quinta-feira, 4 de março de 2021

Agora governo e Congresso estão passando a boiada de verdade

Bolsonaro e seus aliados usam a situação dramática da pandemia para fazer avançar medidas controversas. Em jogo estão vários ganhos democráticos recentes, escreve Alexander Busch.    

Arthur Lira, novo presidente da Câmara: PECs polêmicas estão avançando rápido na Casa

Em abril passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu em uma reunião de gabinete que a pandemia deveria ser usada pelo governo para mudar o maior número possível de leis ambientais, enquanto o país estivesse distraído com a crise em torno do coronavírus.

É exatamente isso que está sendo feito agora no Congresso, onde, há três semanas, foram instalados dois presidentes alinhados ao governo.

Enquanto o Brasil vive um novo pico no número de infectados e mortos pelo coronavírus, projetos de lei complicados, preparados durante muito tempo, aparecem de repente, do nada. E o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, quer agora submetê-los a uma votação rápida – antes mesmo que tenham sido instaladas as comissões que deveriam debatê-los primeiro.

Trata-se de decisões fundamentais para a política e a economia do Brasil.

A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) Emergencial visa emendar a Constituição para que os gastos sociais possam ser elevados acima do teto para uma emergência como a pandemia. Isso sem que o governo seja responsabilizado posteriormente, como foi o caso recentemente da ex-presidente Dilma Rousseff em seu impeachment.

A PEC não terá qualquer concessão ao Legislativo: ela vai avançar aparentemente sem nenhuma mudança no campo dos gastos. Os cortes planejados nos salários dos funcionários públicos não aparecem mais. O governo quer eliminar os gastos mínimos estabelecidos para educação e saúde nos três níveis federais, para que governo federal, governador e prefeito possam usar o dinheiro como acharem melhor.

Já com a chamada "PEC da Impunidade", os deputados querem acima de tudo se proteger do Judiciário. Por exemplo, no futuro, eles devem decidir por si mesmos se um de seus próprios deve permanecer em prisão preventiva, mesmo que o STF  tenha assim ordenado.

Além disso, um grande número de delitos não deve mais ser passível de punição: no futuro, deverá ser possível novamente empregar parentes, e quem não prestar contas de suas campanhas eleitorais com transparência não estará mais em risco. O ônus da prova é invertido: qualquer pessoa que trapacear em licitações públicas ou obtiver privilégios como deputado só poderá ser processada se houver "prejuízo ao erário" ou "dolo".

Também deve ser abolida a lei da Ficha Limpa, segundo a qual os deputados com antecedentes criminais não podem mais concorrer em eleições. Isso após a Lava Jato ter sido recentemente desmantelada pelo Ministério Público.

Mesmo que a PEC da Impunidade vá agora ser discutida por uma comissão, a tendência é clara: governo e Congresso querem se livrar rapidamente de uma maior transparência e dos controles democráticos e de corrupção cuidadosamente incorporados ao sistema legal nos últimos dez anos.

Para garantir o bom funcionamento de tudo isso, o presidente Bolsonaro colocou a Petrobras como isca para os deputados e senadores, instalando ali um general que cumprirá suas ordens. O mesmo acontecerá no Banco do Brasil.

O cálculo de Bolsonaro provavelmente vai funcionar: dentro de um ano e meio, a campanha eleitoral terá início. Os deputados e senadores vão querer subsídios, contratos e cargos para aliados. Eles votarão esmagadoramente a favor dos projetos de lei. Se não for agora, vai ser dentro de algumas semanas.

Para a democracia brasileira, este é um amargo passo para trás

Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Clique aqui para ler suas colunas. 

'Foi horrível, não tem explicação', diz filha de paciente que morreu antes de ser transferido para a UTI


Sobrecarga das unidades hospitalares de Santa Catarina teve início em meados de fevereiro (Crédito foto: Corpo de Biombeiros - SC)

O aposentado Dirceu Luiz Fava, 66 anos, morador de Xanxerê, no interior de Santa Catarina, parecia estar respondendo bem ao tratamento repassado pelo médico do plano de saúde nos primeiros dias de sintomas da covid-19. A partir do quinto dia, porém, a situação começou a se agravar.

O médico tentou trocar a medicação, sem sucesso. Um kit de oxigênio foi providenciado e serviu para mantê-lo em atendimento domiciliar por mais quatro dias. Fava tinha comorbidades, era obeso e estava com pneumonia. No nono dia da doença, na última segunda-feira (1/3), o profissional de saúde que o atendia em casa constatou que ele precisava de um leito de UTI para sobreviver.

Após contato com o único hospital da cidade, o Hospital Regional São Paulo, a família conseguiu um leito improvisado na emergência, que é a porta de entrada da unidade. O espaço, hoje com 30 pessoas, foi reorganizado para atender os pacientes graves da covid-19, mas não corresponde às necessidades de uma UTI.

Fava foi atendido pela equipe médica de plantão e foi intubado ali na emergência mesmo. Horas mais tarde, a filha Rosemeri Fava recebeu a notícia de que o pai não havia resistido.

"Veio a médica conversar, disse que não tinha leito [de UTI] e que tinha mais de 20 [pacientes] na frente dele. Foi horrível. Não tem explicação, não tenho palavras", lamentou Rosemeri.

Dirceu Fava deixou quatro filhos e esposa. Ele é um entre pelo menos 43 pacientes que morreram enquanto aguardavam leitos de UTI em Santa Catarina de fevereiro para cá.

A reportagem confirmou pelo menos 15 óbitos no Hospital Regional São Paulo, em Xanxerê; 14 na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Chapecó; uma no Pronto Atendimento da Epafi, em Chapecó; 12 no Hospital Regional de São Miguel do Oeste; e uma no Hospital Municipal Santo Antônio, em Itapema.

Todos esses pacientes receberam atendimento em unidades de saúde, inclusive em leitos improvisados, mas não conseguiram transferência para UTI.

O governo de Santa Catarina não se pronunciou sobre os números, mas confirmou que havia 251 pacientes aguardando leitos de UTI até a tarde desta quarta-feira (3/3).

Entre os pacientes que morreram na fila de espera estão duas técnicas de enfermagem que atuavam na linha de frente da covid-19, conforme as informações divulgadas pelo Conselho Regional de Enfermagem.

Uma delas é Zeni Buenos Pereira, de 53 anos, que trabalhava no Centro Integrado de Saúde de Itajaí.

A profissional sentiu os sintomas no dia 23 de fevereiro e foi atendida no Hospital Municipal Santo Antônio, em Itapema. Ela já estava fazendo uso de máscara de oxigênio e precisava de um leito de UTI. No dia 25, conseguiu uma vaga no Hospital Marieta Konder Bornhausen, em Itajaí, mas morreu antes de ser transferida.

Eliandre Boscato, de 43 anos, que atuava na Associação Hospitalar Padre João Berthier, em São Carlos, passou por situação parecida.

Foi internada no dia 20 de fevereiro na unidade em que trabalhava, mas precisou ser transferida para o Hospital Regional São Miguel do Oeste. Quando chegou à unidade, ficou mais um dia em um leito improvisado e não resistiu, morreu no dia seguinte, em 28 de fevereiro.

Cassio de Nakano, diretor clínico do Hospital Regional de São Miguel do Oeste, fez um desabafo na última coletiva de imprensa que ocorreu na terça-feira (2/3) e apontou a situação crítica da unidade de saúde.

"De todos os doentes que estão entrando na UTI hoje, 60% vão morrer. Dos 40 que estão aqui, 25% estão entrando em insuficiência renal aguda, o que é um péssimo prognóstico, é assustador".

E alertou: "Parem de achar que não tem nada, que porque é jovem não vai morrer. Pacientes com menos de 50 anos, atletas, estão morrendo. O pessoal tem que acordar. Aqui no hospital estamos fazendo tudo o que dá, mas a gravidade da doença está muito pior do que antes, nunca esteve tão ruim", completou o diretor.

A lotação das unidades hospitalares de Santa Catarina começou em meados de fevereiro, logo após o Carnaval e a retomada das aulas. Os primeiros meses do ano também foram marcados por grandes aglomerações no litoral catarinense.


Diante de falta de UTIs, Santa Catarina transferiu pacientes internados em decorrência da covid-19 (Crédito foto: Corpo de Bombeiros de SC).

Pacientes começam a ser transferidos para o ES

A primeira transferência de paciente para outro Estado ocorreu nesta quarta-feira. Santa Catarina chegou a abrir suas portas para doentes vindos de Manaus em janeiro, mas agora pede socorro.

Um homem de 34 anos que estava intubado e sendo atendido de forma improvisada na UPA de Chapecó foi transportado pelo Batalhão de Operações Aéreas do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina para o Hospital Doutor Jayme Santos Neves, no município da Serra (ES), região da Grande Vitória.

Apenas um paciente foi levado na aeronave por causa da gravidade de seu quadro de saúde. A rede hospitalar do Espírito Santo ofertou 16 leitos para Santa Catarina. Outros pacientes devem ser transferidos nos próximos dias. A preferência é para os internados nos hospitais da região Oeste que estão superlotados (Xanxerê, Chapecó e São Miguel do Oeste).

A triagem dos pacientes que serão transportados leva em conta as condições clínicas para enfrentar a viagem de três horas e meia. A expectativa é que ocorram pelo menos duas viagens por dia.

"O transporte desses pacientes é complexo por conta da situação deles. Os pacientes que recebemos de Manaus, por exemplo, transportados por aviões da FAB, estavam conscientes e vieram sentados na aeronave. Os nossos são mais graves, embora ainda estejam dentro dos critérios de possibilidade para transporte aéreo. Mas eles precisam ir deitados em maca e acompanhados de equipe médica", explicou o superintendente de Urgência e Emergência da Secretaria de Estado da Saúde, Diogo Bahia Losso.

A taxa de ocupação de leitos reservados para atendimento da covid-19 é de 99,88%. Dos 806 leitos ativos para adultos, 805 estão ocupados. A informação consta no painel de leitos de UTI disponibilizado pela Secretaria de Estado da Saúde. O único leito que aparece disponível estava na verdade sendo preparado para receber uma transferência durante a atualização dos dados.

Santa Catarina tem 688.600 casos acumulados de covid-19, 643.910 recuperados e 7.618 mortes. Todas as regiões do Estado estão dentro da classificação de risco potencial gravíssimo.

Schirlei Alves, de Florianópolis para a BBC News Brasil, em 03.03.2021

quarta-feira, 3 de março de 2021

Ascânio Saleme: Bolsonaro pode ser tão perigoso quanto o coronavírus

Observando com cuidado as ações do presidente durante a pandemia, deve-se considerar a hipótese

A imprensa nunca disse que Bolsonaro é o vírus, como afirmou o presidente. A imprensa errou. Achou que o vírus era muito sofisticado para Bolsonaro. Imaginou que no máximo ele conseguiria ser uma bacteriazinha qualquer, dada suas reconhecidas limitações. 

Mas, observando com cuidado as ações do presidente durante a pandemia, deve-se considerar a hipótese de Bolsonaro ser tão perigoso quanto o coronavírus. Alguns poucos cálculos simples ajudam a comprovar esta tese.

Segundo o Datafolha de 25 de janeiro, 31% dos 210 milhões de brasileiros aprovam Bolsonaro. Tirando os anti-petistas, os conservadores não radicais, os tolos que sempre apoiam qualquer governante, vamos imaginar que sobrem 10%, ou uns 21 milhões que fecham os olhos, seguem e repetem todas as barbaridades ditas ou feitas pelo presidente.

Como 10 milhões de brasileiros foram contaminados durante um ano de pandemia, é correto afirmar que entre os cegos bolsonaristas foram quase um milhão de infectados. Usando a mesma proporcionalidade, dentre os 257 mil mortos em todo o país, 25,7 mil eram negacionistas convictos, daqueles que chamam o capitão de mito.

Estes, deliberadamente não usaram máscaras. Fizeram propaganda da cloroquina, se aglomeraram e morreram porque foram tão ignorantes quanto o seu líder. A estupidez do mito matou pelo menos 25,7 mil bolsonaristas, ou 70 a cada dia. Claro que o número é muito maior, já que os cegos contaminaram e mataram outras pessoas nos ônibus, nas ruas, nas praias, nos restaurantes, nas escolas e nas suas próprias casas. 

Portanto, não há o que discutir, Bolsonaro é mesmo um vírus violento e letal.

Ascânio Saleme é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 03.03.2021.

Brasil avança na epidemia do autoritarismo

Estudo em parceria com a Conectas antecipado pelo EL PAÍS em janeiro revelava como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas à pandemia. Operação de sabotagem segue sendo realizada por Bolsonaro mesmo diante de colapso da rede de saúde

Dois familiares participam do enterro de uma vítima da covid-19 no Cemitério de Nossa Senhora Aparecida em Manaus. (Crédito foto: Raphael Alves / EFE)

A defesa primordial da vida deveria ser o direito mais básico a ser tutelado pelo Estado, mas a resposta brasileira ao enfrentamento da covid-19 não tem priorizado a proteção da vida e da saúde dos brasileiros. Um recente estudo realizado pelo Cepedisa (Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário) da USP, em parceria com a Conectas, com base em mais de 3.000 normas produzidas pela União desde o início da pandemia, revela como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia. O levantamento foi obtido com exclusividade pelo EL PAÍS no fim de janeiro.

Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”

'Brasil é motivo de escárnio do mundo com sua política desastrosa sobre a vacina', por JUAN ARIAS

A mesma pesquisa avaliou a propaganda contra a saúde pública, como o discurso político que mobilizou argumentos econômicos, ideológicos e morais com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas e promover o ativismo político contra as medidas necessárias para conter o avanço da doença.

Mesmo diante do colapso iminente do sistema público e privado de saúde em diferentes estados, o presidente Jair Bolsonaro segue atacando os gestores públicos que optam por adotar as necessárias―e impopulares ― medidas de distanciamento social. Enquanto as campanhas de vacinação não decolam, o distanciamento social e o uso da máscara são as medidas mais eficazes apontadas por autoridades sanitárias de todo o mundo para reduzir a rapidez do contágio do novo coronavírus e de suas novas variantes.

Ao ir na contramão da ciência, aprofundando a negligência e o negacionismo, temos observado uma estratégia de uso da pandemia para implementar a agenda Bolsonaro de retrocessos sociais e de retirada de direitos. O próprio ministro Ricardo Salles acabou por nos alertar quando, em reunião ministerial de abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado após determinação do Supremo, declarou a intenção de aproveitar os holofotes direcionados à cobertura da covid-19 para “passar a boiada” do desmonte da proteção ambiental.

A pandemia foi usada como justificativa, por exemplo, para restringir direitos trabalhistas, alterar a Lei de Acesso à Informação, intervir na escolha de reitores das universidades federais e até para tentar mudar o rito de aprovação de medidas provisórias e, com isso, oferecer poderes plenos ao presidente de legislar sem intervenção de outros poderes. Muitas dessas medidas foram revertidas pelo Supremo ou pelo Congresso, impondo derrotas ao governo, mas intensificando os desgastes das instituições democráticas.

Houve ainda outros episódios que atacaram frontalmente os princípios do estado democrático, como quando se tirou do ar os dados epidemiológicos da covid-19, incentivou a invasão de hospitais de campanha ou promoveu aglomerações em protestos que pediam intervenção no STF (Supremo Tribunal Federal).

O Governo Bolsonaro também usou a pandemia como forma de atacar ou retirar direitos de minorias, como indígenas e quilombolas, migrantes e refugiados e a população carcerária ― todos grupos altamente vulneráveis aos efeitos do coronavírus e que antes mesmo da pandemia vinham sofrendo retiradas de direitos pelo Governo Bolsonaro.

Os indígenas e quilombolas precisaram recorrer ao STF para obrigar a União a elaborar um plano de contingência contra a pandemia que respeitasse suas necessidades. O Executivo Federal chegou a vetar, de um projeto de lei aprovado pelo Congresso de proteção às populações indígenas no contexto da covid-19, itens tão básicos como garantir o suprimento de água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.

No que se refere aos direitos dos refugiados, desde março de 2020 o governo promove restrições seletivas a pessoas provenientes da Venezuela, país assolado por grave e generalizada crise de direitos humanos. Sob a justificativa de conter a pandemia, refugiados que consigam chegar na fronteira são impedidos de pedir proteção no Brasil e são sumariamente deportados, ainda que turistas sejam permitidos de entrar por via aérea e a fronteira com Paraguai seja a única terrestre aberta, e a despeito de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não apresentar uma recomendação neste sentido.

Por fim, a população carcerária, altamente exposta a infecções em razão das condições insalubres e de superlotação dos presídios brasileiros, não foi nem ao menos considerada como grupo prioritário da campanha de vacinação elaborada pelo Ministério da Saúde. As audiências de custódia, aquelas em que a pessoa presa em flagrante deve passar diante de um juiz no prazo de 24 horas para verificar a legalidade da prisão, seguem sendo realizadas por videoconferência na maioria dos estados ― algo que limita a capacidade de identificar indícios de tortura.

Se ainda não sabemos como, por quanto tempo e em quais circunstâncias teremos que conviver com a pandemia, podemos assegurar que os estragos do autoritarismo e conservadorismo que assolou o Brasil levarão anos para serem superados. Enquanto a maior pandemia da história recente já cobrou mais de 255 mil vidas no Brasil, experimentamos o avanço acelerado da epidemia do autoritarismo que corrói as instituições democráticas e ataca o pacto social estabelecido pela Constituição de 1988.

Marcos Fuchs, o autor deste artigo, é diretor da ONG Conectas Direitos Humanos. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 03.03.2017.


Eliane Brum, do EL PAÍS: A covid-19 está sob o controle de Bolsonaro

A população brasileira se tornou —e grande parte se submeteu— a ser cobaia de um experimento de perversão inédito na história

Manifestantes protestam, em Brasília, contra Jair Bolsonaro e a forma em que o presidente tem lidado com pandemia. (Crédito foto: Ueslei Marcelino / Reuters).

Afirmar que a covid-19 está fora de controle no Brasil por incompetência de Jair Bolsonaro é um erro. É o mesmo erro de chamar o Governo de Bolsonaro de “desgoverno”. Bolsonaro governa e a disseminação da covid-19 está, em grande parte, sob o seu controle. 

Se o que vive o Brasil é caos, é um caos planejado. É necessário compreender a diferença para ter alguma chance de enfrentar a política de morte de Bolsonaro. Se existe alguma experiência semelhante na história, eu a desconheço. No Brasil, certamente nunca aconteceu antes. Estamos subjugados a um experimento, como cobaias humanas. 

A premissa da pesquisa desenvolvida no laboratório de perversão de Bolsonaro é: o que acontece quando, durante uma pandemia, uma população é deixada exposta ao vírus e a maior autoridade do país dá informações falsas, se recusa a adotar as normas sanitárias e também a tomar as medidas que poderiam reduzir a contaminação.

O resultado, em perdas de vidas humanas, conhecemos: o Brasil ultrapassará os 260 mil mortos até o final dessa semana e aumenta velozmente suas chances de se tornar em breve o país com o maior número de vítimas fatais da história da pandemia de covid-19 no século 21. 

Enquanto vários países do mundo terão sua população inteiramente vacinada nos próximos meses e começam a vislumbrar a possibilidade de superar a covid-19, o Brasil enfrenta uma escalada.

Os cúmplices

Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”

Em 2020, Estados Unidos e Reino Unido se alinhavam ao lado do Brasil entre os piores desempenhos relacionados à covid-19. Hoje, com o democrata Joe Biden na presidência, os Estados Unidos dão sinais de que vão deixar essa posição em breve e o Reino Unido do direitista Boris Johnson dá exemplo na campanha de vacinação, com o número de mortes baixando dia a dia.

O Brasil se isola no horror da covid-19, como contraexemplo e pária global. Dados da Organização Mundial da Saúde mostram que, enquanto a média de mortes no mundo recua em torno de 6%, no Brasil cresce 11%. Essa consequência é mais visível. Afinal, nesse crime há corpos, nesse momento em número suficiente para povoar somente com cadáveres uma cidade de porte médio. E crescendo à média atual de quase 1.300 mortos por dia.

Outro efeito é menos óbvio: o que descobrimos sobre nós, como sociedade, quando submetidos a essa violência, e o que cada um descobre sobre si quando as escolhas sanitárias, em vez de determinadas pela autoridade de saúde pública, dependem da sua própria decisão. Essa segunda parte do experimento tem se demonstrado bastante perturbadora e poderá minar os laços sociais ao longo de anos e até décadas, como aconteceu com países submetidos à perversão de Estado no passado.

Seguir alegando incompetência do governo Bolsonaro na condução da covid-19 ou é sintoma ou é má fé. Sintoma porque, para uma parte da população, pode ser demasiado assustador aceitar a realidade de que o presidente escolheu disseminar o vírus. A mente encontra um caminho de negação para que a pessoa não colapse. É um processo semelhante ao sequestrado que encontra pontos de empatia com o sequestrador para ser capaz de sobreviver ao horror de estar totalmente a mercê da vontade absoluta de um perverso.

Já má fé é compreender o que está acontecendo e, mesmo assim, seguir negando porque convém aos seus interesses, sejam eles quais forem. A pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Conectas Direitos Humanos provou que o governo federal executou um plano de disseminação do vírus. A análise de 3.049 normas federais mostrou que Bolsonaro e seus ministros tinham —e ainda têm— o objetivo de infectar o maior número de pessoas, o mais rapidamente possível, para a retomada total das atividades econômicas.

As provas estão lá, em documentos assinados pelo presidente e por alguns de seus ministros. O estudo comprova o que qualquer pessoa com capacidade cognitiva média pode verificar no seu cotidiano, a partir dos atos e das falas do presidente. A ação deliberada de disseminação do vírus não é apenas uma percepção, é também um fato. O que faltava era a documentação do fato, já que não basta perceber, é preciso demonstrar e documentar. E hoje está documentado e essa documentação tem se tornado base para novos pedidos de impeachment e comunicações no Tribunal Penal Internacional.

Em carta pública, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde reivindicou nessa semana a determinação de um toque de recolher para todo o território brasileiro e o fechamento de bares e praias, entre outras medidas. Os secretários afirmaram que o país vive o pior momento da pandemia e exigiram “condução nacional unificada e coerente”. Também pediram a suspensão das aulas presenciais e de eventos, incluindo atividades religiosas. “A ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais”, declararam. “Entendemos que o conjunto de medidas propostas somente poderá ser executado pelos governadores e prefeitos se for estabelecido no Brasil um ‘Pacto Nacional pela Vida’ que reúna todos os poderes, a sociedade civil, representantes da indústria e do comércio, das grandes instituições religiosas e acadêmicas do País, mediante explícita autorização e determinação legislativa do Congresso Nacional”. Bolsonaro, porém, obviamente não quer. E, como a imprensa noticiou, seus subordinados, muitos deles generais de quatro estrelas, avisaram que não fará.

Bolsonaro se recusa. Porque há condução do governo e seus atos estão focados na disseminação do vírus. Esse é o equívoco de quem acredita que é necessário convencer Bolsonaro a liderar um pacto nacional pela vida. Ele já executa um pacto nacional, mas pela morte, e não estou usando uma metáfora. Ele já fez várias declarações públicas e explícitas para que o povo deixe de ser “maricas”, afinal “mortes acontecem”, “todos nós morreremos um dia” e “toca o barco”. Por isso, mesmo no pior momento da pandemia, o presidente segue fiel e dedicado à sua política, estimulando aglomerações e comércio aberto, além de atacar o uso de máscaras.

Em Porto Alegre, um de seus apoiadores, o prefeito Sebastião Melo (MDB), ecoa o chefe: “Contribua com sua família, sua cidade, sua vida, para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre”. Percebam que estamos diante de uma completa inversão: ao longo da história, autoridades públicas das mais variadas geografias e línguas pediram sacrifícios econômicos para salvar vidas. O bolsonarismo inverteu essa lógica: exige o sacrifício da vida —dos outros, bem entendido— para salvar a economia. E assim o Brasil de Bolsonaro e do sacrifício da vida supostamente em nome da economia exibiu em 2020 o pior PIB dos últimos 24 anos. Enquanto países que fizeram lockdown já começam sua recuperação também econômica, o Brasil descarrilha.

Diante da abundância de provas sobre a política de disseminação do vírus, é preciso olhar com atenção para aqueles que seguem apoiando Bolsonaro, em público ou nos bastidores. As razões para a má fé são várias, a depender do indivíduo e do grupo. Uma parte dessa entidade que chamam “mercado” ainda aposta que Bolsonaro seja capaz de continuar fazendo as “reformas” neoliberais que deseja que sejam feitas. Uma parte do que chamam de “agronegócio” também aposta na destruição da Amazônia para aumentar o estoque do mercado de terras para especulação e ampliar a fronteira agropecuária. O mesmo vale para a mineração.

Se é fato que uma parcela já recuou por conta do impacto cada vez maior do desmatamento na recusa de produtos brasileiros na Europa, parte espera que Bolsonaro consiga avançar com mais algumas maldades antes de retirar seu apoio, seja ele à luz do dia ou nas sombras. Só então se escandalizará ao subitamente descobrir a intenção de Bolsonaro de enfraquecer a legislação ambiental e abrir as terras indígenas para exploração predatória. Em algum momento, essas cândidas criaturas do mercado vão retirar seu apoio enojadas, em entrevistas ponderadas e pontuadas por jargões econômicos na imprensa liberal. Afinal, como poderiam esses inocentes imaginar que Bolsonaro não era um estadista, justo Bolsonaro, um homem tão elegante e contido? Para alguns, finalmente, ainda há algo a ganhar com Bolsonaro e Paulo Guedes e, para isso, não importa quantos morram, desde que os enterros não sejam na sua família ou no seu seleto clube de amigos.

O mesmo vale para algumas lideranças do pentecostalismo e do neopentecostalismo evangélico, que também ainda acreditam ter bastante a ganhar, mesmo que parte da sua base de fiéis morra de covid-19. O desespero crescente lhes trará outros clientes para compensar sua má fé. Como é claríssimo, os pastores de mercado apostam em manter seu poder agora e nas próximas eleições. Com o sistema hospitalar dando sinais de colapso, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), considerou cultos religiosos “atividades essenciais”. Para agradar aos pastores, que andavam publicamente reclamando de sua atuação, as aglomerações para o benefício da igreja-empresa estão permitidas.

O fervor pela ciência demonstrado por Doria, em nome do qual consolidou-se como o principal opositor de Bolsonaro no primeiro ano de pandemia, foi substituído pelo novo mote anunciado por ele na segunda-feira: “esperança, fé e oração”. Diante da pressão dos vendilhões dos templos e sua ameaça de retirar apoio na disputa presidencial, rifa-se mais uma vez a vida. E segue aquilo que consideram prioritário: a eleição presidencial de 2022. Afinal, há de sobrar um número suficiente de eleitores vivos até lá.

E o que dizer dos políticos, o Centrão puxando o cortejo de corruptos de bolso e de alma, mas longe de estar sozinho? Todas as violações de Bolsonaro não são suficientes para fazer andar a fila de mais de 70 pedidos de impeachment e sempre aumentando. Afinal, o que vale é garantir a impunidade dos próprios parlamentares, essa sim considerada emergencial por aqueles escolhidos para representar os interesses de uma população que hoje morre de covid-19.

Ainda que os fatos sejam conhecidos, é necessário enfileirá-los para compreender que essa é a realidade: há um presidente executando uma política de morte. Não é histrionismo, não é força de expressão, não é hipérbole. É a realidade e muito mais brasileiros morrerão por causa das ações de Bolsonaro.

Nos deixaremos matar?

Em 2021, a conjuntura do Brasil para enfrentar a política de morte de Bolsonaro é muito pior do que em 2020. E isso já se reflete no número de vítimas. Diante disso, nos deixaremos matar? Porque é basicamente essa a questão. Nesta quarta-feira, atingimos o maior número de mortos em um dia desde o início da pandemia: 1.910 pessoas, 1.910 pais, mãe, filhas, filhos, irmãos, irmãs, avôs, avós perdidos, 1.910 famílias despedaçadas. E isso num país com sistema público de saúde, centros de pesquisa respeitáveis e invejável capacidade de vacinação em massa.

O Congresso, que no primeiro ano da pandemia foi importante para estabelecer o auxílio emergencial de 600 reais e para derrubar os vetos mais monstruosos de Bolsonaro, como o de negar água potável aos indígenas, com Arthur Lira (PP) não fará nada para impedir nem as maldades nem o próprio Bolsonaro. Pelo contrário. O judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, conseguiu barrar vários horrores desde o início da crise sanitária, mas nem de longe é suficiente para impedir a monstruosidade do que o Brasil enfrenta. Sem contar que há grande disputa ideológica dentro do judiciário.

O tal do mercado eventualmente em algum momento retirará seu apoio, caso Bolsonaro faça os setores mais poderosos do empresariado perder mais dinheiro do que ganhar, o que já está acontecendo em várias áreas. Mas não dá para contar com as elites econômicas que, se algum dia tiveram alguns expoentes genuinamente preocupados com o país, hoje claramente se lixam para a população. As elites intelectuais têm mostrado que estão pouco dispostas a fazer mais do que protestar em sua bolha como faz qualquer um nas redes sociais. É claro que há exceções em todas as áreas, mas a profunda crise do Brasil mostra que as elites brasileiras são ainda piores do que se supunha.

As periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro gritam: “é nós por nós”. E é. A questão, quando o “nós” é ampliado, é quem são o nós?

A complexidade do “nós” é que Bolsonaro foi eleito pela maioria dos que foram às urnas. Bolsonaro disse exatamente o que faria. E quem votou nele sabia exatamente quem ele era. E mesmo assim ele venceu, o que fala muito desse “nós”. Apesar de executar uma política de morte e converter o Brasil num pária do mundo, as pesquisas mostram que Bolsonaro ainda tem uma aprovação significativa. Caso a eleição fosse hoje, teria chance real de ser reeleito. Isso também fala do “nós”.

Talvez quem tenha melhor expressado o drama do “nós” seja o governador da Bahia, Rui Costa (PT). Ao ser entrevistado ao vivo pela TV Globo, ele chorou. Porque é difícil de entender o “nós”. E, diante do “nós”, a impotência aumenta. “É duro você receber mensagens com as pessoas perguntando: ‘E meu negócio? E a minha loja?’ O que é mais importante: 48 horas de uma loja funcionando ou vidas humanas?”, desabafou Costa. “Não gostaria de estar tomando decisões como esta. Gostaria que todas as pessoas estivessem usando máscaras. Mesmo aquelas que se consideram super-homens, se consideram jovens. Se não é por ele, pelo menos pela mãe, pelo pai, pela avó, pelo parente, pelo vizinho. Essas pessoas, sozinhas, decretaram o fim da pandemia.”


“Essas pessoas”, as quais o governador se refere, é o “nós”. É o “nós” que lotou as praias, é o “nós” que fez Carnaval, é o “nós” que faz festas, obrigando policiais a arriscarem sua vida para impedir que continuem, é o “nós” que resolveu reunir a família no Natal e os amigos no Réveillon, porque afinal de contas “ninguém aguenta mais”. É o “nós” que lota as igrejas porque sua fé, que precisa daquelas quatro paredes para existir, é mais importante do que a vida do seu irmão. É o “nós” que se acha mais esperto porque segue enchendo a cara nos bares com os parças. É o “nós” que anda sem máscara por todos os lugares. E é também o “nós” que já anunciou que tomar vacina é para otário.

O “nós” é um nó

Nessa altura, alguém pode dizer que esse nós não é “nós”, mas “eles”, o outro lado. Ouso dizer que, se a realidade fosse tão simples como “nós” e “eles”, Bolsonaro já teria sido submetido ao impeachment e já estaria sendo investigado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. O “nós” é um nó. E vamos precisar desatá-lo para enfrentar a política de morte de Bolsonaro.

A parte mais perversa da execução do projeto de Bolsonaro é justamente revelar o bolsonarismo mesmo de quem odeia Bolsonaro. Essa é a parte mais demoníaca do experimento do qual somos todos cobaias. Sim, a orientação do presidente é matar e morrer: não use máscaras, aglomere-se, abra seu negócio, vá trabalhar, mande as crianças para a escola, use medicamentos sem eficácia, se tomar vacina pode virar jacaré. Diante do conjunto de orientações para disseminar o vírus, o que resta é cada um tomar decisões individuais que, poderia se esperar, contemplassem em primeiro lugar o bem-estar do outro, mais desprotegido, e o bem-estar coletivo, o do conjunto da comunidade.

Quando na segunda-feira o governador Rui Costa chorou, ao vivo, na TV, diante de milhões de telespectadores, é por sua incompreensão e impotência diante de gente que o ataca por ter que fechar seu negócio por 48 horas para que vidas possam ser salvas. Dois dias. Dois. No Reino Unido, por exemplo, as lojas, as academias, os salões de beleza, os cinemas, os bares e restaurantes etc estão fechados desde novembro e não é permitido ver outra pessoa que não more na mesma casa nem mesmo no parque. Os britânicos passaram o Natal, o Réveillon e os feriados sob essas normas. Uso o exemplo do Reino Unido porque Boris Johnson, o primeiro-ministro, não é um “esquerdopata”, mas um dos expoentes da safra de populistas de direita do mundo. E mesmo assim. Os britânicos podem reclamar, mas dentro de suas casas, porque essas são as regras e quem determina as regras numa pandemia são as autoridades sanitárias. Ponto final.

Bolsonaro também determina as regras sanitárias na pandemia. Mas, como já foi amplamente demonstrado, escolheu a disseminação do vírus. E então, para salvar a própria vida e não colocar a do outro em risco, cada um precisa estabelecer suas próprias regras sanitárias. É nessa volta do parafuso que o “nós” se complica. O “nós” então precisa responder a perguntas bem difíceis. Nós todos precisamos. O que o cotidiano está mostrando é que, eventualmente e às vezes até com frequência, “nós” também somos “eles”.

Lidamos muito mal com limites. Não há problema nenhum em ter limites quando não se perde nada ou quando se perde pouco. Mas, quando precisa perder algo que realmente custa, aí complica. A justificativa do “nós” para quebrar regras da Organização Mundial da Saúde é sempre legítima porque supostamente é em nome de um bem maior.

Nosso cérebro encontra as mais elevadas justificativas para recusar limites que nos obrigam a perder muito. E, quando confrontados, achamos que é o outro que não entende a conjuntura ou que está numa posição mais protegida para tomar decisões. O “nós”, quando pode, raramente se pergunta se deve. O “nós” sempre tem melhores justificativas do que o “eles” para fazer o que quer e o que acha importante. E que muitas vezes é mesmo muito importante. Mas, atenção, estamos numa pandemia que já matou quase 260 mil pessoas no Brasil e mais de 2,5 milhões no mundo. O aumento da contaminação significa não apenas mortes, mas novas mutações do vírus que podem ser imunes às vacinas existentes e comprometer as medidas globais de enfrentamento do vírus.

Quando se toma uma decisão numa pandemia nunca é apenas sobre a nossa própria vida. Só quem quer disseminar a morte, como Bolsonaro, diz que cada um tem o direito de fazer o que quer porque se trata apenas de si. Quando o presidente declara que não tomará vacina porque essa decisão supostamente só diria respeito a ele, Bolsonaro faz esse anúncio exatamente porque tem certeza do contrário. Ele sabe que essa declaração vai muito além da sua própria vida. Qualquer decisão numa pandemia vai impactar muito além da vida de qualquer um. Se é um presidente, autoridade pública máxima, torna-se uma orientação à população.

É muito difícil lutar contra o governo federal, que tem a máquina do Estado na mão e a capacidade de amplificar suas orientações a toda a população. É imensamente mais difícil lutar contra um presidente da República em meio a uma crise sanitária. Em vez de seguirmos normas federais que protegem a todos os brasileiros e especialmente os mais vulneráveis, normas determinadas pelo Estado, fomos submetidos a ter que tomar nossas próprias decisões sanitárias e, ao mesmo tempo, sermos atropelados pelas dos outros.

Há quem não esteja nem aí, claro que há. Mas há muitos que querem tomar as melhores decisões e realmente acreditam que tomam, mas não são sanitaristas, não foram formados para ser, não têm obrigação de ser. É também a esse experimento que Bolsonaro submeteu os brasileiros. Essa experiência está deixando marcas em cada um e está corroendo ainda mais relações que já estavam difíceis. Está corroendo uma sociedade já bastante dividida, cujos laços estão cada vez mais esgarçados.

Ao deslocar a responsabilidade para o indivíduo, Bolsonaro está perversamente nos tornando cúmplices de seu projeto de morte. Quando ele invoca o direito individual de não usar máscara e de não tomar vacina, ele está maliciosamente dizendo também o seguinte: se é cada um que decide e faz o que quer e você está reclamando de mim, por que você não decide se proteger e proteger os outros? Simples assim, ele poderia dizer. Ou “talquei?” É diabólico, porque ele faz isso parecer trivial, como se fosse possível numa pandemia que as decisões sanitárias dependam da escolha individual.

E se decidirmos lutar contra quem nos mata?

A história nos conta que, na ditadura civil-militar (1964-1985), apenas uma minoria se insurgiu contra o regime de exceção. A maioria dos brasileiros preferiu fingir não ouvir os gritos dos torturados, centenas deles até a morte, ou dos mais de 8.000 indígenas assassinados junto com a floresta amazônica. Ainda assim, tudo indica que foi uma reação mais forte e expressiva do que essa que testemunhamos e protagonizamos como sociedade agora, diante de um projeto de extermínio.

O processo da retomada da democracia, com todas as suas falhas, a maior delas a impunidade dos assassinos de Estado, foi capaz de criar a avançada Constituição de 1988. É a chamada “constituição cidadã”, que ainda sustenta o que resta de democracia hoje, apesar de todos os ataques do bolsonarismo. O que essa sociedade fraca, corrompida, individualista e pouco disposta a se olhar no espelho será capaz de criar se não for capaz de se insurgir contra mortes que seriam evitáveis?

Se dermos por perdido, se nos dermos por perdidos, se dermos por impossível, se nos dermos por vencidos, aí já está dado. Completaremos o caminho rumo ao matadouro. Obedientes à política de morte de Bolsonaro, porque gritar nas redes e no whatsapp não é desobedecer a absolutamente nada. É pouco mais do que dissipar energia se autoiludindo que é ação. Para sermos nós, independentemente de quantos nós exista dentro desses nós, precisamos nos unir num objetivo comum: interromper a política de morte de Bolsonaro.

Em 2020, escrevi nesse mesmo espaço: como um povo acostumado a morrer (ou acostumado a normalizar a morte dos outros) será capaz de barrar seu próprio genocídio? Essa pergunta é hoje, quase 260 mil mortos depois, muito mais crucial do que antes. Nossa única chance é fazer o que não sabemos, ser melhores do que somos, e obrigar o Congresso a cumprir a Constituição e fazer o impeachment. E, lá fora, pressionar os organismos internacionais a responsabilizar Bolsonaro por seus crimes.

A cada dia cada um precisa se somar a todos os outros para esse projeto comum. E, talvez, ainda possamos nos descobrir capazes de nos tornarmos “nós”, o que significa ser capaz de fazer comunidade. A primeira pergunta da manhã deve ser: o que faremos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando? E a última pergunta deve ser: o que fizemos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando?

O que mais falta acontecer, ver e provar para compreender que estamos submetidos a um projeto de extermínio? Primeiro vimos pessoas morrerem em agonia por falta de oxigênio nos hospitais. Depois assistimos às cenas de pessoas intubadas que, por escassez de sedativos, tiveram que ser amarradas em macas para não arrancarem tudo por dor e desespero. O que mais falta? Qual é o próximo horror? De qual imagem necessitamos para entender o que Bolsonaro está fazendo? Precisamos compreender por que estamos nos deixando matar, subvertendo o instinto primal de defender a vida, que mesmo o organismo mais primário possui. Mas precisamos entender enquanto agimos, porque não há tempo. A alternativa é seguir assistindo Bolsonaro executar sua política de morte até não podermos mais assistir porque também estaremos mortos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de "Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro" (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum. Este artigo foi publicado originalmente n'EL PAÍS, em 03.03.2021

Variante brasileira pode reinfectar até 61% dos recuperados, diz estudo

Pesquisa do Imperial College indica que, além de ser mais transmissível, cepa P1 do coronavírus pode driblar sistema imunológico. Cientista afirma ser cedo para dizer se variante é resistente a vacinas.

Enfermeiros empurram maca com paciente de covid-19 na entrada de hospital

Manaus vivenciou explosão de casos no início deste ano. Nova cepa teria surgido em novembro

A variante do coronavírus detectada pela primeira vez no Amazonas tem potencial de driblar o sistema imunológico e causar reinfecções pelo novo coronavírus, afirmaram cientistas nesta terça-feira (02/03) com base no resultado de um estudo preliminar.

De acordo com pesquisadores do Reino Unido e do Brasil, a variante brasileira, chamada de P1, possui uma "constelação única de mutações" e se tornou rapidamente a variante dominante na região.

De um total de 100 infectados em Manaus que já haviam se recuperado de uma infecção pelo coronavírus, "entre 25 e 61 estão suscetíveis a uma reinfecção com a P1", afirmou o especialista Nuno Faria, do Imperial College London, que é coautor do estudo preliminar.

Faria ressaltou, no entanto, ser ainda muito cedo para afirmar se a variante seria resistente às vacinas desenvolvidas até o momento contra a covid-19. "Não há nenhuma evidência conclusiva que sugere que os imunizantes atuais não funcionam contra a P1. Acredito que as vacinas nos protegerão pelo menos contra a doença e possivelmente contra a infecção", acrescentou.

A variante do Amazonas já foi detectada em ao menos 20 países. Cientistas do mundo todo estão preocupados com a possibilidade de a cepa ser resistente às vacinas.

Detalhes do estudo

Realizado pelo Imperial College London em parceria com pesquisadores da Universidade de Oxford e da Universidade de São Paulo (USP), o estudo indica que a P1 surgiu provavelmente em Manaus no início de novembro. A primeira infecção com a cepa foi identificada em 6 de dezembro.

"Vimos então a rapidez com que a P1 ultrapassou outras linhagens e descobrimos que a proporção da cepa passou de zero a 87% em cerca de oito semanas", afirmou Faria.

O estudo preliminar, que ainda não foi revisado por outros pesquisadores, sugere ainda que a cepa do Amazonas seja entre 1,4 e 2,2 vezes mais transmissível do que outras variantes, e esse seria provavelmente um dos fatores responsáveis pela segunda onda da pandemia no Brasil.

"Provavelmente faz as três coisas ao mesmo tempo: é mais transmissível, invade mais o sistema imunológico, e, provavelmente, deve ser mais patogênica", afirmou Ester Sabino, professora da Faculdade de Medicina da USP e coordenadora do grupo da universidade que participou do estudo. "Não se podem explicar tantos casos a não ser pela perda de imunidade", acrescentou.

Baseado num modelo matemático realizado pelo Imperial College London, o estudo analisou genomas de 184 amostras de secreção nasofaríngea de pacientes diagnosticados com covid-19 em laboratórios de Manaus entre novembro de 2020 e janeiro de 2021.

A cidade foi palco de um piores momentos da pandemia no país. A explosão de casos levou à escassez de oxigênio e a um colapso do sistema de saúde no início deste ano.

Deutsche Welle Brasil, em 03.03.2021

Brasil tem 1,9 mil óbitos por covid-19 em 24 horas e total passa de 259,2 mil

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país

O Brasil acumula um total de 10.718.630 casos de covid-19 e 259.271 pessoas mortas pela doença, segundo boletim do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) divulgado nesta quarta-feira (3/3).

Nas últimas 24 horas, foram registrados oficialmente 1.910 óbitos e 71.704 novos casos da doença.

O Estado com maior número de vítimas fatais é São Paulo (60.381), seguido de Rio de Janeiro (33.362) e Minas Gerais (18.872).

Pelo décimo dia consecutivo, a média móvel em sete dias de mortes pela doença no país cresceu, atingindo 1.331 nesta quarta.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais mortes pela doença em todo o mundo. Ele está atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 518,4 mil óbitos por covid-19, conforme registro da Universidade Johns Hopkins.

BBC News Brasil, em 03.03.2021

Alemanha vai ajudar Brasil com unidades de saúde móveis

Postos de saúde sobre rodas deverão atuar no combate à covid-19 em regiões afastadas do país. Projeto é parceria de ministério alemão com montadora Mercedes-Benz.

Ministro alemão Gerd Müller afirmou que combate ao coronavírus deve ser global

O Ministério para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico da Alemanha anunciou nesta quarta-feira (03/03) uma parceria com a montadora Mercedes-Benz do Brasil para a adaptação de unidades de saúde móveis, que atenderão pacientes de covid-19 em regiões isoladas do país.

O atendimento oferecido nesses postos de saúde puxados por caminhões será gratuito e voltado a ajudar os esforços brasileiros no combate à pandemia de covid-19, informou a pasta.

"O coronavírus atinge mais duramente os mais pobres dos pobres. O Brasil é o terceiro país do mundo em número de casos, e a covid-19 deixou mais de 250 mil mortos por lá", afirmou o ministro alemão para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Gerd Müller, na assinatura do acordo com a fabricante de caminhões e ônibus.

"Temos que ser claros: só podemos derrotar o coronavírus globalmente. Caso contrário, ele voltará para a Europa e, talvez, ainda mais perigoso. A Alemanha não deixará seus parceiros e amigos brasileiros sozinhos nessa crise", acrescentou Müller.

Segundo ele, as unidades móveis ajudarão no diagnóstico da doença, mas também poderão ser utilizadas para outras emergências médicas. Além do tratamento da covid-19, a estação é equipada para a realização de exames de ressonância magnética e também de pequenas operações.

O governo alemão investirá 4,5 milhões de euros (quase R$ 31 milhões) no projeto, enquanto a Mercedes-Benz do Brasil disponibilizou cerca de 1 milhão de euros. Os recursos serão destinados para a produção das unidades e a compra dos equipamentos necessários.

As unidades móveis serão administradas por organizações não governamentais locais, que também oferecerão as equipes médicas para atuar nessas estações. O projeto tem previsão de duração até 2024. Após essa data, as unidades serão entregues às ONGs para uso posterior.

Segundo o presidente da Mercedes-Benz do Brasil, Karl Deppen, o valor destinado pela montadora ao projeto será utilizado para o pagamento de funcionários e motoristas e para o empréstimo dos caminhões Novo Actros, que puxarão as unidades de saúde, além de combustível e seguros para as oito estações.

Estima-se que em três anos as unidades disponibilizem atendimentos para cerca de 250 mil brasileiros.

Pior momento da epidemia

O anúncio alemão chega um dia após o Brasil registrar o maior número de mortos em 24 horas desde o início da pandemia. O país vive ainda o pior momento da crise, com o número de casos aumentando e sistemas de saúde à beira do colapso em diversos estados.

Nesta terça-feira, o Brasil registrou oficialmente 1.641 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). É a pior marca já registrada desde o início da pandemia, superando o recorde de 29 de julho, quando haviam sido contabilizados 1.595 óbitos. Com isso, o total de óbitos no país associados à doença chega a 257.361.

Deutsche Welle Brasil, em 03.03.2021

The Intercept Brazil: Os judeus e Bolsonaro

Há algo acontecendo nas sinagogas

É preciso estar atento para o que acontece nas sinagogas e em seus arredores. Entre as frases criminosas de Bolsonaro durante a campanha de 2018, há talvez uma que possa ser considerada a pior de todas, sobretudo pelo local onde foi dita. “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve”, disse Jair, na Hebraica do Rio de Janeiro. Foi ovacionado por centenas de pessoas.

A cena chocou parte da comunidade judaica, mas o estrago estava feito. A partir de então, o senso comum jogou todos os judeus brasileiros como apoiadores de Bolsonaro, o que é falso. Uma charge rodou o país. Nela, apenas dois fantasmas protestam, como se os judeus vivos, todos, fossem a favor da declaração delinquente.

Mas algo está mudando. Nesta semana, Israel anunciou a troca de seu embaixador no Brasil. Yossi Shelley não era diplomata de carreira, mas empresário e ex-dirigente do partido Likud, do premier Benjamin Netanyahu. Foi Shelley que garantiu a presença de Netanyahu na desprestigiada posse de Bolsonaro. O embaixador e o presidente se tornaram amigos porque, aparentemente, comungam dos mesmos valores. O novo representante de Israel no Brasil tem perfil oposto, é diplomata de carreira e progressista – ao menos perto de Shelley. Um sinal de distanciamento estratégico de Netanyahu. Com eleições gerais marcadas para março, não há vantagem em estar associado ao pior presidente do mundo na gestão da pandemia.

Há mais coisas por aí. A saída de Fabio Wajngarten do comando da Secretaria de Comunicação da Presidência é uma quebra de ponte ente Bolsonaro e a comunidade judaica. Wajngarten foi um dos principais cabos eleitorais do então candidato entre judeus paulistas.

O outro se chama Meyer Nigri, um dos maiores empreiteiros do país. Nigri acaba de deixar a UTI, onde esteve internado por longos cinco meses para tratar covid19. Ele segue no hospital. Pessoas familiarizadas com a situação dizem que a fé de Nigri no capitão cloroquina já não é mais a mesma e que 2022 é um jogo em aberto.

A proximidade de Bolsonaro com importantes grupos judaicos foi crucial em 2018. O candidato a usava em duas situações: para se livrar das acusações de discurso nazista e para conquistar o voto dos evangélicos. Lembram da promessa de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém? Era parte do plano eleitoral de malafaias e felicianos. Evangélicos dispensacionalistas acreditam que a segunda vinda de Cristo de dará, fisicamente, em Israel. Espero que a segunda vinda de Bolsonaro se dê, fisicamente, longe do Palácio do Planalto. Quiçá na cadeia.

Publicado originalmente por The Intercept Brasil, em 27 de fevereiro de 2021

O alto custo da baixa política

Enquanto o presidente cuida de interesses pessoais e familiares, os mais destacados em sua agenda, o governo segue sem rumo

Emperrado por um governo inepto e irresponsável e agora ameaçado também pelo fisiologismo triunfante no Congresso, o Brasil continua perdendo espaço na economia internacional, enquanto a pandemia se agrava e a mortandade supera os piores momentos do ano passado. Perdido o primeiro trimestre, é preciso muito otimismo para ainda apostar num crescimento, embora pífio, na faixa de 3% a 3,5%. É a glória do bolsonarismo – do negacionismo, do atraso na compra de vacinas, da exaltação da morte e do desvario administrativo, comprovado mais uma vez na decisão de subordinar a Petrobrás, a maior estatal brasileira, aos interesses de uma categoria profissional, a dos caminhoneiros.

O carnaval passou, a Semana Santa começará no fim do mês e o ministro da Economia, Paulo Guedes, continua à espera de verbas para um novo auxílio emergencial. Enquanto isso, parlamentares tentam cavar mais R$ 18,4 bilhões para suas emendas. Se conseguirem, o total chegará a R$ 34,7 bilhões, soma igual, talvez pouco superior, àquela necessária para socorrer as famílias mais desamparadas, mais uma vez, e dar algum impulso ao consumo.

Se passar, a expansão das emendas será mais um desarranjo num Orçamento ainda nem aprovado e muito atrasado. Ficará mais difícil arrumar as contas federais, já muito esburacadas, controlar a dívida pública e ao mesmo tempo reanimar os negócios e a criação de empregos. Mesmo em condições políticas mais favoráveis seria difícil combinar estímulo econômico e ajuste das finanças oficiais.

Enquanto o presidente cuida de interesses pessoais e familiares, sempre os mais destacados em sua agenda, o governo segue sem rumo e o País mal consegue manter a recuperação iniciada em maio do ano passado e já enfraquecida. Esses dados bastariam para compor um quadro preocupante.

Mas a isso é preciso adicionar inegáveis pressões inflacionárias, claramente perceptíveis nos preços por atacado. No varejo os consumidores encontram, como no segundo semestre de 2020, alimentos caros e ainda sujeitos a novas altas. O câmbio instável é um poderoso combustível para o aumento de preços. Nos últimos dias o dólar voltou a atingir – e até a superar – a cotação de R$ 5,60.

O dólar tem oscilado em níveis elevados, no Brasil, principalmente por causa da insegurança ocasionada pelo quadro político de Brasília, marcado pelo voluntarismo do presidente Jair Bolsonaro, por sua insistência em conflitos desnecessários e por suas decisões erráticas e fora de quaisquer padrões compatíveis com a racionalidade administrativa. A incompetência gerencial do presidente ficou clara desde os primeiros dias de seu mandato.

Essa incompetência se manifesta, com frequência, em ordens absurdas, porque ele tende a confundir a função presidencial com o mero exercício do poder de mando, concretizado sem respaldo técnico, sem atenção a detalhes legais e com base em opiniões estritamente particulares e infundadas. Essa tendência o levou, em 2019, a intervir na publicidade veiculada pelo Banco do Brasil, numa desastrada interferência na gestão de uma empresa de capital aberto.

A política econômica, apesar da expectativa otimista manifestada por analistas e investidores, seguiu o padrão de qualidade bolsonariano. O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu menos em 2019 que em 2018 e encolheu no primeiro trimestre de 2020, antes do choque da pandemia. O crescimento projetado para 2021 será insuficiente para a retomada do nível pré-crise. Além disso, o País já crescia menos que outros emergentes antes de 2020, e continuará em desvantagem na recuperação.

Fraquezas econômicas acumuladas em vários anos e agravadas a partir de 2019 são parte do problema. Mas o Brasil ainda carrega desvantagens associadas à pandemia. Com maior contágio, mais mortes, vacinação lenta, sem coordenação federal das ações de saúde e com o presidente estimulando o risco da contaminação, a retomada econômica será mais difícil e insegura. Investidores nacionais e estrangeiros sabem disso, mas o presidente insiste em viver num mundo próprio.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 03 de março de 2021

O sistema de saúde brasileiro à beira do colapso

Apesar de repetidos alertas de especialistas, o Brasil caminha para semanas catastróficas da pandemia, como numa tragédia anunciada. Pressão por lockdown se intensifica.

    

UTI no Rio: vários estados estão vendo leitos se esgotarem

O Brasil vive atualmente o momento mais crítico da pandemia. Tanto o número diário de mortes quanto a média móvel (dos últimos sete dias) bateram recordes, e a taxa de ocupação das UTIs já está acima de 80% em 19 das 27 unidades federativas. A tendência, afirmam especialistas, é a situação piorar.

"Estamos certamente no pior momento da pandemia, com recorde de mortes em 24 horas e UTIs lotadas em todo o país", resume a microbiologista Natália Pasternak à DW.

Na terça-feira (02/03), chegou-se à marca recorde de 1.641 mortes em 24 horas por covid-19, segundo um balanço do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). Levando em conta estimativas da imprensa brasileira, o número de óbitos foi de 1.726, maior marca desde o início da pandemia. 

A média de mortes dos últimos sete dias também está em nível sem precedentes – 1.274 óbitos, 23% mais do que há 14 dias, segundo levantamento da imprensa. O total de mortes no país associadas à doença já supera 257 mil.

Uma análise simples das estatísticas mostra o rápido desenvolvimento da pandemia no Brasil. Foram necessários 34 dias para que o número de mortes aumentasse de uma média de 1.000 para 1.100. por dia. De 1.100 para 1.200, precisou-se só de três dias.

Houve 58.237 novos casos registrados na terça-feira, segundo levantamento da imprensa, e a média de sete dias está em 55.318 novas infecções. A cifra é 22% maior do que há duas semanas. 

Pandemia fora de controle e uma variante perigosa

Especialistas suspeitam que a atual onda de infecções seja alimentada pela variante P1, descoberta pela primeira vez na região amazônica. Um estudo preliminar publicado nesta semana pela Universidade de Oxford e pelo Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP) sugere que a variante é entre 1,4 e 2,2 vezes mais contagiosa do que a original. A variante, além disso, estaria levando a um alto grau de reinfecção em pacientes já curados.

O fato de que a variante de Manaus tenha sido capaz de emergir e se espalhar tão rapidamente no Brasil é atribuído a medidas de restrição demasiadamente relaxadas.

"A mutação de Manaus e todas as mutações são causadas pela circulação descontrolada do vírus", diz Pasternak. "Assim, dizer que a variante causou o aumento de casos é incompleto – o aumento da circulação de pessoas por relaxamento da prevenção causou as variantes, que por sua vez podem ser mais transmissíveis e acelerar ainda mais a propagação da doença. Mas elas não surgem no vácuo. Surgem justamente porque o vírus circula livremente."

Cemitério em Manaus: o total de mortes no país associados à covid supera 257 mil

Pressão por lockdown

Na segunda-feira, os secretários de Saúde de todos os estados brasileiros pediram medidas drásticas para evitar um colapso do sistema de saúde. Entre eles, a proibição de eventos, o fechamento de escolas, praias e bares, e restrições ao transporte público.

Para eles, viagens aéreas domésticas e internacionais, bem como o tráfego de passageiros sobre terra, também deveriam ser restringidos. Os secretários pediram, como medida mais importante, um toque de recolher nacional entre 20h e 6h e nos fins de semana.

O vice-presidente Hamilton Mourão reagiu de forma crítica. Ele disse que os diferentes comportamentos da população nas regiões não permitem medidas de âmbito nacional.  "E aí como é que você vai fazer isso para valer? Uma imposição? Nós não somos ditadura. Ditadura é fácil", afirmou.

A microbiologista Natália Pasternak também defende um lockdown: "Se não fizermos nada, vai colapsar tudo: o SUS e a rede privada. E como não temos vacinas em quantidade suficiente, ainda precisamos de um lockdown de verdade. Não é tempo de meias medidas."

Falta de vacinas

No Brasil, a campanha de vacinação começou no final de janeiro. Até o momento, 7,1 milhões de pessoas foram vacinadas, cerca de 3,3% da população. Mais de 2,1 milhões já receberam a segunda dose.

Em muitas regiões, entretanto, a vacinação teve que ser suspensa nos últimos dias devido à escassez de doses. A aquisição de vacinas teve atraso no segundo semestre de 2020 devido às disputas políticas internas entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria. Enquanto Bolsonaro, que é crítico das vacinas, confiava exclusivamente na vacina AstraZeneca/Oxford, Doria firmou uma parceria com a a chinesa Sinovac, fabricante da Coronavac.

Em entrevista à DW Brasil no início da semana, o diretor do Instituto Butantan disse que, se não fosse o governo federal, o Brasil já teria vacina desde dezembro. Ele apontou o obscurantismo científico das autoridades como responsável direto pela nova onda explosiva de covid-19.

Dados os problemas do governo federal em fornecer vacinas rapidamente e em quantidades suficientes, cidades já estão procurando alternativas. A Frente Nacional de Prefeitos (FNP), uma federação de cidades com mais de 80 mil habitantes, está planejando selar contratos de fornecimento com os produtores de vacinas por conta própria. O presidente da FNP, Jonas Donizette, exortou os prefeitos a "lançarem mão de todos os instrumentos que têm para evitar a situação dramática de ter de escolher entre quem vai viver ou morrer".

Deutsche Welle Brasil, em 03.03.2021

PIB de 2020 no Brasil cai 4,1% com pandemia, o pior resultado em 24 anos

Resultado do quarto trimestre apontava recuperação da atividade econômica, mas segunda onda do coronavírus faz país bater recordes de morte, o que pode afetar outra vez a economia neste trimestre
Jovem sem máscara caminha em uma movimentada rua comercial em São Paulo, no momento em que o Brasil vive uma aceleração da pandemia.


Jovem sem máscara caminha em uma movimentada rua comercial em São Paulo, no momento em que o Brasil vive uma aceleração da pandemia.SEBASTIAO MOREIRA / EFE

A pandemia da covid-19 no Brasil derrubou o Produto Interno Bruto (PIB), que registrou uma queda de 4,1% no ano passado, segundo os dados divulgados nesta quarta-feira (3) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A retração causada pelo confinamento social e a redução da atividade econômica foi atenuada pelas 9 parcelas de auxílio emergencial entre 300 e 600 reais no ano passado, mas o país não fugiu das consequências vividas no mundo inteiro com o coronavírus. O caos provocado pelo vírus gerou uma queda significativa no PIB, o pior resultado desde 1996. No quarto trimestre, no entanto, a soma das riquezas produzidas no país apontou uma recuperação das perdas anteriores, com o resultado positivo de 3,2% em comparação aos três meses anteriores, numa melhora que já tinha sido observada no trimestre anterior, quando a economia subiu 7,7%, em comparação ao período de abril a junho do ano passado. O PIB totalizou 7,4 trilhões de reais em 2020. O PIB de 2019 registrou um minguado crescimento de 1,1%.

O quadro econômico do Brasil foi desestruturado pela pandemia, que chegou a um desemprego de 14,6% entre julho e setembro, quando o isolamento social e a retração da economia com a pandemia da covid-19 reduziu a oferta de postos de trabalho. Um dos setores mais impactados foi o de construção, com uma queda de 7% da atividade. Também a indústria de transformação, que engloba o setor automotivo, metalúrgico e de vestuário, registrou queda de 4,3% no ano. A economia na corda bamba no mundo todo afetou também o setor externo. O país registrou queda das exportações e importações – 1,8% e 10%, respectivamente. A agricultura, por sua vez, registrou uma queda de 0,4% no último trimestre em contraste com o mesmo período de 2019. Na comparação anual, os agronegócios avançaram 2% sobre 2019.

Em setembro, porém, houve uma redução no quadro de mortes por coronavírus - caíram de uma média diária de 1000 para 800 — o que levou a população a enxergar uma luz no fim do túnel e o otimismo aqueceu um pouco a economia. A partir dali, a indústria e serviços tiveram variação positiva de 1,9% e 2,7%, respectivamente, sendo que a indústria de transformação avançou 4,9%. Até o desemprego recuou, caindo de 14,6%, para 13,9%. No final do ano o país contava com 13,4 milhões de desempregados.

Na evolução dos trimestres, os últimos três meses do ano mostravam uma redução do impacto da pandemia. Depois da queda abrupta de 10,9% no segundo trimestre de 2020 em comparação com o mesmo período de 2019, o terceiro trimestre registrou queda de 3,9% e de outubro a dezembro o recuo foi de 1,1%, o que parecia confirmar a recuperação em V apontada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

A taxa de investimento em 2020 chegou a 16,4% do PIB, melhor do que no ano anterior, quando os recursos investidos na economia foi equivalente a 15,4% do PIB. Entram nessa conta o investimento em maquinários e na expansão de negócios. O consumo das famílias, por sua vez, caiu 5,5% comparado ao ano anterior, como reflexo da pandemia. Também o Governo apertou os cintos e teve um consumo 4,7% menor neste ano. O PIB per capita alcançou 35.172 reais em 2020, um recuo, em termos reais, de 4,8%, a menor marca dede o início da série histórica em 1996.

Na comparação com outros países, a queda do PIB no Brasil foi menor do que em outros países da América Latina, como destaca a nota da Secretaria de Política Econômica: México teve queda de 9,7% e a Colômbia, 6,8%.

A dúvida, a partir de agora, é como o país vai reagir nestes primeiros meses de 2021. Com a guarda baixa para a covid-19, as festas de final de ano se multiplicaram e os números de infectados por covid-19 explodiram outra vez. O número de mortes voltou com força numa segunda onda, e tem batido recordes diariamente. Nesta quarta, foram mais de 1.600 mortes, o pior resultado desde o início da pandemia. Hoje grande parte dos governadores pressionam por restrições mais severas, o que deixa em aberto as consequências para a economia neste primeiro trimestre. Ao mesmo tempo, o auxílio emergencial deve voltar no valor de 250 reais, bem abaixo dos 600 reais pagos no início da pandemia. “As incertezas econômicas continuam elevadas, especialmente, o primeiro trimestre deste ano será desafiador”, destaca a nota da Secretaria de Política Econômica. O Governo aposta ainda numa pauta de reformas como o caminho para o controle das finanças para recuperar a confiança da economia.

Economistas apontam, ainda, o prejuízo da inflação para este ano, cujas projeções sobem há oito semanas, na leitura do mercado financeiro. A alta nos preços deve levar a uma alta de juros que deve inibir a atividade econômica.

A grande esperança é o avanço da vacinação, que ainda é incipiente no Brasil. São 6,7 milhões de vacinados para um país de 211 milhões. O Governo e o Congresso acenam com a aceleração da compra e produção de vacinas, que garantiria ter metade da população vacinada até metade do ano. Com esse resultado, seria mais rápida a retomada de atividades econômicas. Até lá, no entanto, o país se digladia numa guerra entre governadores e o presidente Jair Bolsonaro pela manutenção sem restrições das atividades econômicas em um momento que o Brasil registra pico de mortes por covid-19. Os Estados querem toque de recolher diante da iminência do colapso da saúde num momento em que 19 unidades federais têm mais de 80% dos leitos de UTI comprometidas. Ao mesmo tempo, ainda reverbera a interferência do Governo na Petrobras. O presidente Jair Bolsonaro demitiu no último dia 19 o presidente Roberto Castello Branco, substituído por um militar, o general Joaquim Silva e Luna. Nesta terça, 2, quatro membros do Conselho de administração da Petrobras pediram demissão após a troca de comando.

CARLA JIMÉNEZ, de São Paulo para o EL PAÍS, em 03.03.2021

terça-feira, 2 de março de 2021

Rio Grande do Sul ultrapassa 100% de ocupação dos leitos de UTI adulto

Hospital privado de Porto Alegre anunciou a instalação um contêiner refrigerado para aumentar a capacidade do necrotério

O Rio Grande do Sul ultrapassou 100% de ocupação nos leitos de UTI adulto nesta terça-feira, 2. Já são 2.824 pacientes internados em 2.818 leitos, incluindo hospitais públicos e privados. O Estado vive o pior momento da pandemia, com todas as regiões em bandeira preta.

Rio Grande do Sul está com todos os leitos de UTI adulto ocupados Foto: Eraldo Peres/AP

No Twitter, o governador Eduardo Leite falou que o Estado abriu 1,1 mil leitos de UTI durante a pandemia. O total passou de 933 para 2.121.

Desde o último sábado, o Estado inteiro está em bandeira preta no plano de distanciamento controlado. A classificação prevê o fechamento do comércio não essencial, a proibição de permanecer nas orlas das praias, a suspensão das aulas presenciais e outras medidas restritivas.

O Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre, anunciou nesta sexta que vai instalar um contêiner refrigerado anexo ao hospital para aumentar a capacidade do necrotério, que atualmente comporta até três corpos. Em nota, o hospital disse que ele só será usado em caso de necessidade, “considerando a possibilidade de atrasos na retirada dos óbitos por parte das funerárias.”

A instituição está com taxa de ocupação dos leitos de UTI acima de 100% e não aceita mais transferências de pacientes de outros hospitais. Pacientes graves que chegam diretamente na unidade ainda são atendidos pela equipe de emergência porque o hospital tem capacidade de transformar leitos em terapia intensiva.

Na nota, o Moinhos de Vento ressaltou que pacientes com menos de 60 anos correspondem a 35% dos internados, “o que enseja um sinal de alerta para que a população mais jovem redobre os cuidados.”

Mariana Hallal, O Estado de São Paulo, em 02 de março de 2021 | 16h40


Pacientes com covid-19 morrem à espera de UTI em SC; centenas estão na fila

Desde 21 de fevereiro, quando Estado atingiu capacidade máxima de internação, foram registrados 16 óbitos; pacientes começam a ser transferidos para o Espírito Santo

Santa Catarina vai transferir pacientes com covid-19 para hospitais da região metropolitana de Vitória, no Espírito Santo. Com o sistema de saúde totalmente colapsado - até essa segunda-feira, 1º, pelo menos 228 pessoas aguardavam vaga de tratamento intensivo, o Estado também começa a registrar mortes por falta de leitos. Desde o dia 21 de fevereiro, quando Santa Catarina atingiu capacidade máxima de internação, foram registradas 16 mortes na fila por uma vaga de UTI.

As transferências vão priorizar pacientes que estão aguardando internações na região oeste, onde a situação é a mais crítica. "Nossa prioridade neste momento é salvar vidas. Em outros momentos, acolhemos pacientes de diferentes regiões do País e, agora, contamos com a solidariedade dos capixabas", afirmou Motta Ribeiro. O transporte dos pacientes será feito de Chapecó nesta terça-feira, 2. No Espírito Santo, a taxa de ocupação de leitos é de 75%.


Equipe médica em Unidade de Terapia Intensiva para pacientes da Covid-19 Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Com maior número de internados desde o início da pandemia, esta é a primeira vez que Santa Catarina vai transferir pacientes para outros Estados. Em dezembro, a região chegou a receber doentes de Manaus.

Resistência ao lockdown

Agora, no pior momento da pandemia e com uma taxa de transmissão muito mais acelerada, órgãos de controle e especialistas pedem adoção de medidas mais rígidas de isolamento social. Contudo, o governador Carlos Moisés (PSL) tem relutado em acatar lockdown por 14 dias como pedem os chefes e integrantes do Ministério Público, Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Tribunal de Contas, e das defensorias Pública do Estado e da União.

Em reunião com os representantes dos órgãos na segunda-feira, o governador disse que vai aguardar resultados do modelo de isolamento que considera eficiente, com lockdown nos fins de semana e restrição de horários das atividades nos dias de semana.  

O número de pessoas com vírus ativo disparou nas últimas duas semanas. Em 15 de fevereiro, eram 10 mil. Nesta terça, 2, foram registrados 41 mil infectados com potencial de transmissão. Já são 7.438 mortos pelo novo coronavírus no Estado.

Risco de desabastecimento de insumos

O risco de desabastecimento de insumos para intubação e oxigênio também é considerado iminente, principalmente dos medicamentos do chamado kit intubação. "Os hospitais estão tendo dificuldades para adquirir insumos de maneira geral, principalmente do kit intubação, que já começa a faltar em algumas unidades", afirmou Adriano Ribeiro, diretor-executivo da Associação dos Hospitais de Santa Catarina (Ahesc). 

Segundo apurou a reportagem, gestores das regiões oeste e norte do Estado estão solicitando apoio para não ficarem sem insumos para intubar pacientes.

Ribeiro também comentou as mortes daqueles que sequer chegaram ao leito de UTI como pedia a avaliação médica. "Essa é uma realidade que só vai piorar; em Xanxerê, nós temos 30 pacientes internados na emergência, não tem mais lugar, as pessoas vão morrer na ambulância esperando vaga", emendou Ribeiro.

O diretor alerta para a gravidade no sistema de saúde catarinense, que, segundo ele, aguarda a habilitação de 978 leitos por parte do governo federal nos hospitais filantrópicos. Esses leitos já estão ocupados, mas não estão recebendo os recursos necessários para sua manutenção. 

"Isso por si só demonstra a situação em que nos encontramos: não há condições físicas nem de recursos humanos de abrirmos mais leitos. É preciso uma ação urgente de testagem em massa e isolamento sanitário das regiões críticas”, avalia. “Não tem como abrir UTI sem acesso a oxigênio, sem equipe capacitada, não é abrindo leitos dessa forma que vamos salvar vidas”.

Variante de Manaus circula em SC

Na última semana, a Secretaria de Saúde de Santa Catarina confirmou o que especialistas já tinham constatado na prática: a nova onda de infecção que atinge Santa Catarina é mais rápida e violenta e está sendo impulsionada pela variante detectada em Manaus (AM), chamada de P1. De dez casos testados pela Fiocruz, oito confirmaram a circulação da variante no estado.

Gestor de uma unidade hospitalar na capital ouvido pelo Estadão diz que foi um erro Santa Catarina ter recebido pacientes de Manaus sem protocolos adequados e sem isolamento rígido desses pacientes. "Nós trouxemos pacientes leves, que em poucos dias receberam alta, mas eles entraram nas unidades de saúde e, muito provavelmente, contribuíram para essa maior disseminação", avalia o médico que pediu para não ser identificado.

Fábio Bispo, especial para o Estadão, em 02 de março de 2021 

Brasil registra 1.726 mortes pela covid em 24 horas e volta a bater recorde

Média móvel de mortes pela doença também bateu recorde ao somar 1.274 nesta terça-feira

O Brasil registrou recorde do número de mortes em 24 horas desde o início da pandemia, com 1.726 novos óbitos nesta terça-feira, 2, segundo o consórcio de veículos de imprensa. A média móvel de mortes pela doença também bateu recorde ao somar 1.274. A sequência de balanços altos ocorre no momento em que o País enfrenta o pico da crise causada pelo coronavírus.

O número total de mortes chegou a 257.562, de acordo com o levantamento do consórcio de veículos de imprensa, formado por Estadão, G1, O Globo, Extra, Folha e UOL em parceria com 27 secretarias estaduais de Saúde. Já o registro de casos confirmados chegou a 10.647.845, sendo 58.237 contabilizados nas últimas 24 horas. O balanço mais recente foi divulgado às 20h.


Coveiros preparam novos túmulos para serem usados ​​no cemitério de Vila Formosa em meio ao surto da doença coronavírus, em São Paulo. Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

A média móvel de mortes, que registra as oscilações dos últimos sete dias e elimina distorções entre um número alto de meio de semana e baixo de fim de semana, bateu recorde pelo quarto dia consecutivo. Além disso, já são mais de 40 dias com a média acima da marca de 1 mil vítimas.

Estado mais afetado pelo vírus em números absolutos, São Paulo também bateu recorde nesta terça-feira ao somar 468 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas. Com isso, o Estado chegou a 60.014 óbitos e 2.054.867 casos confirmados. 

Como divulgado pelo Estadão, o governo de São Paulo avalia possibilidade de colocar todo o Estado na fase vermelha, mas com escolas abertas. As novas diretrizes serão anunciadas nesta quarta-feira, 3. Entre os grandes hospitais particulares, pelo menos quatro (Einstein, Oswaldo Cruz, BP e São Camilo) afirmam que atingiram nos últimos dias 100% de ocupação de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para internados com covid-19. 

Segundo o governo, as taxas de ocupação dos leitos de UTI são de 75,5% na Grande São Paulo e 74,3% no Estado. O número de pacientes internados é de 16.635, sendo 9.225 em enfermaria e 7.410 em unidades de terapia intensiva.

Ainda nesta terça-feira, o Rio Grande do Sul anunciou que ultrapassou 100% de ocupação nos leitos de UTI adulto. Já são 2.824 pacientes internados em 2.818 leitos, incluindo hospitais públicos e privados. O Estado vive o pior momento da pandemia, com todas as regiões em bandeira preta. Em Santa Catarina, desde o dia 21 de fevereiro, quando o Estado atingiu capacidade máxima de internação, foram registradas 16 mortes na fila por uma vaga de UTI.

Consórcio dos veículos de imprensa

O balanço de óbitos e casos é resultado da parceria entre os seis meios de comunicação que passaram a trabalhar, desde o dia 8 de junho, de forma colaborativa para reunir as informações necessárias nos 26 Estados e no Distrito Federal. A iniciativa inédita é uma resposta à decisão do governo Bolsonaro de restringir o acesso a dados sobre a pandemia, mas foi mantida após os registros governamentais continuarem a ser divulgados.

Andreza Galdeano, O Estado de São Paulo, em 02 de março de 2021

2ª Turma do STF arquiva denúncia contra Arthur Lira no ‘quadrilhão do PP’

Chegada de Kassio Nunes Marques ao tribunal permitiu reviravolta no julgamento do caso, que marca mais uma derrota da Lava Jato no STF

O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL). Foto: Dida Sampaio/ Estadão

Por 3 a 2, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta terça-feira (2) arquivar a denúncia de organização criminosa apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL) e outros três parlamentares no caso conhecido como “quadrilhão do PP”. O resultado marca mais uma derrota da Operação Lava Jato no Supremo.

A decisão da Segunda Turma também beneficia os deputados Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-PB) e Eduardo da Fonte (Progressistas-PE) e o senador Ciro Nogueira (Progressistas-PI), todos investigados no âmbito de um inquérito que apura desvios bilionários na Petrobrás. Segundo a PGR, o esquema da organização criminosa também teria atingido a Caixa Econômica Federal e o Ministério das Cidades, com objetivo de obter propina de forma estável e “profissionalizada”.

As investigações sofreram uma reviravolta no Supremo após a aposentadoria de Celso de Mello e a indicação de Kassio Nunes Marques para a Corte, expondo mais uma vez o cenário desfavorável para o legado da operação no tribunal. Um dos líderes do Centrão, Ciro Nogueira deu a bênção para a indicação de Nunes Marques ao STF.

Nesta terça-feira, Nunes Marques voltou a se alinhar com os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, dois expoentes da ala garantista do tribunal, mais crítica aos métodos de investigação da Lava Jato. O trio impôs um novo revés para o relator da Lava Jato no STF, Edson Fachin, e formou a maioria para arquivar o caso.

“A acusação formulada pela PGR concentra-se em fatos investigados em outros inquéritos. Todos os fatos investigados já foram arquivados pela própria PGR ou rejeitados nesta Corte”, disse o ministro Gilmar Mendes, ao alegar que as provas usadas na acusação eram frágeis, baseadas em versões de delatores e “recicladas” de outras investigações já arquivadas.

“No caso em questão, salta aos olhos a engenhosa artificialidade da acusação, já que não há nenhuma razão que sustente a persistência da organização criminosa até a data do protocolo da denúncia.”

Em um voto de 46 páginas, Gilmar destacou ainda mensagens privadas atribuídas a integrantes da hoje extinta força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, obtidas por hackers que invadiram o celular de autoridades. Nas conversas reservadas, os procuradores discutiram a estratégia em torno da construção da denúncia.

“As recentes revelações de diálogos, quer lícitos ou não, sugerem que a apresentação da denúncia nos presentes autos era tão somente um ‘pé de apoio’ para um projeto político próprio do Ministério Público que perpassava justamente essa estratégia de deslegitimação do establishment partidário para, talvez no futuro, apresentar-se como solução: instaurar o caos para afiançar a moralidade”, afirmou Gilmar Mendes.

Na denúncia, Lira é acusado de receber R$ 1,6 milhão de propina paga pela Queiroz Galvão e de ser beneficiado com R$ 2,6 milhões de vantagens indevidas por meio de doações eleitorais “oficiais” realizadas pela UTC Engenharia. 

“Essas investigações já foram arquivadas, rejeitadas ou sequer iniciadas em virtude da fragilidade dos colaboradores e das provas produzidas. Denúncia se apoia basicamente nos depoimento dos colaboradores premiados, sem indicar os indispensáveis elementos autônomos de colaboração que seriam necessários para verificação da viabilidade de acusação”, afirmou Nunes Marques, ao acompanhar o entendimento de Gilmar Mendes.

Último a votar, Ricardo Lewandowski também votou pelo arquivamento da denúncia e fez um duro discurso contra a corrupção. “Quero dizer que nós somos contra a corrupção, detestamos a corrupção, consideramos que a corrupção é um dos males endêmicos que não permite que o país se desenvolva adequadamente do ponto de vista econômico, social e político. Ocorre, que esse combate à corrupção precisa ser feito dentro dos lindes da Constituição”, frisou.

Reviravolta. A denúncia do “quadrilhão do PP” foi apresentada em setembro de 2017 pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Em junho de 2019, a acusação contra Lira e os outros parlamentares por organização criminosa foi recebida pela Segunda Turma do STF por outro placar apertado: 3 a 2. 

Naquela época, Gilmar e  Lewandowski votaram contra o recebimento da denúncia. Por outro lado, Fachin, Cármen Lúcia e o então decano do STF, Celso de Mello, defenderam o recebimento da acusação formal, formando a maioria para a abertura de uma ação penal.

A reviravolta no caso do “quadrilhão do PP” expõe mais uma vez a mudança na correlação de forças na Corte, desde a aposentadoria de Celso de Mello (que costumava se alinhar a Fachin na Segunda Turma) e a chegada de Nunes Marques, em novembro do ano passado.

Desde que Nunes Marques passou a integrar o colegiado, a Segunda Turma já determinou o arquivamento de um inquérito contra o ex-senador Eunício Oliveira (MDB-CE) aberto com base na delação da Odebrecht e garantiu à defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a mensagens privadas obtidas por hackers da Operação Spoofing.

Linha sucessória. O resultado do julgamento não resolve a controvérsia envolvendo a possibilidade de Lira assumir interinamente a Presidência da República caso Jair Bolsonaro e o vice, Hamilton Mourão, se ausentem do território nacional. Um precedente do STF estabeleceu que réus em ações penais podem até comandar uma das Casas do Congresso, mas não substituir o presidente e o vice, caso os dois se ausentem do território nacional.

Além do “quadrilhão do PP”, que será arquivado, a Primeira Turma do STF já aceitou uma denúncia contra Lira em outro inquérito, no qual o parlamentar é acusado de corrupção passiva. O episódio diz respeito ao assessor parlamentar Jaymerson José Gomes de Amorim, servidor público da Câmara dos Deputados, que foi apreendido com R$ 106 mil em espécie quando tentava embarcar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, com destino a Brasília utilizando passagens custeadas pelo deputado federal.

Ao tentar passar pelo aparelho de raio x, o assessor foi abordado por agentes aeroportuários e detido pela Polícia Federal.

A PGR narra que os valores apreendidos deveriam ser entregues a Lira, em troca de apoio político para manter Francisco Colombo no cargo de presidente da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU). Segundo a PGR, foi o deputado quem determinou que Jaymerson escondesse as notas de dinheiro na roupa (bolsas do paletó, cintura e dentro das meias).

Em novembro do ano passado, um pedido de vista do ministro Dias Toffoli “travou” o aprofundamento das investigações e a abertura de ação penal contra Lira. Não há previsão de quando a discussão do caso vai ser retomada.

Repercussão.

Para os advogados de Arthur Lira, Pierpaolo Bottini e Marcio Palma, a decisão reconheceu “que é preciso cuidado com a delação premiada”. “Embora seja um importante instrumento de prova, só deve valer quando coerente e corroborada por provas. É a terceira denúncia com base nas declarações do doleiro rejeitada pela Suprema Corte”, afirmou a defesa do presidente da Câmara.

Na avaliação do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, defensor de Ciro Nogueira, a decisão do STF “resgata a confiança no sistema de Justiça e anuncia novos tempos no cumprimento da Constituição”.

Rafael Moraes Moura de BRASÍLIA para O Estado de São Paulo, em 02.03.2021