terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Como os presidentes brasileiros lidaram com a gripe espanhola no início do século 20?

A gripe espanhola não é conhecida como a mãe de todas as pandemias por acaso. No mundo, estima-se que a doença tenha matado mais de 50 milhões de pessoas.

Wenceslau Braz, Delfim Moreira e Epitácio Pessoa foram presidentes do Brasil na época da gripe espanhola (Crédito: Galeria dos Presidentes da República).

No Brasil, os números mais confiáveis da época vêm do Rio de Janeiro, a então capital da República, onde foram contabilizados cerca de 15 mil óbitos entre os meses de setembro e novembro de 1918.

"A gripe espanhola era muito rápida, matava em poucos dias. Há notícias de famílias inteiras que morriam em casa e só eram descobertas por vizinhos que notavam a falta de movimento", relata a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo e da Universidade Princeton, nos Estados Unidos.

Num momento em que os recursos e o conhecimento científico sobre os vírus ainda eram escassos, o governo brasileiro demorou para tomar as primeiras medidas e patinou até conseguir coordenar as ações e criar políticas efetivas contra a "espanhola", como a doença era conhecida no período.

Entre 1918 e 1920, tempo em que a pandemia se manteve ativa no país e no mundo, o Brasil teve três presidentes: Wenceslau Braz (de 15 de novembro de 1914 a 15 de novembro de 1918), Delfim Moreira (de 15 de novembro de 1918 a 28 de julho de 1919) e Epitácio Pessoa (de 28 de julho de 1919 a 15 de novembro de 1922).

Num cenário de grande incerteza e muitas mortes, alguns personagens importantes da administração pública rapidamente viraram bodes expiatórios e foram execrados pela imprensa.

E ninguém sofreu mais acusações do que o médico Carlos Seidl.

Reputação arranhada

"Carlos Seidl era um médico muito famoso, quase um popstar. Ele chegou a ser capa da revista Fon-Fon, uma das mais populares do período", relembra João Malaia, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria.

Nascido em 1867 no Pará, Seidl foi presidente da Academia Nacional de Medicina entre 1911 e 1913 e até hoje é o patrono da cadeira número 17 da entidade.

O especialista era tão antenado ao seu tempo que foi autor de um dos primeiros artigos científicos da história sobre o uso dos raios-X na medicina.

Em 1912, Seidl assumiu como diretor-geral de Saúde Pública, cargo que hoje equivaleria ao de ministro da Saúde.

O médico Carlos Seidl, diretor geral de saúde pública, na capa da revista FonFon (Crédito: Biblioteca Nacional).

À época, não existia um Ministério da Saúde. As questões relacionadas a esse tema eram centralizadas no Ministério de Justiça e Negócios Interiores.

Tudo ia relativamente bem na gestão de Seidl até o segundo semestre de 1918, quando a gripe espanhola invadiu o Brasil por meio dos portos.

De piada a assunto sério

Os primeiros relatos de que uma doença nova começara a se espalhar pela Europa foram encarados com ceticismo e humor no Brasil.

Jornais e revistas fizeram piadas com a ameaça que ficava cada vez maior.

Um artigo publicado em A Careta é um exemplo disso. Num trecho, os autores chegam a dizer em tom de pilhéria que o vírus era invenção dos alemães para ganhar a Primeira Guerra Mundial, que naquele ano de 1918 se encaminhava para o fim:

"Em nossa opinião a misteriosa moléstia foi fabricada na Alemanha, carregada de virulência pelos sabichões teutônicos, engarrafada e depois distribuída pelos submarinos que se encarregam de espalhar as garrafas perto das costas dos países aliados, de maneira que, levadas pelas ondas para as praias, as garrafas apanhadas por gente inocente espalhem o terrível morbus por todo o universo, desta maneira obrigando os neutros a permanecerem neutros".

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Um fator que contribui para essa visão é o fato de a gripe sazonal, que aparece no outono e no inverno todos os anos, ser encarada com naturalidade pela população.

Um artigo de 2005 assinado pela historiadora Adriana da Costa Goulart revela que a doença era tão corriqueira no país que acabou conhecida no período como "limpa-velhos", pelo fato de acometer e matar principalmente a população idosa.

A situação foi encarada com um pouco mais de seriedade quando uma missão de militares brasileiros, que partiu de navio para ajudar nos esforços de guerra, foi acometida pela "espanhola" em setembro de 1918 ao aportar em Dakar, no Senegal.

Recorte de jornal com informações sobre os primeiros brasileiros acometidos pela "espanhola" em Dakar, no Senegal. (Crédito: Cortesia Companhia das Letras).

Nesse mesmo mês, a doença chegou oficialmente ao país no navio Demerara, que partiu de Lisboa, em Portugal, e fez paradas nos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro.

Em cada uma dessas cidades, o desembarque de pessoas infectadas fez com que o vírus causador da gripe se espalhasse país adentro e causasse um estrago sem precedentes.

Ações instantâneas

Ao receber as primeiras notícias sobre a gripe espanhola, a primeira coisa que o governo brasileiro fez foi negar a gravidade dos fatos.

Poucos dias depois, porém, a realidade se impôs: nas última semanas de setembro de 1918, começaram a ser tomadas medidas preventivas, como revela esse artigo escrito pelo próprio Carlos Seidl em 1919:

"Antes do dia 26 de setembro [de 1918] o próprio ministro do Interior, de quem solicitei insistentes informações, não sabia dizer-me qual a natureza da epidemia - falava-me em cólera e peste bubônica. (...) na falta de documentação, tomei a deliberação de recomendar aqui e nos portos uma profilaxia que denominei de indeterminada, isto é, visando tudo que pudesse ser motivo de transmissão mórbida".

A historiadora Daiane Silveira Rossi, pós-doutoranda pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), destaca as primeiras medidas instauradas pela administração pública:

"Quando a pandemia estourou, as autoridades sanitárias recomendaram que as pessoas se mantivessem em casa e não fossem aos locais públicos. Houve decretos para extinguir algumas práticas bastante comuns no período, como o hábito de cuspir no meio da rua", conta.

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A gravidade da situação também exigiu a construção rápida de hospitais de campanha e locais para isolamento de indivíduos infectados com o vírus.

As políticas restritivas, porém, não foram aceitas por parte da imprensa e, por consequência, pela população.

Em outra edição, a mesma revista A Careta reclamou da "ameaça da medicina oficial e da ditadura científica" e sugeria que as políticas feriam "os direitos dos cidadãos com uma série de medidas coercitivas, preparando todas as armas da tirania científica contra as liberdades dos povos civis".

O bode expiatório

Por mais necessárias que essas medidas de restrição fossem, elas não conseguiram conter a subida vertiginosa no número de mortes pela "espanhola".

E mais uma vez sobrou para Carlos Seidl.

Em editoriais, o médico chegou a ser chamado de "cretino, relapso e sedicioso" e acusado de deixar a população entregue à própria sorte.

No dia 11 de novembro de 1918, um artigo do Rio Jornal dizia que o então diretor-geral de Saúde Pública fez "pouco caso criminoso e abusou da paciência do povo".

Em certos veículos, a gripe espanhola passou a ser chamada de "mal de Seidl".

E o presidente? Em meio a tanta ira, Wenceslau Braz não foi alvo tão frequente assim dos ataques da imprensa.

"Em comparação com alguns de seus sucessores, Braz era mais fraco e se escudou na figura de Carlos Seidl, um profissional que era muito experiente e gabaritado para lidar com a pandemia", avalia Schwarcz, que publicou em outubro de 2020 o livro A Bailarina da Morte: a Gripe Espanhola no Brasil (Companhia das Letras), junto da também historiadora Heloisa Murgel Starling.

Troca de liderança

A situação evoluiu até o ponto em que a permanência de Seidl no comando se tornou insustentável e ele renunciou ao cargo no dia 19 de outubro de 1918, sentindo-se constrangido pelos ataques e pelas notícias de que seria substituído a qualquer momento.

Após alguns convites recusados, coube ao médico carioca Theóphilo Torres assumir o posto de diretor-geral de Saúde Pública.

Uma de suas primeiras ações foi recrutar o também médico e pesquisador Carlos Chagas para assumir as ações de combate à gripe espanhola.

À época, Chagas era diretor do Instituto Oswaldo Cruz e já se tornara reconhecido como o herdeiro intelectual do sanitarista Oswaldo Cruz, que morrera em 1917, um ano antes da pandemia estourar no Brasil e no mundo.

"É muito simbólico o governo olhar para uma instituição científica e escolher o diretor dela para assumir um cargo público de tanta relevância. É como se hoje a pneumologista Margareth Dalcolmo, da FioCruz, fosse convidada para virar ministra da Saúde", compara Rossi.

A pneumologista Margareth Dalcolmo, da FioCruz, recebe a primeira dose da vacina contra a covid-19 (Crédito da foto: André Coelho / Getty Images).

Panteão de heróis

Nos últimos dias de outubro de 1918, Chagas intensificou as medidas preventivas e ordenou a criação de hospitais de campanha e postos de atendimento à população em diversos bairros do Rio de Janeiro.

Neste ponto, a pandemia começava a arrefecer na capital do Brasil e a situação voltava a ficar mais estável.

"Carlos Chagas vai entrar no período em que a doença já está no descenso e acaba ficando com toda a fama. Fica parecendo que ele milagrosamente deu um fim na pandemia", observa Schwarcz.

De acordo com a antropóloga, esse momento histórico marca a construção de alguns heróis nacionais, com o resgate da figura de Oswaldo Cruz como o pai da saúde pública brasileira e o primeiro representante da classe dos médicos políticos que viria a se tornar tão comum no país dali em diante.

Outro nome que voltou com força junto ao de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas foi o de Rodrigues Alves, que havia sido presidente entre 1902 e 1906.

A administração de Alves no início do século 20 ficou muito marcada pelas medidas de saneamento e vacinação implementadas por Oswaldo Cruz, que causaram uma mudança enorme na cidade do Rio de Janeiro — e desembocaram até na famosa "Revolta da Vacina".

O médico Carlos Chagas virou herói nacional após assumir as ações de combate à gripe espanhola (Crédito da foto: Divulgação).

Alves concorreu novamente à Presidência em 1918 e ganhou a eleição para suceder Wenceslau Braz a partir do dia 15 de novembro daquele mesmo ano.

Porém, aos 70 anos e com uma saúde muito frágil, o político paulista não conseguiu assumir o cargo pela segunda vez. Ele morreu no dia 16 de janeiro de 1919 sem tomar posse.

Quem matou Rodrigues Alves?

Até hoje existe o mito de que Alves morreu de gripe espanhola. Mas essa não é a verdade.

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Foram meses de idas e vindas entre o Rio de Janeiro e o interior paulista até a sua morte. E, como explicado mais acima, sabe-se que a "espanhola" matava em poucos dias após o início dos sintomas.

"Alves tinha problemas cardíacos e respiratórios que já vinham há muito tempo. Acontece que as oligarquias mineiras e paulistas queriam um nome forte para disputar as eleições e ele tinha esse capital político", diz Schwarcz.

A partir do óbito, o conselheiro também passou a ser cultuado como um mito nacional.

Capa do jornal "A Gazeta de Notícias" do dia 17 de janeiro de 1919 traz informações sobre a morte do presidente eleito Rodrigues Alves. (Crédito: Acervo Biblioteca Nacional).

"Ao dizer que Alves morreu de gripe espanhola, cria-se a ideia de um herói que morreu junto de seu povo, e não que os brasileiros haviam eleito uma pessoa que já estava doente", completa a especialista.

Linha sucessória

Com a morte de Rodrigues Alves, o advogado mineiro Delfim Moreira foi seu substituto. Ele era o vice-presidente da chapa vencedora das eleições de 1918.

A Constituição da época, porém, exigia que um novo pleito fosse organizado. O vice só poderia virar presidente se o ocupante do cargo principal morresse dois anos depois de sua posse.

Após as novas eleições, o eleito foi o jurista paraibano Epitácio Pessoa, que assumiu a Presidência em 28 de julho de 1919 e ficou até 15 de novembro de 1922.

Nas administrações de Moreira e Pessoa, a situação da gripe espanhola parecia estar relativamente bem controlada no Rio de Janeiro.

A geografia das pandemias: o que faz um novo vírus surgir em determinado lugar do mundo?

As doenças infecciosas derrotadas graças às vacinas

Mas há registros de surtos e situações de calamidade em outras regiões do país.

A exemplo do que ocorre agora em 2020 e 2021, a cidade de Manaus foi uma das mais atingidas pela gripe espanhola.

"A partir de 1919, os presidentes adotam uma postura de 'não é problema meu, não tenho que resolver tudo' muito parecida ao que é feito hoje por Jair Bolsonaro", analisa Schwarcz.

Liberou geral

Com a queda de casos e mortes pela espanhola, houve um relaxamento natural nas medidas de prevenção contra a infecção.

O carnaval de 1919, inclusive, é famoso até hoje como uma das maiores festas populares de todos os tempos.

Malaia usa o futebol como exemplo de como a pandemia virou assunto do passado com uma rapidez impressionante.

"O Brasil seria sede do campeonato sul-americano de 1918, que acabou adiado pela gripe e pela doença de Rodrigues Alves. O torneio aconteceu com estádios lotados em maio de 1919, poucos meses após o pico de mortes", relata.

A disputa acabaria com a seleção brasileira como campeã, no que seria o primeiro título internacional de nosso futebol.

Semelhanças e coincidências

Uma das noções mais equivocadas em relação à gripe espanhola (e que também se aplica à covid-19, diga-se) é a de que a pandemia foi "democrática" e atingiu todas as classes sociais de maneira igual.

"O desenvolvimento das pandemias de 1918 e 2020 é semelhante. As duas chegaram ao país por meio dos ricos, que viajaram ao exterior, voltaram de navio ou avião e tinham condições de buscar algum tratamento. Mas quem morreu aos montes foi a população mais pobre, que vivia nos morros e nas periferias", aponta Schwarcz.

Outro ponto que aproxima os dois momentos históricos é a procura desenfreada por tratamentos milagrosos, que na prática não possuem validação científica.

"No Rio Grande do Sul, o estoque de carne de frango chegou a acabar, porque as pessoas acreditavam que canja e caldo de galinha podiam curar a doença", conta Rossi.

Em 1918, uma das maiores promessas contra a "espanhola" era o sal de quinino, um tratamento usado contra malária e dores nas articulações.

Ele era vendido em algumas farmácias como um "santo remédio", apesar da falta de evidências de sua eficácia contra a infecção.

Na década de 1930, o sal de quinino foi substituído no tratamento da malária por uma outra molécula: a cloroquina.

Bolsonaro fez uma série de apelos públicos para o uso da hidroxicloroquina como suposto 'tratamento precoce' contra a covid-19 (Crédito da foto: Reuters)

Essa mesma cloroquina (ou hidroxicloroquina) hoje é defendida por alguns como "tratamento precoce" contra a covid-19, a despeito das contraindicações de entidades como a Organização Mundial da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a Sociedade Brasileira de Infectologia.

"Pelo menos em 1918, não tínhamos nenhuma autoridade política ou científica apoiando o uso de sal de quinino, como Bolsonaro faz hoje com a cloroquina", compara Schwarcz.

Diferença fundamental

Segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o principal ponto que separa as crises de gripe espanhola e de covid-19 está na atuação dos órgãos federais.

"Ao contrário do que aconteceu no início do século 20, vemos hoje uma vontade deliberada do governo de sabotar todas as medidas de prevenção e contra a disseminação do coronavírus", analisa Malaia.

Hospital de campanha da época da gripe espanhola (Foto: Cortesia Companhia das Letras).

O que não dá pra prever no estágio atual é como as pessoas vão encarar esta pandemia quando ela virar coisa do passado.

Schwarcz destaca que, após a pior fase da crise sanitária de 1918, o assunto simplesmente desapareceu das crônicas dos jornais e das conversas nas ruas.

A gripe virou um marcador temporal: "os tempos da espanhola" se tornou uma expressão para lembrar de algum fato ocorrido no período.

Será que o mesmo vai acontecer agora com a covid-19?

A pesquisadora acredita que ainda não dá pra saber se o período pós-pandemia será caracterizado por grandes debates ou um "esquecimento coletivo".

"De uma maneira ou de outra, as pessoas vão ficar muito marcadas. E pode ser que a sociedade prefira lidar com isso através do silêncio. Mas todos saberemos que será um silêncio repleto de barulhos", completa.

André Biernath, de São Paulo, para a BBC News Brasil, em 14 fevereiro 2021

Professor da FGV alerta: O golpe de 2022 será com armas

O que vivemos na eleição fora escrito nos decretos pró-armas que ignoramos

Com ironia, aqui vai um alerta de gatilho (literalmente): todos os fatos futuros narrados aqui jamais ocorrerão e as instituições estão funcionando perfeitamente. Todos os fatos pretéritos, no entanto, ocorreram. Vejo a panela em que o sapo da democracia, lentamente, cozinha. Ali está o sapo banhando-se na água do autoritarismo, como quem flutua na santa paz de um mercado e de um centrão felizes, apesar de você.

30 de outubro de 2022. Quando Jair Bolsonaro perdeu o segundo turno da eleição presidencial com 45% dos votos, apesar do apoio em segundo turno do DEM e do PSDB, de uma oposição dividida e de fake news de fraude eleitoral, as coisas começaram de fato a ficar feias. Não que elas já não estivessem feias, dadas as 400 mil mortes pela pandemia e a vacinação que deslanchou só em 2022. Carnaval em 2022, como no ano anterior, não houve.

Tal qual um tenentismo 2.0, a revolta começou entre militares. O fogo de palha estava nos 12% dos policiais militares, que uma pesquisa de julho de 2020 já mostrara serem favoráveis a prender ministros do STF e fechar o Congresso. Os outros 88%, poucos afetos à revolta, se juntaram ao movimento, mais por demandas corporativas como aumento salarial do que fé na revolução. Diversos estados viram o motim que acontecera no Ceará em fevereiro de 2020 se espalhar no seu quintal.

O bolsonarismo havia cooptado policiais, em especial depois do decreto que, no meio do Carnaval de 2021, os autorizou a terem duas armas de uso restrito, e facilitou a aquisição de armamentos pesados que antes constavam da lista de produtos controlados do Exército. Mais armas em circulação e menos controle é igual a mais armas com o crime organizado e as milícias.

De início, a revolta sofreu resistência dos novos generais das polícias militares, cargo recém-criado pela nova lei orgânica das PMs, adotada no final de 2021 com a bênção do arenão de Lira e Pacheco.

Independentes por lei de seus governadores, os comandantes das PMs decidiram apoiar, com relutância, o desvario de seus subordinados. O STF tentou intervir, mas os ministros bolsonaristas na Corte pediram vista, com medo de se repetir aquele premonitório agosto de 2020 em que Bolsonaro ameaçou mandar tropas para o Supremo.

A população, embora desaprovasse em 72% a proposta de armar cidadãos, ficou com medo de protestar. Milícias armadas a serviço do poder de plantão contribuíram para tanto. A alta de 5% dos assassinatos em 2020 fora alimentada por disputas entre grupos armados, impulsionada pelas armas que migraram do mercado legal para o ilegal. Era previsível: 2020 já tinha visto um aumento de 91% no registro de armas em relação a 2019. E o ano seguinte, 2021, fora pior ainda.

O controle de armas se tornou mais raro. Conforme fora estipulado em decreto de fevereiro de 2021, quem escondia fuzis em casa era avisado, 24 horas antes, de qualquer fiscalização. Estado de direito apenas para humanos direitos com fuzil. O que se seguiu foram meses de um governo à base da bala, sangue e medo, como sempre fora.

Dezenas foram mortos Brasil afora, na balbúrdia militaresca, até que a nova presidência tomou posse, com atraso e sem a presença de Bolsonaro, que foi morar entre Atibaia e Barra da Tijuca.

Lá pelos idos de 2023, quando o golpe fracassado de 2022 esmorecer na memória, colunas de jornal dirão que era possível o STF e o Congresso terem revogado os decretos pró-armas, que a escolha não era tão difícil assim, que não faltou quem avisara que a falta de um projeto progressista de segurança nos custaria a democracia, que a frente poderia ter sido ampla, e que o presidente da república deveria ter sido investigado por genocídio.

Em 2023, no entanto, já era tarde. Quem dera estivéssemos em 2021.

Thiago Amparo, o autor deste artigo, é Advogado e Professor de Direito Internacional e Direitos Humanos na Fundação Getúlio Vargas/FGV - Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação. Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 15.02.2015.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Fachin reage a tuíte de general Villas Bôas sobre o STF: 'Intolerável e inaceitável'

Ministro reagiu à revelação feita em livro pelo general Eduardo Villas Bôas, no qual ele relata ter articulado com a cúpula do Exército, em 2018, tuítes que faziam 'alerta' ao STF antes do julgamento de um habeas corpus de Lula

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin reagiu à revelação feita em livro pelo general Eduardo Villas Bôas, no qual ele relata ter articulado com a cúpula do Exército, em 2018, tuítes que faziam “alerta” ao Supremo, pouco antes de a corte julgar um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em abril daquele ano, o plenário do STF negou, por maioria de votos, um pedido apresentado pela defesa de Lula, do qual Fachin era o relator.

"Anoto ser intolerável e inaceitável qualquer forma ou modo de pressão injurídica sobre o Poder Judiciário. A declaração de tal intuito, se confirmado, é gravíssima e atenta contra a ordem constitucional. E ao Supremo Tribunal Federal compete a guarda da Constituição", afirmou o ministro por meio de nota, ao mencionar publicações sobre o tema feitas pelos jornais O Globo e Folha de S. Paulo.

O ministro do STF Luiz Edson Fachin, no plenário da Corte Foto: Rosinei Coutinho / STF

Fachin lembra que está na Constituição (art. 142) que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Neste contexto, o ministro mencionou a invasão do Capitólio nos Estados Unidos e a atitude dos militares americanos, que controlaram a situação. “Frustrou-se o golpe desferido nos Estados Unidos da América do Norte contra o Capitólio pela postura exemplar das Forças Armadas dentro da legalidade constitucional. A grandeza da tarefa, o sadio orgulho na preservação da ordem democrática e do respeito à Constituição não toleram violações ao Estado de Direito democrático”, afirmou Fachin.

Em seu livro, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército nos governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), revela ter planejado o tuíte com o Alto Comando. Na ocasião, um dia antes de a Corte julgar um habeas corpus ajuizado pelo petista, o chefe militar primeiro tuitou que a "Força compartilhava o anseio de todos os cidadãos de bem”. Depois, divulgou novo tuíte citando as instituições, com tom ainda mais político.

O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército Foto: Daniel Teixeira

“Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais”, dizia a publicação. O texto chegou a ser interpretado como ameaça de golpe, caso Lula fosse libertado. O ex-presidente cumpria pena estabelecida pelo então juiz Sérgio Moro, no processo do triplex do Guarujá. Sua libertação poderia ter influência na campanha eleitoral. A disputa foi vencida, no segundo turno, pelo atual presidente Jair Bolsonaro, derrotando o petista Fernando Haddad.

A versão está no livro "General Villas Bôas: Conversa com o Comandante", lançado pela Editora FGV a partir de uma longa entrevista dada ao pesquisador Celso Castro. Nela, o militar detalha, do seu ponto de vista, como se deu a construção daquele recado. Para ele, não foi uma ameaça, e sim um “alerta”.

Segundo o general, houve duas motivações para a mensagem. Uma era o que chamou de insatisfação da população com o País. A outra era a demanda que chegava ao Exército por uma intervenção militar - Villas Bôas afirmou considerar essa medida impensável. Além de planejado com o Alto Comando do Exército, o recado, segundo o general, passou por revisão dos comandantes militares de área, seus subordinados.

André Borges, O Estado de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2021

Investigações atingem 8 dos 14 nomes da cúpula do Congresso

Maior parte dos integrantes das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado responde ou é investigada por crimes como estupro, recebimento de propina, contratação de funcionários fantasmas e fraude em licitação; eles negam irregularidade

A articulação do Palácio do Planalto com o Centrão para controlar o Congresso levou à cúpula da Câmara e do Senado parlamentares com extensa folha de pendências com a Justiça. Dos 14 integrantes das Mesas Diretoras de ambas as casas (presidente, vices e secretários), oito respondem ou são investigados por crimes diversos que vão de estupro e recebimento de propina até contratação de funcionários fantasmas e fraude em licitação.

Observado por Pacheco, Bolsonaro cumprimenta Lira durante a cerimônia de abertura do ano legislativo. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Todos foram alçados às funções pelos colegas parlamentares e com uma ajuda extra do presidente Jair Bolsonaro. Como o Estadão revelou, o governo liberou ao menos R$ 3 bilhões em recursos extras para captar parte dos votos que elegeram Arthur Lira (Progressistas-AL) presidente da Câmara e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para o comando do Senado e a consolidar uma maioria governista em postos-chave do Congresso.

As demandas judiciais, no entanto, passaram ao largo das discussões para a formação das respectivas Mesas. O único que sofreu algum desgaste por figurar no banco dos réus foi Lira, alvo da Lava Jato e de outros inquéritos. Mas, apesar do discurso anticorrupção repetido a exaustão na campanha eleitoral de 2018, o histórico do líder do Centrão não impediu Bolsonaro de abraçá-lo

Lira é réu no chamado caso do “quadrilhão do PP”, formado por parlamentares que se articularam para desviar dinheiro da Petrobrás, segundo a Procuradoria-Geral da República. Também é acusado de corrupção por indícios de ter recebido R$ 106 mil em propina para emprestar apoio político ao então presidente da Companhia Brasileira de Transportes Urbanos. Um assessor de Lira, de acordo com a denúncia, foi escalado para levar o dinheiro de São Paulo a Brasília. Acabou descoberto ao camuflar cédulas pelo corpo.

Nos escaninhos do Judiciário de Alagoas, o nome de Lira também se repete. Além de órgãos de fiscalização, há litígios com pessoas comuns. Um deles se arrasta desde 2018. Fazendeiro, o deputado arrendou uma propriedade para criar 400 cabeças de gado. Pouco depois, disse que a terra só estava em condições de receber 50 e deixou de pagar o valor contratado. O proprietário faleceu e a família segue sem receber. “Ele se recuperava de um câncer e nem isso amoleceu o coração do deputado. Recuperamos a terra e continua o processo de cobrança dos débitos”, contou o advogado Igor Manoel de Barros Bezerra, que representa a família.

Deputada Marilia Arraes (PT-PE)

A 2.ª Secretaria da Câmara é da deputada Marília Arraes (PT-PE). Aliada de Lira, ela impôs uma derrota ao próprio partido ao vencer a disputa interna e ficar com o cargo. O Ministério Público de Pernambuco ajuizou ação que pede a devolução de R$ 156 mil gastos, segundo o órgão, para pagar quatro assessores que não davam expediente na Câmara do Recife. O caso é de quando ela era vereadora na capital pernambucana.

Em novembro de 2020, a carreira política do senador Irajá Silvestre Filho (PSD-TO) sofreu um abalo. Uma modelo de 22 anos acusou o parlamentar, de 38, de a ter estuprado em um hotel, em São Paulo. O caso teve grande repercussão. Menos de três meses depois, antes de qualquer desfecho na investigação aberta pela polícia paulista, ele foi eleito pelos pares 1.º secretário do Senado, função com elevado poder político e administrativo.

O senador Irajá Silvestre Filho (PSD-TO). Foto: Agência Senado

No Senado, dos sete integrantes da Mesa, seis são alvo de ao menos uma investigação. O 2.º vice-presidente, Romário Faria (Podemos-RJ), é investigado em inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) que apura indícios do uso irregular da verba de gabinete.

Gestores 

Para além de Irajá e Romário, os outros quatro carregam ações resultantes de atos praticados ainda como gestores, quando eram do Poder Executivo em seus respectivos Estados. São casos que se arrastam há anos na Justiça e passam pelo chamado “elevador processual”, um vaivém de instâncias e esferas competentes para cuidar dos processos. Aliados minimizam as pendências jurídicas e confidenciam o espírito de corpo do Congresso, porque parlamentares que foram ou pretendem ser gestores estão passíveis de serem processados pelo que chamam de “burocracias” da gestão pública.

É o caso de Rogério Carvalho (PT-SE), condenado em primeira instância, em 2019, por irregularidades em contratos assinados quando foi secretário de Saúde de Sergipe. Já 4.º secretário, Weverton Rocha (PDT-MA), comandou a pasta de Esportes do Maranhão e ainda responde a ação por indícios de fraudes em um contrato de 2008.

O 1.º vice-presidente do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), e o 2.º Secretário, Elmano Ferrer (Progressistas-PI), têm pendências relacionadas aos períodos em que foram prefeitos de suas cidades, Campina Grande (PB) e Teresina (PI), respectivamente. Os casos envolvem suspeita de contratação de empresa fantasma a repasses eleitorais não declarados – caixa 2 de campanha.

Na Mesa Diretora do Senado, a exceção é Pacheco. Aos 44 anos, tem uma ascensão meteórica. Antes do atual mandato de senador, teve apenas um outro, de deputado federal. É proveniente da advocacia. Costumava frequentar tribunais não como réu, mas como advogado deles. Atuou em crimes variados, de homicídio a corrupção. No escândalo do mensalão, defendeu o ex-diretor do Banco Rural Vinicius Samarane.

Parlamentares dizem que casos são inconsistentes

Os integrantes das Mesas da Câmara e do Senado alegam que os processos e investigações das quais são alvos têm inconsistências ou são motivados por adversários para gerar desgastes políticos.

Por meio da assessoria, Arthur Lira disse que ao longo de uma década vem apresentando esclarecimentos à Justiça. “Ao longo desses anos, os processos que vieram a julgamento foram arquivados, em geral, porque não existiam provas. Tenho a tranquilidade de que os próximos que vierem a julgamento terão o mesmo desfecho.”

Marília Arraes afirmou que a ação a que responde é fruto de sensacionalismo político. Uma ação penal chegou a ser arquivada, mas um processo na área cível foi aberto em 2020. “Novamente no período eleitoral”, disse.

O senador Veneziano Vital do Rêgo chegou a ter quase 30 investigações no Supremo Tribunal Federal. Ele disse que a maioria é fruto de denúncias infundadas de seus adversários políticos e a maior parte delas já foi arquivada.

O advogado do senador Irajá, Daniel Bialski, disse não haver qualquer indício de crime e que, após a conclusão de perícia no celular da mulher que acusou o parlamentar de estupro, o caso deverá ser arquivado.

A assessoria do senador Weverton Rocha informou que o parlamentar “provará que não houve ilícito”, mas uma “denúncia política”. Rogério Carvalho afirmou que não cometeu qualquer ato ilegal quando secretário em Sergipe. Elmano Férrer e Veneziano Vital do Rêgo também negam irregularidades. Romário, por sua vez, não se manifestou.

 Vinícius Valfré, O Estado de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2021 


Risco à democracia: 'QAnon brasileiro’ segue firme nas redes e se mostra alinhado a movimento de teorias conspiratórias dos EUA

Com temas e métodos que copiam original norte-americano, rede bolsonarista de fake news sabota vacinação e medidas de combate à pandemia, desacredita urnas eletrônicas, defende presidente, ataca seus adversários e luta contra conspiração imaginária da elite global comunista pela pedofilia

Manifestação de seguidores de Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo, em setembro do ano passado. Foto de Sebastião Moreira / EFE 

As eleições presidenciais que derrotaram o republicano Donald Trump e elegeram o democrata Joe Biden nos Estados Unidos foram fraudadas, e no Brasil vai acontecer a mesma coisa em 2022 — já aconteceu em 2020 e em 2018. As vacinas contra a covid-19 devem ser vistas com reservas quando não repulsa, o distanciamento social e as máscaras como forma de prevenção em meio à pandemia são uma farsa de prefeitos e governadores autoritários que querem quebrar a economia do país, e o melhor a fazer é adotar o “tratamento precoce” com cloroquina e outras drogas sem eficácia assim que contrair a doença, algo inevitável. O presidente Jair Bolsonaro e seu séquito de ministros mais ideológicos devem ser apoiados incondicionalmente, pois enfrentam forças literalmente demoníacas de uma elite nacional e global infiltrada no STF, no Congresso, na mídia e em todos os cantos, que busca implantar o autoritarismo comunista e promover a pedofilia e o aborto entre os povos sob coordenação da China. Adversários novos, antigos e imaginários são atacados o tempo todo com memes, notícias falsas e calúnias de toda a espécie. Notícias ruins são distorcidas até ficarem favoráveis, e qualquer dissenso é punido com trolagem e exclusão.

É principalmente em torno dessas temáticas, métodos e variações que vive atualmente o núcleo duro da rede bolsonarista de fake news nas redes sociais e aplicativos de mensagem, acompanhada pelo EL PAÍS e especialistas no início deste ano. Trata-se de uma espécie de ‘QAnon tupiniquim’ que começou a ser exposto pela imprensa nas eleições de 2018 e hoje é investigado pela Polícia Federal em dois inquéritos abertos no Supremo Tribunal Federal, na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News do Congresso e em mais de um processo no Tribunal Superior Eleitoral. Enquadrados e em alguns casos até presos, expoentes desse movimento de desinformação com fins de manipulação política a favor do presidente e suas ideias que imita temáticas e métodos do original norte-americano baixaram o tom, mas a milícia digital segue forte e ativa.

Após a invasão do Capitólio nos Estados Unidos no dia 6 de janeiro, e declarações do presidente brasileiro de que aqui seria ainda pior se o país não adotasse o voto impresso para as próximas eleições, especulou-se na imprensa e redes sociais de forma geral se apoiadores do presidente poderiam fazer algo parecido aqui caso ele perdesse a reeleição em 2022. Desde as eleições municipais do ano passado e a exemplo do que foi feito nos EUA, no entanto, a rede bolsonarista de fake news na internet dedica-se a desacreditar as urnas eletrônicas e preparar terreno para um eventual questionamento desfavorável no pleito.

De acordo com estudo da DAPP da FGV, bolsonaristas alvo das investigações no STF por espalhar fake news e promover a organização de atos antidemocráticos no ano passado, assim como deputados federais bolsonaristas, foram os principais responsáveis por espalhar informações falsas sobre fraude eleitoral no primeiro turno de 2020. Oswaldo Eustáquio, blogueiro preso duas vezes por ordem do STF, lidera a lista. Ele cumpre prisão domiciliar e está proibido de usar redes sociais. As postagens sobre o Brasil misturam-se às sobre a fraude apregoada por Trump nos EUA, dando suposta coesão à narrativa e criando uma ligação direta entre o grupo brasileiro e o norte-americano.

Os deputados federais do PSL Carla Zambelli, Bia Kicis, Filipe Barros e Daniel Silveira, além do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, apareceram no levantamento da FGV. Os blogueiros e influenciadores bolsonaristas Leandro Ruschel, Allan dos Santos e Bernardo Küster também. Alguns deles são alvo dos dois inquéritos no STF, de fake news e dos atos antidemocráticos, ambos sob controle do ministro Alexandre de Moraes. As postagens sobre fraudes nas urnas provocaram nova abertura de investigação, desta vez para descobrir quem está por trás da criação e divulgação das notícias contra a Justiça Eleitoral. No TSE, pelo menos duas ações tratam da atuação das milícias digitais nas eleições de 2018. De acordo com o monitoramento da FGV, cerca de 700.000 postagens sobre fraude do sistema eleitoral foram feitas entre o primeiro turno na eleição e o final de novembro. A hashtag mais disseminada foi #votoimpressoja, com mais de 38.000 publicações.

“O mapa de interações feito a partir do sistema de recomendações do YouTube mostra predomínio da repercussão da alegação de fraude nas eleições dos Estados Unidos entre os canais brasileiros”, afirma o estudo. “Junto a canais alternativos e hiper-partidários, conteúdos da grande imprensa são peças-chave para atrair audiências aderentes aos discursos antissistema. A organização e a coordenação em torno do tema produziram engajamento expressivo quando direcionado à crítica ao sistema eleitoral; do ponto de sua defesa não houve mobilização relevante”. O STF já solicitou à FGV o estudo sobre as eleições passadas e segue com os dois inquéritos abertos, sob segredo de Justiça.

Agravamento de pandemia atrapalha discurso negacionista

Familiares de doentes com covid-19 fazem fila em busca de oxigênio em Manaus: colapso no atendimento deixou hospitais sem insumo.BRUNO KELLY / REUTERS

Sob fogo cerrado nas redes sociais pelo fracasso no combate à pandemia — simbolizado pelo atraso na aquisição e distribuição de vacinas e insumos contra o novo coronavírus e o colapso da falta de oxigênio em Manaus que alastrou-se para outras cidades da região — e falta de boas novas na economia, o campo bolsonarista tenta contra-atacar de forma aparentemente coordenada na guerra virtual. No mês passado, quando ficou claro o fracasso da operação montada pelo Ministério da Saúde para buscar 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford na Índia, que negou o envio do lote, e a convocação de um panelaço contra o presidente ganhar força nas redes sociais, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) contra-atacou com a postagem de um vídeo de uma pessoa não identificada batendo com um pênis de borracha em uma panela. Em poucas horas, o termo “Angélica” subiu para os assuntos mais comentados do Twitter e lá ficou até o final da noite.

Ao ver as postagens, muitas com os mesmos textos e imagens diversas de pênis artificiais, era possível notar padrões de um ataque coordenado a apresentadora e seu marido, o também apresentador de TV e presidenciável Luciano Huck, que compartilhou uma publicação sobre o protesto mais cedo. No final da tarde, após o presidente conceder uma entrevista na “TV Bandeirantes” onde afirmava mentirosamente que não podia atuar de forma direta no combate à pandemia pois o STF havia proibido, em poucos instantes o tema “STF” subiu para o topo dos mais comentados com o argumento apresentado em links de “notícias” de sites governistas, vídeos de canais amigos no Youtube, memes e gráficos explicativos.

No dia seguinte, sábado, quem abriu o Twitter pela manhã encontrou no topo dos assuntos mais comentados um tema aparentemente desconectado do noticiário naqueles dias: “Adélio”. Afinal Adélio Bispo — aquele que tentou assassinar durante a campanha eleitoral de 2018 o então candidato à presidência da República Jair Bolsonaro — está preso desde o dia do atentado, foi diagnosticado com graves problemas mentais e não houve nenhuma novidade neste assunto. Ao investigar as hashtags é possível ver que as postagens, muitas delas feitas por perfis com características de robôs, fazem alusão a uma afirmação do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que publicou na mesma rede social “Impeachment ou morte”, sobre a incapacidade do governo de lidar com a pandemia. Distorcida, a declaração era circulada como uma prova de que Adélio, ex-filiado do PSOL, agiu em uma conspiração para matar Bolsonaro urgida pelo partido de Freixo. Nos grupos de WhatsApp, a dinâmica e sequência dos assuntos e o tom conspiratório é parecido.

Em relação à pandemia, a narrativa não tem funcionado. De acordo com levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas em 1,18 milhão de postagens no Twitter em 24 horas me meados de janeiro, auge da crise em Manaus, apenas 7,5% isentavam Bolsonaro do caos e propalavam a versão de que ele havia feito muito pelo Amazonas, não podia fazer mais por causa do STF e se havia problemas, a culpa era do governador Wilson Lima, como o próprio presidente declarou em suas redes sociais. Segundo levantamento do cientista político Márcio Coimbra, as menções negativas a Bolsonaro nas redes sociais chegou a 73%, na ocasião, um recorde desde que ele assumiu.

O ranking do Índice de Popularidade Digital (IPD), elaborado pela consultoria Quaest, também acusa o golpe recebido pelo bolsonarismo. A métrica avalia o desempenho de personalidades da política nacional nas plataformas Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, Wikipedia e Google. Bolsonaro ainda é o primeiro colocado dentre uma lista de nove nomes que devem influenciar as eleições presidenciais de 2022, mas perdeu quase 20 pontos desde o início do ano e estava com 66,3 no final de janeiro—o IPD é medido em uma escala de 0 a 100, em que o maior valor representa o máximo de popularidade.

Por outro lado, os gráficos no estudo da FGV mostram uma bolha de opinião que apesar de espremida e diminuída pela crise atual, é impermeável a outras versões da realidade.

Na mira do STF

Simpatizantes do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, em manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, durante a pandemia em julho do ano passado. (Foto de Sebastião Mofreira / EFE)

“O inquérito é centralizado no gabinete do ministro Moraes, ele que é o ‘delegado’ do caso, então não temos detalhes”, afirma um dos delegados da PF que trabalha nas investigações sobre as fake news e não pode falar abertamente sobre o assunto, que corre sob sigilo. “Mas a impressão é que o caso está rachado, se quiserem prendem mais um monte de gente, prendem. Acho que estão dando uma segurada, existe um componente político de acomodação das instituições”, avalia. Mas a artilharia está pronta caso haja um revés. “Quando essas investigações foram abertas, o STF estava literalmente sob ataque. O bote está pronto, se precisar aposto que colocam a coisa para andar rapidinho.”

Além de Eustáquio, outros expoentes do ‘QAnon brasileiro’ foram presos ou são formalmente investigados pela PF. Sarah Winter, líder do movimento de extrema-direita 300 do Brasil, grupo que acampou em Brasília no ano passado, atacava o STF e se apresentava como uma milícia política bolsonarista no auge dos protestos golpistas com a participação do presidente, também foi presa e hoje está em casa com tornozeleira eletrônica. Ela foi bloqueada na maioria das redes sociais e perdeu seu canal no Youtube. Allan dos Santos, dono do site bolsonarista Terça Livre, sofreu uma busca e apreensão e foi levado para depor pela PF em Brasília a mando de Moraes. Depois disso mudou-se para os Estados Unidos, onde virou correspondente do próprio site e uma ponte direta entre os integrantes do QAnon norte-americano e seu espelho nacional.

Quando ficou claro que o democrata Joe Biden venceria as eleições nos EUA em meio a contagem de votos Santos que fazia transmissões direto dos EUA para seu site, afirmou que a derrota era um plano de Trump para demonstrar a fraude eleitoral, e que haveria uma reviravolta em breve. No WhatsApp e Telegram, integrantes de grupos de discussão bolsonaristas apoiaram efusivamente a invasão do Capitólio em Washington como início da revolução trumpista, e esperam até agora a reviravolta prometida por Santos, agora adiada para março em alguns posts. Ele já havia sido bloqueado no Twitter, e nesta semana o Youtube extinguiu o canal de Santos da plataforma por violar as políticas de uso e propagar fake news.

O escritor Olavo de Carvalho, referência ideológica do bolsonarismo, também vive nos EUA e ajuda a propagar as teorias conspiratórias.

Vínculo com a “matriz”

Nos Estados Unidos, o termo “QAnon” refere-se a um Universo de teorias conspiratórias baseadas em fake news que agrega grupos e pessoas de extrema-direita, como os que invadiram o Capitólio antes da posse de Joe Biden. Surgiu em 2017, quando um perfil chamado “Q” em um fórum de discussão na Deep Web disse que tinha acesso a segredos do governo, que foram revelados em mensagens posteriores.

Em resumo, o ex-presidente Donald Trump estaria lutando uma guerra secreta contra uma conspiração de gente poderosa infiltrada na mídia, política e outras posições de poder para manter e explorar uma rede de pedofilia internacional. Muita gente acreditou e com o tempo, o termo passou a servir para designar outras teorias políticas conspiratórias e grupos radicais de extrema-direita. Até hoje, não sabe-se nos EUA quem seria o “Q” original, mas ele é considerado um herói pelo núcleo duro dos apoiadores do ex-presidente Trump.

O vínculo com o movimento QAnon norte-americano, apesar de não ser oficial, vai além da temática de fraude eleitoral e do uso de fake news para promover a pauta da extrema-direita. De acordo com relatório da CPMI das Fake News, as redes bolsonaristas passaram a dar ênfase ainda maior ao combate à pedofilia em meados do ano passado — nos EUA, um cidadão está preso após acreditar numa fake news e invadir uma pizzaria armado para resgatar supostas criancinhas vítimas da rede de pedofilia. Os grupos passaram a dar destaque, compartilhar e desenvolver mensagens voltadas ao combate à pedofilia ao mesmo tempo em que atacam, com falsas alegações, personalidades como o youtuber Felipe Neto e a apresentadora de TV Xuxa.

Apoiadores do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, durante a invasão do Capitólio em Washington: adeptos de teorias conspiratórias QAnon.(Foto de Saul Loeb / AFP)

A estratégia seria, de acordo com profissionais que fizeram o monitoramento, desviar o foco em conversas de redes sociais sobre as graves crises nos campos econômico e sanitário no Brasil. Os autores do relatório apontam ainda uma técnica de apresentar “problema e solução”, quando o problema seria a pedofilia, e a solução, a ministra Damares Alves. Ao mesmo tempo em que atacam personalidades, os grupos “alavancam nomes do próprio governo como grandes combatentes contra o tema: além do próprio Jair Bolsonaro, a figura mais associada ao assunto é a ministra Damares Alves”, diz o relatório.

Segundo a narrativa bolsonarista Damares seria responsável por trazer ao Brasil a Operação Storm, uma fictícia força-tarefa internacional secreta sob o comando de Trump para combater a rede internacional de pedofilia, “revelada” por Q nos EUA e peça central no Universo QAnon norte-americano. Após as eleições norte-americanas no geral e a invasão do Capitólio em particular, proliferaram grupos em aplicativos de mensagem e redes sociais criando associações diretas entre o bolsonarismo e o trumpismo mais radical ligado a teorias QAnon.

Gabinete do ódio

De acordo com depoimentos de ex-aliados do presidente como os deputados federais Joyce Hasselmann (PSL) e Alexandre Frota (PSDB), documentos e relatórios da CPMI das Fake News, existe um gabinete do ódio que coordena as ações online. Formada por profissionais da mentira e calúnia lotados em gabinetes oficiais, canais nas redes sociais e sites de fake news, parlamentares de diversos níveis, milhares de voluntários e um sem número de robôs, a rede bolsonarista de fake news na internet está ativa desde pelo menos a eleição presidencial de 2018 e hoje contaria com integrantes que dão expediente no Palácio do Planalto.

De acordo com os ex-aliados, o coordenador do esquema de ação da milícia digital é o vereador Carlos Bolsonaro, com a ajuda de dois assessores especiais lotados na Presidência da República. Eles seriam os responsáveis por pautar a discussão das redes bolsonaristas. Parlamentares aliados e seus assessores teriam a missão de propagar as postagens e assuntos. O esquema inteiro seria impulsionado com a ajuda de robôs e contaria com financiamento de empresários aliados do presidente. A partir daí, a viralização dos conteúdos seira feita de forma orgânica pelos apoiadores bolsonaristas. O esquema funcionou nas eleições de 2018 e foi mantido após a vitória no pleito

AIURI REBELLO, de São Paulo para o EL PAÍS,13 FEV 2021 - 17:58

Decretos para aumento de venda de armas elevam insegurança com Bolsonaro e tema pode chegar ao STF

Presidente assinou medidas na sexta, 12, para facilitar comércio de armas e afrouxar fiscalização. Entidades e lideranças políticas reagem para o que já é considerado um risco democrático, especialmente depois da invasão do Capitólio, que não foi condenada pelo mandatário brasileiro

Uma apaixonada por armas em clube de tiros a 100 km de São Paulo

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a sexta-feira, véspera de um quase Carnaval no Brasil, para assinar quatro decretos que facilitam ainda mais a venda de armas e reduzem a fiscalização pelos órgãos competentes. É o trigésimo ato normativo publicado nos últimos dois anos por Bolsonaro, dentro de uma política que ajudou a aumentar as armas em circulação no Brasil. O anúncio, feito pelo twitter do mandatário, gerou reações imediatas entre entidades ligadas a direitos humanos e lideranças políticas. “O populismo armamentista de Bolsonaro, além de agravar o problema [de violência], é uma cortina de fumaça para suas aspirações golpistas”, escreveu Marcelo Freixo, deputado do PSOL no Rio. Freixo anunciou um projeto para anular os últimos decretos de Bolsonaro e protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal. “O presidente não pode legislar sobre armas via decreto”, reclamou o deputado.

Um levantamento do jornal O Globo mostra que só a posse de armas nas mãos de civis deu um salto de 65% no país desde dezembro de 2018, pouco antes de Bolsonaro assumir o poder no dia 1 de janeiro. No final de janeiro eram mais de 1,1 milhão de armas nas mãos de cidadãos, número que deve subir facilmente caso os decretos do presidente não forem derrubados na Justiça, como esperam os especialistas em segurança pública. Dentre as normas previstas pelo Governo, estão o aumento de limite de compra de armas para cidadão, que passam de 4 para 6 armas. O número pode chegar a 8 para membros da magistratura, do Ministério Público e os integrantes de polícia e agentes e guardas prisionais.

Outras medidas preveem a redução de controle e rastreamento de armas e munições, um risco que coloca os armamentos mais próximos do crime organizado. Há facilidade para que atiradores e caçadores, por exemplo, comprem entre 30 e 60 armas, sem necessidade de autorização expressa do Exército. Projeteis e máquinas para recarga de munições e carregadores também deixam de ser controlados pelo Exército. Facilitação de acesso armas mais restritas, que interessam às milícias. “O aumento da venda de armas de maior potencial circulando inevitavelmente acaba inevitavelmente abastecendo o crime”, diz Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. “Uma arma de um acervo de um atirador ou caçador pode ser roubada ou desviada e abastecer o mercado ilegal”, alerta ela, lembrando que a inexistência de rastreamento dificulta a investigação de crimes. No ano passado, uma portaria do Exército revogou regras sobre rastreamento de armas e munições, dispositivos de segurança e marcação de armas de fogo e munição no Brasil.

A política ostensiva de liberação de armas do Governo Bolsonaro tem gerado insegurança na sociedade, especialmente depois da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro. O presidente ultradireitista não condenou até hoje a invasão dos eleitores de Trump que não aceitaram o resultado da eleição. Bolsonaro também não perde uma oportunidade para reforçar o discurso de desconfiança sobre as urnas eletrônicas – sem evidências para tal — e de dizer que quer ver a população armada, antecipando uma crise que ele pode abrir no ano que vem, caso não seja reeleito nas presidenciais.

Em nota, o Instituto Igarapé, think tank que estuda a segurança pública, afirmou que o pacote de decretos “não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”. Segundo Michele dos Ramos, assessora especial Igarapé, “há muitas perguntas a serem respondidas pelas autoridades federais sobre as motivações políticas do descontrole de armas no país, uma vez que não há qualquer justificativa ou conhecimento técnico que embase as perigosas mudanças”.

Após divulgar a nota técnica, Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, foi bloqueada pelo presidente no Twitter. “Impressionante ver como a máquina do ódio é eficiente e está aparelhada para bloquear qualquer contestação à narrativa oficial. Isso só acontece em ditaduras. Já vivemos tempos de exceção”, disse.

O vice-presidente da Câmara dos Deputados Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, criticou as novas medidas. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara”, escreveu no Twitter.

Bolsonaro ignorou as críticas e ironizou que “o povo está vibrando” com as novas medidas. Ele publicou um vídeo em que comenta os decretos com um pequeno grupo de pessoas no sul do país. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, reagiu “Bolsonaro considera a parte pelo todo. Acha que seu mundo extremo representa o país. O povo não está vibrando. O povo não quer armas. A população anseia pelas vacinas”.

A crise de saúde pública da pandemia do coronavírus parece ter criado um cenário propício para o desmonte da política pública de combate às armas, uma promessa eleitoral que Bolsonaro tem se empenhado em cumprir com sua política de decretos pró-armamentista, que já conseguiu desconfigurar o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.

O Governo chegou até mesmo a zerar a alíquota de importação de armas com argumento de que isso iria estimular o comércio. O caso foi parar no Supremo, após um pedido do PSB, e o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão. Ele considerou que, embora o presidente da República tenha prerrogativa para conceder isenção tributária, a opção de fomento à aquisição de armas por meio de incentivos fiscais colide com o direito à vida e à segurança, que são garantidos constitucionalmente.

A política armamentista de Bolsonaro vai na contramão da política pública que será adotada nos Estados Unidos no Governo de Joe Biden. O presidente norte-americano pediu neste domingo (14) que o Congresso aja “imediatamente” para limitar a circulação de armas de fogo em um comunicado que marca os três anos do ataque a escola de ensino médio em Parkland, Flórida, onde 14 estudantes e três professores morreram. “Este Governo não vai esperar pelo próximo tiroteio em massa para ouvir os apelos à ação”, afirmou Biden no comunicado.

CARLA JIMENEZ E REGIANE OLIVEIRA para o EL PAÍS, em 15 FEV 2021

Brasil registra mais 528 mortes por covid-19

Com maior média móvel de óbitos desde o início da pandemia, país se aproxima de 240 mil vidas perdidas. Mais 23 mil novos casos são registrados, e total vai a 9,85 milhões.

    
Profissionais de saúde visitam comunidades de ribeirinhos no Amazonas para aplicar vacina contra a covid-19

O Brasil registrou oficialmente 23.856 casos confirmados de covid-19 e 528 mortes ligadas à doença nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta segunda-feira (15/02) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país desde o início da epidemia subiu para 9.858.369 casos, enquanto os óbitos somam 239.773.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que as cifras reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números divulgados na segunda-feira também costumam ser mais baixos, já que equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida no fim de semana.

Além disso, as cifras desta segunda-feira não incluem os dados diários do Rio Grande do Norte, devido a problemas técnicos no acesso à base de dados, informou o Conass.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 8.745.424 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de domingo.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes é agora de 114,1 no Brasil.

Segundo contagem mantida por um consórcio de veículos da imprensa brasileira, o país registrou a sua maior média móvel de mortes desde o início da pandemia. No domingo, o índice era de 1.105 óbitos – 4% maior que o registrado há duas semanas.

A média móvel de mortes (ou de casos) em sete dias é uma média entre o número de óbitos registrados naquele dia e nos seis dias anteriores, e costuma ser comparada com a média de 14 dias antes para indicar se há tendência de alta, queda ou estabilidade no número de vítimas.

Também segundo o consórcio de veículos brasileiros, formado por O Globo, Extra, G1, Folha de S. Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, até a noite de domingo 5.072.729 pessoas haviam recebido a primeira dose da vacina contra a covid-19, o que equivale a 2,40% da população do país.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 27,6 milhões de casos, e da Índia, com 10,9 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, atrás dos EUA, que já contabilizam mais de 486 mil óbitos.

Ao todo, mais de 109 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no planeta, e 2,4 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 15.02.2021

STF tem 377 julgamentos parados por pedidos de vista

Regimento interno da corte prevê prazo de duas sessões, mas devolução ao plenário pode demorar anos

Ministro Luiz Fux, do STF, preside sessão plenária por videoconferência Foto: Nelson Jr./SCO/STF/10-02-2021

Em meio à iniciativa do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, de pregar contra as decisões monocráticas de ministros, o julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro na condenação do ex-presidente Lula expôs outro mecanismo que concentra poder nas mãos de um magistrado: os pedidos de vista. Neste momento, o expediente paralisa 377 processos na Corte, em desrespeito, na maioria das vezes, ao regimento interno do colegiado, que prevê a obrigatoriedade de retorno do caso ao plenário duas sessões depois para que a tramitação seja retomada.

O mais comum é que os ministros levem meses e até anos para devolver os casos para julgamento. No caso da suspeição de Moro, o ministro Gilmar Mendes pediu vista do julgamento em dezembro de 2018, na Segunda Turma. Até agora, Cármen Lúcia e Edson Fachin votaram a favor de Moro. Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski ainda não votaram, mas deram a entender nos debates que consideram exacerbada a atuação do ex-juiz na condução da Lava-Jato.

OS ALIADOS DO PRESIDENTE: INVESTIGADOS E RÉUS GANHAM ESPAÇO E INFLUÊNCIA NO GOVERNO BOLSONARO

Arthur Lira (PP-AL) - O novo presidente da Câmara dos deputados, eleito com apoio do Planalto, é réu no STF em duas ações: o quadrilhão do PP e uma acusão de recebimento de propina da CBTU. Em sua função à frente da Câmara define o que vai a voto no Congresso e articula nomeações no governo Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

Ciro Nogueira (PP-PI) - O senador, que teve voz na escolha do primeiro ministro do STF indicado por Bolsonaro, Kassio Nunes Marques, é réu no Supremo em ação do quadrilhão do PP e foi alvo de denúncia (ainda não recebida pela Justiça) de corrupção passiva e lavagem de dinheiro Foto: Agência Senado

O senador Fernando Collor de Mello (PROS-AL), que tem acompanhado Bolsonaro em eventos e viagens, é reú na Lava-Jato sob acusação de receber propina desviada da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras. Caso está pronto para ser julgado. PGR pediu condenação do senador a 22 anos de prisão Foto: Jorge William / Agência O Globo

Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) foi alvo da PF em 2019 sob suspeita de recebimento de propina quando era ministro de Dilma — caso está sob investigação. Também foi acusado de receber propina desviada de obras da Petrobras, mas denúncia foi rejeitada pelo STF Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP-PR) foi alvo de operação do Gaeco do Paraná sob suspeita de ter recebido propina da Galvão Engenharia, que fechou acordo de delação premiada na Lava-Jato. Foi cotado para Ministro da Saúde Foto: Jorge William / Agência O Globo

Valdemar Costa Neto (PL-DF) - Maior cacique do PL e quem convidou Bolsonaro para se filiar à legenda, foi condenado pelo STF a sete anos de prisão no mensalão. Também foi alvo de investigação sobre propina na Ferrovia Norte-Sul.

Em outubro do ano passado, o ministro Celso de Mello, que também votaria, se aposentou e foi substituído por Nunes Marques. Com a nova configuração do colegiado, Mendes cogita retomar o julgamento ainda neste semestre, na esperança de seu ponto de vista sair vitorioso. Isso porque o voto de Celso de Mello era uma incógnita e, no STF, ministros acreditam que Nunes Marques votará contra Moro, por ser visto como garantista.

O constitucionalista Mamede Said, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), avalia que a demora em devolver os casos para julgamento contribui para a morosidade da Justiça, que já está congestionada com muitos processos:

— O pedido de vista é um direito do magistrado em qualquer tribunal, em geral, para firmar uma ideia mais precisa sobre matéria. Mas muitas vezes (em que) ele é utilizado, acaba surtindo efeito de procrastinar, retardar o julgamento do feito.

Temas polêmicos

Atualmente, entre os pedidos de vista no STF, 207 são do plenário. Nesses casos, os 11 ministros participam do julgamento. Outros 90 são da Primeira Turma, formada por cinco ministros; e 80, da Segunda Turma, constituída por outros cinco magistrados. Dos 377 pedidos de vista no STF, 152 já foram devolvidos e, em tese, a votação pode ser retomada a qualquer momento, dependendo apenas de o presidente da Corte, Luiz Fux, incluir os processos na pauta.

Entre os processos que aguardam reposição na agenda está o que versa sobre a criminalização do porte de drogas para consumo próprio. Em setembro de 2015, o ministro Teori Zavascki pediu vista no julgamento. Com a morte dele, em janeiro de 2017, o seu substituto, o ministro Alexandre de Moraes, herdou o processo e em novembro de 2018, devolveu o caso para ser analisado em plenário. O então presidente do STF, Dias Toffoli, chegou a marcar o julgamento por duas vezes no ano seguinte, mas o retirou de pauta. Até agora, três ministros votaram: o relator Gilmar Mendes, que defendeu a descriminalização do porte para uso de todo tipo de droga; e Fachin e Luís Roberto Barroso, que votaram pela descriminalização, mas só para o porte de maconha.

(Leia: Armamento em poder de civis aumenta 65% em dois anos e ultrapassa 1 milhão)

Num outro caso, em maio de 2012, o ministro Luiz Fux pediu vista no julgamento de uma ação da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra uma lei do Estado do Rio de Janeiro que trata da organização do Tribunal de Justiça local e prevê, entre outros itens, algumas gratificações, como o auxílio pré-escolar. Em dezembro de 2017, Fux devolveu o caso para julgamento. Um ano depois, Toffoli, então presidente a Corte, marcou o julgamento para março de 2019, mas, logo depois, o retirou da pauta.

Na Suprema Corte dos Estados Unidos, os ministros podem rejeitar o julgamento de uma causa em razão de a questão envolver valores que não estão maduros socialmente para serem julgados. A Constituição brasileira não permite isso. A válvula de escape para esse filtro, muitas vezes, acaba sendo o pedido de vista.

O pedido de vista mais antigo aguardando julgamento no plenário é do ministro Carlos Ayres Britto, que se aposentou em 2012. A interrupção do julgamento foi em agosto de 2006. Ele devolveu o caso para a pauta em fevereiro de 2012, mas a ação jamais voltou a julgamento. O processo trata do quorum necessário para o Legislativo deliberar sobre acusação contra governador por crime de responsabilidade.

Também no plenário, Gilmar Mendes pediu vista de um processo em agosto de 2011 e ainda não o devolveu. É o caso mais antigo do plenário sem devolução do ministro. O caso trata de execução extrajudicial no Sistema Financeiro de Habitação.

Na Primeira Turma, o caso mais antigo de pedido de vista é de um processo de uma empresa de energia elétrica do Espírito Santo que questiona o cálculo de alguns impostos federais. Fux interrompeu o julgamento em outubro de 2016. O ministro não integra mais o colegiado desde setembro do ano passado, quando assumiu a presidência do STF. Na Segunda Turma, o recorde é de um processo com pedido de vista também de Ayres Britto em agosto de 2010 e jamais devolvido para julgamento. É um processo em que uma empresa aérea tentou anular uma multa aplicada pela Justiça.

A assessoria de comunicação do STF divulgou nota defendendo o direito dos ministros de pedirem vista e ponderando sobre as dificuldades de elaborar a pauta de julgamentos. “É prerrogativa dos ministros pedirem vista para estudarem melhor os processos em andamento na Corte. Em relação à pauta do plenário, que é elaborada pelo presidente da Corte, a definição dos julgamentos é feita em interlocução com os relatores dos casos, respeitando sempre que possível a prioridade por eles solicitada, e levando em conta casos que demandam solução em prol da segurança jurídica do país”, diz o texto.

Outros tribunais

O pedido de vista não é um mecanismo apenas do STF; ele existe também nos outros tribunais brasileiros. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, pedidos de vista vêm retardando a análise, pela Quinta Turma da Corte, de habeas corpus do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no caso da “rachadinha” na Alerj. Em novembro do ano passado, o relator, ministro Felix Fischer, votou para negar os pedidos da defesa, mas o ministro João Otávio de Noronha pediu vista.

O regimento interno do STJ prevê que a vista deve ser devolvida em até 60 dias, prazo que fica suspenso durante o recesso e as férias. Noronha fez isso dentro o prazo e, na última terça-feira, votou a favor de parte dos pedidos da defesa. Mas o julgamento não foi concluído porque o próprio relator pediu nova vista.

Carolina Brígido e André de Souza, O Globo, em 15/02/2021 

A qualidade dos serviços públicos

Maioria dos cidadãos não está satisfeita, segundo pesquisa do Instituto Idea Big Data

Há não muito tempo, era comum ver na entrada das chamadas repartições públicas uma placa onde se lia que “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela” é crime que pode levar à pena de detenção de seis meses a dois anos ou multa, de acordo com o art. 331 do Código Penal. Não é improvável que a advertência ainda possa estar nas paredes de algumas dessas agências de atendimento ao público.

Uma advertência nesses termos logo na entrada de um local onde se prestam serviços públicos dá uma boa ideia da qualidade do atendimento que o cidadão está prestes a receber, que pode ser tão ruim a ponto de exasperá-lo.

Evidentemente, casos extremos de má prestação de serviços públicos que levam o contribuinte a cometer o crime de desacato são raros, mas a percepção geral da população é que à alta carga tributária não há uma contrapartida do Estado em bons serviços.

Pesquisa realizada pelo Instituto Idea Big Data, a pedido do movimento Livres, apurou que a maioria da população apoia uma política de avaliação de desempenho dos servidores públicos, além de mudanças nas regras de estabilidade no cargo, inclusive para os que estão em serviço.

Nada menos do que 70% dos entrevistados pelo Idea Big Data disseram ser favoráveis à avaliação de desempenho dos servidores como meio indicado para proporcionar progressões na carreira. Hoje, são comuns casos de aumento de salário e promoções por tempo de serviço, de forma automática. Sem dúvida, isso é um grande fator de acomodação dos servidores, que não têm qualquer estímulo para melhorar suas qualificações e desempenhos, como ocorre corriqueiramente na iniciativa privada.

Em setembro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso um simulacro de reforma administrativa que mal tangencia a questão da avaliação de desempenho e a estabilidade dos atuais servidores da ativa. Se tudo der certo, o plano do governo federal poderá surtir efeitos daqui a 30 anos. Não atende à premente necessidade do País.

As pressões que as corporações de servidores públicos exercem sobre os Três Poderes são tão fortes que até hoje nenhuma reforma administrativa que representasse real avanço para o Brasil conseguiu ser aprovada. Houve ganhos pontuais aqui e ali ao longo do tempo, mas nada capaz de transformar a mentalidade dos servidores que, a bem da verdade, se servem do Estado.

Para qualquer presidente da República seria difícil, mas não impossível, mexer nesse vespeiro. O histórico de Bolsonaro indica que não será ele quem vai conseguir. Não porque seja difícil e ele não está à altura do desafio – e não está mesmo –, mas porque nem sequer passa por sua cabeça adotar medidas duras, porém vitais para o País, que possam lhe causar quaisquer embaraços eleitorais na campanha pela reeleição.

Perderá o País se uma reforma administrativa digna do nome não vingar mais uma vez, seja pela tibieza de Bolsonaro, seja pela baixa resistência dos parlamentares às pressões das corporações de servidores.

Em sua coluna no Estado, a economista Ana Carla Abrão lembrou muito bem que “a qualidade do serviço público é o principal instrumento de geração de oportunidades e de mobilidade social”. Para uma massa de cidadãos que nascem na pobreza, escreveu a colunista, não há alternativa, senão no Estado, para que esses cidadãos reduzam o abismo que os separa dos que podem pagar por serviços de educação e de saúde de qualidade.

Um projeto de reforma administrativa sério tem de ter como norte indesviável o aumento da eficiência dos servidores e da qualidade na prestação de serviços aos cidadãos. Mexer no chamado “RH do Estado” não se presta apenas a gerar economia para o Tesouro. Sem dúvida, com uma administração mais enxuta, o Estado terá dinheiro para investir mais em áreas essenciais do serviço público, como saúde, educação e infraestrutura, alimentando um círculo virtuoso. Mas o principal objetivo da reforma é diminuir a brutal desigualdade que há séculos mantém o Brasil aferrado ao atraso.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2021 

Denis Lerrer Rosenfield: Representação truncada

A vida dos cidadãos não é levada em conta. A sociedade clama por mudanças

 A pandemia invadiu a vida das pessoas de forma nunca vista, introduzindo a doença e o medo da morte no seio de cada família. Diante de tão aterrorizante realidade, a população vê os países mais avançados se vacinando e abrindo caminho para o futuro, enquanto os responsáveis pelo governo federal se comprazem com malabarismos da pior qualidade, num cenário que, não fosse trágico, seria cômico. Os discursos são tão disparatados e anacrônicos que sua mera listagem, além de longa, seria enfadonha.

Em todo caso, da “gripezinha” à luta contra a vacina “chinesa”, passando pelo dito “tratamento precoce”, uma espécie de poção mágica para incautos, o espetáculo oferecido à Nação é de completa irresponsabilidade. Pessoas adoecendo e morrendo, e a única preocupação dos políticos parece ser a eleição presidencial de 2022. E até lá quantos padecerão?

A crise fiscal se avoluma, os gastos não são cortados, os privilegiados de sempre guardam os seus benefícios e os estamentos estatais defendem os “seus” direitos – aliás, só os deles. Enquanto isso, o País definha economicamente, com alto desemprego, milhões na miséria, à beira da sobrevivência, e a expectativa de vida cai.

O atual governo foi eleito com uma agenda liberal, que, dizia-se, seria conduzida com rigor. No primeiro ano de mandato, nada foi feito, salvo uma reforma da Previdência amplamente preparada pelo governo anterior. No segundo ano, a desculpa foi a pandemia, contra a qual nada foi levado a cabo. E neste começo do terceiro volta o palavrório usual com a reforma da economia e do Estado.

Curiosamente, temos uma situação paradoxal, pois a esquerda retoma a luta contra o “neoliberalismo”, contra a responsabilidade fiscal, sem que liberalismo nem contenção de gastos se tenham realizado. O pior serviço do atual governo consiste em ter matado a ideia liberal sem que ela tenha sequer existido praticamente.

Os partidos e os políticos, por sua vez, em vez de vocalizarem os anseios da sociedade, estão mais preocupados com suas brigas intestinas, como se estas fossem o mais importante problema da República. Talvez o sejam em sua conotação negativa, ao expressarem o desmonte da representação política. A sociedade não se reconhece em seus representantes. É como se os parlamentares e os partidos vivessem num mundo à parte, só deles, povoado por emendas, cargos e interesses particulares dos mais diferentes tipos, dotados de vida própria. A vida dos cidadãos não é levada em consideração, enquanto esses seres inanimados guardam toda a sua vitalidade. Raras, infelizmente, são as exceções.

As disputas pela presidência da Câmara dos Deputados e do Senado, com suas intrigas e traições, exibiram uma cena parlamentar e partidária desconectada da realidade. O governo procurou eleger os seus e desestruturar as oposições, os parlamentares negociavam individualmente ou coletivamente os seus votos, enquanto o País seguia à deriva. A sociedade, alarmada, observou um processo longínquo, distante dos seus afazeres cotidianos de sobrevivência e de luta pela vida. Há um crescente estranhamento entre a sociedade e a sua representação, tendo como resultado o enfraquecimento das instituições representativas.

A democracia vive na medida em que suas instituições sejam fortes. No momento em que os parlamentares e os eleitos em geral, no Executivo e no Legislativo, apresentam, sem nenhum pudor, o jogo do “toma lá dá cá”, sem que dele se siga nenhum projeto ou realização coletiva, numa espécie de tributo que o vício poderia pagar à virtude, ocorre a debacle da representação política. A política esgotar-se-ia nessa negociação, à qual se seguiriam outras, num jogo sem fim.

Os partidos perdem o seu valor, o seu significado. A sociedade não se vê naqueles que deveriam ser os seus representantes. A “velha política”, tão abominada nas últimas eleições presidenciais, bandeira do então candidato Bolsonaro, é agora conduzida por “novos” e “velhos” políticos, incluídos militares que se apresentavam como avessos a tais práticas. A contradição é manifesta.

Se o divórcio entre a representação política e a sociedade se acentua, se a política renuncia a valores morais e a noções de bem coletivo, se instituições e estamentos do Estado não tornam viável o bem público, se os interesses mais comezinhos tomam a cena pública, o caminho está aberto para soluções demagógicas e autoritárias. Se os partidos e as instituições nada valem, líderes procurarão estabelecer contato direto com uma sociedade aflita e desamparada.

Cria-se um caldo de cultura propício à emergência de “salvadores” da pátria, daqueles mesmos que tudo fazem para corroer e desestruturar a democracia. O discurso passa a ser sem mediações entre o líder e a sociedade, vendendo qualquer narrativa, contanto que ela pegue, suscitando a adesão, por mais mentirosa que seja. E aí de nada adianta dizer que foi o resultado das urnas, pois eleições sozinhas, sem instituições democráticas, podem ser também a via para o autoritarismo.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo,  é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 15.02.2021.