segunda-feira, 12 de abril de 2021

Por que a inflação preocupa

A inflação podia ter sido pior, mas está em um cenário preocupante de economia desacelerando, desemprego alto e recorde de mortes por covid

Não foi bom, mas poderia ter sido pior. Esta avaliação talvez possa sintetizar o significado da inflação de 0,93% em março, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Algumas comparações apontam para um quadro inflacionário que justifica alguma precaução. Esta é a maior alta do IPCA em março desde 2015, quando alcançou 1,32%. Um ano antes, a inflação mensal tinha sido praticamente zero, de apenas 0,07%; no mês anterior, fora de 0,86%.

Com o resultado de março, a variação acumulada de 12 meses alcança 6,10%, bem acima da meta de inflação para este ano fixada pelo Conselho Monetário Nacional, de 3,75% (para 2022, é de 3,50% e para 2023, de 3,25%). A última vez que a inflação de 12 meses superou a meta do ano foi em novembro de 2016, quando atingiu 6,99%, ante a meta de 6,5% para aquele ano, como lembrou o analista do Sistema de Índices de Preços do IBGE André Almeida.

A despeito dessas comparações, a maioria dos analistas do mercado financeiro previa um número maior, no intervalo entre 0,94% e 1,10%. Por essa razão, houve, no mercado financeiro, quem recebesse o resultado de março com alívio. “Foi uma boa surpresa”, comemorou um analista.

A situação, porém, não merece comemoração, mesmo estando distante de um quadro de crise. A pandemia, cujo controle exigiu severas restrições à aglomeração de pessoas e a todas as atividades econômicas, levou à forte redução da inflação. O resultado acumulado de 12 meses vinha caindo desde o início do ano passado, mas a queda se acentuou a partir de março – mês em que a covid-19 começou a se espalhar pelo País –, até atingir seu menor valor em junho, quando ficou em 2,13%.

Desde então, vem aumentando, mas a alta se acelerou nos últimos meses. Em janeiro, a inflação de 12 meses alcançara 4,56% e em fevereiro, 5,20%. Entre fevereiro e março, a alta foi de quase 1 ponto porcentual. É um comportamento que preocupa, pelo menos no curto prazo.

A aceleração da inflação nos últimos meses tem sido atribuída a altas nos preços dos alimentos e dos combustíveis. São dois itens com peso expressivo na composição do IPCA. Em um ano, os preços dos combustíveis subiram 23,26%.

Alimentos in natura, que há tempos registram alta expressiva de preços, continuam a pressionar. Em 12 meses, o grupo alimentação e bebidas registra alta de 13,87%. Mas a pequena variação, de apenas 0,13%, em março pode ser um sinal benéfico, de que a pressão dos alimentos pode estar diminuindo.

A provável causa dessa diminuição, porém, preocupa. Pode ser que a suspensão do pagamento do auxílio emergencial no primeiro trimestre, associada a medidas mais rigorosas para conter a pandemia, tenha comprimido a demanda por alimentos. “As pessoas compram menos alimentos perecíveis nesse período”, avalia o gerente do Sistema de Índice de Preços do IBGE, Pedro Kislanov.

Ou seja, os alimentos subiram menos porque provavelmente a população está comendo menos. Se verdadeira, será uma constatação deprimente num país extremamente desigual e com número crescente de pessoas em situação de extrema pobreza.

O diretor de Política Econômica do Banco Central, Fabio Kanczuk, disse, com razão, não ver um cenário de estagflação, isto é, de estagnação econômica combinada com aceleração da inflação. Essa combinação não existe.

Mas, no mesmo cenário em que a inflação sobe – embora possa vir a se reduzir dentro de algum tempo –, a atividade econômica se desacelera, a produção dá sinais de desorganização com o descompasso entre demanda e oferta de insumos em diversos segmentos, a taxa de desemprego permanece muito alta, o número de mortes diárias pela covid-19 bate recordes e a vacinação continua a patinar. E as principais autoridades do País parecem nada disso ver. É preocupante.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 12 de abril de 2021 | 03h00

Bolsonarismo, conservadorismo e liberalismo

Unidos na eleição de 2018, diferenciações e divergências vão se tornando mais nítidas. Avalia Dennis Lerrer Rosenfield.

Jair Bolsonaro, em sua eleição, conseguiu encarnar a força do antilulopetismo, congregando em torno de si três correntes de ideias que, naquele então, apareceram juntas na luta contra um inimigo comum: a extrema direita, os conservadores e os liberais. Compareceram amalgamados, unidos, mesmo indistintos, prometendo uma regeneração nacional, contra a corrupção e os políticos que a ela tinham aderido.

A concepção propriamente de extrema direita, embora já presente, foi progressivamente ganhando forma, exercendo forte influência graças à família presidencial e à captura de ministérios importantes. Os conservadores, bem delineados, surgiram na defesa de valores morais, tendo como representantes principais os evangélicos. Os liberais apresentaram-se, principalmente, sob a pauta do liberalismo econômico e menos sob a forma do liberalismo político.

No entanto, nestes mais de dois anos transcorridos, as diferenciações e divergências internas foram se tornando mais nítidas, embora algumas ainda não se tenham configurado completamente. Por exemplo, o liberalismo econômico já foi praticamente deixado de lado, apesar de o ministro da Economia continuar no poder como figurante de um governo de extrema direita, afeito a intervenções em empresas públicas, abandono das reformas, irresponsabilidade fiscal e ausência de privatizações. Sobra apenas um fiapo de discurso e práticas liberais.

No que diz respeito ao conservadorismo, ele continua ainda aderido à extrema direita, apesar de fissuras se fazerem cada vez mais presentes. Os evangélicos prezam a solidariedade, a compaixão, os valores morais, são reconhecidos como pessoas que reverenciam as virtudes e o trabalho, logo, não podem compactuar com o tratamento que o bolsonarismo dispensa à morte, à doença, o seu desprezo pela vida. Quando a morte e a doença batem à porta, pelo descaso e pela inépcia governamentais, um limite está sendo ultrapassado. Não há nenhuma gracinha na “gripezinha” e nos efeitos da vacina criando caudas de jacaré. O que há, sim, é um completo menosprezo por valores religiosos e morais.

Os traços principais da extrema direita no poder são: 1) A concepção da política baseada na distinção entre amigos e inimigos. Todo aquele que não segue as ordens do clã presidencial é considerado inimigo efetivo ou potencial, seja ele real ou imaginário. Afirma-se, assim, o ódio ao próximo. 2) A sociedade e o mundo em geral são vistos pelo prisma de uma teoria conspiratória, com inimigos invisíveis urdindo um grande complô internacional, sendo o atual governo o bastião de “valores”, evidentemente os seus. 3) O presidente considera-se investido de uma missão de caráter absoluto, como se tudo por ele proferido devesse ser simplesmente acatado, no estilo ele manda e os outros obedecem. 4) Deduz-se daí um culto à personalidade, particularmente presente em sua apresentação de si como se fosse um mito, uma espécie de messias, numa deturpação dos valores religiosos. 5) A destruição e a morte tornam-se traços principais dessa arte de (des)governar, com as instituições representativas, liberais, sendo atacadas e dando livre circulação ao coronavírus, com atrasos, incompetência e tergiversações sobre vacinas, apregoando o contágio por aglomerações e ausência do uso de máscaras. A morte pode circular livremente!

Ora, o conservadorismo no Brasil, fortemente ancorado em valores morais de cunho religioso, está baseado no amor ao próximo, e não em sua exclusão ou potencial eliminação. Sua expressão política na representação parlamentar se faz pelo diálogo e pela negociação, o outro não podendo ser tomado como inimigo. Mais precisamente, não haveria como aceitar o culto à personalidade, muito menos ordens a serem simplesmente acatadas, pois, nesse caso, o poder laico estaria adotando uma forma religiosa. E conforme assinalado, a vida é algo sagrado, não pode ser tratada com incúria e desprezo. Torna-se nítido que o conservadorismo começa a distanciar-se do bolsonarismo, embora sua imagem continue atrelada a ele.

Quanto ao liberalismo, se o seu componente econômico já está sendo relegado a uma posição secundária, se não irrelevante, outro valor seu começa a ser contaminado, a saber, a sua feição propriamente política. Vocações autoritárias do bolsonarismo são inadmissíveis para um liberal. A política enquanto distinção amigo/inimigo é o contraponto de tudo o que essa concepção defendeu no transcurso de sua história. O culto à personalidade lembra tanto o stalinismo quanto o nazismo e o fascismo, com a glorificação e a santificação do líder máximo. A distinção dos Poderes, tão cara, está sendo cotidianamente testada, como se as instituições representativas fosse um obstáculo ao exercício do poder que devesse ser eliminado.

Eis alguns aspectos que serão centrais nas próximas eleições e para o destino do País, cujas distinções aparecerão mais claramente numa abertura para o futuro – isso se algumas dessas correntes não optarem por um jogo de esconde-esconde, do qual o bolsonarismo sairá vencedor.

Mais vale prevenir do que remediar.

Denis Lerrer Rosenfield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, edição de 12.11.2021

Covid: como evitar a trágica marca de 5 mil mortes por dia no Brasil?

Pior está por vir, mas colapso no inverno pode ser evitado, diz médico de universidade que prevê 100 mil mortes por covid no Brasil em abril

Nas últimas semanas, Brasil tem batido recordes consecutivos em mortes por covid-19. (Crédito da foto: Getty Images)

No dia 19 de maio de 2020, o Brasil atingiu pela primeira vez a marca das mil mortes diárias por covid-19.

Esse número permaneceu relativamente estável, em um patamar considerado alto, durante todo o segundo semestre do ano passado.

A casa dos 2 mil óbitos diários só foi alcançada cerca dez meses depois, no dia 10 de março de 2021.

Daí, bastaram apenas três semanas para o primeiro registro de 3 mil mortes em um dia, no início de abril.

Cinco dias depois, em 6/04, um novo recorde entrava para a história da pandemia: o país perdia em 24 horas um total de 4.165 pessoas para a infecção pelo coronavírus.

Pior está por vir, mas colapso no inverno pode ser evitado, diz médico de universidade que prevê 100 mil mortes por covid no Brasil em abril

Com essa progressão avassaladora e imprevisível, epidemiologistas e cientistas de dados não conseguem determinar quando (e se) o Brasil chegará ao (ainda mais) trágico número das 5 mil mortes diárias.

Se, por um lado, o cenário é cercado por incertezas, por outro, não há dúvidas sobre medidas necessárias para conter o avanço da covid-19 no Brasil.

De acordo com especialistas, não existe forma de sair dessa crise sanitária e econômica sem um lockdown nacional de, no mínimo, três semanas.

Secar a fonte

O epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas (RS), entende que o lockdown não deve ser encarado como algo dogmático, em que há pessoas a 100% a favor e outras que são 100% contra, independentemente do contexto.

Ele explica: "Eu defendi a necessidade de uma medida dessas em maio de 2020. Mas, em setembro, achava que não era necessário. Agora, entendo que precisamos de um lockdown nacional pelo tamanho do descontrole que vivemos".

"Nós precisamos parar o país inteiro", afirma.

Lockdown de três semanas com 70% da população em casa ajudaria a quebrar as cadeias de transmissão do coronavírus no país. (Crédito da foto: Getty Images).

A explicação por trás desta paralisação em todas as atividades não-essenciais é relativamente simples: com menos circulação nas ruas, o coronavírus encontra menos pessoas vulneráveis para infectar.

Isso quebra cadeias de transmissão da doença (veja mais a seguir) e impede que ela se espalhe em progressão geométrica em condomínios, ruas, bairros ou cidades inteiras.

Vamos a um exemplo prático: pense num indivíduo infectado que mora na Zona Leste de São Paulo e precisa pegar metrô e trem todos os dias até a Zona Sul para chegar ao escritório.

Com o deslocamento, ele tem proximidade com centenas de outras pessoas ao longo do dia.

(Brasil tem em 1 dia mais mortes por covid-19 do que 133 países em 1 ano de pandemia)

Muitas vezes, a covid-19 demora algum tempo para dar algum sinal ou incômodo — e, numa parcela considerável de casos, os sintomas sequer aparecem.

Esse trabalhador, então, pode transmitir o vírus para contatos próximos que, por sua vez, vão infectar pessoas em sequência, criando as chamadas cadeias de transmissão mencionadas mais acima.

Agora, todo esse estrago poderia ser evitado se o sujeito do nosso exemplo permanecesse em casa por um tempo.

Imagine como isso, em larga escala, se reflete na taxa de novos infectados durante um lockdown, quando milhões de pessoas permanecem em suas casas.

Restrições insuficientes

Para especialistas consultados pela BBC News Brasil, a duração do lockdown nacional deveria ser de pelo menos três semanas.

"Esse é o tempo mínimo necessário para reduzir números de casos, hospitalizações e óbitos por covid-19", resume Hallal.

Uma queda massiva na taxa de novas infecções cria um efeito dominó e traz um impacto positivo em toda a sequência de eventos relacionados à pandemia.

Afinal, um menor número de casos significa uma queda na procura por hospitais e pronto-socorros.

Isso, por sua vez, garante mais espaço em enfermarias e unidades de terapia intensiva, além de um melhor cuidado da equipe de profissionais da saúde, que deixa de sofrer com a chegada excessiva de novos pacientes.

Mas essas medidas drásticas precisam ser levadas a sério: desde janeiro de 2021, prefeitos e governadores anunciaram uma série de novas políticas, que restringiam o funcionamento do comércio e a circulação de pessoas nas ruas em determinados horários do dia (ou, geralmente, da madrugada).

Em vários estados e municípios, a lista de exceções superava e muito as atividades que deveriam obedecer as regras — a influência de certos setores da indústria, do comércio e de serviços fez com que muitas políticas fossem flexibilizadas e toleradas, mesmo no momento mais grave da pandemia.

Outra estratégia de prefeitos que saiu pela culatra foi a tentativa de antecipar feriados para a semana de 29 de março a 2 de abril, como aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro.

A "folga" fez com que muitas pessoas aproveitassem para viajar ao litoral, onde foram registradas muitas cenas de aglomeração.

O grande problema é que esses decretos foram assinados e publicados de forma descentralizada, de acordo com critérios definidos por cada prefeitura ou governo estadual, sem articulação regional ou nacional.

"E muitas dessas medidas sequer foram fiscalizadas. Daí alguns seguiam e outros não, o que é extremamente injusto", observa o médico Ricardo Schnekenberg, que integra um grupo do Imperial College London, no Reino Unido, que estuda a pandemia de covid-19 no Brasil.

O governo federal também não fez nenhum movimento para apoiar ou uniformizar as ações contra a pandemia, apontam os especialistas consultados.

"Com isso, não lidamos com a transmissão do coronavírus e a situação se agravou. Estamos no pior dos dois mundos: pandemia descontrolada e sem perspectiva de melhora econômica", completa.

Lockdown 'pra valer'

Para derrubar as cadeias de transmissão, os epidemiologistas calculam que seria necessário manter cerca de 70% dos brasileiros dentro de casa durante a vigência do lockdown.

"Nesse sentido, a circulação só estaria liberada para trabalhadores essenciais de verdade, como aqueles que integram os serviços de saúde e a cadeia produtiva de alimentação", explica a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo.

O exemplo de lockdown mais bem-sucedido no Brasil aconteceu em Araraquara, no interior de São Paulo, que durante duas semanas de fevereiro de 2021 só manteve abertos os serviços da área de saúde. Até supermercados e o transporte público foram paralisados por lá.

Araraquara X Bauru: dois retratos do Brasil com e sem lockdown

O resultado disso foi uma queda consistente no número de casos e mortes por covid-19.

No início de abril, a cidade até permaneceu alguns dias sem registrar novos óbitos pela doença.

Lockdown decretado pela prefeitura de Araraquara chegou a parar inclusive transporte público e supermercados. (Crédito da foto: Divulgação / Prefeitura de Araraquara, SP)

Outros locais que restringiram a circulação e tiveram bons resultados por algum período foram Petrolina (PE), Ribeirão das Neves (MG) e Bela Vista do Paraíso (PR).

"No lockdown de verdade, a pessoa só sai de casa se tiver autorização e justificativa. As forças de segurança precisam fiscalizar e coibir a circulação", completa Hallal.

Auxílio emergencial

É claro que o lockdown sozinho não é capaz de dar conta do recado: ele precisa vir junto de uma série de outras políticas de médio e longo prazo.

"Para começo de conversa, o governo deveria oferecer um auxílio emergencial digno, que atendesse as necessidades básicas das pessoas sem que elas precisem sair de casa", diz Maciel.

O governo federal começou recentemente a liberar as verbas de uma nova fase do auxílio emergencial.

Os valores foram reduzidos para R$ 150 a R$ 375 (no ano passado os pagamentos chegaram a R$ 600), ao passo que o número de beneficiários também ficou mais restrito.

Novo auxílio não é suficiente para cobrir linha de pobreza em nenhum Estado do país, aponta estudo

Com um aporte financeiro minimamente razoável, a população não precisaria sair à rua para ganhar renda e garantir a sobrevivência.

Em 2020, saque do auxílio emergencial lotou algumas agências da Caixa Econômica Federal. (Crédito da foto: Getty Images).

Segundo os especialistas, o socorro também deveria contemplar os empresários de pequeno e médio porte.

"Eles deveriam ter à disposição linhas de crédito especiais para manterem o negócio e conseguirem superar as adversidades atuais", sugere a epidemiologista.

"Enquanto países como Canadá e Alemanha protegeram o emprego de seus cidadãos e o governo chegou a custear um percentual da renda dos funcionários de empresas privadas, aqui nós aprovamos uma lei para diminuir a jornada e cortar o salário das pessoas", completa.

Vigilância ativa

Também não faz sentido lançar um lockdown dessa magnitude sem um programa sólido de testagem de novas infecções e o rastreamento de contatos.

"É preciso detectar os casos precocemente e aplicar medidas para conter os surtos locais antes que eles se espalhem", diz Schnekenberg.

Política de testagem em massa permitiria flagrar casos iniciais ou assintomáticos de covid-19. (Crédito da foto: Getty Images)

Países bem-sucedidos no enfrentamento da pandemia, como Nova Zelândia, Austrália, Taiwan, Vietnã e Coreia do Sul, têm boa estrutura para exames em larga escala e diagnóstico daqueles casos que ainda nem apresentam sintomas.

No início de fevereiro, a Austrália, por exemplo, chegou a determinar um lockdown rígido por cinco dias a todos os moradores do Sudoeste do país após um único caso ter sido diagnosticado na cidade de Perth.

Com a detecção rápida, é possível iniciar uma busca ativa de todas as pessoas que entraram em contato com aquele paciente, para que elas fiquem atentas e tomem todos os cuidados necessários.

Essa ação é conhecida como rastreamento de contatos e é outra maneira de quebrar as cadeias de transmissão do coronavírus.

"Mas essas ações só seriam possíveis com liderança e um Ministério da Saúde atuante, que transmitisse mensagens claras e consistes ao povo sobre quais são os sintomas, como se proteger, quando realizar o auto isolamento, quando fazer o teste…", lista Schnekenberg.

Outro ponto importante dessa história é que um decreto com medidas restritivas também precisa contemplar como será a saída do isolamento e o retorno do comércio e dos serviços.

"Todos os países bem-sucedidos têm planos para entrar e para sair do lockdown. As atividades devem ser retomadas aos poucos, de forma progressiva, e não tudo de uma só vez", conta Maciel.

Após mortes e internações por covid-19 despencarem, Reino Unido avança em saída do lockdown

Hallal calcula que, se adotássemos essas medidas restritivas e acelerássemos a campanha de vacinação contra a covid-19, seria possível pensar num controle da pandemia, a exemplo do que já acontece em outras nações.

"Com um lockdown rígido de três semanas e a aplicação de mais de 1,5 milhão de doses de vacina por dia, nós começaríamos a enxergar uma luz no fim do túnel", destaca.

Realidade utópica

Por mais que cientistas destaquem e insistam na necessidade de um lockdown nacional desde o início de 2021, é bastante improvável que o Governo Federal acate uma sugestão dessas nas próximas semanas — mesmo se chegarmos perto ou ultrapassarmos a marca de 5 mil mortes diárias por covid-19.

Brasil repete ‘sequência trágica de erros’ da 1ª onda e precisa de lockdown, diz Miguel Nicolelis

Em entrevista coletiva no dia 2 de abril, o ministro da saúde, Marcelo Queiroga, deu claras demonstrações de que fará de tudo para evitar uma medida dessas.

"Precisamos nos organizar para fazer com que evitemos medidas extremas e consigamos garantir que as pessoas continuem trabalhando, ganhando seu salário e renda, fazendo com que a economia funcione, deixando essas medidas extremas para outro caso. Evitar lockdown é a ordem, mas temos que fazer nosso dever de casa", discursou.

O médico Marcelo Queiroga, que assumiu o Ministério da Saúde recentemente, não pretender adotar o lockdown. (Crédito da foto: Alan Santos / PR)

Ele não deixou claro, porém, que organização é essa e o que será feito para garantir uma queda nas mortes por covid-19 e a manutenção da atividade econômica em meio ao pior momento da pandemia até agora.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) também já deu inúmeras demonstrações contrárias a esse tipo de política de saúde pública.

Numa visita à cidade de Chapecó (SC) no dia 7 de abril, o presidente declarou que "não vai ter lockdown nacional".

"Como alguns ousam dizer por aí que as Forças Armadas deveriam ajudar seus governadores nas suas medidas restritivas. O nosso Exército brasileiro não vai às ruas para manter o povo dentro de casa, a liberdade não tem preço", disse.

Uma frase parecida foi dita no mesmo dia, num jantar em São Paulo com empresários, segundo relatos de quem esteve no evento.

Jair Bolsonaro também é contrário a um lockdown nacional (Crédito da foto: Alan Santos / PR). 

"Eu só posso dizer que sinto pelas pessoas que perderam ou que ainda vão perder seus entes queridos nessa pandemia. Muitos indivíduos estão neste exato momento há duas ou três semanas de serem internados e morrerem por causa da covid-19 e por causa de um governo que não tem capacidade de tomar uma medida difícil, mas necessária para salvar a vida dos brasileiros", lamenta Schnekenberg.

A reportagem da BBC News Brasil enviou três questões ao Ministério da Saúde para entender como os responsáveis pelas políticas de saúde pública brasileiras se posicionam a respeito deste assunto e o que estão fazendo para controlar o número de casos e mortes:

O Ministério da Saúde planeja lançar mão de alguma medida ou orientação para que estados e municípios façam lockdown nas próximas semanas?

Se o Ministério não planeja realizar nenhuma ação nesse sentido, quais são os motivos e as evidências científicas que dão suporte a essa postura?

Que outras medidas estão sendo discutidas e implementadas no sentido de controlar o aumento constante dos números de casos e mortes por covid-19, como observamos há algumas semanas?

Até o fechamento desta reportagem, no entanto, não havíamos recebido nenhuma resposta.

André Biernath, da BBC News Brasil em São Paulo / 12.04.2021

Como poluição sonora pode prejudicar seu coração

Em 2011, o Aeroporto de Frankfurt, o mais movimentado da Alemanha, inaugurou sua quarta pista de pousos e decolagens. A novidade provocou grandes protestos, com manifestantes marcando presença no saguão todas as segundas-feiras durante anos.

"Está destruindo minha vida", disse um manifestante à agência de notícias Reuters um ano depois.

"Cada vez que vou ao meu jardim, tudo que consigo escutar e ver são os aviões."

Como a poluição sonora influencia até na obesidade

Há relações cada vez maiores entre o barulho a que somos expostos diariamente e a nossa saúde. (Crédito da foto: Leon Neal / Getty Images).


O segundo maior perigo global à saúde humana (depois da covid-19) que encurta nossa vida em quase 2 anos

A nova pista também levou dezenas de aeronaves a passarem diretamente sobre a casa de Thomas Münzel, um cardiologista do Centro Médico Universitário de Mainz, na Alemanha.

"Morei perto de uma Autobahn alemã (nome dado a rodovias sem limite de velocidade) e perto dos trilhos de trem do centro da cidade", diz ele.

"O ruído das aeronaves é, de longe, o mais irritante."

Münzel tinha lido um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2009 que relacionava a poluição sonora a problemas cardíacos, mas as evidências na época eram escassas.

Movido em parte pela preocupação com a própria saúde, em 2011, ele mudou o foco de sua pesquisa para aprender mais sobre o tema.

A exposição a ruídos altos é há muito tempo associada à perda de audição. Mas o barulho de aviões e carros cobra um preço que vai além dos ouvidos.

O barulho do trânsito foi indicado como um grande fator de estresse fisiológico, ficando depois da poluição do ar, e em pé de igualdade com a exposição ao fumo passivo.

Na última década, um número cada vez maior de pesquisas vinculou o barulho de aeronaves e do trânsito nas rodovias a um risco elevado de doenças cardiovasculares.

E os cientistas também estão começando a identificar os mecanismos que estão em jogo.

Estimativas sugerem que cerca de um terço das pessoas na Europa e nos Estados Unidos estão regularmente expostas a níveis de ruído prejudiciais à saúde, geralmente definidos como aqueles a partir de cerca de 70 a 80 decibéis.

Para efeito de comparação, uma conversa normal alcança normalmente cerca de 60 dB, carros e caminhões em torno de 70 a 90 dB, enquanto sirenes e aviões podem atingir 120 dB ou mais.

Vários estudos associam a exposição crônica a esse tipo de ruído a um risco maior de problemas de saúde.

Pessoas que moram perto do aeroporto de Frankfurt, por exemplo, apresentam risco 7% maior de derrame do que aquelas que moram em bairros semelhantes, mas mais silenciosos, de acordo com um estudo de 2018 que analisou dados de saúde de mais de um milhão de pessoas.

Uma análise de quase 25 mil mortes por doenças cardiovasculares de 2000 a 2015 entre pessoas que moram perto do Aeroporto de Zurique, na Suíça, mostrou aumentos significativos da mortalidade no período noturno após sobrevoos de aviões, sobretudo entre mulheres, conforme uma equipe de pesquisadores registrou recentemente no European Heart Journal.

À medida que os cientistas investigam a fisiologia por trás das consequências cardiovasculares da poluição sonora, eles chegam mais perto de um culpado: mudanças dramáticas no endotélio, o revestimento interno das artérias e vasos sanguíneos.

Esse revestimento pode ir de um estado saudável para "ativado" e inflamado, o que pode ter desdobramentos potencialmente sérios.

As cidades são locais notoriamente barulhentos, mas é complicado separar os efeitos do ruído de outros tipos de poluição. (Crédito da foto: Phillippe Lopez / Getty Images)

O caminho do ruído até os vasos sanguíneos é mais ou menos assim: quando o som chega ao cérebro, ele ativa duas regiões importantes — o córtex auditivo, que interpreta o barulho, e a amígdala, que gerencia as respostas emocionais a ele.

À medida que o barulho fica mais alto, e especialmente durante o sono, a amígdala ativa uma reação de "fuga ou luta" do corpo — mesmo que a pessoa não tenha consciência disso.

Uma vez iniciada, essa resposta ao estresse libera hormônios como adrenalina e cortisol. Algumas artérias se contraem, outras dilatam, a pressão arterial sobe, a digestão fica mais lenta, enquanto os açúcares e as gorduras inundam a corrente sanguínea para uso rápido dos músculos.

A reação em cascata ao estresse também estimula a criação de moléculas prejudiciais que causam estresse oxidativo e inflamação no revestimento dos vasos sanguíneos.

Este endotélio disfuncional interfere no fluxo sanguíneo e afeta outros processos que, quando comprometidos, contribuem para uma série de doenças, incluindo pressão alta, acúmulo de placa nas artérias, obesidade e diabetes.

Estudos realizados em pessoas e cobaias animais mostram que o endotélio já não funciona tão bem depois de apenas alguns dias de exposição noturna ao barulho de aviões. Isso sugere que o ruído alto não é uma preocupação apenas para pessoas que já apresentam risco de problemas cardíacos e metabólicos.

Adultos saudáveis ​​submetidos a gravações de trem enquanto dormiam tiveram a função dos vasos sanguíneos comprometida quase que imediatamente, de acordo com um estudo de 2019 feito por Münzel e seus colegas.

"Ficamos surpresos que os jovens, depois de ouvir esses sons por apenas uma noite, apresentassem disfunção endotelial", diz Münzel, que também é coautor de uma revisão de estudos sobre ruído e saúde cardiovascular.

"Sempre pensamos que isso fosse algo que levasse anos para se desenvolver."

Ampliações de aeroportos geraram protestos em muitas partes da Europa por parte de moradores que reclamam do barulho. (Crédito da foto: Loic Venance / Getty Images).

Enquanto novos dados continuam a surgir, desvendar sua causa e efeito ainda parece complicado.

Não é fácil conduzir experimentos de sono de longo prazo, ou distinguir entre os efeitos do ruído diurno e noturno, ou os efeitos do próprio ruído versus os efeitos combinados da poluição sonora e do ar (que muitas vezes andam juntos).

As consequências do ruído ambiental também são difíceis de analisar devido à natureza subjetiva do som, diz Andreas Xyrichis, cientista de serviços de saúde da Universidade King's College London, no Reino Unido.

Xyrichis estuda unidades de terapia intensiva de hospitais, onde telefones tocando e o barulho de pratos de comida podem ser reconfortantes ou prejudiciais à recuperação, dependendo do paciente.

"Estamos realmente tentando fazer essa distinção entre níveis de decibéis e percepção de ruído", diz ele.

Questões em aberto, há um reconhecimento cada vez maior das conexões entre poluição sonora e redução da saúde física.

Um relatório de 2018 da OMS observou que, a cada ano, os europeus ocidentais estão perdendo coletivamente mais de 1,6 milhão de anos de vida saudável por causa do barulho do trânsito.

Este cálculo é baseado no número de mortes prematuras causadas diretamente pela exposição ao ruído, assim como nos anos vividos com deficiências ou doenças induzidas pelo barulho.

E esse número tende a crescer. Em 2018, 55% das pessoas viviam em cidades e, em 2050, esse percentual deve chegar a quase 70%, estima a Organização das Nações Unidas (ONU).

A exposição a barulho excessivo durante a noite pode aumentar os níveis de estresse e levar a alterações na função dos vasos sanguíneos. (Crédito da foto: Alamy)

Alguns governos, atendendo a protestos da população, tentaram silenciar o clamor da urbanização adotando proibições de voos noturnos, incentivando tecnologias mais silenciosas e emitindo multas após reclamações de barulho.

As pessoas podem ajudar a si mesmas garantindo que seus quartos sejam o mais silenciosos possível, modernizando as janelas ou pendurando cortinas que reduzam ruído — e, se puderem, se mudando para bairros mais silenciosos.

Soluções mais baratas podem incluir usar tampões de ouvido à noite ou mudar o quarto para uma parte mais silenciosa da casa, de acordo com Mathias Basner, psiquiatra e epidemiologista da Universidade da Pensilvânia, nos EUA, e presidente da Comissão Internacional sobre os Efeitos Biológicos do Ruído.

Ele acredita que as pessoas devam tomar essas medidas, mesmo que não se sintam especialmente incomodadas pelo barulho.

"Se você está morando em Manhattan, não vai notar o quão barulhento é depois de um tempo porque fica normal", explica.

"Mas, se você se habituou psicologicamente, isso não significa que não tenha consequências negativas para a saúde."

*Cypress Hansen BBC Future (Knowable Magazine*) Este artigo foi publicado originalmente na Knowable Magazine e foi republicado aqui sob uma licença Creative Commons. / Publicado em português pela BBC News Brasil, em 12.04.2121, há 5 minutos.

domingo, 11 de abril de 2021

Pandemia não anula a Constituição

Constituição dá à minoria parlamentar instrumentos para fiscalizar o Executivo. Foi esse o teor da decisão do ministro Barroso

Nenhuma circunstância excepcional, nem mesmo a maior crise de saúde em um século, justifica que se ignore a Constituição. E a Constituição confere à minoria parlamentar instrumentos para fiscalizar o Executivo. Foi esse, em essência, o teor da decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, ordenando que o Senado instaure uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), pedida por senadores de oposição, para apurar responsabilidades pela desastrosa administração da pandemia de covid-19.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), vinha procrastinando a instalação da CPI, sob o argumento de que o momento exige a total atenção das instituições no combate à pandemia. Ou seja, investigar a origem e a autoria dos gritantes erros que colaboraram para a disparada do número de mortos e para o colapso do sistema hospitalar era considerado secundário.

Mas, como bem lembrou o ministro Barroso, não cabe ao presidente do Senado adiar a abertura de uma CPI, em razão de suas conveniências políticas, se o requerimento de instalação da comissão cumprir os requisitos constitucionais – número mínimo de assinaturas, existência de fato determinado e limite de tempo de investigação. No caso da CPI da Pandemia, esses requisitos haviam sido atendidos, como demonstraram os senadores no mandado de segurança que apresentaram ao Supremo para contestar a procrastinação.

O ministro Barroso foi didático ao explicar, em seu despacho, que a CPI é instrumento que “viabiliza às minorias parlamentares o exercício da oposição democrática”. Isso fica claro, disse o ministro, quando se observa que o quórum necessário para a abertura da CPI “é de um terço dos membros da Casa legislativa, e não de maioria”, razão pela qual “sua efetividade não pode estar condicionada à vontade parlamentar predominante ou mesmo ao alvedrio dos órgãos diretivos das Casas legislativas”.

Há precedentes para a decisão do ministro Barroso: igualmente provocado por parlamentares de oposição, o Supremo mandou instalar a CPI dos Bingos, em 2005, para apurar escândalo envolvendo um ex-assessor do então ministro da Casa Civil, o petista José Dirceu; e a CPI do Apagão Aéreo, em 2007, para investigar problemas no sistema de tráfego aéreo após o choque entre um Boeing e um jatinho que matou 154 pessoas um ano antes. Nos dois casos, o Supremo interveio em razão das tentativas das Mesas Diretoras do Congresso de adiar a instalação das comissões, violando o direito da minoria.

O presidente do Senado disse que vai cumprir a determinação do ministro Barroso, mas declarou que se trata de “um ponto fora da curva” ante “a gravidade da pandemia”, que “nos exige união”. Além disso, declarou que a CPI pode ser “o coroamento do insucesso nacional do enfrentamento da pandemia” e que pode servir como “palanque político”, em “antecipação de discussão político-eleitoral de 2022”, em referência à eleição presidencial.

O raciocínio é flagrantemente falacioso, em muitas dimensões. Em primeiro lugar, “ponto fora da curva” é descumprir a Constituição. Em segundo lugar, se há “insucesso” no enfrentamento da pandemia, não se deve a nenhuma CPI, que nem existe ainda. Ademais, quem tem usado a pandemia para antecipar a campanha eleitoral é o presidente Jair Bolsonaro. Por fim, mas não menos importante, se quer “união”, o presidente do Senado deve cobrá-la não do Supremo, que está somente cumprindo seu papel constitucional, e sim de Bolsonaro, cuja especialidade é desunir.

Bolsonaro reagiu à decisão do ministro Barroso da maneira habitual. Disse que “falta coragem moral” e “sobra ativismo judicial” ao ministro, a quem acusou de fazer “politicalha”, em conjunto com a oposição, “para desgastar o governo”.

Nem parece o Bolsonaro que, em 2007, aplaudiu a instalação da CPI do Apagão Aéreo, na expectativa de que desgastasse o governo do petista Lula da Silva. Em discurso na Câmara, o então deputado Bolsonaro declarou, sobre a responsabilidade pela crise, que “o comandante, o chefe, é sempre responsável por tudo o que acontece ou deixa de acontecer em seu quartel”.

Pois é justamente disso que se ocupará a CPI da Pandemia.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 11 de abril de 2021 | 03h00

Governo quer fim da Comissão de Anistia em 2022 e nega 90% dos pedidos de reconhecimento de anistiados

Ex-presidente Dilma é uma das que tem um pedido de anistia, que deveria ter sido analisado em março. Atual comissão não reconhece a ditadura, enquanto Governo reduz mecanismos do Estado que admitem a violência nos anos de chumbo contra quem discordava do regime militar.


A militante Rosa Cimiana dos Santos, filha do anistiado político Arthur Pereira da Silva. (Crédito da foto: Andressa Anholete)

O Brasil restaurou a democracia em 1985 sem acertar as contas com a história e a memória das vítimas do regime militar que durou 21 anos. Diferentemente de países como a Argentina ou o Chile, que levaram seus algozes para o banco dos réus antes de virar a página, o país se contentou com a Lei da Anistia, assinada em 1979 pelo general João Batista Figueiredo, que presidia o Brasil. A lei ‘perdoava’ militantes de esquerda, bem como militares acusados de crimes. Em 2002, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), uma outra pequena vitória para quem sofreu os abusos dos militares, com a criação do regime do anistiado político. O sistema indeniza quem sofreu perseguição e tortura do Estado durante a ditadura militar. A ex-presidenta Dilma Rousseff, por exemplo, é uma das que pleiteia hoje esse benefício após ter passado dois anos sob tortura na prisão durante o regime militar.

Mas, depois de quase 20 anos, sob um Governo entusiasta da ditadura, os benefícios de reparação da memória estão ameaçados. Houve uma queda exponencial nos deferimentos dos pedidos de anistia e um endurecimento das regras para solicitar o benefício durante a gestão Jair Bolsonaro (sem partido). Somente10% dos pedidos feitos até o momento foram deferidos. A queda nas aprovações vem desde o Governo Michel Temer (MDB), quando 13% dos requerimentos foram aprovados.

O status de anistiado político é concedido às pessoas que tenham sofrido perseguição por órgãos ou indivíduos ligados ao Estado brasileiro entre os anos de 1946 e 1988. A maioria dos reconhecidos como anistiados foi alvo de perseguição durante a ditadura entre os anos de 1964 e 1985. “Desde a gestão Temer, o Estado brasileiro nem pede mais perdão a quem a Comissão de Anistia entende que tem de receber uma reparação”, diz a professora de direito da Universidade de Brasília (UnB), Eneá Stutz e Almeida, conselheira da comissão entre 2009 e 2018. O pedido de desculpas era um importante gesto simbólico, no qual, após analisar minuciosamente os processos em que os requerentes solicitavam a anistia e avaliar que o pedido era justo, os membros do Conselho da Comissão da Anistia anunciavam: “Em nome do Estado brasileiro nós pedimos perdão”.

De 2016 para cá, alguns conselheiros passaram a insultar quem requisita o reconhecimento de que foi perseguido pela ditadura, conta a pesquisadora Stutz e Almeida. A afirmação é referendada por outras testemunhas. “Em uma das sessões, um conselheiro que é militar disse que os anistiados eram terroristas. Me revoltei e falei que os militares eram tarados porque eles tinham o prazer de dar choques em testículos ou em mamilos dos presos e presas, como fizeram com meu pai”, diz Rosa Cimiana, que hoje, aos 61 anos, é servidora pública. O pai de Rosa, Arthur Pereira da Silva, era um líder sindical do setor ferroviário e membro do Partido Comunista no Rio Grande do Sul. Eram credenciais suficientes naqueles anos de chumbo para ter seus 23 anos de direitos trabalhistas cassados. Ele foi preso em 1964, juntamente com outros dez companheiros. Alguns perderam os direitos políticos.

Quando foi solto, Silva passou a viver na clandestinidade porque ainda era perseguido. Chegou a enviar os filhos temporariamente para Argentina para fingir que tinha deixado o país, mas se mudou com a esposa para Goiânia e, depois, para Brasília.

Foi em 1979, quando Rosa, então com 20 anos, teve a alegria de testemunhar o primeiro passo para que a memória do seu pai fosse reconhecida. Em outubro daquele ano, com a ajuda do então deputado Ulysses Guimarães (MDB) ela conseguiu entrar na Câmara, pela primeira vez, para acompanhar a sessão que aprovou a Lei da Anistia. Desde então, passou a ser uma militante da causa e testemunhou todas as movimentações que se seguiram sobre as famílias prejudicadas pelo regime militar. Viveu a alegria, quando em 2003 seu pai, foi oficialmente anistiado – 21 anos após a sua morte. Também acompanhou quando os Governos Lula da Silva e Dilma Rousseff (ambos do PT) reconheceram 40.548 pessoas como perseguidas políticas – cerca de 62% dos requerimentos de anistia apresentados foram aprovados no período.

Agora, o Governo do ex-capitão do Exército caminha a passos largos na sua tentativa de reescrever a história, negar a existência de uma ditadura que usou da perseguição política e de tortura, embora muitos ainda lutem para ter familiares mortos naquele tempo reconhecidos como vítimas do Estado. O objetivo, conforme relatado por interlocutores do Governo, é até o fim de 2022 extinguir a Comissão de Anistia, que é o colegiado responsável por analisar a documentação de todos os pedidos de reparação histórica feitos pelos perseguidos políticos. “É um revisionismo histórico que não pode ocorrer. Mas não dava para esperar nada diferente de quem já defendeu torturador da ditadura militar em discursos públicos”, ponderou Diva Santana, do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia.

Os primeiros passos já foram dados. Inicialmente, Bolsonaro retirou a comissão do guarda-chuva do Ministério da Justiça e o transferiu ainda em 2019 para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Assim, a deixou sob o comando da representante da ala ideológica do Governo, a pastora e advogada Damares Alves. Esse colegiado tem caráter consultivo e a decisão final sobre quem deve receber ou não reparações financeiras cabe à ministra.

Como um de seus primeiros atos, Damares decidiu que entre os 27 membros da comissão, sete seriam militares ou teriam algum vínculo direto com a família Bolsonaro. Dentre eles, o atual presidente da comissão, o advogado João Henrique Nascimento de Freitas, que já assessorou Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) quando ele era deputado estadual no Rio e atualmente é assessor-chefe adjunto no gabinete do vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB). Também já advogou para o presidente Bolsonaro.

Em sua atuação independente da família Bolsonaro, Freitas foi o autor de pedidos polêmicos envolvendo anistiados. Foi ele quem pediu e conseguiu na Justiça por meio de uma ação popular a suspensão do pagamento da pensão à viúva do guerrilheiro de esquerda e antirregime militar Carlos Lamarca (1937-1971), assim como a do veto às reparações dadas a 44 camponeses, torturados na Guerrilha do Araguaia (1967-1974). Procurado pela reportagem, ele não se manifestou. Tampouco o fez o ministério, apesar de ter pedido mais tempo para levantar os dados solicitados.


Jair Bolsonaro e Damares Alves em setembro de 2020. (Crédito da foto: Adriano Machado / Reuters).

“Em nenhum momento a atual comissão admite que houve ditadura. Nas composições anteriores não era assim. Havia divergência entre os conselheiros, mas até mesmo quem era militar reconhecia o regime de exceção”, disse a professora Stutz e Almeida, que no último dia 31 lançou o livro “Justiça de Transição e Democracia”, obra que também aborda a anistia.

Desde o início da Gestão Bolsonaro, a ministra Damares Alves assinou 3.572 portarias que tratam de anistiados. Ela indeferiu o pedido de 2.402 (65%) requerentes, deferiu 363 (1,3%) e anulou 807 (33%) anistias que já haviam sido concedidas em outros Governos. As anulações são os que mais preocupam os ativistas. Vários dos atingidos por ela são idosos, com mais de 75 anos, que, muitas vezes tem como sua principal fonte e renda as prestações mensais que recebem da União — os valores são bastante variáveis, a reportagem identificou pagamentos de 135 reais até 22.000 reais. “Vivemos um momento de perdas de direitos. Primeiro foram os trabalhistas, depois os previdenciários, agora nem a memória é respeitada”, diz o advogado Humberto Falrene, que atua em casos envolvendo anistiados.

Caso Dilma Rousseff

Os números de indeferimentos poderiam ser maiores, caso não houvesse a pandemia. Desde o ano passado, a comissão permitiu que os requerentes que não se sentissem à vontade para viajar a Brasília ou enviar seus advogados poderiam solicitar o adiamento do julgamento que estivesse pautado. Uma das que usou dessa prerrogativa foi a ex-presidenta Dilma Rousseff, que já tivera o julgamento de seu caso adiado em 2019 a pedido de um dos conselheiros que analisava o processo.

Rousseff entrou com pedido de anistia em 2002. Ex-militante antirregime militar, ela foi presa e torturada quando era estudante universitária. Quando foi ministra do Governo Lula e quando presidiu o país ela pediu que seu processo ficasse parado. Ele retornou à pauta em fevereiro passado, mas a ex-presidenta e sua advogada, Paula Febrot não quiseram viajar para o julgamento em Brasília e pediram o adiamento por temor de exposição à pandemia. Uma nova sessão deveria ocorrer na última semana de março, mas não ocorreu e o ministério não justificou por que ela não aconteceu. A petista solicita uma prestação mensal no valor de 10.700 reais.

No seu requerimento, Rousseff alega que depois de ficar presa entre 1970 e 1972 ela foi expulsa da Universidade Federal de Minas Gerais, teve de prestar um novo vestibular para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e enquanto trabalhou na Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul foi pressionada a se demitir. A ex-presidenta já recebeu três reparações em prestações únicas dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que totalizam 72.000 reais. Ela afirma que doou parte desses valores à ONG Tortura Nunca Mais.

Além de Dilma há outros anistiados que pretendem postergar o quanto podem a análise de seus processos, na esperança de que haja uma mudança na mentalidade da comissão ou da ministra Damares. Conforme advogados ouvidos pela reportagem, é comum ouvir relatos de seus clientes que preferem pagar para ver se a comissão resistirá até 2023, quando pode haver um novo Governo eleito, do que gastar seu tempo com processos que dificilmente terão sucesso, já que a comissão tem mais vetado ou anulado anistias do que aprovado.

“O problema é que nossa lei foi de anistia capenga, anistiou os torturados e os torturadores. Por isso, temos de ficar brigando para defender o óbvio e contra o revisionismo histórico”, reclama Rosa Cimiana, que mesmo não tendo mais benefício financeiro algum, segue na luta pela memória das vítimas da ditadura.


Rosa Cimiana segura duas fotos com seu pai. (Crédito da foto: Andressa Anholete).

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 1o de abril de 2021.

CPI da pandemia pode elevar pressão sobre Bolsonaro

Presidente vai enfrentar primeira comissão de inquérito que tem como alvo sua gestão. Outras administrações souberam controlar CPIs a seu favor, mas instalação de colegiado chega em hora complicada para o atual governo.


Presidente Jair Bolsonaro

"CPI a gente sabe como começa, mas não como termina", diz um axioma em Brasília que costuma ser atribuído ao ex-senador Jorge Bornhausen ou ao ex-deputado Ulysses Guimarães. Na próxima semana, pela primeira vez em mais de dois anos de mandato, o presidente Jair Bolsonaro vai passar a enfrentar a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tem como objeto seu governo. O tema: a gestão do Planalto durante a pandemia.

A CPI chega em momento difícil para Bolsonaro, que enfrenta um cenário econômico caótico, uma interminável crise sanitária, índices de popularidade em queda e uma relação tumultuada com sua recém-expandida base de apoio no Congresso. Pesquisa Datafolha de março mostrou que 54% dos brasileiros reprovam desempenho de Bolsonaro na pandemia - apenas 22% aprovam. O país também passa pelo pior momento da pandemia, registrando regularmente marcas de mais de 3 mil e até 4 mil mortes por dia, com diversas cidades enfrentando o colapso das suas redes hospitalares.

O presidente reagiu com virulência à instalação da CPI, distribuindo, por exemplo, ataques ao STF. Bolsonaro costuma explorar episódios em que está sob pressão para energizar sua base radical e transferir a culpa de seus fracassos a outras forças políticas, mesmo quando tais reações podem ter alto custo político.

Segundo o pedido apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o objetivo da CPI é "apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados".

O Brasil ultrapassou no sábado a marca de 350 mil mortes por covid-19 apenas 17 dias após cruzar a linha de 300 mil. Em pouco mais de um ano de pandemia, o governo se notabilizou por minimizar o perigo, sabotar medidas de distanciamento social, promover curas ineficazes, evitar articular uma política de enfrentamento nacional, além de promover teses infundadas sobre supostos riscos de vacinas e demonstrar desinteresse em garantir imunizantes para a população.

Em janeiro, um estudo conjunto da USP e da ONG Conectas Direitos apontou que o governo colocou em prática uma "estratégia institucional para propagar o coronavírus no país".  No mesmo mês, um instituto australiano apontou que nenhum país do mundo lidou de forma tão ruim com a pandemia do novo coronavírus como o Brasil.

No caso de Manaus, existe a suspeita de que o Ministério da Saúde decidiu não agir para impedir o colapso do sistema de saúde da cidade em janeiro, mesmo sabendo dos problemas de antemão.

A instalação da CPI

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), disse neste sábado (10/04) que vai realizar na próxima terça-feira a leitura em plenário do requerimento de criação da CPI da Pandemia, marcando oficialmente a instalação do colegiado.

A leitura do ato deve mostrar que o Senado está cumprindo a determinação do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, que na última quinta-feira mandou Pacheco instalar a comissão de inquérito atendendo a um mandado de segurança apresentado por dois senadores. Pacheco vinha resistindo a instalar a CPI, mesmo com a oposição reunindo o número de assinaturas necessárias para a instalação da comissão. Até o momento, o requerimento reúne 32 nomes, mais do que os 27 necessários.

A ordem de Barroso, por sua vez, não foi inédita. Em outras ocasiões, o STF também determinou a instalação de CPIs que reuniam assinaturas necessárias diante da resistência de presidentes do Senado e Câmara alinhados com o Planalto. Em 2005, a CPI dos Bingos só foi instalada após senadores da oposição recorreram ao STF. O mesmo ocorreu em 2007 na Câmara com a CPI do Apagão Aéreo e em 2014 com a CPI da Petrobras.

Em todas essas ocasiões, ministros do STF destacaram que a investigação parlamentar é um direito constitucional à disposição das minorias no Legislativo. O plenário do STF deve julgar na próxima quarta-feira a decisão de Barroso. A tendência, segundo vários veículos de imprensa, é que a decisão seja mantida.

Base mais frágil no Senado

Acuado pela crise persistente e os problemas de sua família na Justiça, Bolsonaro tratou de reconstruir pontes com o Congresso, em especial com a Câmara, Casa que tem prerrogativa de abrir um eventual processo de impeachment. O Planalto se envolveu diretamente nas eleições dos presidentes das duas Casas, o senador Pacheco e o deputado Artur Lira (PP-AL). Embora a articulação, que selou uma aliança mais ampla com o Centrão da Câmara, tenha afastado num primeiro momento o risco da abertura de um impeachment, as relações ainda continuam tumultuadas, com o bloco exigindo mais espaço no governo e uma gestão mais eficiente da pandemia.

Já no Senado, embora Pacheco ainda demonstre alinhamento com Bolsonaro - exemplificado por sua resistência em instalar a CPI -, a base do governo na Casa é mais frágil. Ao contrário da Câmara, não há um "Centrão" amplo no Senado que concentre demandas de parlamentares por cargos e verbas. Essa maior fragilidade foi justamente exposta pela CPI. A oposição não conseguiu articular movimento similar na Câmara, mas foi bem-sucedida no Senado.

Nos últimos meses, a Casa também entrou em choque aberto com o Planalto, especialmente em relação à política externa de Bolsonaro, chegando a rejeitar um embaixador indicado pelo governo para um posto em Genebra. Foi apenas a terceira rejeição do tipo na história da Casa. Apenas governos enfraquecidos como a segunda administração Dilma Rousseff (2015) e Jânio Quadros (1961) haviam sofrido derrotas similares em indicações para postos diplomáticos.

Senadores também fizeram campanha aberta pela saída de Ernesto Araújo do Itamaraty. Bolsonaro cedeu nesse ponto, mas ainda não abriu espaço para o Senado no governo. Não há nenhum ministro senador, ao contrário do que ocorre com deputados. A instalação da CPI deve aumentar o poder de barganha de senadores nas articulações com o Planalto.

As armas do governo

No momento, o Planalto trabalha para tentar convencer alguns senadores a retirarem suas assinaturas do requerimento para a criação da CPI para garantir que não haja o mínimo necessário. Segundo o regimento do Senado, parlamentares podem retirar assinaturas até a meia-noite do dia em que o requerimento de instalação da CPI for lido em plenário - o que está previsto para a próxima terça-feira.

Caso essa manobra não seja bem-sucedida, senadores governistas já atuam para atrasar o início dos trabalhos da comissão, tentando convencer algumas bancadas a não indicarem representantes para a CPI.

Governo tem menos apoio no Senado

A comissão é composta por 11 titulares e 7 suplentes. Não há normas que estabeleçam um prazo-limite para que blocos e partidos indiquem seus representantes. Não é incomum na história do Congresso que CPIs oficialmente criadas nunca sejam efetivamente instaladas. Caso isso ocorra, resta à oposição recorrer ao STF. Em 2005, senadores alinhados com o governo Lula executaram essa tática para a postergar o início da CPI dos Bingos. Parlamentares da oposição acionaram o Supremo, que determinou que o presidente do Senado indicasse nomes para a comissão.

Outra ferramenta que o governo pode usar é pressionar os senadores a expandirem o escopo das investigações, incluindo a gestão de estados e municípios, diluindo assim o foco no governo. Na sexta-feira, Bolsonaro já fez um questionamento nesse sentido. Um dos senadores que apresentou o pedido ao STF para a instalação da CPI, Alessandro Vieira (Cidadania-SE), já manifestou ser favorável a essa ampliação, afirmando que a iniciativa acabaria "com as desculpas" de Bolsonaro contra a instalação da comissão.

Em governos anteriores, a tática clássica para enfraquecer uma CPI era assegurar o controle dos cargos mais importantes da comissão - a presidência e a relatoria. No entanto, o governo Bolsonaro tem menos presença no Senado para garantir esse cargos. Até aqui, além disso, o governo vem enfrentando problemas na articulação política para garantir uma base sólida e confiável no Congresso.

Se essas armas falharem, analistas acreditam que o governo pode apostar em táticas diversionistas, como ocorreu ao longo da CPMI das Fake News, em que testemunhas alinhadas ao governo aproveitaram o palco para distribuir ataques e mentiras, tumultuando as sessões.

Os riscos

CPIs têm poderes de investigação similares aos de autoridades judiciais, incluindo determinar diligências, ouvir indiciados, inquirir testemunhas, requisitar de órgãos e entidades da administração pública informações e documentos, requerer a audiência de ministros, tomar depoimentos de autoridades federais e solicitar os serviços de autoridades policiais. No passado, CPIs obtiveram informações importantes por meio de depoimentos e quebra de sigilos. Ao encerrar os trabalhos, a CPI pode enviar as investigações e conclusões ao Ministério Público, resultando em desdobramento judiciais.

Caso seja realmente instalada, a CPI deve convocar os antigos responsáveis pela política de Saúde do governo Bolsonaro: os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello - o último já é alvo de um inquérito no STF por causa da gestão relapsa do governo na crise em Manaus. Teich e especialmente Mandetta hoje são críticos do governo. Pazuello, por sua vez, que atuou como um cumpridor de ordens de Bolsonaro em seus dez meses de gestão, demonstrou nervosismo quando pressionado por senadores em uma audiência em fevereiro. A CPI também pode jogar mais luz sobre a falta de empenho do governo em negociar a compra de vacinas ao longo de 2020 e a insistência do Planalto em promover curas ineficazes.

Bolsonaro e Pazuello. Ex-ministro é investigado por atuação em Manaus

Paralelamente, a CPI pode erodir a relação frágil de Bolsonaro com o Congresso. No momento, o governo e os parlamentares protagonizam embates sobre o Orçamento deste ano. Bolsonaro tenta vetar trechos do texto aprovado no Legislativo, que supera em mais de R$ 30 bilhões o limite do teto de gastos. Caso seja aprovado dessa forma, o Orçamento pode configurar crime de responsabilidade - o mesmo motivo que provocou a queda de Dilma Rousseff.

As negociações para tentar cortar o valor bilhões em emendas parlamentares do Orçamento voltaram à estaca zero por causa da CPI, que aumentou o poder do Senado na articulação. A disputa também colocou o Congresso em choque com o ministro da Economia, Paulo Guedes, que foi acusado pelos parlamentares de tentar se eximir da sua participação no desenho do texto.

Para embolar ainda mais, Bolsonaro já demonstrou que pretende iniciar uma nova ofensiva contra o STF, algo que o Congresso quer evitar. Bolsonaro reagiu agressivamente à decisão de Barroso que determinou a instalação da CPI, acusando o ministro de fazer "politicalha" e fazendo ataques pessoais à sua biografia. O presidente ainda tentou reavivar velhas bandeiras da sua base de extrema direita, como o impeachment de ministros do Supremo.

Na mesma semana, ele criticou a decisão do Tribunal que autorizou estados e municípios a restringirem cultos e missas presenciais durante a fase mais aguda da pandemia. Bolsonaro vinha evitando fazer ataques diretos ao STF desde meados de 2020, quando seu antigo "faz-tudo" Fabricio Queiroz foi preso.

Mesmo com a CPI pairando, Bolsonaro também continua a demonstrar que não pretende adotar uma mudança profunda de rumo na gestão da pandemia. Um dia após Barroso ter concedido o mandado de segurança para a instalação da CPI, o Planalto veiculou em suas redes sociais uma campanha para incentivar o uso de máscara e o distanciamento social contra a disseminação do coronavírus. O timing das peças publicitárias não passou despercebido, já que nos últimos meses o presidente havia desestimulado publicamente o uso de máscaras.

No entanto, a mudança de tom mal durou 24 horas. No sábado, Bolsonaro foi a uma igreja sem usar máscara e voltou a criticar medidas de distanciamento social.

Mas nas últimas semanas há sinais de que a paciência do Congresso em relação ao tema está se esgotando. No final de março, o presidente da Câmara, Arthur Lira, ameaçou se afastar do governo caso o Executivo não mudasse sua abordagem de combate à pandemia. "Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar", disse Lira. "Tudo tem limite."

Histórico

Algumas CPIs tiveram profundo impacto na política brasileira. Em 1992, a CPI que investigou o Esquema PC Farias causou profundo desgaste ao então governo de Fernando Collor. A comissão forneceu um palco para os acusadores do presidente, que enfrentava suspeitas de se beneficiar de um esquema de corrupção para financiar seus gastos de luxo.

Eduardo Cunha foi cassado após mentir para CPI

Sob pressão, o círculo do presidente chegou a apresentar à CPI documentos forjados que tentavam dar um verniz de legalidade ao dinheiro. Mas a farsa foi logo revelada e a CPI concluiu que o presidente tinha ligações com o esquema. O relatório final da comissão acabou embasado o bem-sucedido pedido de impeachment de Collor. No ano seguinte, a CPI do Orçamento levou à cassação de seis parlamentares. Em 2005, a instalação da CPI dos Correios elevou a pressão sobre o deputado Roberto Jefferson, que acabou revelando em uma entrevista o funcionamento do esquema do Mensalão.

Mas o poder das CPIs entrou em declínio a partir do final dos anos 2000. Em 2013, a cientista política Argelina Figueiredo apontou num estudo que as CPIs no Congresso haviam perdido sua eficácia e se tornado instrumentos de governo, com membros da base aliada ocupando sucessivamente cargos importantes nas comissões. A própria instalação e prorrogação de CPIs de pouco impacto político também passou a ser uma forma de impedir a criação de colegiados que poderiam se debruçar sobre temas mais espinhosos - na Câmara, apenas cinco CPIs podem funcionar simultaneamente. Mesmo assim, algumas CPIs ainda tiveram impacto localizado. O ex-deputado Eduardo Cunha foi cassado por mentir à CPI do Petrolão sobre suas contas na Suíça.

O declínio das CPIs também coincidiu com o início de um papel mais ativo da Polícia Federal, do Judiciário e do Ministério Público em investigações envolvendo políticos, especialmente após a eclosão da Operação Lava Jato em 2014. Já a instalação da CPI da pandemia ocorre em um momento totalmente oposto, com a PF e a Procuradoria-Geral da República alinhadas com o governo e demonstrando pouca inclinação para investigar irregularidades cometidas pelo governo na gestão da crise sanitária.

Deutsche Welle Brasil, em 11.04.2021

Brasil tem 1.803 mortes por covid em 24 horas

País acumula mais de 353 mil vítimas, dos 13,5 milhões de infectados com o coronavírus desde o início da pandemia. Taxa de mortalidade por 100 mil habitantes chega a 168.

Passageiros de máscara protetora em metrô lotado do Rio de Janeiro

O Brasil registrou oficialmente 37.017 novos casos confirmados de covid-19 e 1.803 mortes ligadas à doença neste domingo (11/04), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 13,482 milhões, enquanto os óbitos chegaram a 353.137. Ao todo, cerca de 11,8 milhões de pacientes se recuperaram da doença, segundo o Ministério da Saúde (o Conass não divulga número de recuperados).

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 168, a 14ª mais alta do mundo, desconsiderado o Estado-nanico San Marino. Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 31 milhões de casos, e seguido de perto pela Índia, com 13,36 milhões. É também o segundo em número de mortos por covid-19, depois dos 562 mil em solo americano.

Ao todo, quase 136 milhões já contraíram o coronavírus no mundo, e 3 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença respiratória, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

Deutsche Welle Brasil, em 11.04.2021

Bolsonaro age como 'monarca presidencial', diz Celso de Mello

Na avaliação de Celso, a determinação, por Barroso, de abertura da CPI da Covid no Senado foi uma decisão "corretíssima" e ancorada em uma série de precedentes firmados pelo próprio Supremo  


Celso de Mello, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal. (Crédito da foto: : Monique Renne/CB/D.A Press)

Na decisão em que mandou o Senado abrir uma CPI para investigar a atuação do governo na pandemia, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, mencionou 12 vezes o nome de Celso de Mello. O ministro aposentado foi relator de três casos que embasaram a decisão do colega, que se tornou alvo do presidente Jair Bolsonaro. O chefe do Executivo acusou Barroso de "militância política" e "politicalha". Ao Estadão, Celso disse que Bolsonaro age como um "monarca presidencial" e "revela a face sombria de um dirigente político que não admite nem tolera limitações ao seu poder".

Na avaliação de Celso, a determinação, por Barroso, de abertura da CPI da Covid no Senado foi uma decisão "corretíssima" e ancorada em uma série de precedentes firmados pelo próprio Supremo. O ministro aposentado também rechaçou os ataques feitos por Bolsonaro ao seu ex-colega de Corte.

"Um presidente da República que não tem o pudor de ocultar suas desprezíveis manifestações de desapreço pela Constituição da República e pelo princípio fundamental da separação de poderes, que atribui aos seus adversários a condição estigmatizante de inimigos e que se mostra disposto a atingir, levianamente, o patrimônio moral de um dos mais notáveis juízes do Supremo Tribunal Federal que proferiu corretíssima decisão, em tema de CPI, inteiramente legitimada pelo texto constitucional e amplamente sustentada em diversos precedentes firmados pelo plenário de nossa Corte Suprema, revela, em seu comportamento, a face sombria própria de um dirigente político que não admite nem tolera limitações ao seu poder, que não é absoluto, comportando-se como se fosse um paradoxal 'monarca presidencial'!", escreveu o ministro aposentado à reportagem.

"Mais do que nunca, torna-se necessário que o Supremo Tribunal Federal, agindo, como sempre agiu, nos estritos limites de sua competência institucional, atue com o legítimo objetivo de repudiar comportamentos presidenciais quando estes se revelarem transgressores do princípio da separação de poderes ou se mostrarem lesivos à supremacia da ordem constitucional!", acrescentou Celso.

Ainda de acordo com o ex-decano do Supremo, um verdadeiro líder político, que ostente o perfil de estadista, "há de preocupar-se em respeitar a institucionalidade legitimamente estabelecida, em submeter-se à autoridade da Constituição e das leis da República, em cumprir fielmente e sem tergiversações os comandos judiciais a ele dirigidos e em exaltar a liberdade dos cidadãos, o primado dos valores democráticos e a dignidade essencial do ser humano".

Apagão

Em 2007, o então ministro Celso de Mello deu decisão similar à de Barroso, dirigida ao então presidente Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT), que tentava contornar a instalação da CPI do Apagão Aéreo com uma votação em plenário, embora a oposição já tivesse levantando as assinaturas necessárias para abrir a investigação sobre a crise do sistema de tráfego aéreo do País.

Na época, Bolsonaro era deputado, atuava em oposição ao governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e defendeu uma atuação do Supremo no caso. "Eu espero que o Supremo tenha, apesar do que eu falei aqui, é o Supremo... Espero que tenha uma decisão lá voltada para a razoabilidade e deixe instalar a CPI", disse Bolsonaro durante uma entrevista à TV Câmara, veiculada em 2007.

Hoje, Bolsonaro comanda o Palácio do Planalto, Lula está na oposição e a CPI da Covid conta com o apoio de mais de um terço dos senadores, mas sofre resistência do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), aliado do governo que chegou ao cargo com apoio do chefe do Executivo.

Poderes

Na sexta-feira, Bolsonaro afirmou, em suas redes sociais, que falta "coragem moral" a Barroso por se omitir de também ordenar a abertura de processos de impeachment contra integrantes da Corte. Após os ataques, o Supremo divulgou uma nota institucional em que afirma que seus integrantes tomam decisões conforme a Constituição e ressalta que, dentro do estado democrático de direito, questionamentos sobre essas decisões devem ser feitos no âmbito dos processos, "contribuindo para que o espírito republicano prevaleça" no País.

Barroso, por sua vez, afirmou que, ao ordenar a abertura da CPI da Covid, se limitou a "aplicar o que está previsto na Constituição, na linha de pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e após consultar todos os ministros".

Celso de Mello se despediu do Supremo em outubro do ano passado, ao completar 75 anos. Entre seus últimos atos no tribunal, cuidou do inquérito que investiga acusações de interferência política indevida de Bolsonaro na Polícia Federal e determinou que o presidente prestasse depoimento presencial. Até hoje, o plenário da Corte não resolveu a controvérsia.

Correio Braziliense, em 11.04.2021

Mundo ainda tem países sem uma única dose de vacina

Enquanto em nações como EUA e Reino Unido a vacinação contra a covid-19 avança rápido, em outras partes do planeta a campanha sequer começou.

Paciente com covid-19 na África do Sul: país teve acesso a vacinas, mas vários vizinhos, ainda não

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 600 milhões de doses de vacina contra a covid-19 já foram aplicadas em todo o mundo. Mas a discrepância entre países é alta: enquanto, por exemplo, quase 100% da população de Gibraltar já foi vacinada, países como a Nicarágua ainda aguardam as primeiras doses.

Uma situação descrita pelo secretário-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, como um absurdo: recentemente, ele apelou para que a produção global fosse aumentada, e as vacinas, distribuídas de forma justa para enfrentar a fase aguda da pandemia.

No mapa global de vacinação, ainda há uma faixa inteira de países africanos aguardando a chegada de doses - da Líbia a Madagascar. Esses países não figuram sequer nas estatísticas de vacinação da OMS. O quadro é semelhante na Ásia Central, assim como em países como Coreia do Norte, Cuba e Bósnia-Herzegóvina. Isso não significa, no entanto, que estes países não tenham recebido absolutamente nenhuma vacina até o momento. A Bósnia deverá receber sua primeira grande entrega direta no final de maio, mas já teve acesso a algumas doses doadas pela vizinha Sérvia.

Países africanos sem vacina

"Com relação à África, temos a boa notícia de que 44 países já receberam o fornecimento de vacinas. Mas, ao mesmo tempo, isso também significa que dez países não receberam até agora nenhuma vacina", diz Clemens Schwanhold, da ONG de combate à pobreza ONE.

Madagascar, Burundi e Eritreia estão entre em que os governos acreditavam que o vírus poderia ser combatido por outros meios. A Tanzânia, entretanto, passou por uma mudança de opinião após a morte repentina do presidente John Magufuli, um negacionista da ciência, após rumores não confirmados de uma infecção pela covid.

Schwanhold acredita que o governo liderado pelo sucessor de Magufuli, o presidente Samia Suluhu Hassan, provavelmente encomendará vacinas nas próximas semanas. "Ainda vai levar alguns meses, talvez algumas semanas, até que algo chegue", comenta.

Maioria das doses nas mãos de UE e EUA

"Nenhum de nós é seguro até que todos estejamos seguros" é um mantra sobre a covid-19 - e é a ideia por trás do programa Covax de proporcionar acesso global à vacinação. Os Estados-membros da OMS foram divididos em dois grupos. Um é formado por 98 países mais ricos, que estão financiando o fornecimento subsidiado ou gratuito de vacinas para os 92 países mais pobres.

"O problema é que não há muito mais doses de vacinas disponíveis porque a UE e os Estados Unidos já asseguraram a grande maioria delas", diz Sonja Weinreich, responsável pelas questões de saúde na organização Brot für die Welt (pão para o mundo), uma agência de assistência administrada pelas igrejas protestantes na Alemanha. "Portanto, este mecanismo não vem sendo capaz de se impor adequadamente porque essa solidariedade simplesmente não existe".

Uma grande coalizão de organizações de ajuda e outros grupos tem exigido a renúncia às patentes de vacinas da covid para ajudar a enfrentar este problema. "Isso permitiria que os países mais pobres - ou todas as empresas em todo o mundo - que são capazes de produzir vacinas, fizessem exatamente isso. Isso simplesmente teria que caminhar de mãos dadas com a transferência de tecnologia relevante", diz Weinreich.

Brot für die Welt é uma das organizações por trás desta demanda. Um argumento, diz ela, é que as vacinas foram parcialmente desenvolvidas e produzidas com fundos públicos: "Não é aceitável que algo seja financiado publicamente e, em seguida, os lucros sejam privatizados", comenta.

A indústria farmacêutica, por outro lado, argumenta que a patente não é o ponto. Nathalie Moll, diretora-geral do grupo de lobby da indústria, a Federação Europeia das Associações e Indústrias Farmacêuticas (EFPIA), disse à DW no final de março: "Se uma empresa entra em contato com outra para expandir a produção de vacinas, muito know-how técnico tem que ser transferido, para que as vacinas possam ser produzidas com segurança e eficiência nas quantidades necessárias. Trata-se de muito mais do que propriedade intelectual". Segundo ela, 250 licenças já haviam sido distribuídas em todo o mundo para expandir a capacidade de produção.

Covax, uma iniciativa realista?

A Índia - vital para o fornecimento mundial de vacinas - recentemente restringiu a exportação. O governo quer manter os suprimentos no país, que está atualmente registrando níveis recordes de infecção. Os EUA também não exportaram praticamente nenhuma vacina, enquanto a União Europeia tem permitido o envio de suprimentos para países mais pobres.

Mas tanto Sonja Weinreich quanto Clemens Schwanhold estão otimistas quanto ao fato de que o principal objetivo do programa Covax pode ser alcançado. O objetivo é vacinar pelo menos 20% da população de todos os 92 países beneficiários até o final de 2021, incluindo grupos de alto risco e pessoal médico.

"Acho que isso é viável", diz Weinreich. "Na Europa, a implementação da vacinação está começando a ganhar velocidade, e muito mais vacinas devem estar disponíveis", acrescenta ela.

A UE encomendou mais de quatro vacinas per capita de vários fabricantes, embora apenas duas, no máximo, sejam necessárias. O Canadá já encomendou mais de oito. Clemens Schwanhold explica que as questões de responsabilidade ainda precisam ser resolvidas antes que tal excesso de vacinas possa ser repassado aos países em necessidade.

Os fabricantes repassaram sua responsabilidade à maioria dos Estados que compram seus produtos devido ao tempo extremamente curto de entrega. "E é compreensível que a UE não queira ser responsabilizada por nenhuma reclamação em potencial se repassar doses de vacina", explica Schwanhold.

Ele diz que o sucesso da promessa da Covax depende de "todos os participantes se unirem quando se trata de financiamento e do fornecimento de matérias-primas". O bom, argumenta, é que "a Covax não tem que fazer tudo isso sozinha". A União Africana também encomendou significativamente mais de 500 milhões de doses de vacinas, diz ele: "Estou relativamente confiante de que teremos vacinado muito mais de 20% até o final deste ano".

Deustsche Welle Brasil, 11.04.2021

sábado, 10 de abril de 2021

A privatização da vacina está na mesa

Não há Brasil mais atrasado do que aquele reunido em torno da mesa de Washington Cinel, o ex-oficial da Polícia Militar que fundou uma empresa de segurança, a Gocil, e se tornou muito rico - hoje ele é dono de fábricas de alimentos a fazendas de gado de raça, além da casa, na região mais valorizada de São Paulo, onde recebeu o presidente Jair Bolsonaro para um jantar, na quarta-feira passada. 

Afeito ao lobby que desempenha profissionalmente na condição de presidente da Lide Segurança, Cinel não teve problemas em repetir o que fez nas campanhas do governador Doria, de quem era muito próximo, e reunir empresários, supostamente para responder à pressão sobre o presidente Bolsonaro, criticado pela condução da crise sanitária em uma carta assinada por economistas e CEOs de grandes grupos - Itaú, Klabin, Gerdau, Natura, Ambev, Gávea, Marfrig e Amaggi - no final de março. 

Como observou a colunista Maria Cristina Fernandes, do Valor, o estratagema funcionou (com uma ajudinha da imprensa), deixando indignados empresários que não participam do núcleo duro do bolsonarismo. Alguns nomes fortes do empresariado chegaram a declinar o convite, como Abílio Diniz, Frederico Trajano e Johnny Saad, da TV Bandeirantes. Nem mesmo a tentativa de Bolsonaro de fortalecer Paulo Guedes atraiu a elite financeira, segundo a colunista do Valor, desenganada com o poder real do ministro da Economia. 

Mas, se foram poucos os nomes reluzentes que compareceram, representados pelos banqueiros do Safra e do BTG, o CEO do Bradesco, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, e figuras do agronegócio como Rubens Ometto, da Cosan, sobraram endinheirados que aplaudiram com sinceridade mais um discurso obscurantista do presidente. Seus nomes podem não ser conhecidos nacionalmente, mas as fortunas são de peso. 

É o caso do médico Cândido Pinheiro Koren de Lima, que figura na recém-publicada lista da Forbes com uma fortuna de 1,8 bilhão de dólares, empatado no ranking com o filho, Jorge Pinheiro. O dinheiro da família vem da Hapvida, a empresa de saúde privada fundada por Cândido que é a maior do Nordeste, e só trouxe alegrias no último ano. A receita líquida cresceu 62,7% chegando a R$2,1 bilhões durante a pandemia de coronavírus. Tudo isso com absoluta lealdade ao presidente Bolsonaro. No ano passado, a Hapvida foi acusada de demitir um médico e ameaçar outros profissionais por não prescrever hidroxicloroquina aos pacientes de Covid-19. O protocolo que estipula o uso da droga continuou vigente pelo menos até o final do ano passado na rede de 33 hospitais e 90 clínicas da empresa, como apurou o site Marco Zero. 

Outro comensal que aplaudiu Bolsonaro foi Carlos Sanchez, dono da farmacêutica EMS, grande fabricante de medicamentos genéricos que obteve 5,6 bilhões de receita líquida em 2019 e cresceu 21% em 2020, mais do que o dobro da média do setor. Sanchez também produz hidroxicloroquina e forneceu medicamentos para um dos primeiros estudos sobre a eficácia (que não se comprovou) do medicamento, liderado pelo Hospital Albert Einstein. 

O presidente do Conselho do Hospital Albert Einstein, Claudio Lottenberg, que também foi CEO da Amil, uma das maiores operadoras de saúde privada no país, aliás, era outro que estava no jantar. Em um post publicado no mesmo dia no Linkedin, defendeu a vacinação privada. “Acredito que mais pessoas terão acesso à vacina contra a Covid se o setor privado entrar como aliado nesse processo”, disse.

Também na lista de bilionários da Forbes, Isaac Peres, dono da Multiplan, proprietária de shoppings de luxo como o Barra Shopping, no Rio, e o Shopping Morumbi, em São Paulo, era um dos mais entusiasmados. No ano passado, Peres chegou a chamar governadores de “tiranos” por decretarem o isolamento social que prejudicava seus negócios. Nada diferente do que repetiu mais uma vez Bolsonaro no jantar. Agora, Peres defende a vacinação privada e chegou a  oferecer os shoppings centers como locais de vacinação. 

Fecham a lista dos bilionários da Forbes presentes ao evento, o empresário Rubens Menin - que além de dono de uma construtora e de um banco é sócio majoritário da CNN (os donos de outras empresas de comunicação também estavam presentes como Jovem Pan, SBT e Alpha Comunicação); e Flávio Rocha, da Riachuelo, empresa que acumula ilegalidades trabalhistas incluindo o uso de mão-de-obra em condições análogas à escravidão.

Não será surpresa se a privatização da vacina e as fake news sobre isolamento social, propagadas pelos presentes, vierem a agravar a tragédia do país em que os mortos se contam a centenas de milhares e a vacinação patina, enquanto mais da metade da população simplesmente não tem a garantia de ter comida na mesa todos os dias. Também não interessa o número de brasileiros doentes e mortos em decorrência da prescrição de cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina. Esses são os descartáveis para Bolsonaro e sua trupe. O que importa é que o número dos bilionários brasileiros na Forbes subiu de 45 para 65, multiplicando lucros e cabos eleitorais com muita bala na agulha. O espírito “público” desses empresários coincide perfeitamente com o do presidente.

Marina Amaral, co-diretora da Agência Pública