser onisciente para perceber.

Bolsonaro voltou a afirmar que houve “fraude” na eleição de 2018, que ele venceu. “Eu fui eleito no primeiro turno. Eu tenho provas materiais, mas o sistema, a fraude existiu sim, me jogou para o segundo turno”, disse Bolsonaro.

A primeira vez em que o presidente alegou ter sido vítima de fraude na eleição foi em março de 2020. Na ocasião, disse que tinha “provas” e que as mostraria “brevemente”. Bolsonaro nunca o fez, porque não existem. Mas isso não tem importância: no “evangelho” bolsonarista, a verdade não é aquilo que encontra correspondência na realidade, e sim aquilo que Bolsonaro enuncia como tal. É questão de fé.

No mesmo sermão, Bolsonaro tornou a acusar governadores e prefeitos de “utilizar politicamente o vírus” da covid-19. Sem qualquer respaldo nos fatos, o presidente disse que as medidas de isolamento social para conter a pandemia se prestam a derrubá-lo: “Vamos fechar tudo, lockdown, toque de recolher, que a gente pela economia tira esse cara daí”. Bolsonaro disse que o querem fora porque “fez com que as estatais não dessem mais prejuízo”, “está começando a arrumar a economia”, “acredita em Deus”, “respeita seus militares” e “acredita na família”.

Em seguida, disse que “gente que estava ao meu lado” fez contas, a partir de um “acórdão do Tribunal de Contas da União”, e chegou à “constatação da supernotificação de casos de covid” por parte de Estados interessados em ter “mais recursos” federais. Segundo Bolsonaro, “se nós retirarmos as possíveis fraudes” da contabilidade de mortos por covid-19, “o nosso Brasil” será “aquele com menor número de mortes por milhão de habitantes por causa da covid”. Ou seja, o presidente está dizendo, em outras palavras, que milhares de médicos em todo o Brasil integram uma máfia dedicada a fraudar atestados de óbito para favorecer os planos de governadores corruptos.

Uma vez eliminada a “fraude”, disse o presidente, ficará claro que o Brasil teve poucas mortes por covid-19 porque adotou o “tratamento precoce”, com cloroquina e ivermectina, cuja ineficácia contra o coronavírus já foi amplamente atestada. Bolsonaro disse que não se investe nesse “tratamento” porque “interessa viver em cima de mortes, para se ganhar mais recursos”.

Para o presidente, é irrelevante se o tal “tratamento precoce” não tem comprovação científica. “Eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está experimental”, disse Bolsonaro, naquela que talvez seja a mais nociva das tantas mentiras que contou no seu sermão. Ao questionar a segurança da vacina, já atestada pelas autoridades sanitárias regulatórias, Bolsonaro sabota todos os esforços para incentivar os brasileiros a tomar o imunizante.

Mas a epifania bolsonarista em Anápolis, malgrado suas repetidas referências a “milagres” e “Deus”, teve objetivos bem mais mundanos. Conforme a já manjada tática bolsonarista, era preciso inventar variadas polêmicas, em grande quantidade, para tirar a atenção do mais importante: a forte alta da inflação, anunciada no mesmo dia do sermão de Bolsonaro.

Se por um lado a inflação aumentou a arrecadação do governo, pois os tributos são cobrados em cima de preços mais altos, por outro a alta dos preços corrói a renda dos brasileiros, especialmente a dos mais pobres, que já convivem com forte desemprego. Ante o risco de insatisfação popular, muito concreto, Bolsonaro recorreu a quase todo o seu repertório de falsidades para que o País mude de assunto.

Em sua prédica mendaz, foi honesto uma única vez, quando disse que, ao ser eleito, “não sabia o que fazer”. Hoje, contudo, sabe muito bem: mentir dia e noite para ser reeleito. Se vai conseguir ou não, depende da credulidade dos eleitores.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 14 de junho de 2021 

'Governo não aprendeu nada com a pandemia': pesquisador alerta sobre efeitos da penúria na ciência brasileira

Nos últimos anos, o cientista Luiz Davidovich viu mais e mais pesquisadores brasileiros deixando o país em busca de oportunidades no exterior.

Presidente da Academia Brasileira de Ciência, Luiz Davidovich lamenta atual cenário da pesquisa no Brasil (Ascom ABC)

"O êxodo na minha área, a física, está sendo muito maior agora do que anos atrás. Conheço ao menos cinco pesquisadores muito bons que saíram do país nos últimos dois ou três anos", relata Davidovich à BBC News Brasil.

Especialistas da área pontuam que é difícil mensurar o tamanho atual desse fenômeno, conhecido como fuga de cérebros, porque não há dados oficiais sobre o tema. Apesar disso, afirmam que têm notado um aumento de jovens pesquisadores que partiram do país ou planejam fazer isso em breve.

Presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Davidovich admite frustração ao ver o atual cenário da pesquisa no país.

"Isso mata o futuro sustentável do país. São jovens pesquisadores, pessoas que trazem novas ideias. Esse pessoal vai realizar fora do país o investimento que o Brasil fez, em bolsas de pesquisa, mestrado ou doutorado, para educá-los. O Brasil está dando esses jovens de presente para outros países. E é um grande presente receber um pesquisador formado", declara.

Para ele, a fuga de cérebros se torna um fenômeno inevitável diante da situação atual do Brasil em relação à ciência.

Em 2021, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) terá o menor orçamento dos últimos anos. Valores fundamentais para a pasta estão contingenciados pelo governo federal e sem prazo para que sejam liberados.

O Ministério da Educação (MEC) também sofre com cortes de recursos. Com orçamentos apertados, universidades públicas, onde são feitas grande parte das pesquisas brasileiras, vivem uma fase de incerteza em relação ao futuro.

Davidovich avalia que o governo federal não aprendeu nada sobre a importância da ciência em meio à pandemia de covid-19. Ele aponta que enquanto outros países aumentaram os investimentos para o setor, principalmente após o início da crise sanitária, o Brasil cortou recursos.

A ciência e a pandemia

Atual cenário da ciência e tecnologia no Brasil é considerado preocupante por especialistas. (Getty Images)

O MCTI tem, neste ano, pouco mais de R$ 2,7 bilhões em despesas discricionárias (recursos não são obrigatórios, que dependem da disponibilidade de verbas e são usados para áreas como as pesquisas). Desse total, pouco menos da metade é crédito suplementar — aquele que precisa de aprovação do Congresso.

Quando comparado a um passado recente, o orçamento atual é preocupante. Em 2015, por exemplo, as despesas discricionárias do MCTI eram correspondentes a R$ 6,5 bilhões. Nos anos seguintes, os orçamentos diminuíram até chegar a 2021, que é, em valores corrigidos, o menor número desde então.

Em contrapartida, os números de laboratórios, pesquisadores e insumos cresceram nos últimos anos com o avanço da graduação e pós-graduação no país. Mas agora essas pessoas que conquistaram graduação, mestrado ou doutorado enfrentam dificuldades para seguir na área da pesquisa.

Especialistas têm classificado a situação atual da ciência brasileira como um "estado vegetativo". "O atual orçamento do MCTI se compara ao de 20 anos atrás. Ou seja, podemos dizer que ele recuou duas décadas", diz Davidovich.

Fundamentais para o desenvolvimento da ciência no Brasil, as universidades federais tiveram redução de 37% na verba para despesas discricionárias (que incluem manutenção de laboratórios e apoio à pesquisa), 37% se comparadas às de 2010 corrigidas pela inflação, segundo levantamento feito pelo G1.

Somente neste ano, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), houve corte de R$ 1 bilhão no repasse às universidades federais do país.

O alerta de Davidovich é que sem investimento na ciência, tecnologia e inovação, o Brasil não terá capacidade para enfrentar futuras crises sanitárias e continuará dependendo intensamente de recursos externos.

"Isso impacta diretamente no enfrentamento às pandemias. Na epidemia de zika (2015-2016) os recursos para a ciência eram maiores e conseguimos sucesso no combate à doença. Mas agora está cada vez mais difícil fazer isso", declara Davidovich à BBC News Brasil.

"A falta de insumos para pesquisas nessa área da saúde é cada vez mais grave, como é possível ver agora na pandemia de covid-19. Temos novas cepas do coronavírus. Não podemos ficar dependentes de vacinas de estrangeiros para atacar essas cepas. Quando você produz vacinas, tem tecnologia e conhecimento para fazê-lo, você pode adaptar a vacina facilmente para enfrentar novas cepas."

Os investimentos de outros países

Redução de investimentos na ciência afeta duramente a capacidade do Brasil conquistar protagonismo internacional, alerta o presidente da ABC. (Getty Images)

Cortes em recursos para a ciência e tecnologia afetam duramente a capacidade do Brasil de conquistar protagonismo internacional, alerta o presidente da ABC.

De acordo com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o Brasil investiu pouco mais de 1% do PIB em pesquisa e desenvolvimento em 2018.

Países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — como Alemanha, França, Itália, Estados Unidos, Reino Unido, entre outros —, da qual o Brasil almeja fazer parte, investem, em média, mais de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em pesquisa e desenvolvimento.

Já países reconhecidamente inovadores, como Coreia do Sul e Israel, investem mais de 4% na área.

Davidovich ressalta que um dos pontos que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ressaltou quando assumiu o cargo foi que a área da ciência e tecnologia receberia alto investimento durante seu governo.

"Os Estados Unidos devem investir de 2,7% a 3% do PIB na ciência. O Biden mandou agora, para o Congresso norte-americano, um orçamento assombroso de centenas de bilhões de dólares para a pesquisa de desenvolvimento', diz.

"O que ocorre frequentemente é que as empresas americanas pressionam o governo para financiar pesquisas básicas, que são feitas em universidades. Essas pesquisas favorecem as indústrias, que não precisam desenvolver o básico, apenas os frutos desses conhecimentos. É uma estratégia que tem dado certo nos EUA", acrescenta.

Ele ressalta que a China, principal adversária global dos EUA, também decidiu aumentar os investimentos para a área de educação e ciência neste ano.

"A grande guerra hoje em dia não é por bomba atômica ou algo assim. É a guerra da rede 5G de internet móvel entre os Estados Unidos e a China. É uma guerra da tecnologia. O mundo hoje mudou e está fortemente ligado ao conhecimento", assevera.

O Brasil está na contramão desse movimento, opina Davidovich, porque o governo acredita que o investimento nessa área é puramente gasto e não considera que o retorno surge a longo prazo.

"As estimativas apontam que o Brasil investiu menos de 1% do PIB em pesquisa e desenvolvimento no ano passado. Está muito abaixo desses países no investimento nessa área, se analisarmos em termos de PIB", diz o cientista. "Esses países que têm investido muito em ciência já entenderam há bastante tempo que a economia deles depende fortemente de inovação e que essa inovação está ligada à ciência e tecnologia."

Sem prioridade para a ciência no Brasil, o país abre espaço para que os cientistas busquem nações que tenham alto investimento em pesquisa.

"Nós estamos perdendo jovens cientistas para outros países. Será que podemos perder? Será que temos um grande número de cérebros e podemos dispensar alguns? A resposta é não. Os dados mais atuais do Banco Mundial indicam que o Brasil tem 880 pesquisadores por milhão de habitantes. A Argentina, nossa vizinha, tem 1,2 mil por milhão. E os países da OCDE têm entre 3,5 mil a 4 mil pesquisadores por milhão", detalha Davidovich.

Recurso contingenciado

Cientista afirma que governo Bolsonaro não aprendeu sobre a importância da ciência durante a pandemia (Ascom ABC)

Um motivo que faz com que a ciência brasileira enfrente uma fase extremamente difícil é o contingenciamento de R$ 5,1 bilhões. Esse valor é referente a cerca de 90% do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), uma das principais fontes de recursos da ciência e tecnologia no país.

O FNDCT é obtido por meio de impostos e tributações de setores que exploram recursos naturais e outros bens da União.

Há décadas, parte desse recurso é bloqueado. "Esse contingenciamento foi diminuindo aos poucos durante o governo Lula e chegou a ser encerrado. Mas depois, no governo seguinte, foi retomado", relata Davidovich. Ele ressalta que nunca houve um bloqueio como agora. "Esse contingenciamento de 90% é o mais alto das últimas décadas", diz.

Os cerca de 90% do FNDCT deste ano foram guardados em uma reserva de contingência sob o argumento de que a liberação total desse valor ultrapassaria o teto de gastos do MCTI.

Desde meados do ano passado, entidades ligadas à ciência iniciaram um movimento para impedir o bloqueio do FNDCT. Elas alegaram que os recursos do fundo são necessários para o avanço da ciência e tecnologia.

As manifestações das entidades culminaram em uma lei complementar, promulgada no fim de março, que proibiu o Executivo de bloquear o FNDCT. A medida foi comemorada pelas entidades que lutam pela ciência, mas logo se tornou um problema: a Lei Orçamentária Anual (LOA) 2021 foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro com os R$ 5 bilhões do fundo contingenciados.

A lei complementar foi publicada no Diário Oficial pouco após a sanção da LOA pelo Congresso. Quando Bolsonaro sancionou o Orçamento, a lei já estava em vigor. Porém, o presidente ignorou a medida e manteve o bloqueio do FNDCT.

Entidades relacionadas à ciência e tecnologia se manifestaram contra o contingenciamento de Bolsonaro e cobraram a liberação do fundo.

No fim de maio, essas entidades divulgaram uma carta na qual pediram que os R$ 5,1 bilhões fossem "imediatamente e integralmente liberados para a função estabelecida em lei, que é o financiamento da pesquisa científica e tecnológica".

"Os avanços da ciência, tecnologia e inovação têm se mostrado imprescindíveis para a superação da crise sanitária, econômica e social, em razão da pandemia de covid-19", diz trecho da carta.

Sem perspectivas no Brasil, muitos pesquisadores têm decidido deixar o país (Getty Images)

"O sistema nacional de ciência e tecnologia, consolidado nas últimas décadas, está em vias de colapso. Os sucessivos cortes orçamentários precarizam universidades e institutos de pesquisa, afetando seriamente a pesquisa realizada nessas instituições e a formação adequada de profissionais. O investimento escasso em P&D (pesquisa e desenvolvimento) prejudica a inovação e a recuperação da economia", acrescenta a carta.

Durante uma recente sessão conjunta no Congresso Nacional, deputados e senadores aprovaram um projeto de lei que abre crédito suplementar de R$ 1,88 bilhão para financiar projetos de desenvolvimento tecnológico de empresas, por meio do FNDCT. Na mesma sessão também foi aprovado um projeto de lei para liberar R$ 415 milhões do fundo para custear testes clínicos de vacinas nacionais contra a covid-19.

Mas Davidovich alerta que desse montante liberado, somente R$ 415 milhões não são reembolsáveis. Já o R$ 1,88 bilhão deve ser devolvido posteriormente aos cofres públicos.

"Esse recurso (de R$ 1,88 bilhão) é empréstimo. As empresas precisam devolver, depois de algum tempo, para o governo com juros. Esse dinheiro para crédito não tem sido usado pelas empresas porque os juros são altos demais. Elas conseguem empréstimos a juros menores em outros lugares", explica o cientista.

"Para ter uma ideia, a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) tem bilhões de reais de créditos desses, de anos anteriores, porque não consegue gastar. As empresas inovadoras não querem esses recursos, elas querem a subvenção, que faz parte dos recursos não reembolsáveis, que realmente são importantes para a ciência e inovação. E que não estão sendo liberados", acrescenta o presidente da ABC.

Para o cientista, dificilmente o R$ 1,88 bilhão será usado. "Quando o governo diz que liberou esse R$ 1,8 bilhão do FNDCT para crédito, está dizendo: olha, vou colocar esse dinheiro para falar que estou liberando, mas no fim do ano, como esse dinheiro não será emprestado, ele vai ter que ser devolvido ao tesouro. É como se o governo estivesse dando com uma mão e tirando com a outra", declara.

Ainda não há prazo para desbloqueio dos R$ 2,8 bilhões do FNDCT que continuam contingenciados. Especialistas afirmam que esse valor não será reembolsável.

Em nota á BBC News Brasil, o Ministério da Economia não informou se há um prazo para a liberação de todo o recurso do FNDCT. A pasta argumenta que faz avaliações de receitas e despesas bimestralmente e, com base nisso, faz realocações de recursos. No caso do fundo, o MCTI precisará definir como esse recurso será aplicado, respeitando os limites do teto de gastos.

Apesar de a liberação integral do FNDCT ser considerada fundamental para a ciência, especialistas ressaltam que o recurso por si só não será capaz de solucionar a crise na área da ciência e tecnologia. Eles ressaltam que também é importante que haja mais investimentos por parte do governo federal para que o setor possa avançar.

Um dos problemas para a ciência brasileira, avaliam especialistas, é a regra do teto de gastos governamentais, adotada durante o governo Michel Temer (MDB).

"O teto de gastos certamente se tornou um problema e isso está na raiz dele. O pecado original do teto é igualar gastos correntes com investimentos. São coisas muito diferentes, até porque gastos correntes entram como despesas na matriz econômica. Os investimentos deveriam entrar como ganhos futuros, mas não são vistos assim", diz Davidovich.

"O investimento na pesquisa traz retorno ao país. Por exemplo, cada real colocado na Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) traz retorno de R$ 10 a R$ 15 a mais no futuro. Mas o teto de gastos, desde o início, não faz essa distinção", acrescenta.

Além do teto de gastos, o especialista ressalta que as dificuldades atuais relacionadas à ciência e tecnologia ocorrem porque não existe interesse do governo de Jair Bolsonaro em dar atenção ao setor.

Os impactos da atual situação

"O investimento na pesquisa traz retorno ao país", defende Luiz Davidovich (Ascom ABC)

O orçamento reduzido para a ciência e tecnologia afeta todos os setores da ciência e tecnologia, detalha o presidente da ABC.

Ele pontua que muitos equipamentos de laboratórios ficaram obsoletos durante a pandemia, por não terem sido usados. Em razão disso, precisam ser consertados, mas não há garantia de recursos para isso.

Outro problema, relata Davidovich, é a aquisição de insumos. Ele conta que a taxa de importação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vinculado ao MCTI, caiu de US$ 300 milhões no ano passado para cerca de US$ 93 milhões neste ano.

"Como consequência disso, há laboratórios parando porque faltam insumos. É um desperdício no país, porque pesquisas foram financiadas com recursos públicos e, de repente, não podem continuar porque não tem como importar insumos", diz.

Ainda entre as dificuldades também há a redução de bolsas concedidas pelo CNPq e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), vinculada ao MEC.

"A conta de bolsas para o CNPq não fecha até o fim do ano. Então vão ser necessários recursos adicionais. Essas bolsas são fundamentais para muitos pesquisadores. Sem bolsas, muitas pessoas vão ter que interromper seus projetos", diz.

"Vão faltar recursos para importações e para bolsas de pesquisadores. Então, os projetos vão ser suspensos e isso prejudica a economia do país, porque muitas dessas pesquisas são feitas em colaboração com a indústria", explica o presidente da ABC.

As dificuldades na área da ciência e tecnologia têm preocupado a Confederação Nacional da Indústria (CNI), que tem atuado junto com entidades ligadas à ciência pela liberação do FNDTC.

Davidovich ressalta que as dificuldades na área da ciência e tecnologia afetam a economia em geral.

"Costumo dizer que a economia é importante demais para ficar apenas nas mãos dos economistas. A economia não é uma ciência exata e é facilmente ligada à política", diz.

"Não existe apenas um caminho para a economia, ela envolve opções políticas. E a política econômica adotada atualmente não está privilegiando, por exemplo, o capital produtivo. Ela tem privilegiado o capital financeiro. O mercado financeiro também faz parte do sistema, mas ele por si só não produz riqueza."

Ele comenta que uma área muito afetada pela falta de investimentos na ciência é a de pesquisas relacionadas diretamente à biodiversidade. "O Brasil tem Amazônia, Cerrado, Pantanal… Essa biodiversidade pode, por exemplo, ser fonte de novos medicamentos e garantir remédios para várias doenças com preços muito mais baratos", acrescenta Davidovich.

"Por exemplo, há um anti-inflamatório e antioxidante poderoso que é produzido em um laboratório da Suíça e é vendido no Brasil por R$ 1,2 mil cada miligrama. Esse produto vem de uma planta da Amazônia. O Brasil poderia estar vendendo por esse preço lá fora e mais barato aqui. Podemos baratear medicamentos e exportar, mas precisamos de indústria para escala de produção e de pesquisas", diz.

"Há um ciclo que envolve a academia e a indústria que permitiria o barateamento de medicamentos novos. E isso agrega valor comercial ao país por meio de novos remédios."

Os impactos desses cortes são diversos e afetam praticamente todas as áreas de pesquisa, destaca o cientista. "Isso está atingindo, por exemplo, a Embrapa (que é fundamental para desenvolver técnicas para a agropecuária). Outra área é a capacidade computacional do Brasil, que é necessária para várias áreas, inclusive a Defesa Nacional, mas estamos defasados por falta de investimentos", diz.

A BBC News Brasil questionou o MCTI sobre os impactos do atual orçamento da pasta para a pesquisa em todo o país. Porém, o ministério não respondeu até a publicação deste texto.

'Temos o pior de dois mundos'

Davidovich concluiu a graduação em física há mais de 50 anos e desde essa época atua na área de pesquisa relacionada à física quântica. Em meados da década de 70 se tornou doutor em física, após concluir os estudos na Universidade de Rochester, nos Estados Unidos.

Atuando há mais de cinco décadas na ciência, ele não acreditava que presenciaria uma fase tão complicada como a atual.

"Durante a ditadura militar nós tivemos fortes investimentos em pesquisas. Foi nesse período que foram fundadas a Embrapa, a Embraer e a Finep. Então havia um projeto nacional para a ciência. Porém, havia um ataque por questões ideológicas. Nós tínhamos recursos, mas, por outro lado, havia uma questão política muito importante", declara.

"Agora temos o pior dos mundos: não temos recursos e, além disso, temos ataques à ciência. Esses ataques ocorrem de várias formas. Primeiro pelo negacionismo da ciência, como na insistência pelo uso de medicamentos que já foram comprovados que são ineficazes para combater a covid-19 (como a hidroxicloroquina). Além disso, há ataques frequentes a pesquisadores e professores", diz o cientista.

Apesar das dificuldades, ele relata ter notado que muitas pessoas passaram a aprender mais sobre a importância da ciência durante a pandemia. "A população viu que a ciência é importante, as pessoas saem da vacinação e agradecem ao SUS (Sistema Único de Saúde). Então, a população está vendo (a importância da ciência)", diz.

"Agora, o governo está vendo essa importância? Me parece que não", declara Davidovich. "Há uma simultaneidade, infelizmente. Há uma pandemia e também há o corte de orçamento para a ciência e tecnologia. Isso é um contrassenso. É um paradoxo."

Vinícius Lemos - @oviniciuslemos, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 13 de junho de 2021

Regra de indicação para STF deixa aberto 'caminho da politização do Supremo', diz professor da USP

A falta de atualização nessas regras é um dos motivos, na avaliação do constitucionalista, que leva a questionamentos sobre a legitimidade do Supremo.

'Muitas vezes a legitimidade da Corte é questionada também porque nós estamos ainda vivendo esse modelo antiquado de formação', diz Tavares 

O presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência e professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), André Ramos Tavares, diz que o modelo de indicação de ministros ao Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil deixa aberto o "caminho da politização verdadeira do Supremo" e "transformação do tribunal em um espaço político".

"Muitas vezes a legitimidade da Corte é questionada também porque nós estamos ainda vivendo esse modelo antiquado de formação", disse Tavares.

A melhoria desse sistema, na avaliação de Tavares, deve passar pela criação de mandatos para ministros do Supremo e deve prever regras que ampliem as fontes de indicação de nomes, sem tanta concentração da decisão no presidente da República. Ele também sugere exigências mais específicas em relação à experiência profissional/acadêmica dos indicados.

Hoje a Constituição prevê que um indicado para ministro do Supremo deve ter "notável saber jurídico e reputação ilibada", além de mais de 35 anos e menos de 65. O nome é indicado pelo presidente da República e passa pelo aval do Senado. E não há mandatos - os ministros devem deixar o cargo quando completam 75 anos.

Tavares classifica o modelo atual como "muito perverso" e diz que ele acentua a "arbitrariedade do presidente em indicar o nome que quiser". Afirma, ainda, que o Senado "exerce papel nenhum" - apenas uma função protocolar de aceitar o nome indicado, ele diz.

O fato de não haver mandatos faz com que alguns presidentes indiquem muito mais ministros que outros. Após a redemocratização, por exemplo, os dois ex-presidentes que foram reeleitos e exerceram os dois mandatos completos indicaram números bem diferentes de ministros: Fernando Henrique Cardoso indicou três magistrados e Lula, oito.

A próxima vaga para ministro do Supremo ficará disponível em breve. O decano da Corte, ministro Marco Aurélio Mello, informou que vai se aposentar em 5 de julho - uma semana antes de completar os 75 anos, idade limite para permanecer no posto.

Bolsonaro, que indicou em 2020 o ministro Kassio Nunes Marques e está prestes a designar mais um nome, voltou a dizer a apoiadores neste ano que escolherá um ministro "terrivelmente evangélico".

A seguir, leia os principais pontos da entrevista de Ramos Tavares por videoconferência à BBC News Brasil:

Prestes a completar 75 anos, o ministro Marco Aurélio Mello informou que vai se aposentar em 5 de julho (Nelson Junior/STF)

BBC News Brasil - Como o sr. avalia o atual modelo de indicação de ministros do Supremo no Brasil, inspirado nos Estados Unidos?

André Ramos Tavares - É um modelo muito arcaico, não só porque foi pensado e construído no final do século 18, nos Estados Unidos. Não é possível imaginar que a sociedade continue a mesma, né?

Não acredito que esse modelo atenda plenamente nossa cultura atual, nossa diversidade. Ele não foi modernizado e isso é ruim, porque gera dificuldades até em termos de legitimidade. Muitas vezes a legitimidade da Corte é questionada também, porque nós estamos ainda vivendo esse modelo antiquado de formação da Corte.

Um ponto essencial é saber que essas cortes passaram a fazer controle das leis e, quando isto se tornou algo importante, principalmente a Europa criou um modelo diferente, de tribunal constitucional. Então, esse controle que o Supremo faz no Brasil - abstrato, que vale pra todo mundo, que alguns dizem que são decisões políticas ou algumas interferem em políticas públicas - passou a ser feito por tribunal constitucional, em que a composição é múltipla, (a indicação de seus integrantes) não está nas mãos de um presidente.

BBC News Brasil - Como isso poderia inspirar o Brasil?

Tavares - A primeira grande diferença seria termos mandato e permitir a renovação da corte. Esse modelo vitalício - nos EUA até a morte, e aqui, até a aposentadoria - petrifica a corte e exacerba os poderes individuais. Os ministros da Praça dos Três Poderes são o único poder que permanece por longos períodos. Então, eles assistem a essa troca de cadeiras (nos outros poderes) várias vezes. Os ministros do Supremo, por força desse prazo estendido que eles têm de permanência, são vistos de uma maneira diferente pelos políticos. Muitos políticos têm um certo receio, um medo reverencial, porque é poder exercido por um longuíssimo período pela pessoa. Então isto tem um impacto político, pesa na Praça dos Três Poderes. Seria importante a gente ter um mandato que permitisse um rodízio maior desses desses juízes com tanto poder.

Isso funcionaria desde que também tivéssemos um modelo diferente de nomeação. Não adianta muito continuar sendo pela pela escolha arbitrária do presidente - e esse é o modelo, não estou fazendo crítica a ninguém. Tem dois requisitos que são genéricos - reputação ilibada e notável saber jurídico -, que talvez fizessem sentido no século 18.

Hoje você vai ser CEO de uma multinacional, aí precisa saber qual é sua experiência, quais foram as suas realizações. Para ser ministro do Supremo, basta algo que é considerado genérico. Essas coisas acabam impactando também na legitimidade da corte. Então, muitas vezes, as críticas da que se dirigem à corte, elas têm um fundo, que não está muito claro, que é esse de termos um problema de um modelo muito perverso de indicação porque acentua a arbitrariedade do presidente em indicar o nome que ele quiser. E o Senado não exerce papel nenhum, apenas papel protocolar de aceitar.

Historicamente, o Senado tem ratificado todas as escolhas de nomes, diferente do Senado dos Estados Unidos, em que nomes são rejeitados.

BBC News Brasil - O senhor mencionou a legitimidade da Corte. Avalia que, hoje, a legitimidade do nosso Supremo já está comprometida?

Tavares - Essa é uma análise que pesa mais no sociológico. Tenho a impressão que hoje o Supremo entrou na arena política porque o cenário fez com que o Supremo avançasse para também estar presente nas questões de governo - e isso não é de hoje, tem sido progressivo nos últimos anos. E, ao entrar na arena política, é inevitável que a instituição sofra um desgaste maior, próprio da disputa política.

O Supremo não tem os instrumentos para lidar com esse tipo de ataque, de crítica permanente, constante. Com isso, ele vai perdendo legitimidade - não porque esteja errado, não porque as decisões sejam ruins, mas porque ele está dentro de uma arena que no fundo não é dele.

Tavares defende mudanças nas regras para nomeação de novos ministros do STF (Dorivan Marinho / SCO/STF)

BBC News Brasil - Diante desses pontos, qual seria, então, o melhor modelo para garantir maior equilíbrio no Supremo?

Tavares - A melhor palavra talvez seja diversidade, pluralismo… É o que a gente tem que buscar na composição da corte. Mas não representatividade. Não posso ter alguém lá na corte que seja representante do segmento X - dos Estados do Nordeste ou do Sul. Isso não faria sentido, os ministro têm que ser representantes da Constituição e em caráter sempre nacional.

Por que esse mecanismo que está aí não é bom? Porque ele não nos dá nenhum tipo de salvaguarda. Que salvaguarda a gente gostaria? Manter uma diversidade interna do tribunal - isso a gente só vai conseguir alternando as fontes de indicação. Não pode ser sempre a mesma pessoa ou não pode ser sempre a partir dos mesmos grupos (a indicação).

No fundo, a indicação do Presidente, a gente nunca sabe o que pode estar atendendo - pode ser que esteja atendendo uma demanda política de um grupo de parlamentares, uma pressão de um grande poder econômico, questões pessoais de um presidente - e nada disso é bom se é feito sem transparência. E como a gente alcança a transparência? Com regras que diversifiquem essas escolhas. Precisam partir de um modelo mais transparente.

O modelo atual é um modelo no qual a sociedade não sabe o motivo pelo qual determinado nome é escolhido. Não sabe como apareceu na mesa do presidente, quem levou, como levou, quando levou, se houve algum outro tipo de troca, de favor, de interesses.

Estamos vivendo uma sociedade que tem evoluído para transparência e não temos nada disso na escolha dos ministros da mais importante corte do país, que decidem a vida, quase que diariamente, da sociedade brasileira como um todo.

BBC News Brasil - Quais seriam as regras ideais, na sua avaliação? Alguma que esteja prevista em propostas de emenda à Constituição? Lista tríplice, participação de outras instituições?

Tavares - Não tem uma que eu acho que seja a correta. Várias podem ser usadas. O importante é que não seja só uma pessoa a escolher o nome. A gente pode pensar na participação dos outros poderes, até em sistema de rodízio - a primeira vaga, o Congresso Nacional vai realizar a indicação do nome. Na seguinte, o Judiciário indica um nome. Na terceira, aí o presidente indica, a partir de uma lista, por exemplo, fornecida por universidades, OAB, ou outras entidades da sociedade organizada. São composições que vão retirar esse poder da mão de um único presidente e vão dar diversidade para a corte.

E isso tudo tem que funcionar como um mandato. Hoje, pode ser que muitos ministros terminem no mandato de um mesmo presidente. Já aconteceu com o ex-presidente Lula, vai acontecer com o presidente Bolsonaro.

Mas o maior problema é você mudar repentinamente a maioria da corte. De repente você muda quatro, cinco, seis ministros em questão de quatro, cinco anos. Isso tudo gera uma mudança brusca da própria jurisprudência, do que é o direito. Essas coisas têm que ocorrer progressivamente. Os mandatos servem para poder ter essa previsibilidade.

Kassio Nunes Marques foi indicado por Bolsonaro para o cargo de ministro do STF (Ascom / TRF-1)

BBC News Brasil - Em qual prazo?

Tavares - Dez anos seria razoável. Não pode ser muito curto, porque perderia toda a experiência que vai construindo, mas não pode ser também muito longo, porque vai engessando a corte. É uma coisa que gira entre oito, doze anos - é o que tem nos tribunais constitucionais pela Europa.

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro já falou em ampliar o número de ministros do Supremo de 11 para 21. É uma boa ideia? Qual pode ser o impacto?

Tavares - Sei que parece uma pergunta simples, mas é super complicada, porque no fundo é quase um falso dilema. Nosso problema é saber o que o Supremo tem que julgar. Se a gente continuar com esse Supremo tendo esse volume gigantesco de processos para julgar, 21 seria pouco.

Então, mais importante do que mexer no número de ministros - porque isso talvez só atenda a uma demanda de nomes que querem ir para o Supremo ou de políticos que queiram indicar nomes - é mudar a quantidade de processos que chegam ao Supremo.

Se você olhar ao redor do mundo, as cortes não têm números elevados.

BBC News Brasil - Tivemos no Brasil a mudança na idade de aposentadoria compulsória num passado recente, mas não muito mais que isso, embora tenha propostas sobre modelo de indicação ao Supremo aparentemente paradas. Há interesse em mudar?

Tavares - A gente não muda porque é nossa cultura. No Brasil, a gente resolve os problemas quando eles aparecem. É difícil reconstruir normas para evitar os problemas. Veja o caso do impeachment: foi toda aquela briga, por causa de normas antigas, se aplicava, não aplicava. Aí hoje continuamos com o mesmo sistema. Passou, a gente deixa para lá, esquece. Toda vez que tem uma vaga no Supremo vem essa discussão. Aí passa, o ministro é escolhido, e ninguém mais discute.

É uma tarefa do Congresso, que também tem lá o seu tempo político. Aliás, é uma coisa, também, que acontece rotineiramente: o Congresso critica o Supremo, mas no fim do dia aprova leis que ampliam o poder do próprio Supremo - fez isso na criação da súmula vinculante (instrumentos que uniformizam decisões jurídicas diferentes), por exemplo.

BBC News Brasil - Quais são os riscos que o sr. considera que o Brasil corre ao manter o atual modelo?

Tavares - O risco, que pode nunca acontecer, é de ter uma mudança brusca ou um presidente que indique a maioria da corte e faça essas indicações de maneira política ou segundo convicções pessoais, não institucionais e não republicanas. É o risco de você acabar gerando não um tribunal Supremo, mas uma terceira câmara política, alinhada com o presidente.

Eu vejo tanta crítica, e muitas vezes fundadas, ao que aconteceu em outros países na América do Sul, em que as indicações foram politizadas - o Supremo, as cortes não tinham independência verdadeira, eram todos afinados com o presidente, que estava no no poder ou que ainda está. E nós deixamos aberto esse caminho, que é o caminho da politização verdadeira do Supremo e a transformação do tribunal em um espaço político. E aí como vamos fazer? Tem que respeitar, continuarão sendo decisões, proferidas formalmente por um tribunal.

Esse risco é um risco muito grave. Fica aí uma tentação sempre, vamos dizer assim. Para que o sistema oferecer esse tipo de estímulo a algum presidente? Temos que evitar isso.

BBC News Brasil - Por outro lado, o FHC indicou três ministros e o Lula, oito, no mesmo tempo de mandato. Apesar desse número alto de indicações do ex-presidente do PT, não se diz que ele controlou de alguma forma o Supremo, até pelo que aconteceu depois.

Tavares - Essas escolhas foram feitas de maneira independente - não sou filiado a nenhum partido, nunca fui, mas acho que, no caso do ex-presidente Lula está muito claro que elas não foram escolhas nem sequer alinhadas ao Partido dos Trabalhadores.

A história provou que, de fato, esses ministros não se alinharam, porque ele se tornou réu, e houve toda essa disputa em torno de interesses que a gente conhece. Então, o tribunal se mostrou independente, porque as pessoas indicadas tinham esse perfil. E eu acho que isso é o mais importante. Deixaremos isso ao acaso, como acontece, e eventualmente vai dar certo, como deu? Ou tentaremos criar salvaguardas para evitar que um mal maior aconteça?

BBC News Brasil - Considerando suas críticas ao modelo atual, quais seriam exigências mais apropriadas para o perfil de ministro ou ministra do STF?

Tavares - Em termos de incluir condições, aquelas que a modernidade trouxe: o que o Congresso entende que é alguém com um notável saber - alguém que publicou obras, ou que teve uma grande ação, na qual atuou e fez toda a diferença pra sociedade brasileira? Eu indicaria aí especificações que podem ser alternativas - alguém que tenha doutorado e/ou 20, 30 anos de experiência na advocacia do Supremo, ou que tenha patrocinado uma grande causa de impacto para maior parte da sociedade brasileira.

É possível imaginar critérios objetivos que detalham, no momento histórico atual, o que é alguém com notável saber jurídico. Certamente, não é alguém que tenha apenas um diploma e que tenha exercido a advocacia, no meu modo de ver.

Pode ser alguém que tenha tido experiência como advogado-geral da União, por dois, três anos, ministro da Justiça…. Mas aí entra que condição eu gostaria que fosse impositiva, que é de que ministros ou advogado-geral da União - inclusive tem uma PEC sobre isso - sofresse uma quarentena. Em termos de preservação, vamos dizer assim, de questões de evitar esse favoritismo de momento.


Tavares: risco do atual sistema é de 'ter uma mudança brusca ou um presidente que indique a maioria da corte'. (STF)

BBC News Brasil - O presidente Jair Bolsonaro voltou a falar em um nome "terrivelmente evangélico" para o STF. O que acha desse critério?

Tavares - Não tenho nada contra essas questões de escolha em que o presidente diz "vou escolher alguém terrivelmente evangélico". O grande problema é, talvez, a imagem que passa, de que alguém ascenderá ao Supremo apenas porque é terrivelmente evangélico, porque seria um notável erro escolher alguém só por esse critério. Mas eu acredito que quando o presidente diz isso, não está endereçando uma questão técnica, está conversando com alguma base política dele. No meu modo de ver, a gente só vai saber disso no momento da escolha. Tanto que a escolha que ele fez (em 2020) não foi essa, apesar de ter anunciado. Escolheu um juiz de carreira (Kassio Nunes).

BBC News Brasil - Quando você fala em diversidade, também se refere a aumentar participação de mulheres e de ministros negros, por exemplo?

Tavares - Acho que não deveria ter cota para o supremo. O mecanismo poderia ser por meio dessa diversidade de fontes de escolha. Se você tiver um modelo em que a sociedade participe, muito provavelmente conseguiríamos ter diversidade de gênero ou outras. Então, isso tudo teria que vir dessa diversidade de entidades que vão colaborar na escolha.

O importante é a diversidade das pessoas por terem formação diversa, por terem circunstâncias pessoais diversas, para não serem todos do mesmo grupo. Pode acontecer: é uma determinada elite, em que dentro daquele grupo sempre se escolhe os ministros. Ou são sempre pessoas formadas mais numa faculdade, ou num determinado estado do país. Então, precisa ter diversidade, experiências de vida distintas.

Laís Alegretti - @laisalegretti, de Londres para a BBC News Brasil, em 13 de junho de 2021

Militares planejam se manter no poder 'com ou sem Bolsonaro', diz coronel da reserva

O coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza virou nos últimos anos uma das vozes mais críticas ao envolvimento das Forças Armadas na política.

Com Bolsonaro, militares voltaram ao poder sem ruptura institucional (Getty Images)

Para explicar o porquê, ele conta sobre uma conversa que teve com um tenente sobre como vários dos colegas com quem tinha servido estavam no governo.

"O tenente disse: 'É, realmente, houve um aparelhamento, mas o outro lado, quando governava, fazia o mesmo'. Na hora nem percebi, mas depois vi que ele pensa que os militares têm um lado. Isso é errado", diz o coronel Pimentel à BBC News Brasil.

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Canais bolsonaristas investigados ganharam R$ 4 milhões no YouTube, segundo PGR

Nascido em uma família de militares e formado pela turma de 1987 da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), Pimentel diz que isso vai contra tudo pelo que ele trabalhou até deixar a ativa, em 2018.

"Estão destruindo a muralha que minha geração construiu entre as Forças Armadas e o governo, entre o militar e a política", diz o coronel de 54 anos. Se os militares tomam partido, "deixam de ter representatividade para defender o Brasil inteiro", defende ele.

Pimentel avalia que essa mentalidade é cada vez mais comum entre os militares. Mas acredita que as baixas patentes estão apenas seguindo o exemplo que vem de cima, dos generais que formam o que Pimentel chama de "Partido Militar".

Em sua visão, esse grupo, que comanda o Exército, encontrou no presidente Jair Bolsonaro (sem partido) uma forma de chegar ao Planalto sem uma ruptura institucional, como no golpe de 1964.

"Dos 17 generais que formam o Alto Comando do Exército, 15 exercem cargos de primeira ordem. Há militares tanto na administração direta, que é a Esplanada dos Ministérios, quanto nas empresas estatais, autarquias, órgãos de fiscalização."

Ele diz ser por isso que ele chama o atual governo é um governo militar. "As pessoas não enxergam porque esse grupo chegou ao poder sem uma ruptura institucional, mas eles ocupam cabeça, tronco, membros, entranhas e alma desse governo."

De volta ao comando do país, diz Pimentel, esses militares agora estão se preparando para se manter no poder, "com ou sem Bolsonaro".

'A finalidade é manter o poder conquistado'

Apoiadores de Bolsonaro têm uma forte identificação com os militares (Reuters)

Pimentel diz que pegou emprestado de cientistas sociais o termo Partido Militar para falar desse grupo que decidiu se lançar na política.

Ele aponta que são militares formados na Aman nos anos 1970, em plena ditadura — como o próprio Bolsonaro. Tornaram-se generais no primeiro mandato de Lula, segundo Pimentel, e chegaram ao comando do Exército no governo Dilma.

"São generais da reserva em sua maioria, mas também da ativa. É um grupo bastante coeso, hierarquizado, disciplinado, com algumas características autoritárias e pretensões de poder até hegemônicas. Sua finalidade é manter o poder conquistado", diz.

O grupo teria começado a se articular no início da década passada, segundo o coronel, em parte por causa das insatisfações com as conclusões da Comissão da Verdade sobre os crimes cometidos por militares na ditadura e o fato do país ser governado por Dilma Rousseff (PT), uma ex-guerrilheira.

Ao mesmo tempo, a missão da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti aproximou as Forças Armadas brasileiras e americanas.

"Estabeleceram-se relações pessoais entre os generais brasileiros e americanos. O lazer das tropas era na Flórida, em Nova York, em Washington. Esses oficiais viram como o cidadão americano tratava o militar. olhavam para cá e não sentiam que o brasileiro valorizava, né?", comenta Pimentel.

O coronel diz que foi esse grupo que procurou Bolsonaro e não o contrário. Não teria sido por acaso, portanto, que o presidente lançou sua candidatura na Aman, ainda em 2014.

"Nós temos que mudar o Brasil, tá ok?", disse Bolsonaro na época, diante de um grupo de aspirantes que o chamavam de "líder" — um registo do encontro está no canal no YouTube de Carlos Bolsonaro, filho do presidente.

"Alguns vão morrer pelo caminho, mas estou disposto em 2018, seja o que Deus quiser, a tentar jogar para a direita este país."

"Parece até que ele estava vaticinando o que ia acontecer na presidência dele", diz Pimentel, que é um crítico antigo do presidente.

Presidente foi alçado ao poder com apoio de generais, diz Pimentel (Getty Images)

'Partido Militar vai estar no segundo turno do ano que vem'

O coronel diz que, em algum momento do primeiro mandato de Dilma foi fechado um acordo em torno da candidatura de Bolsonaro. Ele afirma ter acompanhado de perto a transformação da imagem do então deputado federal entre as tropas.

"Em 2015, eu fui a uma formatura na Aman, e Bolsonaro era simplesmente o maior astro. Como um camarada que tinha saído do Exército pela porta dos fundos tinha sido de repente convertido em mito?", questiona.

"Essa candidatura foi muito bem pensada, planejada, e foi usada muita história de cobertura para disfarçar o envolvimento desse grupo, como aquela novela (da escolha) do vice. Falaram no Magno Malta, no príncipe (Luiz Phelippe de Orleans e Bragança), na Janaína Paschoal, mas a única dúvida era se seria o (general Augusto) Heleno ou o (general Hamilton) Mourão."

A idade avançada de Heleno acabou sendo decisiva, e Mourão foi o escolhido, completa o coronel. A chapa Bolsonaro-Mourão venceu as eleições, e o Partido Militar ocupou o governo e a máquina pública, diz Pimentel.

Militares ocupam vários postos de primeiro escalão do governo federal (Getty Images)

O coronel diz que o mesmo grupo agora está se preparando para continuar no poder. "Repito: com ou sem o atual presidente da República", pontua.

Ele calcula que uma possibilidade passa por Mourão — "podendo ser ele o cabeça de chapa" — ou pelo general Santos Cruz, "como o candidato de uma frente ampla".

Pimentel atuou junto com Santos Cruz em 2016 em um grupo de trabalho do Estado Maior do Exército que era supervisionado pelo coronel, ainda na ativa, e orientado pelo general, que já estava na reserva.

Santos Cruz assumiu a Secretaria de Governo de Bolsonaro em novembro de 2018 e foi demitido sete meses depois, após ataques de apoiadores do presidente. Ele tem mantido uma intensa agenda pública desde então.

"Talvez o Mourão passe para o segundo turno. Talvez seja o Santos Cruz", especula Pimentel. "Mas o Partido Militar vai estar no segundo turno no ano que vem."

Santos Cruz disse à BBC News Brasil que não quer comentar sobre as "divagações" de seu ex-subordinado.

O Exército e o Planalto não responderam o contato da reportagem até a publicação desta reportagem.

O general Santos Cruz tem mantido uma intensa agenda pública desde que deixou o governo (Getty Images)

'Fui chamado de esquerdopata e comunista'

Pimentel diz que a ida do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde foi um erro de cálculo do Partido Militar. "As curvas estavam caindo na Europa e na Ásia, e ninguém sabia que haveria ondas, pensava-se que seria um surto", diz o coronel.

"Tentaram fazer uma publicidade da capacidade do Exército brasileiro de resolver problemas, pensando que os nossos números também iam cair, e quem estaria à frente do ministério seria um general da ativa vendido como o rei da logística."

Mas a pandemia se agravou, e Pazuello deixou o ministério em março passado muito criticado e sendo investigado por causa do colapso do sistema de saúde em Manaus.

Mas Pazuello não se afastou de Bolsonaro — pelo contrário. Virou secretário do presidente da República e discursou em um ato em apoio a Bolsonaro.

Pazuello disse que manifestação a favor de Bolsonaro não foi ato político (Getty Images)

A decisão do Exército de não punir Pazuello por ter participado da manifestação é mais um exemplo da politização das Forças Armadas e mostra que elas "têm um lado", diz Pimentel.

O regimento militar veda manifestações políticas por quem está na ativa. "Mas isso só vale para manifestações contra o presidente ou vale para qualquer manifestação política?", questiona o coronel.

A depender dessa resposta, diz ele, o Exército brasileiro estará assumindo uma posição política. "Ficou estranha essa decisão, porque com indisciplina não se transige. É a base da instituição."

O comando do Exército concordou com os argumentos do ex-ministro da Saúde e do presidente de que a manifestação não foi um ato político e que por isso o general não cometeu nenhuma transgressão.

"Dizer isso é uma ofensa com a inteligência média do indivíduo", diz Pimentel.

O próprio coronel foi punido por ter protestado em uma rede social contra a "bolsonarização" do Exército e o fato do governo federal tratar 1964 como uma revolução e não um golpe.

Tudo isso aconteceu quando ele já estava na reserva, em 2019, e a lei garante o direito a manifestações políticas a estes militares. Por isso, Pimentel diz que suas punições foram ilegais. "Isso me abalou muito", diz.

Coronel Marcelo Pimentel está na reserva desde 2018 (Arquivo Pessoal)

"Sofi uma tentativa de intimidação, uma censura. Mas, se eu fui punido por uma manifestação que pouca gente viu, o que dizer de um general da ativa em uma manifestação claramente política? Isso só torna a minha punição ainda mais injusta."

O coronel diz que seus posicionamentos — ele declarou voto em Fernando Haddad (PT) no segundo turno da última eleição e, "no primeiro, votei no Ciro Gomes (PDT)" — e as críticas que faz ao atual governo e ao Exército tem lhe rendido alguns problemas com amigos e na família.

"Sofro muitos ataques. Fui chamado de (Carlos) Lamarca, de esquerdopata, de comunista, embora nunca tivesse votado no PT antes daquela eleição. Fiz isso porque queria evitar tudo que está acontecendo agora", conta ele.

O coronel diz que faz isso para "despertar a consciência crítica" dos militares, especialmente os mais jovens.

"A minha geração está politizada, eu já perdi a esperança que ela vá romper com esse processo. Quero que as próximas gerações vejam que não é esse o caminho e que a gente tem que ocupar o lugar que a Constituição nos reservou."

Rafael Barifouse, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 12 junho 2021