quinta-feira, 13 de maio de 2021

Wajngarten liga Bolsonaro a omissão na compra de vacinas da Pfizer em sessão tumultuada da CPI

Ex-secretário de Comunicação se contradiz e afirma que proposta da farmacêutica ficou dois meses sem resposta do Governo. Relator da comissão, Renan Calheiros pede sua prisão e bate boca com Flávio Bolsonaro

O ex-secretário de Comunicação do Planalto Fabio Wajngarten, observa o presidente da CPI da Pandemia, Omar Aziz.ERALDO PERES / AP

O depoimento do ex-chefe da comunicação do Governo Jair Bolsonaro na CPI da Pandemia elevou a temperatura dos debates no dia mais tumultuado da comissão até agora. O que era para ser um movimento calculado pelo Planalto com um fiel defensor do presidente o isentando de culpa na gestão da crise de covid-19 acabou sendo um tiro que saiu pela culatra. Fabio Wajngarten foi ameaçado de prisão pelo relator Renan Calheiros depois de mentir e se contradizer ao longo de quase dez horas de depoimento. De quebra, o ex-secretário especial de Comunicação acabou por colar em Jair Bolsonaro parte da culpa por ter ignorado uma oferta de vacinas da Pfizer no mês de setembro do ano passado. A falta de investimentos em imunizantes por parte do atual Governo é uma das principais linhas da acusação na CPI liderada por Calheiros.

Wajngarten deixou a Secretaria Especial de Comunicação em março. No mês seguinte ele concedeu uma entrevista à revista Veja na qual atribuiu a condução equivocada da pandemia de coronavírus à equipe do Ministério da Saúde que era comandada pelo general Eduardo Pazuelllo. Foi por causa desta entrevista que ele foi convocado como uma espécie de homem-bomba capaz de complicar o Governo. Inicialmente, suas falas iam no sentido de blindar Bolsonaro e, surpreendentemente, também Pazuello. Por fim, depois de tantos questionamentos, ele acabou confirmando a trama envolvendo a Pfizer.

Em 12 de setembro daquele mês a farmacêutica enviou uma carta ao Governo oferecendo imunizantes. O documento fora entregue a seis pessoas: o presidente Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão, ao embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Foster, e aos então ministros Paulo Guedes (Economia), Eduardo Pazuello (Saúde) e Walter Braga Netto (Casa Civil). A carta ficou sem qualquer resposta formal até 9 de novembro, quando Wajngarten ficou sabendo por intermédio do dono da emissora RedeTV!, Marcelo de Carvalho, que a Pfizer ainda esperava qualquer manifestação do Governo.

Segundo seu relato, o então secretário de Comunicação enviou um e-mail para a sede da Pfizer em Nova York informando que teve acesso ao documento ―disponibilizado à CPI nesta quarta. No mesmo dia 9 de novembro, pouco tempo depois de enviar a mensagem, recebeu uma ligação de Carlos Murillo, então gerente-geral da farmacêutica no Brasil. 

De acordo com o que contou à comissão, ele levou o telefone ao gabinete do presidente Bolsonaro, que estava em reunião com o ministro Paulo Guedes e ambos conversaram com Murillo. “O presidente foi informado no primeiro momento”, disse o ex-secretário. Nenhum deles justificou a razão de não terem dado resposta alguma. Guedes, teria dito apenas que esse era “o caminho” e Bolsonaro, reforçado que qualquer imunizante seria comprado desde que aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Nesta quinta-feira, parte do que foi discutido por Wajngarten será confrontado com os dados da farmacêutica Pfizer. Serão ouvidos pela CPI o presidente da farmacêutica na América Latina, o chileno Carlos Murillo, que até novembro do ano passado era o gerente-geral da companhia no Brasil, e a sucessora dele neste cargo, a espanhola Marta Díez.

Ao longo desta quarta-feira, os senadores conseguiram extrair do depoimento de Wajngarten informações que embasam duas das linhas de investigação que a CPI quer apontar, a de que Bolsonaro não comprou imunizantes com antecedência, diante da falta de respostas à oferta da Pfizer, e que insistiu na tese de que os brasileiros estariam protegidos diante de uma imunidade de rebanho, ao desincentivar medidas de restrição de circulação por meio propaganda governamental. Este segundo caso, acabou gerando um pedido de prisão por parte do senador Renan Calheiros (MDB-AL), o relator da CPI.

O emedebista entendeu que Wajngarten teria cometido o crime de falso testemunho primeiro negar a existência de uma peça publicitária intitulada “O Brasil não pode parar”, que estimulava as pessoas a trabalharem presencialmente, mesmo com a pandemia. O vídeo chegou a ser publicado em perfis da Secretaria de Comunicação em redes sociais e no site oficial do Governo, mas diante da repercussão negativa e antes mesmo de uma proibição assinada pelo ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, acabou apagada.

Wajngarten primeiro disse que desconhecia o vídeo. Depois, afirmou que ele foi feito de forma experimental e não teve autorização para ser divulgado. Por fim, depois de tantas idas e vindas, afirmou que, de repente, lembrou-se que o ministro da Luiz Eduardo Ramos, que era seu superior hierárquico na Secretaria de Governo, divulgou o vídeo para um grupo de ministros. “Pelo que entendi, ele [Ramos] disparou para o grupo de ministros e, de lá, eu não sei mais o que aconteceu”, disse.

“O espetáculo de mentiras que nós vimos hoje aqui é algo que não vai se repetir, e não pode servir de precedente”, disse Renan após anunciar que solicitaria a prisão de Wajngarten. Ao longo da tarde, o ex-chefe da Comunicação ainda cometeu ao menos mais duas contradições. Primeiro, ele disse que teve três reuniões presenciais com representantes da Pfizer em Brasília e que todas constavam de sua agenda pública oficial, quando na verdade, não estavam. A segunda, quando afirmou que não negociou a compra das vacinas com a farmacêutica, e tampouco que sabia de valores a serem pagos pela dose dos imunizantes. Na entrevista à Veja, contudo, ele sinaliza que teve acesso aos preços cobrados pela empresa.

“As negociações avançaram muito. Os diretores da Pfizer foram impecáveis. Se comprometeram a antecipar entregas, aumentar os volumes e toparam até mesmo reduzir o preço da unidade, que ficaria abaixo dos dez dólares. Só para se ter uma ideia, Israel pagou 30 dólares para receber as vacinas primeiro”, afirmou Wajngarten à revista semanal.

Por um instante, houve a sensação de que Wajngarten sairia preso da comissão. Assim como em tribunais, nas CPIs, as testemunhas não podem mentir ou se negarem a responder a questionamentos, apenas investigados podem. Quando o clima esquentou, já no fim da tarde, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), apareceu para tumultuar e criar uma narrativa para sua fervorosa militância de sua família nas redes sociais. “Imagina um cidadão honesto ser preso por um vagabundo como Renan Calheiros”. A fala de Flávio acabou sendo reproduzida pelo perfil oficial de Bolsonaro no Twitter.

O bate-boca prosseguiu, com a resposta de Renan. “Vagabundo é você que roubava dinheiro das pessoas do seu gabinete”, disse o emedebista em alusão ao escândalo da rachadinha do qual Flávio é suspeito de comandar enquanto era deputado estadual no Rio de Janeiro. A sessão foi temporariamente suspensa.

Por fim, o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), decidiu que não prenderia Wajngarten, mas encaminhou sua oitiva ao Ministério Público Federal para que um procurador avaliasse se ele cometeu o crime de falso testemunho. “Eu não sou carcereiro de ninguém. Eu sou um democrata. Se ele mentiu, nós temos no relatório como pedir o indiciamento dele, mandar para o Ministério Público para ele ser preso, mas não por mim”, afirmou. Em tom professoral, Aziz ainda disse que o pior para Wajngarten não seria sua prisão, mas a perda de credibilidade. “Não pense que o pior na sua vida seria a prisão hoje. Não seria. O pior é o legado que você construiu com muito trabalho, e que você perdeu hoje aqui nesta CPI”.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 12 MAI 2021 - 21:33 BRT

Com Boulos ou Haddad, candidatura única da esquerda lideraria disputa por Governo de São Paulo

Resultados são de pesquisa Atlas. Se nome do PSOL e petista concorrerem em chapas separadas ao mesmo tempo, estudo aponta empate quádruplo com Skaf e França pelo Governo estadual. Atual governador, Doria não lidera nenhum cenário e tem aprovação menor que Bolsonaro no Estado

Fernando Haddad (PT) e Guilherme Boulos (PSOL) nas eleições para presidente, em 2018.RICARDO STUCKERT / PARTIDO DOS TRABALHADORES

Seja liderada por Guilherme Boulos (PSOL) ou por Fernando Haddad (PT), uma candidatura única da esquerda largaria na frente na disputa pelo Governo de São Paulo em 2022, mostra a pesquisa Atlas divulgada nesta quarta-feira. Quando não concorre com o petista, Boulos apresenta 26,3% das intenções de voto num eventual primeiro turno pelo Palácio dos Bandeirantes, contra 17,9% de Paulo Skaf (MDB) e 13,3% de João Doria (PSDB). 

Já Haddad, sem enfrentar o psolista na mesma disputa, conta com 25,3% das intenções, a frente dos 13,5% de Skaf e 12,2% de Doria. No entanto, no cenário em que os nomes de esquerda rivalizam candidaturas, a pesquisa aponta um empate quádruplo na liderança do levantamento, que tem margem de erro de três pontos para mais ou para menos: Boulos (17%), Skaf (16,4%), Haddad (14,6%) e Marcio França (12,5%), do PSB.

“Chama a atenção a fortaleza de Guilherme Boulos, inclusive em cenário em que aparece junto com o Fernando Haddad”, comenta Andrei Roman, CEO do Atlas. “A sua candidatura à Prefeitura de São Paulo em 2020 cristalizou uma base forte e, caso a esquerda não se una, corre o risco de ficar fora do segundo turno”, explicou ele. 

Apesar de liderarem a enquete a governador, PT e PSOL aparecem na mesma pesquisa como os dois partidos com os maiores índices de rejeição no Estado, com 57,6% e 45,1% respectivamente. Já na rejeição direta aos candidatos, Haddad aparece em primeiro com 44,3%, seguido de João Doria (44,2%) e Geraldo Alckmin (39,1%). Boulos é o sexto mais rejeitado entre oito candidatos, com 37%.

Roman destaca ainda o desempenho do governador João Doria nas pesquisas realizadas pelo Atlas. “Neste momento, não consegue uma segunda colocação em nenhum dos cenários testados”, diz ele. Além de estar entre os mais rechaçados no Estado, Doria tem como melhor desempenho um terceiro lugar para governador, no cenário com Boulos e Skaf na frente. 

O estudo ainda mostrou que 62,1% das pessoas desaprovam o atual Governo estadual, e 48,1% consideram seu desempenho como governador ruim ou péssimo, contra 13,9% de ótimo ou bom. “Sem uma base sólida de votação, restam dúvidas sobre a capacidade do Doria de transferir votos para o vice-governador Rodrigo Garcia [em caso de candidatura presidencial de Doria]”, afirma o CEO. 

Garcia é o candidato com o segundo menor índice de rejeição, mas aparece em último em todos os cenários utilizados. “Existe uma forte articulação dentro e fora do PSDB a favor de uma candidatura do Geraldo Alckmin”, diz Roman.

A pesquisa traz ainda mais notícias negativas para o governador tucano, que sonha também em disputar o Planalto. Segundo o Atlas, o eleitor paulista gosta mais do desempenho do presidente Jair Bolsonaro do que do de Doria. Bolsonaro tem 40,9% de aprovação no Estado, contra 35,3% do tucano, enquanto 31,4% das pessoas consideram o desempenho do presidente ótimo ou bom —quase 20 pontos percentuais a frente de Doria. 

Por outro lado, menos da metade considera o Governo estadual ruim ou péssimo, ao mesmo tempo em que 55,5% dos entrevistados classificam o Governo federal com os mesmos adjetivos.

A comparação é válida uma vez que Doria e Bolsonaro rivalizaram posturas no combate à pandemia de covid-19 desde o ano passado. Enquanto o governador adotou medidas restritivas, defendeu publicamente as medidas sugeridas pela ciência e foi o primeiro a adquirir vacinas no país, o presidente optou por criticar o isolamento social, menosprezar a doença e criticar a vacina escolhida por Doria por ser oriunda da China. 

Os índices se mostraram negativos para o tucano não só pela perda de espaço no cenário estadual, como também visando uma possível disputa pela Presidência, uma vez que é uma espécie de pré-requisito para um presidenciável ter força em seu Estado natal. No entanto, o Atlas também mostra que a rejeição a Doria não tem relação direta com as restrições impostas pelo Governo durante a pandemia em São Paulo. 

No estudo, 56,2% dos entrevistados disseram concordar com as medidas de contenção adotadas pela equipe de Doria. Além disso, 40,8% opinaram que as regras a favor do isolamento social deveriam ser ampliadas, contra 30,3% que disseram que as mesmas deveriam ser relaxadas.

O Atlas entrevistou 1.050 pessoas em São Paulo entre os dias 7 e 11 de maio de 2021, todas feitas por meio de questionários aleatórios via internet. As respostas são calibradas por um algoritmo de acordo com as características da população paulista.

DIOGO MAGRI, de São Paulo para o EL PAÍS, em 12 MAI 2021 - 19:44 BRT

"Crime de responsabilidade não basta para tirar um presidente"

Presidente do PSDB e ex-ministro de Temer, Bruno Araújo votou a favor do afastamento de Dilma no Congresso em 2016. Cinco anos depois, ele diz que a "tempestade era perfeita" para um impeachment. "Meu voto foi político.

Dilma foi afastada do cargo em 12 de maio de 2016; seu impeachment foi concluído cerca de três meses depois

Bruno Araújo (PSDB) foi o 342º parlamentar a dizer "sim" no microfone da tribuna da Câmara dos Deputados, em abril de 2016, o voto decisivo para a abertura de impeachment da então presidente Dilma Rousseff – na Casa de 513 membros, é preciso a maioria qualificada de pelo menos 342 votos para o processo ser aberto. A petista deixaria o Palácio do Planalto em 12 de maio do mesmo ano, após o Senado também confirmar o impeachment.

Com a retirada de Dilma do poder, Araújo se tornou ministro no governo de Michel Temer (PMDB), votou em Jair Bolsonaro em 2018 e assumiu a presidência nacional do PSDB em maio de 2019, posto ao qual foi reconduzido até maio de 2022.

Em entrevista exclusiva à DW Brasil, o presidente do PSDB recorda o processo do impeachment e admite que seu voto foi político. O governo Dilma, diz, vivia a tempestade perfeita: crise econômica, falta de apoio político no Congresso, impopularidade e mobilização popular nas ruas, pressão da mídia brasileira pelo afastamento. "Foi um resultado que tinha conexão com as ruas e com a maioria constitucional formada na Câmara e no Senado."

Cinco anos depois, o PSDB é oposição a Bolsonaro. Araújo diz que, logo no início do governo, o partido entendeu que não tinha nenhuma identidade com o atual mandatário, por seus comportamentos pessoais condenáveis e por seu desrespeito às instituições de Estado. Se Dilma era, na opinião do ex-ministro, "inabilitada para a função de liderar", "Bolsonaro é um extremista que não tem o menor conhecimento sobre gestão pública, vive numa bolha política, não tem o menor prazer em exercitar ou alargar  um ambiente de diálogo com outras estratificações eleitorais, no sentido de acalmar o país". 

DW Brasil: Em 2016, na Câmara dos Deputados, o seu voto foi o decisivo para a aprovação do impeachment. Num retrospecto, qual foi a razão do seu voto?

Bruno Araújo: Em processos como os impeachments de [Fernando] Collor e Dilma [Rousseff] é a população que se mobiliza, pauta e influencia o Congresso. Numa democracia, por mais aperfeiçoamentos que ela precise, como no caso da brasileira, não há chance de se retirar um presidente da República do cargo sem mobilização popular. Nos primeiros dias do segundo governo de Dilma Rousseff eu fiz um pronunciamento no Congresso, e esse pronunciamento foi assistido por mais de um milhão de pessoas no YouTube. Estava claro ali o que era o resultado do início do segundo mandato de Dilma. O Brasil entrou em processos simultâneos de crise econômica profunda, a maior da história, retrocesso social, inflação e escândalo. A saída ou não de um presidente, legalmente, legitimamente eleito, só acontece quando se forma uma tempestade perfeita. E se formou sobre o segundo mandato da presidente Dilma, e essencialmente por responsabilidade dela, a tempestade perfeita. Neste contexto, meu voto veio do envolvimento primeiro de quem fez oposição ao PT durante todo esse tempo. Somado à tempestade perfeita, aquele foi um resultado que tinha conexão com as ruas e com a maioria constitucional formada na Câmara e no Senado. 

Bruno Araújo, presidente do PSDB

O senhor reconheceu que o Congresso foi influenciado pelas ruas, e não o contrário. Seu voto foi fruto de pressão popular ou o senhor enxergava de fato um crime de responsabilidade de Dilma Rousseff?

O processo do Parlamento é sempre político, contornado de legalidade. A leitura do mérito é sempre e estritamente política, respeitadas as formalidades. Foi um voto absolutamente consciente de que a presidente não tinha condições políticas de tocar e governar o Brasil. Ela tinha perdido naquele momento o apoio completo do Congresso. O governo dela estava absolutamente condenado, mesmo se faltasse um voto para o processo do impeachment, a ser paralisado.

Mas o senhor viu crime de responsabilidade na ocasião?

Quem viu o crime de responsabilidade foi o Tribunal de Contas da União (TCU). Meu voto foi político. O voto foi pelo parecer de uma corte prevista na Constituição brasileira. Quem audita contas de presidente da República é o TCU. E foi esse tribunal que formulou, em julgamento, uma posição unânime pelo descumprimento de obrigações constitucionais da presidente. Vamos ser muito claros: se o TCU oferecesse aquele mesmo parecer com a economia razoavelmente caminhando, e com apoio do Congresso Nacional, claro que não teria impeachment. O ato formal de crime de responsabilidade, indisposição da população com pano de fundo de crise social e econômica, levaram a uma mobilização que conseguiu votos suficientes no Congresso. Um parecer de crime de responsabilidade não é suficiente para tirar presidente da República. Ou impopularidade sem crime de responsabilidade pode também não ser suficiente [para um  impeachment]. Por isso volto a me reportar: o que houve foi a tempestade perfeita. Foi um ato formal da Corte de Contas, identificando o crime de responsabilidade, foi uma crise econômico-financeira, moral, com mobilização popular, votos suficientes na Câmara e no Senado, e com grande parte da imprensa brasileira em campanha pela queda da presidente da República. Difícil sustentar com tudo isso junto.

Como vê o Brasil de hoje, cinco anos depois?

O Brasil migrou de um governo de esquerda para um governo de extrema direita e não fez um caminho para tentar buscar com serenidade um pacto nacional que ajudasse a superar os problemas mais importantes do país. As eleições de 2018 levam o país para uma reação ao PT. A população optou por se afastar de discursos mais moderados e fez uma aposta mais radical à direita. Grande parte da população não sabia que era uma opção por uma extrema direita, que nega a ciência, que tem pouca formação e compreensão do Estado e que, inúmeras vezes, procurou desrespeitar ou quebrar a harmonia entre as instituições de Estado. Hoje temos uma crise econômica no país dentro da crise mundial provocada pelo coronavírus. O Brasil está virando um pária na comunidade internacional, com um comportamento do governo brasileiro em relação à política ambiental em xeque; e incapacidade de fazer entregas modernizantes da economia. O discurso do governo liberal se mostrou falso porque o presidente tem postura extremamente nacional intervencionista, incompatível com momento de mundo e de país. A falta de clareza da política econômica e a falta de projeto nacional nos mantêm na esteira dessa crise potencializada pela pandemia.

O PSDB foi grande defensor do impeachment. O que explica a transição desse voto em 2016 à realidade hoje, com o PSDB na oposição a Bolsonaro? 

Nenhum jornalista teria coragem, naquele dia, de escrever qualquer linha sobre Bolsonaro ser presidente. Da mesma forma que a democracia americana se surpreendeu um dia com a escolha soberana da população elegendo Donald Trump. Há um fenômeno mundial. O Brasil não é a fonte desses ventos. O Brasil foi abatido por esse movimento conservador de direita, como em muitos lugares do mundo.

Em 2018 o senhor votou em Bolsonaro. Em que momento percebeu o que significava esse governo?

Toda atuação política do PSDB, e a minha em especial, era de oposição ao PT. Fizemos uma opção por não votar no PT [no segundo turno], votando em Jair Bolsonaro. Na primeira viagem internacional do presidente recém-eleito a Davos, já se demonstrava o grau de deficiência e de pouca expressão política dele para tocar um país com a dimensão econômica e populacional, e problemas sociais do Brasil. Dali em diante houve uma série de posições que nos deram clareza de que não tínhamos nada a ver com aquilo. Sobretudo os ataques a instituições e seus comportamentos pessoais. Nas primeiras semanas demos declarações de que aquele governo não tinha nada a ver com o que pensávamos sobre um país democrático, com diversidade, liberdade política e religiosa, e as desigualdades que temos.

O senhor disse que só crime de responsabilidade não assegura um impeachment. Nem só a perda de apoio político no Congresso. No ano passado o senhor afirmou que não havia condições para um impeachment de Bolsonaro. Mantém essa declaração?

Com mais clareza ainda. Bolsonaro tem base parlamentar e tem percentual expressivo de apoio da população. A tempestade perfeita não está no horizonte do governo Bolsonaro. Daqui a pouco estaremos a um ano das eleições. 

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, recentemente, sinalizou que se em 2022 houver disputa entre Lula e Bolsonaro votaria no petista. A classe política tem hoje discernimento sobre o que significaria um novo mandato de Bolsonaro?

Fernando Henrique respondeu a uma pergunta plebiscitária. Tenho certeza de que vamos criar condições de oferecer ao Brasil uma alternativa de centro. Se não criarmos, que Deus nos proteja. Vou me dedicar, enquanto dirigente partidário, a construir um ambiente em que possamos oferecer um nome que chegue ao segundo turno com um dos dois candidatos [ou Lula ou Bolsonaro]. Não vejo outra alternativa que não seja essa. 

Como o senhor classificaria Dilma Rousseff presidente e Jair Bolsonaro presidente?

Nunca fiz qualquer discurso nem qualquer posicionamento questionando a probidade da cidadã Dilma Rousseff, mas do ponto de vista político, administrativo e de liderança, ela foi um capricho do ex-presidente Lula. É uma pessoa que não estava preparada para a dimensão e a compreensão de chefe de Estado e de governo. Autoritária, arrogante na relação com congressistas e subordinados. Infelizmente, foi uma perda de oportunidade quando tínhamos pela primeira vez uma mulher no cargo mais relevante do país. Era uma senhora inabilitada para a função de liderar. E o presidente Bolsonaro é alguém que não tem o menor conhecimento sobre gestão pública, vive numa bolha política, não tem o menor prazer em exercitar ou alargar um ambiente de diálogo com outras estratificações eleitorais, no sentido de acalmar o país. Ele é nutrido por disputas. Sua posição extremista é dissonante com a cultura da sociedade brasileira.

Deutsche Welle Brasil, em 12.05.2021

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Brasil registra 2.494 mortes por covid-19 em 24 horas

País teve 76.692 novos casos da doença, o que eleva o total de infectados desde o início da pandemia para 15.359.397. Número acumulado de mortes é de 428.034.

Média móvel de novas mortes em sete dias é de 1.948

O Brasil registrou oficialmente 2.494 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta quarta-feira (12/05).

Também foram confirmados 76.692 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 15.359.397, e os óbitos somam agora 428.034.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 13.847.191 pacientes haviam se recuperado da doença até esta quarta.

Com os dados de óbitos registrados nesta terça, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 203,7 no país, a 12ª maior do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

A média móvel de novas mortes (soma dos óbitos nos últimos sete dias e a divisão do resultado por sete) ficou em 1.948, e média móvel de novos casos, em 61.316.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 582 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (32,8 milhões) e Índia (23,3 milhões).

Ao todo, mais de 159,9 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, e 3,3 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença, segundo números oficiais.

Deutsche Welle Brasil, em 12.05.2021

Datafolha: Lula lidera corrida eleitoral de 2022 e marca 55% contra 32% de Bolsonaro no 2º turno

Petista tem 41% no primeiro turno, 18 pontos à frente do atual presidente, que deve disputar a reeleição no ano que vem

Pouco mais de dois meses após ter seus direitos políticos restabelecidos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lidera a corrida para a Presidência com margem confortável no primeiro turno e venceria o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na segunda etapa, revela pesquisa Datafolha.

O petista alcança 41% das intenções de voto no primeiro turno, contra 23% de Bolsonaro.

Em um segundo pelotão, embolados, aparecem o ex-ministro da Justiça Sergio Moro (sem partido), com 7%, o ex-ministro da Integração Ciro Gomes (PDT), com 6%, o apresentador Luciano Huck (sem partido), com 4%, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que obtém 3%, e, empatados com 2%, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM) e o empresário João Amoêdo (Novo).

Somados, os adversários de Lula chegam a 47%, apenas seis pontos percentuais a mais do que o petista. Outros 9% disseram que pretendem votar em branco, nulo, ou em nenhum candidato, e 4% se disseram indecisos.

O levantamento foi realizado com 2.071 pessoas, de forma presencial, em 146 municípios, nos dias 11 e 12 de maio. A margem de erro é de dois pontos percentuais.

Fábio Zanini, de S. Paulo. Publicado originalmente pelo UOL, em 12.mai.2021 às 17h49

Custo de despesas básicas sobe 30% acima da inflação e corrói orçamento

No ano passado, para um IPCA de 4,5%, a energia elétrica subiu 9,12% e a alimentação em casa teve reajuste de 18,16%; este ano, foram os preços dos combustíveis que dispararam: 21,65% até março. Sobra pouca renda para outros tipos de gastos
 
     Na casa do executivo Marcio Douglas Moura de Araújo, algumas mudanças tiveram de ser adotadas para equilibrar o orçamento com a escalada das despesas essenciais. O cardápio foi readaptado com produtos mais baratos. No lugar da carne, frango, fígado e, às vezes, peixe. Para reduzir o consumo de energia elétrica e gás, ele virou um verdadeiro fiscal. 

“Desligo o aquecedor de manhã e só ligo à noite. Apagamos todas as lâmpadas, tiramos os eletrodomésticos das tomadas e evitamos o uso do ar-condicionado em dias mais arejados”, diz ele. Mesmo assim, com quatro pessoas mais tempo dentro de casa, a conta de luz subiu 15%. No final do mês, diz ele, não sobra praticamente nada.

O aperto na renda de Araújo é uma realidade na vida da maioria dos brasileiros, que tem visto despesas essenciais, como alimentação, energia elétrica e combustível, corroerem boa parte do salário mensal. Isso tem ocorrido porque o preço de alguns desses gastos subiu acima da inflação, conforme levantamento feito pela Tendências Consultoria Integrada a pedido do Estadão.

Na 2ª onda de covid, inadimplência, renda em queda e inflação ameaçam a economia


No ano passado, a inflação média dos itens essenciais ficou 30% acima do IPCA, de 4,5%. Mas, em alguns casos, a diferença foi bem maior. A energia elétrica, por exemplo, subiu 9,12% e a alimentação em casa, 18,16%. Esse movimento continuou no início deste ano, com a explosão de 21,65% dos preços dos combustíveis (veículos e gás) até março. Os aumentos já foram suficientes para deixar a inflação das despesas essenciais 22% acima do IPCA neste ano - os números não consideram o índice de abril, anunciado nesta terça-feira, 11, de 0,31%.


Marcio Douglas Moura de Araújo fez ajustes no cardápio de casa, mas não conseguiu evitar o aumento de 15% na conta de luz. Foto: Werther Santana/Estadão

Isso significa que boa parte da renda disponível está sendo comprometida com apenas algumas despesas, diz a economista da Tendências Consultoria Integrada, Isabela Tavares, responsável pelo levantamento. “Na prática, tem sobrado menos dinheiro para gastar com bens e serviços.” De janeiro de 2020 para cá, a renda disponível (depois do pagamento de despesas essenciais) para gastar com esses itens caiu de 42,11% para 41,33% - o menor patamar, pelo menos, desde 2009. Só no ano passado, essa queda representou R$ 45 bilhões a menos de consumo para o brasileiro.

O movimento, no entanto, não é recente. Em 2012, a renda disponível do brasileiro era de 45,47%. Nesse período, a escalada dos preços de despesas essenciais acima da inflação vem corroendo gradualmente a renda do brasileiro. “A pressão inflacionária aliada à deterioração do mercado de trabalho tem restringido cada vez mais o consumo de outros bens e serviços”, diz Isabela.

O problema é que essa escalada não deve parar por ai, afirmam especialistas. Na energia elétrica, por exemplo, é esperado para este ano novos e salgados aumentos na conta de luz do brasileiro. Rodrigo Moraes, especialista em Planejamento Energético da Go Energy, explica que, apesar de haver sobreoferta de energia, a expectativa é que preço continuará elevado durante todo este ano.

“Estamos enfrentando um período crítico de chuva, que afeta os reservatórios e obriga o acionamento de termoelétricas, mais caras. Neste ano, não teremos bandeira verde”, diz ele. No momento, a bandeira definida pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) é vermelha, que indica que haverá acréscimo no valor da energia a ser repassada ao consumidor final. “No meu orçamento, o que mais tem pesado são os preços de energia, gás e alimentação”, afirma o consumidor Marcio Douglas Moura de Araújo, que mora com a mulher e duas filhas.

Para ele, como não dá para cortar mais o consumo de energia, o jeito tem sido mudar a alimentação. Além da carne, que saiu do cardápio, a ida à feira tem sido restringida. “Também mudei o supermercado. Antes ia ao Pão de Açúcar. Hoje vou ao Dia.”

Na avaliação do economista Christiano Arrigoni, professor do Ibmec/RJ, a estratégia de Araújo está correta, mas nem tudo dá para ser substituído. É por isso que a renda cai, já que os salários não acompanham essa escalada de preços. Embora a inflação tenha ficado baixa no ano passado, o custo de vida para famílias mais pobres aumentou bastante, diz ele. “A inflação é um índice de preços de uma família típica, representa uma média. Para uma família mais pobre em que o grosso do orçamento vai para alimentos, energia e transporte, esses aumentos pesam muito.”

Por isso, a sensação de que a inflação é maior do que aquela mostrada nos índices. “É nítido que a renda vem despencando. E isso é um drama, pois afeta toda a estrutura de consumo das famílias”, afirma o economista do Insper Otto Nogami. “E assim, o salário fica insuficiente para as necessidades do dia a dia.”

O orçamento das famílias, segundo a Tendências, só não está mais apertado porque houve um arrefecimento em alguns itens nos últimos meses, o que compensou parte do aumento da conta de luz, da gasolina, do gás de cozinha e dos alimentos. Com a pandemia, a educação teve uma queda com os descontos dados pelas escolas por causa das aulas online. O mesmo ocorreu com os alugueis.

Para a especialista em gestão empresarial Erika Pellini, o novo normal com a pandemia reduziu alguns gastos e elevou outros. Em home office, ela diminuiu o consumo de gasolina, mas elevou os gastos com alimentação e energia elétrica. “Tento ficar vigilante e evito deixar luzes e aparelhos ligados sem necessidade e, ainda assim, a despesa aumentou.” Ela conta que começou a fazer uma revisão do orçamento e pretende enxugar alguns gastos, como por exemplo, telefonia celular.

Veja depoimentos de quem teve de fazer ajustes nos gastos para manter o orçamento doméstico equilibrado.


O preço da gasolina pesou no orçamento da fisioterapeuta Andrea Chiara Ferreira Silva, que cortou supérfluos e trocou marcas no supermercado. Foto: Taba Benedicto/Estadão

‘Cortei supérfluos e troquei algumas marcas’

Para a fisioterapeuta Andrea Chiara Ferreira Silva, de 50 anos, o aumento no preço da gasolina achatou consideravelmente sua renda mensal. Ela faz atendimento domiciliar e usa o carro diariamente. “Apesar disso, não consegui repassar o aumento para os clientes, já que muitos deles também estão passando por um aperto no orçamento”, diz ela.

Além do combustível, a fisioterapeuta também teve aumento no preço do plano de saúde, de R$ 800 para R$ 1,7 mil por causa da mudança de faixa etária. “Junta-se a isso o aumento do preço dos alimentos e dos itens para atendimento, como propé, álcool e máscara para manter a segurança no trabalho.”

Andrea afirma que a situação só não ficou pior porque conseguiu alguns clientes a mais devido à pandemia. “Muitas pessoas estão precisando fazer fisioterapia para recuperação pós-covid.” Mesmo assim, ela chega ao fim do mês com menos dinheiro do que há alguns meses. “Cortei supérfluos, como chocolates e vinhos, e troquei algumas marcas por outras mais baratas.”


Andréa Fernanda dos Santos não compra mais carne e já não consegue encher o tanque do carro. Foto: Werther Santana/Estadão

‘Minha conta de água praticamente dobrou’

As idas da propagandista farmacêutica Andréa Fernanda dos Santos ao supermercado têm sido só para comprar o básico: sem carnes, leite nem guloseimas. “Em alguns períodos, comemos ovo a semana inteira”, diz ela, que há um mês perdeu o emprego.

Mas, antes disso, a situação já não estava boa. Andréa ganhava um salário fixo e um rendimento a mais por bater as metas. Com a pandemia, as vendas caíram e ficou mais complicado alcançar os índices estabelecidos. Só isso reduziu em R$ 3 mil a remuneração da representante comercial.

“Ao mesmo tempo, via o preço da comida, da água, do combustível e do gás só aumentar.” Além de mudar o cardápio, ela fez uma ação dentro de casa para tentar reduzir o desperdício de água e luz. Mas, no caso da água, houve um aumento de 20% no consumo e a conta praticamente dobrou, diz ela. “Também não consigo encher o tanque do carro. Coloco R$ 50 e ando bem menos de carro.”

‘Dinheiro não dá para fecha a conta do mês’

Para tentar reduzir os gastos, Valéria Cristina Ignácio decidiu trazer a mãe para morar durante a semana em sua casa. Assim, teriam uma despesa única. Mas a manobra não surtiu efeito, o consumo subiu e os gastos cresceram além do previsto. “Tudo aumentou: a luz, o gás e alimentação.”

Se antes conseguia pagar tudo no limite, hoje falta dinheiro para fechar a conta no mês. Assessora de imprensa, ela tinha dois clientes. Mas, com a pandemia, eles encerraram os contratos e a renda de Valéria despencou.

Hoje ela sobrevive da pensão do marido, que faleceu.“Cortamos todas as guloseimas da casa e só compramos o básico: arroz, feijão, pão e um tipo de fruta por vez."

Renée Pereira, O Estado de S.Paulo, em 12 de maio de 2021 | 05h00

E lá se vão cinco anos!

Não é hora de ódio, mas de pregar a paz entre os brasileiros e a harmonia entre as instituições, recomenda Michel Temer neste artigo publicado hoje n'O Estado de S. Paulo.

Há cinco anos assumi a Presidência da República. Afastada a senhora presidente, desejou-se realizar posse em largo espaço no Palácio do Planalto. Modestamente, achei que o momento não era para comemoração. Era, apenas, cumprimento de um dever constitucional. Pedi para realizarem o ato no menor dos auditórios. Entretanto, surpresa! Quando me dirigi ao local, os corredores estavam repletos de deputados, senadores, assim como populares que não conseguiram ingressar naquele espaço, que estava lotado. Percebi naquele momento que tinha apoio sólido do Congresso Nacional.

Quase todos os partidos estiveram presentes, a confirmar tese que alardeei ao longo do tempo: a unidade de todos para enfrentar os problemas do País. E quais eram eles? Inflação de dois dígitos, juros da taxa Selic em 14,25%, estatais desarranjadas e dando prejuízo, déficit fiscal, descrédito, desânimo, imagem negativa no exterior e desarmonia interna no governo. Tive de providenciar, às pressas um bom Ministério.

Não se verificou nenhuma transição. Ao contrário. Quando cheguei ao gabinete, no dia seguinte, havia apenas uma servidora ali sentada, e com grande constrangimento. Não havia agenda telefônica nem dados nos computadores administrativos. Começamos, assim, praticamente do zero.

Embora partindo do zero pus em prática a Ponte Para o Futuro, plano de políticas públicas que havia sugerido ao governo de então, mas foi tomado como gesto de oposição. Com uma equipe formada por vários partidos, ao fundamento de que o Executivo não governa sozinho, mas com o Legislativo, o governo começou a trabalhar.

A primeira providência saneadora foi a emenda à Constituição referente ao teto de gastos. Era autolimitação ao próprio presidente da República, já que medidas populistas não seriam possíveis. Deputados a aprovaram na madrugada de um feriado. E por ampla maioria, o que revelava, mais uma vez, o apoio congressual pois o mesmo se deu no Senado.

Enquanto isso, reconheço, a oposição combatia ferozmente o meu governo. Protestava. Mas eu não protestava contra os protestos. Afinal o Estado é Democrático de Direito. Cabia à oposição opor-se. Ao meu governo, governar.

Sabia que o Brasil carecia de reformas. Algumas, causadoras de impopularidade. Com o teto para os gastos aprovado, chamei os governadores e permiti que deixassem de pagar seu débito com a União por seis meses. Sabia das dificuldades dos municípios nos finais de ano. Daí por que os socorremos mediante divisão da multa de repatriação e outros valores. Atendi, assim, ao princípio federativo.

Fiz aprovar projeto que disciplinava a nomeação de dirigentes das estatais. Estas se recuperaram, sendo o exemplo mais saliente a Petrobrás. Realizamos a reforma do ensino médio, pleito que se fazia havia mais de 20 anos. Fizemo-la por medida provisória, que, convertida em lei, ganhou aplauso dos brasileiros. Outra reforma corajosa foi a trabalhista. Esta diminuiu a litigiosidade reinante entre empregado e empregador, além de flexibilizar as relações de emprego com a introdução de vários avanços, sem retirar nenhum direito do trabalhador. E patrocinamos durante mais de um ano a reforma da Previdência, que só não foi votada no meu governo em razão de tentativas institucionais irresponsáveis com vista a apear-me da Presidência. Tentativas que hoje são derrubadas sumariamente pela Justiça.

Também não nos esquecemos da parte social. Demos dois aumentos acima da inflação ao Bolsa Família e retomamos o Minha Casa, Minha Vida, que estava paralisado por falta de pagamento às construtoras. Liberamos o FGTS das contas inativas, o que gerou mais de R$ 44 bilhões entregues a cerca de 25 milhões de trabalhadores. No meio ambiente, criamos a maior reserva marinha que o mundo conhece, equivalente aos territórios da Alemanha e da França somados. Também quadruplicamos a Chapada dos Veadeiros. Distribuímos cerca de 280 mil títulos de regularização fundiária; batemos o recorde na produção de grãos e no Índice Bovespa.

No plano internacional sustentamos o multilateralismo. A multilateralidade se impõe. Basta lembrar que a China é o nosso principal parceiro comercial. O segundo, EUA. Aliás, nós nos empenhamos e levamos adiante o acordo Mercosul-União Europeia. Na saúde, ampliamos o número de ambulâncias, de unidades básicas de saúde, financiando a conclusão de hospitais em unidades da Federação.

Mas o mundo, nestes últimos cinco anos, mudou. E mudou muito. A inovação, a tecnologia, o uso sustentável dos recursos naturais, a recuperação da economia, o enfrentamento à pandemia são os novos desafios. Agora é hora de discutirmos a qualidade dos gastos, de salvarmos o planeta ameaçado, de recuperarmos os investimentos. É hora de vacinar todos. Não é hora de ódio entre pessoas e instituições, mas de pregarmos a paz entre os brasileiros e a harmonia entre as instituições. É momento de darmos a nossa colaboração e apresentarmos um programa-base à Nação. E é isso que, juntamente com a Fundação Ulysses Guimarães, começamos a construir. O lugar do Brasil no mundo para os próximos anos tem de ser construído agora.

Michel Temer, Advogado e Professor de Direito Constitucional, foi Presidente da República. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.05.2021

Orçamento para os amigos

O presidente Bolsonaro ofereceu às raposas do Congresso não somente as galinhas, como os ovos e as chaves do galinheiro  

O governo de Jair Bolsonaro montou um esquema de rateio de recursos públicos entre parlamentares de sua base, fora dos controles orçamentários, conforme mostraram reportagens do Estado publicadas desde domingo.

Trata-se de um escândalo que espanta não apenas pelos valores envolvidos – em torno de R$ 3 bilhões, até onde a reportagem pôde verificar –, mas também pela sorrateira engenharia para escamotear a escassez de critérios técnicos e a abundância de critérios políticos para a distribuição do dinheiro. Nada nessa história parece nem remotamente republicano.

No esquema, dezenas de parlamentares governistas ganharam a chance de determinar a destinação de verbas do Ministério do Desenvolvimento Regional. O manejo dos recursos, por lei, cabe somente à pasta, dentro dos limites estabelecidos pelo Orçamento, mas o governo, no afã de agradar a sua base, simplesmente abriu mão dessa prerrogativa.

As verbas em questão resultam das chamadas “emendas de relator”, modalidade de emenda parlamentar ao Orçamento introduzida no ano passado. O relator-geral do Orçamento pode encaminhar emendas para, entre outros objetivos, remanejar recursos para determinadas áreas. Nessa modalidade, não cabe ao relator indicar qual município receberá o dinheiro nem qual obra será financiada. Essa tarefa – a execução orçamentária – é do Ministério.

Mas o governo de Jair Bolsonaro concedeu a parlamentares aliados a possibilidade de direcionar essas verbas remanejadas conforme seus interesses políticos. Deputados e senadores já têm a prerrogativa de encaminhar emendas pessoais ao Orçamento, nas quais apontam o beneficiário e a justificativa técnica do gasto, e em geral servem para atender a suas bases eleitorais. Nesse caso, as cotas são iguais para todos os parlamentares – e limitadas a R$ 8 milhões por ano. No esquema revelado pelo Estado, contudo, quem vota com o governo ganha a chance de apadrinhar projetos cujo valor vai muito além do limite estabelecido para as emendas.

A título de exemplo, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), um dos premiados, determinou a destinação de R$ 277 milhões de verbas do Ministério do Desenvolvimento Regional. O senador levaria 34 anos para conseguir indicar esse valor caso se restringisse a encaminhar emendas parlamentares.

Os ofícios enviados pelos parlamentares para movimentar o Orçamento fora dos controles públicos mostram a sem-cerimônia. Nos documentos, obtidos pela reportagem, os políticos usam expressões como “minha cota”, “fui contemplado” e “recursos a mim reservados”.

Para adicionar insulto à injúria, parte considerável do dinheiro manejado pelos parlamentares destinou-se à compra de máquinas agrícolas a um custo várias vezes superior ao estabelecido pela tabela do governo. Portanto, há claros sinais de superfaturamento.

Grande como é, o escândalo agora revelado embute um outro, igualmente impressionante: é a incrível expansão da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), estatal que recebeu boa parte dos recursos irregularmente direcionados pelos parlamentares governistas.

A estatal, criada em 1974 para atender 504 cidades e desenvolver as margens do Rio São Francisco, hoje atua em nada menos que 2.675 municípios – alguns dos quais distantes 1.500 km do rio.

A dilatação da Codevasf foi patrocinada pelo presidente Bolsonaro, que incluiu mil municípios na cobertura da estatal com vista a ganhar apoio à sua reeleição. Até o Amapá do senador Alcolumbre, a léguas do Rio São Francisco, agora é atendido pela Codevasf. Ademais, Bolsonaro loteou as diretorias da Codevasf entre os partidos do Centrão, que trataram de articular a abertura de superintendências regionais para distribuí-las a aliados.

Assim, o presidente Bolsonaro ofereceu às raposas do Congresso não somente as galinhas, como os ovos e as chaves do galinheiro. Como se sabe, a elaboração e a execução do Orçamento são reguladas por rígida legislação, que exige total transparência. Mas Bolsonaro e seus felpudos associados não gostam muito de leis.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.05.2021

" Maria, preciso te contar sobre Bolsonaro, o fazedor de órfãos"

O homem que governa o Brasil condenou uma geração a crescer e a viver sem pai ou sem mãe, conta Eliane Brum, em artigo no EL PAÍS.

Uma imagem de arquivo feita pelo premiado fotógrafo Lilo Clareto, que morreu em 21 de abril.LILO CLARETO / ACERVO PESSOAL

Maria, você tem apenas 2 anos. Um, dois. E apenas esses dois anos separam seu nascimento da morte do seu pai. Lilo Clareto morreu em 21 de abril. A causa oficial da certidão de óbito é: “sepse grave, pneumonia associada à ventilação e covid (tardia)”. Mas essa é apenas a verdade parcial sobre a morte do seu pai. Eu olho para você, Maria, e me preparo para a conversa que um dia teremos, aquela em que precisarei contar a você a verdade inteira.

Maria, seu pai foi vítima de extermínio. Seu pai é um dos mais de 410.000 brasileiros que tombaram por um crime contra a humanidade entre os anos de 2020 e 2021. Enquanto eu escrevo essa carta para você, os assassinatos seguem acontecendo a uma média de quase 2.400 cadáveres por dia. Eu olho para você, Maria, e você ainda diz, os olhos escancarados de expectativa, quando alguém faz barulho na porta da frente: “pa!”. E, então, decepcionada: “pa?”.

Não, Maria, seu pai não entrará mais pela porta da casa cantando e com as mãos estendidas para pegar você no colo. Enquanto escrevo essa carta para você, Maria, seu pai virou cinzas. Essas cinzas serão um dia jogadas na boca do Riozinho, lá onde esse rio, só pequeno no nome, encontra o Iriri, na Terra do Meio, na Amazônia.

Sei que mesmo que eu espere até você ficar muito mais velha, Maria, você não será capaz de entender por completo. Você já poderá compreender o pensamento de Davi Kopenawa, Sueli Carneiro e Paul Preciado, mas não terá como compreender o pensamento de um homem que, na maior crise sanitária da história do Brasil, trabalhou para disseminar um vírus que pode matar. E mata.

Não importa a idade que você tenha e os diplomas que acumular, Maria. Ainda assim não haverá como compreender um homem que estimulou as aglomerações quando os médicos pediam que a população ficasse em casa. Um homem que vetou a obrigatoriedade de uso de máscaras quando as populações da maioria dos países do mundo usava máscaras para se proteger da contaminação. Um homem que esbanjou dinheiro público com medicamentos comprovadamente sem eficácia contra uma doença fatal e mentiu para a população que eram eficazes. Um homem que chamou o que matou seu pai e quase meio milhão de brasileiras e brasileiros (até agora) de “gripezinha”. Um homem que recusou as vacinas contra essa doença que converteu você em órfã. Não, Maria, você não poderá entender esse homem em nenhuma circunstância.

Você olhará para mim com seus olhos escuros, suas pupilas negras, em busca de esclarecimento. Eu vou olhar para você e prometo fazer o possível para não baixar os olhos. Porque, Maria, eu não tenho resposta. Muitas teorias já foram feitas sobre genocidas como Adolf Hitler, Pol Pot e Slobodan Milosevic. Eu já li algumas delas. E muitas, tenho certeza, serão feitas sobre Jair Bolsonaro. E também se escreverá muito sobre as brasileiras e brasileiros que o sustentaram no poder. Primeiro com seu voto, depois com sua crença. Assim como tantos filmes e livros foram feitos e escritos sobre os alemães medianos que sustentaram, com sua ação ou omissão, o extermínio de 6 milhões de judeus, homossexuais, ciganos e pessoas com deficiência na Alemanha dos anos 1940. Pessoas que andavam entre nós, que conversavam amenidades na fila do pão e, de repente, olhamos para elas e as descobrimos salivando com a morte. Pediam não mais pão, mas mais armas.

O que é o mal, Maria? Nos debatemos com esse dilema desde sempre. Até viver horrores como esse apenas pelos livros, eu tinha muitas dúvidas sobre nomear o mal. Me parecia simples demais, fácil demais. Mas, hoje, Maria, depois do que tenho testemunhado com meu próprio corpo, preciso dizer que o mal existe. Bolsonaro é o mal, Maria. E Bolsonaro foi engendrado nesse mundo, nessa época histórica, por essa sociedade, por essa conjunção de genes e de acasos, por essas circunstâncias.

Bolsonaro tenta fazer o mal desde que o Brasil sabe de Bolsonaro. Ele era militar do Exército e já planejava colocar bombas nos quartéis. Por interesses de um grupo e de outro, quem deveria barrá-lo não o barrou. E, de impunidade em impunidade, o mal assumiu o poder. E, por isso, seu pai perdeu a vida e você ficou sem pai. Você, Maria, e dezenas de milhares de outras crianças. Quando eu finalmente for capaz de ter essa conversa com você, talvez sejam centenas de milhares de outras filhas e filhos sem pai ou sem mãe. Porque hoje, quando escrevo essa carta para você, Maria, o mal ainda governa o Brasil.

Vou interromper o mal para falar do seu pai. Do contrário, também eu não suporto, Maria. Algumas pessoas, com a melhor das intenções, eu sei, me dizem que era a hora do seu pai, que ele já tinha cumprido sua missão nesse plano. Eu afirmo, com toda convicção: não era a hora de o Lilo morrer. Ao contrário, continuava sendo a hora de o Lilo viver. Seu pai me contava, apenas algumas semanas antes, que apesar de toda a dureza de enfrentar uma pandemia, ele vivia um dos melhores momentos da sua vida. Porque ele vivia apaixonado por sua mãe e porque ele tinha você, Maria. E ele sonhava em ensinar a você tudo o que ele sabia.

Seu pai nem ficou sabendo, Maria, mas enquanto estava em coma induzido no hospital, ele foi aprovado para o curso de Letras na Universidade Federal do Pará. Ele queria mesmo fazer Arqueologia, porque tinha se apaixonado pelo trabalho dos arqueólogos numa expedição que fizemos juntos à Estação Ecológica, na Terra do Meio. Mas não existia essa opção em Altamira. Como seu pai era poeta, das luzes e também das palavras, ele escolheu o curso de Letras. Seu pai sabia dizer por inteiro A Máquina do Mundo, poema de seu conterrâneo Carlos Drummond de Andrade. E, sempre que dizia, seus olhos boiavam em água salgada. Para o seu pai, a máquina do mundo estava sempre se abrindo como o diafragma da câmera com que ele capturava a realidade como ele a via. Desde que você nasceu, Maria, era a realidade de você que ele convertia em imagem. Você e sua mãe eram, para ele, um mundo só bom.

Não, Maria, não acredite nem por um segundo que era hora de o seu pai morrer. Não era. Seu pai, como centenas de milhares de brasileiros, morreu porque Jair Bolsonaro e seu Governo executaram um plano de disseminação do novo coronavírus para, supostamente, alcançar o que chamam de “imunidade de rebanho”. Sim, Maria, como gado. “Alguns vão morrer, lamento, essa é a vida”, era assim que o presidente do Brasil falava.

O mundo inteiro e todos os epidemiologistas respeitáveis diziam o contrário. Afirmavam que era uma insanidade, além de imoral. Dois ministros da Saúde, médicos, abandonaram o governo por não suportar a ideia de ser cúmplices desse crime. Mas Bolsonaro preferiu acreditar nele mesmo, com sua experiência de quase 30 anos se reelegendo no parlamento sem propor nada de útil, porque supostamente não queria que a “economia” fosse prejudicada e, assim, seu projeto de reeleição.

É isso que a análise de mais de 3.000 normas federais, feitas por um grupo de juristas renomados da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, provou. Na sequência, outros estudos concluindo que uma parcela significativa das mortes por covid-19 teriam sido evitadas se Bolsonaro tivesse combatido a covid-19 foram divulgados em algumas das mais importantes publicações científicas do mundo. Pesquisas internacionais mostraram que o Brasil teve a pior atuação na pandemia entre todos os países do planeta.

No momento em que escrevo essa carta para você, Maria, as ações deliberadas e as omissões deliberadas de Bolsonaro e seu Governo provocaram e seguem provocando dezenas de milhares de mortes evitáveis. Como a do seu pai, Maria. No momento em que escrevo essa carta para você, as ações deliberadas e as omissões deliberadas de Bolsonaro e seu Governo gestaram dezenas de milhares de meninas e meninos órfãos, pequenas e pequenos brasileiros que terão que crescer e viver sem pai ou sem mãe. Como você, Maria.

Eu olho para o seu rosto bochechudo de bebê e penso: como vou explicar a você o porquê de crescer sem pai? Eu olho para você, Maria, com apenas 2 anos, e penso: como vou explicar que sua vida, também materialmente, será enormemente prejudicada porque agora sua mãe terá de te sustentar sozinha? Eu olho para você, Maria, com apenas 2 anos, e penso: quem vai pagar a você, Maria, por aquilo que não tem preço, a perda de um pai? Quem vai pagar a todas as Marias e Clarices e Sthephanhys? Quem vai pagar a todos os Josés e Pedros e Neymares? Quem, Maria?

Antes que você levante seus olhos perfurantes para mim mais uma vez, eu preciso voltar a falar do seu pai. Quando eu o conheci, Maria, ele já era um repórter fotográfico experiente. Tinha trabalhado muitos anos no Estadão e recém desembarcara na Época, a revista onde eu trabalhava. Entre suas tantas fotos notáveis está a de um menino vivendo nas ruas de São Paulo, um menino condenado pela nossa incapacidade de enxergar. A imagem capturada pelo seu pai mostra uma criança pequena, apenas um pouco maior do que você, que desloca a chupeta da boca para dar uma tragada no cigarro. É brutal. A chupeta e o cigarro, lado a lado naquela boca com dentes de leite. A infância que resiste pedindo cuidado, a infância destruída que, sem cuidado, é incinerada com um cigarro.

Penso que só Lilo poderia ter capturado aquele instante. E, também daquela vez, Lilo sofreu com o que para sempre sofreria. O que seu pai denunciava provocava comoção social, discursos, mas a sociedade e o Estado logo se esqueciam. E as crianças do Brasil seguiriam morrendo antes de crescer.

E agora, Maria, agora é você a criança que perdeu o pai. Você e dezenas de milhares de brasileirinhas e brasileirinhos. Eu preciso respirar fundo, eu, que ainda tenho ar. Será que ainda restará oxigênio para mim, Maria, quando chegar a hora dessa nossa conversa, ou também eu serei mais uma vítima de extermínio? Enquanto escrevo essa carta para você nenhuma brasileira, nenhum brasileiro está seguro do dia seguinte. E não estará, até que Bolsonaro seja impedido de seguir executando seu plano de morte.

Mas, sim, eu preciso respirar o ar que ainda resta no país e seguir contando a você sobre o homem que matou seu pai. A análise dos documentos assinados pelo presidente do Brasil, que eu prefiro chamar de antipresidente, assim como suas declarações públicas e assim como os documentos e as declarações públicas de membros do seu Governo, pelo menos um deles general da ativa, mostram a execução de um plano de disseminação para promover imunidade por contágio. É verdade, isso aconteceu, os fatos estão documentados. Mas, ainda assim, Maria, eu preciso dizer a você que me parece faltar pelo menos uma peça.

Nunca conheci ninguém como Bolsonaro. Alguém que parece todo ele o que a psicanálise chama de “pulsão de morte”. Minha experiência de mais de 30 anos entrevistando gentes de todas as formas, inclusive assassinos, estupradores e abusadores, e cobrindo todo o tipo de eventos, me mostra que grandes acontecimentos são produzidos por subjetividades tanto ou mais do que por objetividades. As objetividades são o que permitem a subjetividade de se realizar como ato. Mas a força, a pulsão, ela vem de um lugar menos aparente, menos assumido e menos pronunciado.

Minha hipótese, Maria, é que Bolsonaro gosta de matar. Ele também gosta de assistir ao sofrimento de todos os outros, exceto o de seus filhos, que moldou a sua imagem e semelhança para seguirem seu legado de destruição. Um dia, se você tiver estômago, Maria, posso te mostrar uma série de cenas e declarações do homem que hoje governa o Brasil nas quais ele deixa explícito seu gozo com a dor alheia. Algumas vezes, ele até mesmo ri quando se refere aos mortos da pandemia.

O mais fácil, Maria, é achar que isso é loucura, como se a loucura pudesse explicar esse gosto por morte. Não é loucura, Maria. Bolsonaro gosta de matar, gosta de infligir sofrimento e de assistir ao sofrimento, gosta de ver o sangue dos outros correr. Ele gosta. E, infelizmente, Maria, não está sozinho nesse gosto. Seus apoiadores na Amazônia, Maria, onde ambas vivemos, tem essa mesma ânsia. Assim como Bolsonaro planejou explodir bombas nos quartéis, eles planejaram o “dia do fogo”, em 2019, e incendiaram vastas porções da maior floresta tropical do mundo.

Também preciso dizer a você, Maria, que Bolsonaro nunca escondeu seus gostos e pulsões. Ele já declarou que “a ditadura deveria ter matado pelo menos uns 30.000”, que preferia “um filho morto num acidente de trânsito a um filho gay”, que quem discorda dele “vai para a Ponta da Praia”. O que é “Ponta da Praia”, você certamente perguntará. E eu vou ter que explicar a você, Maria, que era um lugar de desova dos corpos dos opositores, torturados até a morte durante o regime militar que oprimiu o Brasil de 1964 a 1985, quando seu pai e eu éramos crianças e depois adolescentes.

Você saberá então, Maria, de mais um triste momento da história do seu país. Bolsonaro, Maria, é produto desse capítulo tenebroso do Brasil. É filho legítimo, principalmente, da impunidade daqueles que torturaram e mataram a mando e a soldo do Estado. Foi ali que Bolsonaro aprendeu que, a serviço do Estado, é possível liberar todas as pulsões de morte, todo o desejo de destruição dos corpos alheios, sem jamais ser responsabilizado e punido por isso. Ao contrário. Como aconteceu com Bolsonaro, o funcionário público planeja explodir quartéis e é promovido a capitão, depois vira deputado e um dia se torna presidente do país.

Ninguém tem como herói declarado um dos mais sádicos torturadores do Brasil por acaso. Sim, Maria, eu sofro para dizer isso a você, mas é preciso. O herói do presidente do Brasil é Carlos Alberto Brilhante Ustra, um homem que torturava até mesmo mulheres grávidas e crianças do seu tamanho, Maria. E, preciso repetir a você, porque você tem direito à verdade: Bolsonaro nunca escondeu isso. Pelo contrário. Ostentava seu herói publicamente como um troféu e, na campanha eleitoral que faria dele presidente, a figura do torturador foi estampada numa camiseta. E mesmo assim esse homem —esse homem— foi eleito.

Bolsonaro é o mal, Maria. E, antes que você levante seus olhos inquisidores na minha direção, eu preciso voltar a falar do seu pai, do contrário não terei forças para chegar ao final dessa carta. E preciso chegar.

Penso que seu pai aprendeu a ver com dona Geraldinha, a mãe que se alfabetizou aos 92 anos porque não queria morrer cega das letras, a mulher de palavra cantada que pariu 16 crianças na roça de Passos, em Minas Gerais. Nenhum sofrimento, e eles foram muitos, deixou marca nos olhos de sua avó, Maria. Eu queria tanto que você a tivesse conhecido, porque dona Geraldinha, assim como seu pai, tinha a pureza de quem a todo momento “renasce para a eterna novidade do mundo”. Dona Geraldinha deu ao seu pai, Maria, olhos de primeira vez.

E foi com esses olhos, Maria, que seu pai se tornou um fotógrafo capaz de documentar a brutalidade, a extensa folha corrida de violações de direitos dos tantos Brasis, sem jamais deixar de capturar a beleza mesmo nas horas brutas. Era nisso que seu pai era imbatível. Lilo apreendia num vislumbre onde estava a resistência pela alegria, pelo riso, pelas delicadezas do cotidiano. É desse olhar suas melhores fotos. E é com esse olhar que suas imagens atravessaram o mundo estampando páginas impressas ou digitais de publicações como EL PAÍS, The Guardian, Folha de S. Paulo, Amazônia Real, Repórter Brasil e tantas outras.

Meu caminho se cruzou com o do seu pai, Maria, em 2001, quando nós dois trabalhávamos na revista Época. Viajamos juntos pela primeira vez para o território Yanomami. Nunca tínhamos trocado palavra antes dessa pauta e olhávamos desconfiados um para o outro. Depois de avião, helicóptero e voadeira, finalmente alcançamos a aldeia indígena à noite, ensopados de chuva amazônica. Nos ofereceram vermes assados na brasa das fogueiras e um espaço no lado de fora da bela casa coletiva. Só cabia uma rede, e seu pai e eu dormimos com o pé de um na cara do outro.

Choveu sobre nós a noite inteira e atravessamos a madrugada tremendo de frio. Ao amanhecer, despertamos com os gritos da equipe de saúde que acompanhávamos: “No chão, não! Segura por favor! Cospe aqui!”. Os profissionais da ONG Urihi precisavam coletar o primeiro catarro da manhã para teste de tuberculose, a doença levada pelos garimpeiros que dizimava —e ainda dizima— os indígenas. Nunca vimos tanto catarro na nossa vida. Com uma estreia dessa magnitude, ou nos amávamos para sempre ou nos odiávamos para sempre. Seu pai e eu nunca mais nos separamos. Tornamo-nos irmãos de alma na vida e uma dupla de reportagem no jornalismo —e nunca separamos uma dimensão da outra. É por isso que, quando você nasceu, Maria, tive a honra de ser sua madrinha.

Duas décadas já haviam se passado desde a primeira reportagem e dezenas de outras aconteceram. Em 2017, seu pai e eu decidimos documentar o Brasil e o mundo desde a Amazônia e nos mudamos para Altamira. Desembarcamos na cidade na noite de 16 de agosto e, numa típica lilagem, na mesma noite seu pai beijava sua mãe (ou sua mãe beijava seu pai) no trapiche do cais, na beira do rio Xingu. Sua mãe, Maria, já era uma das mulheres mais bonitas da região, mas principalmente, Maria, uma ativista pela Amazônia e pelos direitos das mulheres negras. Você nasceu desse amor maior do mundo, Maria, e foi alimentada a leite materno e manifestações contra Belo Monte e tudo o que não presta, onde você passava de colo em colo, amparada por mãos assinaladas por trabalho duro.

E por tudo o que não presta seu pai foi morto, Maria. Ele possivelmente se contaminou com covid-19 ao documentar em vídeo o ecocídio produzido pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte na Volta Grande do Xingu. Esse crime já foi denunciado pelo Ministério Público Federal, mas ainda assim segue sendo perpetrado por conivência do Governo Bolsonaro. Quando você puder ler essa carta, Maria, você já terá descoberto. Ainda assim, preciso te dizer. Você, Maria, nasceu e crescerá numa cidade transfigurada por uma obra corrupta e corruptora. Altamira, Maria, se tornou a cidade mais violenta da Amazônia. Nesse cenário de cataclisma climático provocado por ação humana, adolescentes começaram a se matar em série no início de 2020. Vamos acordar desde já, Maria, que você aprenderá com sua mãe a resistir a todas as formas de morte.

Doente desde os primeiros dias de março, seu pai enfrentou todo o colapso do sistema público de saúde numa cidade amazônica. Sobre esse capítulo, Maria, vou precisar pedir licença a você para me aprofundar em uma segunda carta, porque há muito que ainda precisa ser esclarecido. Por enquanto, vou apenas mencionar que seu pai morreu na fila por uma vaga numa UTI pública de São Paulo.

Seu pai só não morreu na rua, Maria, como aconteceu —e ainda acontece— com milhares de brasileiras e brasileiros porque uma rede de amigas e amigos dedicou seus dias a conseguir doações que permitiram interná-lo na UTI de um hospital privado. Ainda assim, seu pai morreu com uma dívida impagável que nem todas as vaquinhas e vendas de fotos e de camisetas conseguiram alcançar. Seu pai sonhou tanto com a casa própria que nunca conseguiu construir com seu salário de jornalista enquanto viveu e sua morte custou um valor capaz de construir várias casas. Assim é o Brasil, Maria.

Para não perder o fio, é necessário que eu siga te contando sobre tudo o que não presta. Você deve ter percebido, Maria, que eu cada vez prolongo mais os parágrafos sobre seu pai porque meu coração se rebela diante da pergunta inescapável. Desta vez, prometo, vou enfrentar seus olhos e deixar que eles me furem.

Você vai me perguntar, Maria, com o olhar sangrando, por que Bolsonaro não foi barrado. Você vai me perguntar, Maria, por que as instituições, em todas as áreas, não impediram Bolsonaro de seguir disseminando o vírus e matando brasileiras e brasileiros. E eu vou ter que dizer a você que aqueles que comandam as instituições se dividem entre os covardes e os corrompidos. Ambos cúmplices, já que a omissão é um tipo de ação.

Para você não sentir-se tão ferida pela sociedade brasileira, é justo que eu diga a você que já são muito mais de 100 os pedidos de impeachment de Bolsonaro hibernando na gaveta do presidente do Congresso. Primeiro foi Rodrigo Maia, que os manteve lá, hoje é Arthur Lira, representante de uma facção do parlamento formada por deputados de aluguel cujo apelido é Centrão. Quem paga mais, leva. E Bolsonaro desembolsou 3 bilhões de dinheiro público em verbas extras para alugar a lealdade de excelentíssimas excrescências. Para que começassem a investigar a atuação do Governo Bolsonaro na pandemia por uma comissão parlamentar de inquérito foi preciso uma ordem do Supremo Tribunal Federal.

Eu sei, Maria, eu também sinto nojo. E o vômito me atravessa a garganta quando me obrigo a te dizer que existe ainda uma entidade metafísica a que dão o nome de “mercado”. Essa entidade apoiou e respaldou Bolsonaro, assim como o miniministro da Economia, Paulo Guedes, por acreditar que poderia lucrar com Bolsonaro no poder. É preciso dizer que, embora seja pronunciada como se fosse uma entidade acima do bem e do mal, movendo-se por forças superiores, o tal “mercado” é apenas um clube muito seleto de humanos feitos com o mesmo número de cromossomos que eu e você, mas que se apropriam da maior parte da riqueza do planeta. Parte desse clube seletíssimo já fez as contas e desistiu, mas há os que ainda acreditam que Bolsonaro pode seguir tendo alguma utilidade. Esse clube resume-se a um punhado de bilionários e supermilionários e um número menos insignificante de executivos a soldo deles.

Tenho de te contar, Maria, que uma parte da imprensa do país faz bochecho com antisséptico bucal antes de pronunciar ou escrever a palavra “mercado”, como se estivesse se referindo a uma espécie de Oráculo de Delfos. E, para se referir aos generais e às Forças Armadas que apoiaram (e apoiam) Bolsonaro, duplica a dose de enxaguante assim como os amantes fazem para se preparar para o primeiro beijo. Um dia, talvez numa terceira carta, vou precisar te contar, Maria, sobre o fetiche de farda que acomete o Brasil. Qualquer general de pantufa faz essa turma tremer. Ainda não sei dizer se por medo ou por pulsão erótica.

Eu sei, Maria, sei que ainda estou fugindo do tema mais difícil. Desculpa, mas ainda não será nesse parágrafo. Vou precisar contar um pouco mais sobre seu pai para voltar a preencher meus pulmões com ar depois dessa rápida incursão pelo esgoto.

Quero te contar que seu pai tinha se tornado verbo. A definição do verbo “lilar” virou até camiseta à venda na lojinha online criada para arrecadar doações para o tratamento e também para o seu sustento e o da sua mãe. Como está o Lilo, as pessoas me perguntavam? Lilando. E todos já entendiam que ele estava se movendo pelas ruas como se o mundo fosse bom e não tivesse pressa, parando para coletar uma muda de flor por onde andasse sem perceber que a 4X4 tirou fino, poetando nas esquinas, cantando seu assombroso repertório de MPB ou a coleção completa de Pink Floyd com a certeza inabalável do amor da plateia.

Seu pai era assim, Maria. Mesmo pisando sobre campo minado, ele cantava ou poetava, como se intuísse que era preciso manter a leveza ao pisar nas bombas para não explodir com elas. Desarmava qualquer um, às vezes literalmente, com sua certeza de que ninguém teria motivo para fazer mal a ele. Seu pai acreditava que, no final, sempre haveria alguém disposto a lançar uma corda para ele emergir do fosso já puxando um samba. E assim seguia lilando Brasis afora.


Faço mais uma vez uma prece silenciosa para que seu pai não tenha descoberto que dessa vez o buraco era fundo demais e nem todas as cordas que os médicos e enfermeiros, assim como sua família e seus amigos jogaram foram suficientes para enfrentar um extermínio promovido com a máquina do Estado.

Não, Maria, ainda não vou retomar esse caminho de escuridão. Ainda preciso te contar que fui descobrindo devagar que existe algo em que seu pai era ainda mais talentoso do que na fotografia. Lilo era um gênio do amor. A rede que se teceu em apenas um dia para cuidar dele e, agora, também de você e sua mãe, é a prova da capacidade do seu pai em ser amado. E ele retribuía. Enquanto não foi intubado, mesmo na UTI, seu pai dava um jeito de responder às mensagens que recebia de todas as geografias. Como já não tinha ar nem força suficientes para escrever ou falar, promovia uma farta distribuição de emojis. A última mensagem que tenho dele no meu whatsapp tem um coração, nove árvores copadas, três coqueiros e três plantinhas fofas. E então seu pai mergulhou no coma induzido.

Eu jamais imaginaria, Maria, que nossas últimas palavras trocadas seriam emojis. Há 20 anos eu e seu pai andávamos juntos contando os Brasis, eu como repórter de texto, ele como repórter de fotos. Sempre acreditei que, quando escrevia, somava os olhos do Lilo aos meus. E, quando ele fotografava, somava os meus olhos aos dele. Nos movíamos pelo mundo de modo quase simbiótico, nos entendendo apenas pelo olhar. Preciso contar a você, Maria, que quando os olhos de seu pai foram fechados, passei a andar pelos mundos, os de fora e os de dentro, meio cega, cambaleando, desacostumada a ter apenas um par de olhos para contar as histórias desse tempo. E, quando soube que Lilo nunca mais voltaria abri-los, senti que seus olhos tinham sido amputados de mim.

Sim, eu sei Maria, é hora de enfrentar os teus olhos bem abertos. E me encarando. O que eu adiei até agora é a pergunta inescapável. Por que nós não impedimos Bolsonaro?

Eu poderia começar essa resposta te contando que o Brasil é um país fundado sobre corpos humanos, os dos indígenas e depois os dos negros que aqui chegaram escravizados. Você tem, Maria, essa história gravada no corpo, é a tua história. Esse país sempre conviveu com a morte violenta, acreditando que era “normal” existir os matáveis, gente da sua cor, Maria, e os não matáveis. Teu povo, Maria, só parou de ser formalmente escravizado há pouco mais de um século e segue fornecendo a carne para as piores estatísticas de vida e de morte. É um país brutal, Maria, e mesmo a alma dos melhores entre nós é deformada pelo racismo estrutural.

Ainda assim não seria a história inteira. Minha geração é fraca, Maria, preciso dizer a você. Grita muito, mas se arrisca pouco a enfrentar os opressores. Prefere sempre arriscar o corpo dos outros, e a essa altura você já sabe a cor do corpo dos que são chamados a se sacrificar. Quando tua geração olhar para a minha, como você está fazendo agora, tenho certeza que teremos uma vergonha maior do que a vida, porque esse é o tipo de vergonha que mancha uma vida. A depender do tamanho da omissão, mancha até mesmo um nome, para muito além das primeiras gerações.

Sim, vocês, vítimas do fazedor de órfãos chamado Bolsonaro, vão cravar seus olhos em nós e perguntar: “Por que vocês não o impediram de matar nossos pais e mães? Onde vocês estavam? O que estavam fazendo?”. E, por fim, a pergunta mais dura: “Quem são vocês?”.

Te digo, Maria, que hoje já somos marcados de guerra. Nenhum povo perde quase meio milhão de pessoas sem ficar marcado. E seremos assinalados por essa vergonha, por essa afronta, por esse ultraje de testemunhar o extermínio e nos descobrir acostumados a morrer ou a ver matar. Eu já repeti essa pergunta algumas vezes e volto a repetir: como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?

Já está dado, Maria, já aconteceu. Mais de 410.000 mortes assinalam uma sociedade para sempre. O que não está dado é se permitiremos que outros mais de 410.000 morram. Neste momento, o Congresso faz uma CPI para apurar os crimes do Governo Bolsonaro relacionados à covid-19. Acredite, Maria, só agora, pela primeira vez, a responsabilidade de Bolsonaro sobre as mortes por covid-19 tornou-se o principal tema do Brasil.

Quando você ler essa carta, Maria, já estará decidido e contado nos livros de história se Bolsonaro seguiu matando seu povo ou se finalmente, com um atraso para sempre criminoso, ele foi responsabilizado e barrado. Espero, Maria, mas espero tanto, que você e todos os órfãos tenham algum motivo não para nos perdoar, porque é imperdoável, mas ao menos para ter menos vergonha da minha geração. Que possamos dizer, ainda que tardiamente, que obrigamos as instituições a cumprir seu dever constitucional.

Pelo menos uma coisa eu te prometo, Maria, e prometo também a todas as crianças sem mãe e sem pai. O que aconteceu será contado, será documentado, será gravado em pedra se for preciso. Os filhos e netos de cada autoridade que se omitir conhecerão a história que manchará seu sobrenome. E enquanto eu encontrar ar para respirar estarei lutando para ver Bolsonaro responder por seus crimes na justiça, a do Brasil e a do mundo. Não faço isso por você, Maria, não sou mentirosa. Faço isso por mim. O olhar que mais temo é o meu no espelho do banheiro.

Lembrar será nossa resistência. Lembrar é sempre nossa resistência. E lembraremos, Maria. E transmitiremos essa memória geração após geração.

Eu tinha planejado terminar essa carta falando sobre borboletas. Mas não será como planejei. Para não dizer que não falei de borboletas, vou então te contar o seguinte, Maria. A viagem mais importante que eu e seu pai fizemos aconteceu em 2004. Fomos os primeiros jornalistas a alcançar a Terra do Meio, no Pará, na Amazônia profunda. As fotos do seu pai e o meu texto foram decisivos para impulsionar a criação da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio. É por isso que seu pai colocou na capa do perfil dele no Facebook uma foto aérea do Riozinho e escreveu: “Enterrem meu coração numa curva do Riozinho do Anfrísio”.

Quando alcançamos o Riozinho pela primeira vez, Maria, fomos engolfados por uma revoada de borboletas. Não dezenas nem centenas, mas milhares. Eram amarelas, de vários tons de amarelo, e para sempre eu e seu pai sentiríamos que havíamos atravessado um portal. Um portal da floresta, sim, mas também um portal dentro de nós. Daquele momento em diante, nós dois começamos a nos amazonizar. Maria, o Riozinho se tornou para nós a terra das borboletas amarelas.

Aprendemos, seu pai e eu, a nos tornar natureza ou nos retornar natureza. É também por isso que afirmo a você, Maria, com toda convicção, que não era hora de seu pai morrer. Bolsonaro destrói a floresta numa velocidade só vista no período da ditadura civil-militar. Milhares e milhares de quilômetros quadrados de mundos complexos povoados por gentes de todas as espécies, humanas e não humanas, foram deletados do mapa. Bolsonaro destruiu também a vida de mais de 410.000 famílias, entre elas a sua.

Com esse massacre, Bolsonaro e seu Governo provocaram um profundo desequilíbrio no planeta. Não se apaga quase meio milhão de vidas sem causar um cataclisma. Eu sei que na sociedade que vê pessoas apenas como indivíduos e não como seres em constante intercâmbio com outros seres, essa ideia é de difícil apreensão. Mas você, Maria, é capaz de compreender. Já podemos sentir esse desequilíbrio no ar que nos falta. Cada morto que deveria estar vivo esgarça o tecido da Terra. O que acontece nesse momento é uma catástrofe de grandes proporções, para muito, mas muito além de uma lista de vítimas.

Na hora em que seu pai morreu, eu tive um sonho acordada. Vi uma onça que se movia delineada em branco. Não uma onça como a vemos na floresta que vemos, mas semelhante a um fantasma de onça. E ela estava furiosa. A dor que senti com a morte do seu pai era a dor de ter minhas tripas arrancadas a dentadas. Compreendi então que seu pai era a onça. E compreendi que eu precisava deixá-lo partir. A onça então embrenhou-se na floresta. Dou a você esse sonho, para que seu pai reconvertido em onça caminhe ao seu lado por todas as florestas.

Seu pai não terá o coração enterrado numa curva do Riozinho. Mas terá, sim, suas cinzas lançadas lá onde esse rio pequeno apenas no nome encontra o Iriri. E eu espero que o portal de borboletas amarelas se abra para recebê-lo. Parece simples, porque as borboletas sempre estiveram lá, mas dias atrás soube que Bolsonaro e todos os destruidores da Amazônia antes dele e com ele estão roubando também as cores das borboletas. Cientistas do Brasil e do Reino Unido descobriram que as borboletas estão se tornando cinzas e pardas para se mimetizar a uma natureza morta que assumiu a cor das queimadas e derrubadas. Sim, Maria, homens como Bolsonaro e sua estirpe de assassinos estão também roubando literalmente a cor do mundo.

Não vou iludir você, Maria, com histórias de esperança. Não sou esse tipo de madrinha. Você e todas as órfãs e órfãos nasceram no tempo que luto é luta. E terão que lutar —e muito— para que o mundo em que viverão siga tendo cor. Eu estarei ao seu lado, com minhas palavras e meus dentes.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Este artigo foi publicado originalmente no EL PAÍS, em 05.05.2021

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

“Aumentar o salário mínimo não significa que haverá menos pobres”

Economista liberal, Deirdre N. McCloskey, diz que a ameaça contra o meio ambiente é exagerada, mas que a ameaça à democracia não é. “Essa gente fascista está em muitos lugares, seja no Brasil de Bolsonaro ou nas Filipinas de Duterte”

A economista Deirdre McCloskey, em sua casa em Chicago, em 4 de maio.

Ela se define como feminista aristotélica episcopal quantitativa a favor do livre mercado e pós-moderna. Na entrevista em sua casa, em Chicago, acrescenta: “E mulher do Meio Oeste americano nascida em Boston.” Deirdre Nansen McCloskey, de 78 anos, foi várias vezes candidata ao Prêmio Nobel de Economia. 

O livro em que relatava sua transição de homem a mulher, Crossing, integrou a lista dos mais destacados do jornal The New York Times. Do marxismo, ela evoluiu para o liberalismo. E agora escreve o epílogo do volume El Manual Liberal (Deusto), com textos de Mario Vargas Llosa, María Blanco e Carlos Alberto Montaner, entre outros autores.

PERGUNTA. A senhora é uma otimista dentro da melancolia agoureira que parece dominar o mundo.

RESPOSTA. Sou! Não entendo por que as pessoas são pessimistas. Como economista, mas principalmente como historiadora, sou capaz de apreciar o longo percurso e sei que os espanhóis eram muito pobres em 1930 e hoje não são. Não culpo ninguém, é muito difícil superar o pessimismo quando é amplificado a cada dia, seja por estudiosos ou colunistas que expressam o pessimismo quase com orgulho. Ou políticos que aterrorizam as pessoas, com o medo do estrangeiro, com o pessimismo em relação à economia... O negócio do populismo que vemos crescer a cada dia é fazer com que as pessoas tenham medo.

P. São, então, apenas os estudiosos bem-intencionados que vêm alertando há algum tempo sobre uma ofensiva contra as democracias liberais.

R. Oh, não! Essa ameaça existe, é real. Às vezes não está tão claro de onde vem, mas quase sempre é fascismo em qualquer uma de suas expressões. Fascismo populista, esse é o grande perigo. Basta olhar para a França. Marine Le Pen pode ser a próxima presidenta da República —embora acredite que perderá no segundo turno—, mas enquanto isso esse caldo de cultura cresce e pode se exacerbar se houver um acontecimento trágico que choque a sociedade. 

Olhe os anos Trump, o mundo ia acabar. Trump foi uma praga, não só para os EUA. Acredito que usamos pouco essa palavra que começa com ‘f’, fascismo, e deveríamos usá-la mais porque essa gente é fascista, como foram Franco ou Mussolini, e agora está em muitos lugares, seja no Brasil de Bolsonaro ou nas Filipinas de Duterte. 

Talvez o pior de Trump é que deu legitimidade a outros políticos para imitar seu modelo. E tivemos sorte de que Trump é um idiota, se não...

P. Depois de quatro anos de Administração Trump e com 70 milhões de votos a seu favor nas últimas eleições que perdeu, os Estados Unidos continuam sendo o farol liberal no mundo?

R. Não há dúvida de que fomos submetidos a uma grande prova. Podemos continuar sendo o farol do liberalismo? Eu diria que sim. Porque Donald Trump foi um criminoso que deveria estar na prisão. Mas não nos enganemos, Trump não está acabado. 

Tenho uma prima que mora no Arizona e tem cavalos. Até aí tudo normal, não é? Bem, ela quer comprar uma arma para se defender dessas hordas de imigrantes que vão tirar nossos empregos. Ela votou em Trump e reverencia o líder, e não há maior prova de fascismo do que isso.

P. Com seu perfil liberal, libertário como a senhora diz, o que acha da defesa de Biden do papel do Governo federal, com essa maciça injeção de dinheiro para emprego, infraestrutura, proteção social?

R. Biden está fazendo um excelente trabalho. Mas principalmente porque não está causando pânico nas pessoas. Não tem um discurso do medo. Biden é bom para o país, embora eu discorde de muitas das propostas democratas. Eu não sou democrata. Sou liberal. 

Não acredito que aumentar o salário mínimo para 15 dólares (cerca de 78,33 reais) a hora fará com que haja menos pobres, é quase certo que acontecerá o contrário: não haverá trabalho.

P. Com quais outras partes da agenda da Administração Biden-Harris a senhora não comunga?

R. Com suas propostas ambientais, exagera-se muito a ameaça ao meio ambiente. Não é um problema tão sério quanto a paz mundial ou a pobreza. E, permita-me, sabemos que algo não vai bem quando uma estudante sueca de ensino médio se torna a heroína do movimento ambientalista. Não estamos pensando como adultos.

P. Pensando como adultos... A senhora diz no epílogo de El Manual Liberal que “o liberalismo é adultismo”.

R. Muita gente gosta de ouvir que lhe diga o que fazer. E isso leva uma liberdade infantil. Segundo a definição que fez [em 1819 o filósofo francês Benjamin] Constant, existem dois tipos de liberdade, a antiga (a liberdade dos antigos) e a moderna (a liberdade dos modernos). 

Esta última é poder governar a si mesmo, com o que você ganha com o seu esforço, honradamente, sendo honesto. A liberdade dos antigos é a que te dá o direito de participar, de votar. Nós, humanos, queremos ambas as liberdades. 

Mas quando você gosta de ser dirigido, acaba tendo uma liberdade infantil; você renuncia a governar a si mesmo. Hoje as pessoas exigem homens montados em cavalos brancos para salvá-las: mais Mussolinis, mais Peróns, mais Putins!, que imponham um estatismo antiliberal.

P. A senhora também diz que “a América Latina está cheia de adultos infantis”.

R. Sim, é trágico. A Argentina é o melhor exemplo. A Venezuela é uma catástrofe absoluta.

P. A senhora foi marxista; colega do inspirador do livre mercado, Milton Friedman; foi professora; aproximou-se da escola austríaca de Friedrich Hayek..., e hoje reclama para o mundo a economia do humano, humanomics.

R. Todos somos ou deveríamos ser marxistas aos 20 anos! A economia do humano é muito simples: aplicar as humanidades à economia, à filosofia, à literatura, à história... Tanto os marxistas quanto os burgueses simplificam o humano, os primeiros porque o encaixam em uma classe social e os segundos porque o veem apenas como maximização de lucro.

P. A senhora fez muitas mudanças, mudou suas ideias e aos 53 anos mudou de gênero. Deixou de ser chamada de Donald para se chamar Deirdre. Imagino que não se sentiu discriminado sendo um estudante branco em Harvard e depois professor da Universidade de Chicago e Iowa. Como mulher, sentiu-se discriminada?

R. Fazia apenas um mês que era mulher quando vivi a discriminação. Estava conversando com um grupo de economistas sobre o que os economistas falam: de economia. Todos sabiam que eu havia sido um homem antes. Fiz um comentário e passou despercebido. Momentos depois, George disse exatamente a mesma coisa. “George, é brilhante!”; “George, deveriam te dar o Nobel!”. Foi a primeira vez que me senti discriminada e a última vez que desfrutei disso. Pensei: Sim, sou mulher, e como tal me trataram! Consegui!

YOLANDA MONGE para o EL PAÍS, em 11 MAI 2021 - 19:41 BRT