segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Investigações atingem 8 dos 14 nomes da cúpula do Congresso

Maior parte dos integrantes das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado responde ou é investigada por crimes como estupro, recebimento de propina, contratação de funcionários fantasmas e fraude em licitação; eles negam irregularidade

A articulação do Palácio do Planalto com o Centrão para controlar o Congresso levou à cúpula da Câmara e do Senado parlamentares com extensa folha de pendências com a Justiça. Dos 14 integrantes das Mesas Diretoras de ambas as casas (presidente, vices e secretários), oito respondem ou são investigados por crimes diversos que vão de estupro e recebimento de propina até contratação de funcionários fantasmas e fraude em licitação.

Observado por Pacheco, Bolsonaro cumprimenta Lira durante a cerimônia de abertura do ano legislativo. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Todos foram alçados às funções pelos colegas parlamentares e com uma ajuda extra do presidente Jair Bolsonaro. Como o Estadão revelou, o governo liberou ao menos R$ 3 bilhões em recursos extras para captar parte dos votos que elegeram Arthur Lira (Progressistas-AL) presidente da Câmara e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para o comando do Senado e a consolidar uma maioria governista em postos-chave do Congresso.

As demandas judiciais, no entanto, passaram ao largo das discussões para a formação das respectivas Mesas. O único que sofreu algum desgaste por figurar no banco dos réus foi Lira, alvo da Lava Jato e de outros inquéritos. Mas, apesar do discurso anticorrupção repetido a exaustão na campanha eleitoral de 2018, o histórico do líder do Centrão não impediu Bolsonaro de abraçá-lo

Lira é réu no chamado caso do “quadrilhão do PP”, formado por parlamentares que se articularam para desviar dinheiro da Petrobrás, segundo a Procuradoria-Geral da República. Também é acusado de corrupção por indícios de ter recebido R$ 106 mil em propina para emprestar apoio político ao então presidente da Companhia Brasileira de Transportes Urbanos. Um assessor de Lira, de acordo com a denúncia, foi escalado para levar o dinheiro de São Paulo a Brasília. Acabou descoberto ao camuflar cédulas pelo corpo.

Nos escaninhos do Judiciário de Alagoas, o nome de Lira também se repete. Além de órgãos de fiscalização, há litígios com pessoas comuns. Um deles se arrasta desde 2018. Fazendeiro, o deputado arrendou uma propriedade para criar 400 cabeças de gado. Pouco depois, disse que a terra só estava em condições de receber 50 e deixou de pagar o valor contratado. O proprietário faleceu e a família segue sem receber. “Ele se recuperava de um câncer e nem isso amoleceu o coração do deputado. Recuperamos a terra e continua o processo de cobrança dos débitos”, contou o advogado Igor Manoel de Barros Bezerra, que representa a família.

Deputada Marilia Arraes (PT-PE)

A 2.ª Secretaria da Câmara é da deputada Marília Arraes (PT-PE). Aliada de Lira, ela impôs uma derrota ao próprio partido ao vencer a disputa interna e ficar com o cargo. O Ministério Público de Pernambuco ajuizou ação que pede a devolução de R$ 156 mil gastos, segundo o órgão, para pagar quatro assessores que não davam expediente na Câmara do Recife. O caso é de quando ela era vereadora na capital pernambucana.

Em novembro de 2020, a carreira política do senador Irajá Silvestre Filho (PSD-TO) sofreu um abalo. Uma modelo de 22 anos acusou o parlamentar, de 38, de a ter estuprado em um hotel, em São Paulo. O caso teve grande repercussão. Menos de três meses depois, antes de qualquer desfecho na investigação aberta pela polícia paulista, ele foi eleito pelos pares 1.º secretário do Senado, função com elevado poder político e administrativo.

O senador Irajá Silvestre Filho (PSD-TO). Foto: Agência Senado

No Senado, dos sete integrantes da Mesa, seis são alvo de ao menos uma investigação. O 2.º vice-presidente, Romário Faria (Podemos-RJ), é investigado em inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) que apura indícios do uso irregular da verba de gabinete.

Gestores 

Para além de Irajá e Romário, os outros quatro carregam ações resultantes de atos praticados ainda como gestores, quando eram do Poder Executivo em seus respectivos Estados. São casos que se arrastam há anos na Justiça e passam pelo chamado “elevador processual”, um vaivém de instâncias e esferas competentes para cuidar dos processos. Aliados minimizam as pendências jurídicas e confidenciam o espírito de corpo do Congresso, porque parlamentares que foram ou pretendem ser gestores estão passíveis de serem processados pelo que chamam de “burocracias” da gestão pública.

É o caso de Rogério Carvalho (PT-SE), condenado em primeira instância, em 2019, por irregularidades em contratos assinados quando foi secretário de Saúde de Sergipe. Já 4.º secretário, Weverton Rocha (PDT-MA), comandou a pasta de Esportes do Maranhão e ainda responde a ação por indícios de fraudes em um contrato de 2008.

O 1.º vice-presidente do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), e o 2.º Secretário, Elmano Ferrer (Progressistas-PI), têm pendências relacionadas aos períodos em que foram prefeitos de suas cidades, Campina Grande (PB) e Teresina (PI), respectivamente. Os casos envolvem suspeita de contratação de empresa fantasma a repasses eleitorais não declarados – caixa 2 de campanha.

Na Mesa Diretora do Senado, a exceção é Pacheco. Aos 44 anos, tem uma ascensão meteórica. Antes do atual mandato de senador, teve apenas um outro, de deputado federal. É proveniente da advocacia. Costumava frequentar tribunais não como réu, mas como advogado deles. Atuou em crimes variados, de homicídio a corrupção. No escândalo do mensalão, defendeu o ex-diretor do Banco Rural Vinicius Samarane.

Parlamentares dizem que casos são inconsistentes

Os integrantes das Mesas da Câmara e do Senado alegam que os processos e investigações das quais são alvos têm inconsistências ou são motivados por adversários para gerar desgastes políticos.

Por meio da assessoria, Arthur Lira disse que ao longo de uma década vem apresentando esclarecimentos à Justiça. “Ao longo desses anos, os processos que vieram a julgamento foram arquivados, em geral, porque não existiam provas. Tenho a tranquilidade de que os próximos que vierem a julgamento terão o mesmo desfecho.”

Marília Arraes afirmou que a ação a que responde é fruto de sensacionalismo político. Uma ação penal chegou a ser arquivada, mas um processo na área cível foi aberto em 2020. “Novamente no período eleitoral”, disse.

O senador Veneziano Vital do Rêgo chegou a ter quase 30 investigações no Supremo Tribunal Federal. Ele disse que a maioria é fruto de denúncias infundadas de seus adversários políticos e a maior parte delas já foi arquivada.

O advogado do senador Irajá, Daniel Bialski, disse não haver qualquer indício de crime e que, após a conclusão de perícia no celular da mulher que acusou o parlamentar de estupro, o caso deverá ser arquivado.

A assessoria do senador Weverton Rocha informou que o parlamentar “provará que não houve ilícito”, mas uma “denúncia política”. Rogério Carvalho afirmou que não cometeu qualquer ato ilegal quando secretário em Sergipe. Elmano Férrer e Veneziano Vital do Rêgo também negam irregularidades. Romário, por sua vez, não se manifestou.

 Vinícius Valfré, O Estado de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2021 


Risco à democracia: 'QAnon brasileiro’ segue firme nas redes e se mostra alinhado a movimento de teorias conspiratórias dos EUA

Com temas e métodos que copiam original norte-americano, rede bolsonarista de fake news sabota vacinação e medidas de combate à pandemia, desacredita urnas eletrônicas, defende presidente, ataca seus adversários e luta contra conspiração imaginária da elite global comunista pela pedofilia

Manifestação de seguidores de Bolsonaro na Avenida Paulista, em São Paulo, em setembro do ano passado. Foto de Sebastião Moreira / EFE 

As eleições presidenciais que derrotaram o republicano Donald Trump e elegeram o democrata Joe Biden nos Estados Unidos foram fraudadas, e no Brasil vai acontecer a mesma coisa em 2022 — já aconteceu em 2020 e em 2018. As vacinas contra a covid-19 devem ser vistas com reservas quando não repulsa, o distanciamento social e as máscaras como forma de prevenção em meio à pandemia são uma farsa de prefeitos e governadores autoritários que querem quebrar a economia do país, e o melhor a fazer é adotar o “tratamento precoce” com cloroquina e outras drogas sem eficácia assim que contrair a doença, algo inevitável. O presidente Jair Bolsonaro e seu séquito de ministros mais ideológicos devem ser apoiados incondicionalmente, pois enfrentam forças literalmente demoníacas de uma elite nacional e global infiltrada no STF, no Congresso, na mídia e em todos os cantos, que busca implantar o autoritarismo comunista e promover a pedofilia e o aborto entre os povos sob coordenação da China. Adversários novos, antigos e imaginários são atacados o tempo todo com memes, notícias falsas e calúnias de toda a espécie. Notícias ruins são distorcidas até ficarem favoráveis, e qualquer dissenso é punido com trolagem e exclusão.

É principalmente em torno dessas temáticas, métodos e variações que vive atualmente o núcleo duro da rede bolsonarista de fake news nas redes sociais e aplicativos de mensagem, acompanhada pelo EL PAÍS e especialistas no início deste ano. Trata-se de uma espécie de ‘QAnon tupiniquim’ que começou a ser exposto pela imprensa nas eleições de 2018 e hoje é investigado pela Polícia Federal em dois inquéritos abertos no Supremo Tribunal Federal, na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News do Congresso e em mais de um processo no Tribunal Superior Eleitoral. Enquadrados e em alguns casos até presos, expoentes desse movimento de desinformação com fins de manipulação política a favor do presidente e suas ideias que imita temáticas e métodos do original norte-americano baixaram o tom, mas a milícia digital segue forte e ativa.

Após a invasão do Capitólio nos Estados Unidos no dia 6 de janeiro, e declarações do presidente brasileiro de que aqui seria ainda pior se o país não adotasse o voto impresso para as próximas eleições, especulou-se na imprensa e redes sociais de forma geral se apoiadores do presidente poderiam fazer algo parecido aqui caso ele perdesse a reeleição em 2022. Desde as eleições municipais do ano passado e a exemplo do que foi feito nos EUA, no entanto, a rede bolsonarista de fake news na internet dedica-se a desacreditar as urnas eletrônicas e preparar terreno para um eventual questionamento desfavorável no pleito.

De acordo com estudo da DAPP da FGV, bolsonaristas alvo das investigações no STF por espalhar fake news e promover a organização de atos antidemocráticos no ano passado, assim como deputados federais bolsonaristas, foram os principais responsáveis por espalhar informações falsas sobre fraude eleitoral no primeiro turno de 2020. Oswaldo Eustáquio, blogueiro preso duas vezes por ordem do STF, lidera a lista. Ele cumpre prisão domiciliar e está proibido de usar redes sociais. As postagens sobre o Brasil misturam-se às sobre a fraude apregoada por Trump nos EUA, dando suposta coesão à narrativa e criando uma ligação direta entre o grupo brasileiro e o norte-americano.

Os deputados federais do PSL Carla Zambelli, Bia Kicis, Filipe Barros e Daniel Silveira, além do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, apareceram no levantamento da FGV. Os blogueiros e influenciadores bolsonaristas Leandro Ruschel, Allan dos Santos e Bernardo Küster também. Alguns deles são alvo dos dois inquéritos no STF, de fake news e dos atos antidemocráticos, ambos sob controle do ministro Alexandre de Moraes. As postagens sobre fraudes nas urnas provocaram nova abertura de investigação, desta vez para descobrir quem está por trás da criação e divulgação das notícias contra a Justiça Eleitoral. No TSE, pelo menos duas ações tratam da atuação das milícias digitais nas eleições de 2018. De acordo com o monitoramento da FGV, cerca de 700.000 postagens sobre fraude do sistema eleitoral foram feitas entre o primeiro turno na eleição e o final de novembro. A hashtag mais disseminada foi #votoimpressoja, com mais de 38.000 publicações.

“O mapa de interações feito a partir do sistema de recomendações do YouTube mostra predomínio da repercussão da alegação de fraude nas eleições dos Estados Unidos entre os canais brasileiros”, afirma o estudo. “Junto a canais alternativos e hiper-partidários, conteúdos da grande imprensa são peças-chave para atrair audiências aderentes aos discursos antissistema. A organização e a coordenação em torno do tema produziram engajamento expressivo quando direcionado à crítica ao sistema eleitoral; do ponto de sua defesa não houve mobilização relevante”. O STF já solicitou à FGV o estudo sobre as eleições passadas e segue com os dois inquéritos abertos, sob segredo de Justiça.

Agravamento de pandemia atrapalha discurso negacionista

Familiares de doentes com covid-19 fazem fila em busca de oxigênio em Manaus: colapso no atendimento deixou hospitais sem insumo.BRUNO KELLY / REUTERS

Sob fogo cerrado nas redes sociais pelo fracasso no combate à pandemia — simbolizado pelo atraso na aquisição e distribuição de vacinas e insumos contra o novo coronavírus e o colapso da falta de oxigênio em Manaus que alastrou-se para outras cidades da região — e falta de boas novas na economia, o campo bolsonarista tenta contra-atacar de forma aparentemente coordenada na guerra virtual. No mês passado, quando ficou claro o fracasso da operação montada pelo Ministério da Saúde para buscar 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford na Índia, que negou o envio do lote, e a convocação de um panelaço contra o presidente ganhar força nas redes sociais, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) contra-atacou com a postagem de um vídeo de uma pessoa não identificada batendo com um pênis de borracha em uma panela. Em poucas horas, o termo “Angélica” subiu para os assuntos mais comentados do Twitter e lá ficou até o final da noite.

Ao ver as postagens, muitas com os mesmos textos e imagens diversas de pênis artificiais, era possível notar padrões de um ataque coordenado a apresentadora e seu marido, o também apresentador de TV e presidenciável Luciano Huck, que compartilhou uma publicação sobre o protesto mais cedo. No final da tarde, após o presidente conceder uma entrevista na “TV Bandeirantes” onde afirmava mentirosamente que não podia atuar de forma direta no combate à pandemia pois o STF havia proibido, em poucos instantes o tema “STF” subiu para o topo dos mais comentados com o argumento apresentado em links de “notícias” de sites governistas, vídeos de canais amigos no Youtube, memes e gráficos explicativos.

No dia seguinte, sábado, quem abriu o Twitter pela manhã encontrou no topo dos assuntos mais comentados um tema aparentemente desconectado do noticiário naqueles dias: “Adélio”. Afinal Adélio Bispo — aquele que tentou assassinar durante a campanha eleitoral de 2018 o então candidato à presidência da República Jair Bolsonaro — está preso desde o dia do atentado, foi diagnosticado com graves problemas mentais e não houve nenhuma novidade neste assunto. Ao investigar as hashtags é possível ver que as postagens, muitas delas feitas por perfis com características de robôs, fazem alusão a uma afirmação do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que publicou na mesma rede social “Impeachment ou morte”, sobre a incapacidade do governo de lidar com a pandemia. Distorcida, a declaração era circulada como uma prova de que Adélio, ex-filiado do PSOL, agiu em uma conspiração para matar Bolsonaro urgida pelo partido de Freixo. Nos grupos de WhatsApp, a dinâmica e sequência dos assuntos e o tom conspiratório é parecido.

Em relação à pandemia, a narrativa não tem funcionado. De acordo com levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas em 1,18 milhão de postagens no Twitter em 24 horas me meados de janeiro, auge da crise em Manaus, apenas 7,5% isentavam Bolsonaro do caos e propalavam a versão de que ele havia feito muito pelo Amazonas, não podia fazer mais por causa do STF e se havia problemas, a culpa era do governador Wilson Lima, como o próprio presidente declarou em suas redes sociais. Segundo levantamento do cientista político Márcio Coimbra, as menções negativas a Bolsonaro nas redes sociais chegou a 73%, na ocasião, um recorde desde que ele assumiu.

O ranking do Índice de Popularidade Digital (IPD), elaborado pela consultoria Quaest, também acusa o golpe recebido pelo bolsonarismo. A métrica avalia o desempenho de personalidades da política nacional nas plataformas Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, Wikipedia e Google. Bolsonaro ainda é o primeiro colocado dentre uma lista de nove nomes que devem influenciar as eleições presidenciais de 2022, mas perdeu quase 20 pontos desde o início do ano e estava com 66,3 no final de janeiro—o IPD é medido em uma escala de 0 a 100, em que o maior valor representa o máximo de popularidade.

Por outro lado, os gráficos no estudo da FGV mostram uma bolha de opinião que apesar de espremida e diminuída pela crise atual, é impermeável a outras versões da realidade.

Na mira do STF

Simpatizantes do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, em manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, durante a pandemia em julho do ano passado. (Foto de Sebastião Mofreira / EFE)

“O inquérito é centralizado no gabinete do ministro Moraes, ele que é o ‘delegado’ do caso, então não temos detalhes”, afirma um dos delegados da PF que trabalha nas investigações sobre as fake news e não pode falar abertamente sobre o assunto, que corre sob sigilo. “Mas a impressão é que o caso está rachado, se quiserem prendem mais um monte de gente, prendem. Acho que estão dando uma segurada, existe um componente político de acomodação das instituições”, avalia. Mas a artilharia está pronta caso haja um revés. “Quando essas investigações foram abertas, o STF estava literalmente sob ataque. O bote está pronto, se precisar aposto que colocam a coisa para andar rapidinho.”

Além de Eustáquio, outros expoentes do ‘QAnon brasileiro’ foram presos ou são formalmente investigados pela PF. Sarah Winter, líder do movimento de extrema-direita 300 do Brasil, grupo que acampou em Brasília no ano passado, atacava o STF e se apresentava como uma milícia política bolsonarista no auge dos protestos golpistas com a participação do presidente, também foi presa e hoje está em casa com tornozeleira eletrônica. Ela foi bloqueada na maioria das redes sociais e perdeu seu canal no Youtube. Allan dos Santos, dono do site bolsonarista Terça Livre, sofreu uma busca e apreensão e foi levado para depor pela PF em Brasília a mando de Moraes. Depois disso mudou-se para os Estados Unidos, onde virou correspondente do próprio site e uma ponte direta entre os integrantes do QAnon norte-americano e seu espelho nacional.

Quando ficou claro que o democrata Joe Biden venceria as eleições nos EUA em meio a contagem de votos Santos que fazia transmissões direto dos EUA para seu site, afirmou que a derrota era um plano de Trump para demonstrar a fraude eleitoral, e que haveria uma reviravolta em breve. No WhatsApp e Telegram, integrantes de grupos de discussão bolsonaristas apoiaram efusivamente a invasão do Capitólio em Washington como início da revolução trumpista, e esperam até agora a reviravolta prometida por Santos, agora adiada para março em alguns posts. Ele já havia sido bloqueado no Twitter, e nesta semana o Youtube extinguiu o canal de Santos da plataforma por violar as políticas de uso e propagar fake news.

O escritor Olavo de Carvalho, referência ideológica do bolsonarismo, também vive nos EUA e ajuda a propagar as teorias conspiratórias.

Vínculo com a “matriz”

Nos Estados Unidos, o termo “QAnon” refere-se a um Universo de teorias conspiratórias baseadas em fake news que agrega grupos e pessoas de extrema-direita, como os que invadiram o Capitólio antes da posse de Joe Biden. Surgiu em 2017, quando um perfil chamado “Q” em um fórum de discussão na Deep Web disse que tinha acesso a segredos do governo, que foram revelados em mensagens posteriores.

Em resumo, o ex-presidente Donald Trump estaria lutando uma guerra secreta contra uma conspiração de gente poderosa infiltrada na mídia, política e outras posições de poder para manter e explorar uma rede de pedofilia internacional. Muita gente acreditou e com o tempo, o termo passou a servir para designar outras teorias políticas conspiratórias e grupos radicais de extrema-direita. Até hoje, não sabe-se nos EUA quem seria o “Q” original, mas ele é considerado um herói pelo núcleo duro dos apoiadores do ex-presidente Trump.

O vínculo com o movimento QAnon norte-americano, apesar de não ser oficial, vai além da temática de fraude eleitoral e do uso de fake news para promover a pauta da extrema-direita. De acordo com relatório da CPMI das Fake News, as redes bolsonaristas passaram a dar ênfase ainda maior ao combate à pedofilia em meados do ano passado — nos EUA, um cidadão está preso após acreditar numa fake news e invadir uma pizzaria armado para resgatar supostas criancinhas vítimas da rede de pedofilia. Os grupos passaram a dar destaque, compartilhar e desenvolver mensagens voltadas ao combate à pedofilia ao mesmo tempo em que atacam, com falsas alegações, personalidades como o youtuber Felipe Neto e a apresentadora de TV Xuxa.

Apoiadores do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, durante a invasão do Capitólio em Washington: adeptos de teorias conspiratórias QAnon.(Foto de Saul Loeb / AFP)

A estratégia seria, de acordo com profissionais que fizeram o monitoramento, desviar o foco em conversas de redes sociais sobre as graves crises nos campos econômico e sanitário no Brasil. Os autores do relatório apontam ainda uma técnica de apresentar “problema e solução”, quando o problema seria a pedofilia, e a solução, a ministra Damares Alves. Ao mesmo tempo em que atacam personalidades, os grupos “alavancam nomes do próprio governo como grandes combatentes contra o tema: além do próprio Jair Bolsonaro, a figura mais associada ao assunto é a ministra Damares Alves”, diz o relatório.

Segundo a narrativa bolsonarista Damares seria responsável por trazer ao Brasil a Operação Storm, uma fictícia força-tarefa internacional secreta sob o comando de Trump para combater a rede internacional de pedofilia, “revelada” por Q nos EUA e peça central no Universo QAnon norte-americano. Após as eleições norte-americanas no geral e a invasão do Capitólio em particular, proliferaram grupos em aplicativos de mensagem e redes sociais criando associações diretas entre o bolsonarismo e o trumpismo mais radical ligado a teorias QAnon.

Gabinete do ódio

De acordo com depoimentos de ex-aliados do presidente como os deputados federais Joyce Hasselmann (PSL) e Alexandre Frota (PSDB), documentos e relatórios da CPMI das Fake News, existe um gabinete do ódio que coordena as ações online. Formada por profissionais da mentira e calúnia lotados em gabinetes oficiais, canais nas redes sociais e sites de fake news, parlamentares de diversos níveis, milhares de voluntários e um sem número de robôs, a rede bolsonarista de fake news na internet está ativa desde pelo menos a eleição presidencial de 2018 e hoje contaria com integrantes que dão expediente no Palácio do Planalto.

De acordo com os ex-aliados, o coordenador do esquema de ação da milícia digital é o vereador Carlos Bolsonaro, com a ajuda de dois assessores especiais lotados na Presidência da República. Eles seriam os responsáveis por pautar a discussão das redes bolsonaristas. Parlamentares aliados e seus assessores teriam a missão de propagar as postagens e assuntos. O esquema inteiro seria impulsionado com a ajuda de robôs e contaria com financiamento de empresários aliados do presidente. A partir daí, a viralização dos conteúdos seira feita de forma orgânica pelos apoiadores bolsonaristas. O esquema funcionou nas eleições de 2018 e foi mantido após a vitória no pleito

AIURI REBELLO, de São Paulo para o EL PAÍS,13 FEV 2021 - 17:58

Decretos para aumento de venda de armas elevam insegurança com Bolsonaro e tema pode chegar ao STF

Presidente assinou medidas na sexta, 12, para facilitar comércio de armas e afrouxar fiscalização. Entidades e lideranças políticas reagem para o que já é considerado um risco democrático, especialmente depois da invasão do Capitólio, que não foi condenada pelo mandatário brasileiro

Uma apaixonada por armas em clube de tiros a 100 km de São Paulo

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a sexta-feira, véspera de um quase Carnaval no Brasil, para assinar quatro decretos que facilitam ainda mais a venda de armas e reduzem a fiscalização pelos órgãos competentes. É o trigésimo ato normativo publicado nos últimos dois anos por Bolsonaro, dentro de uma política que ajudou a aumentar as armas em circulação no Brasil. O anúncio, feito pelo twitter do mandatário, gerou reações imediatas entre entidades ligadas a direitos humanos e lideranças políticas. “O populismo armamentista de Bolsonaro, além de agravar o problema [de violência], é uma cortina de fumaça para suas aspirações golpistas”, escreveu Marcelo Freixo, deputado do PSOL no Rio. Freixo anunciou um projeto para anular os últimos decretos de Bolsonaro e protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal. “O presidente não pode legislar sobre armas via decreto”, reclamou o deputado.

Um levantamento do jornal O Globo mostra que só a posse de armas nas mãos de civis deu um salto de 65% no país desde dezembro de 2018, pouco antes de Bolsonaro assumir o poder no dia 1 de janeiro. No final de janeiro eram mais de 1,1 milhão de armas nas mãos de cidadãos, número que deve subir facilmente caso os decretos do presidente não forem derrubados na Justiça, como esperam os especialistas em segurança pública. Dentre as normas previstas pelo Governo, estão o aumento de limite de compra de armas para cidadão, que passam de 4 para 6 armas. O número pode chegar a 8 para membros da magistratura, do Ministério Público e os integrantes de polícia e agentes e guardas prisionais.

Outras medidas preveem a redução de controle e rastreamento de armas e munições, um risco que coloca os armamentos mais próximos do crime organizado. Há facilidade para que atiradores e caçadores, por exemplo, comprem entre 30 e 60 armas, sem necessidade de autorização expressa do Exército. Projeteis e máquinas para recarga de munições e carregadores também deixam de ser controlados pelo Exército. Facilitação de acesso armas mais restritas, que interessam às milícias. “O aumento da venda de armas de maior potencial circulando inevitavelmente acaba inevitavelmente abastecendo o crime”, diz Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. “Uma arma de um acervo de um atirador ou caçador pode ser roubada ou desviada e abastecer o mercado ilegal”, alerta ela, lembrando que a inexistência de rastreamento dificulta a investigação de crimes. No ano passado, uma portaria do Exército revogou regras sobre rastreamento de armas e munições, dispositivos de segurança e marcação de armas de fogo e munição no Brasil.

A política ostensiva de liberação de armas do Governo Bolsonaro tem gerado insegurança na sociedade, especialmente depois da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro. O presidente ultradireitista não condenou até hoje a invasão dos eleitores de Trump que não aceitaram o resultado da eleição. Bolsonaro também não perde uma oportunidade para reforçar o discurso de desconfiança sobre as urnas eletrônicas – sem evidências para tal — e de dizer que quer ver a população armada, antecipando uma crise que ele pode abrir no ano que vem, caso não seja reeleito nas presidenciais.

Em nota, o Instituto Igarapé, think tank que estuda a segurança pública, afirmou que o pacote de decretos “não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”. Segundo Michele dos Ramos, assessora especial Igarapé, “há muitas perguntas a serem respondidas pelas autoridades federais sobre as motivações políticas do descontrole de armas no país, uma vez que não há qualquer justificativa ou conhecimento técnico que embase as perigosas mudanças”.

Após divulgar a nota técnica, Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, foi bloqueada pelo presidente no Twitter. “Impressionante ver como a máquina do ódio é eficiente e está aparelhada para bloquear qualquer contestação à narrativa oficial. Isso só acontece em ditaduras. Já vivemos tempos de exceção”, disse.

O vice-presidente da Câmara dos Deputados Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, criticou as novas medidas. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara”, escreveu no Twitter.

Bolsonaro ignorou as críticas e ironizou que “o povo está vibrando” com as novas medidas. Ele publicou um vídeo em que comenta os decretos com um pequeno grupo de pessoas no sul do país. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, reagiu “Bolsonaro considera a parte pelo todo. Acha que seu mundo extremo representa o país. O povo não está vibrando. O povo não quer armas. A população anseia pelas vacinas”.

A crise de saúde pública da pandemia do coronavírus parece ter criado um cenário propício para o desmonte da política pública de combate às armas, uma promessa eleitoral que Bolsonaro tem se empenhado em cumprir com sua política de decretos pró-armamentista, que já conseguiu desconfigurar o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.

O Governo chegou até mesmo a zerar a alíquota de importação de armas com argumento de que isso iria estimular o comércio. O caso foi parar no Supremo, após um pedido do PSB, e o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão. Ele considerou que, embora o presidente da República tenha prerrogativa para conceder isenção tributária, a opção de fomento à aquisição de armas por meio de incentivos fiscais colide com o direito à vida e à segurança, que são garantidos constitucionalmente.

A política armamentista de Bolsonaro vai na contramão da política pública que será adotada nos Estados Unidos no Governo de Joe Biden. O presidente norte-americano pediu neste domingo (14) que o Congresso aja “imediatamente” para limitar a circulação de armas de fogo em um comunicado que marca os três anos do ataque a escola de ensino médio em Parkland, Flórida, onde 14 estudantes e três professores morreram. “Este Governo não vai esperar pelo próximo tiroteio em massa para ouvir os apelos à ação”, afirmou Biden no comunicado.

CARLA JIMENEZ E REGIANE OLIVEIRA para o EL PAÍS, em 15 FEV 2021

Brasil registra mais 528 mortes por covid-19

Com maior média móvel de óbitos desde o início da pandemia, país se aproxima de 240 mil vidas perdidas. Mais 23 mil novos casos são registrados, e total vai a 9,85 milhões.

    
Profissionais de saúde visitam comunidades de ribeirinhos no Amazonas para aplicar vacina contra a covid-19

O Brasil registrou oficialmente 23.856 casos confirmados de covid-19 e 528 mortes ligadas à doença nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados nesta segunda-feira (15/02) pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país desde o início da epidemia subiu para 9.858.369 casos, enquanto os óbitos somam 239.773.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que as cifras reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números divulgados na segunda-feira também costumam ser mais baixos, já que equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida no fim de semana.

Além disso, as cifras desta segunda-feira não incluem os dados diários do Rio Grande do Norte, devido a problemas técnicos no acesso à base de dados, informou o Conass.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 8.745.424 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de domingo.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes é agora de 114,1 no Brasil.

Segundo contagem mantida por um consórcio de veículos da imprensa brasileira, o país registrou a sua maior média móvel de mortes desde o início da pandemia. No domingo, o índice era de 1.105 óbitos – 4% maior que o registrado há duas semanas.

A média móvel de mortes (ou de casos) em sete dias é uma média entre o número de óbitos registrados naquele dia e nos seis dias anteriores, e costuma ser comparada com a média de 14 dias antes para indicar se há tendência de alta, queda ou estabilidade no número de vítimas.

Também segundo o consórcio de veículos brasileiros, formado por O Globo, Extra, G1, Folha de S. Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, até a noite de domingo 5.072.729 pessoas haviam recebido a primeira dose da vacina contra a covid-19, o que equivale a 2,40% da população do país.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 27,6 milhões de casos, e da Índia, com 10,9 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, atrás dos EUA, que já contabilizam mais de 486 mil óbitos.

Ao todo, mais de 109 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no planeta, e 2,4 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 15.02.2021

STF tem 377 julgamentos parados por pedidos de vista

Regimento interno da corte prevê prazo de duas sessões, mas devolução ao plenário pode demorar anos

Ministro Luiz Fux, do STF, preside sessão plenária por videoconferência Foto: Nelson Jr./SCO/STF/10-02-2021

Em meio à iniciativa do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, de pregar contra as decisões monocráticas de ministros, o julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro na condenação do ex-presidente Lula expôs outro mecanismo que concentra poder nas mãos de um magistrado: os pedidos de vista. Neste momento, o expediente paralisa 377 processos na Corte, em desrespeito, na maioria das vezes, ao regimento interno do colegiado, que prevê a obrigatoriedade de retorno do caso ao plenário duas sessões depois para que a tramitação seja retomada.

O mais comum é que os ministros levem meses e até anos para devolver os casos para julgamento. No caso da suspeição de Moro, o ministro Gilmar Mendes pediu vista do julgamento em dezembro de 2018, na Segunda Turma. Até agora, Cármen Lúcia e Edson Fachin votaram a favor de Moro. Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski ainda não votaram, mas deram a entender nos debates que consideram exacerbada a atuação do ex-juiz na condução da Lava-Jato.

OS ALIADOS DO PRESIDENTE: INVESTIGADOS E RÉUS GANHAM ESPAÇO E INFLUÊNCIA NO GOVERNO BOLSONARO

Arthur Lira (PP-AL) - O novo presidente da Câmara dos deputados, eleito com apoio do Planalto, é réu no STF em duas ações: o quadrilhão do PP e uma acusão de recebimento de propina da CBTU. Em sua função à frente da Câmara define o que vai a voto no Congresso e articula nomeações no governo Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

Ciro Nogueira (PP-PI) - O senador, que teve voz na escolha do primeiro ministro do STF indicado por Bolsonaro, Kassio Nunes Marques, é réu no Supremo em ação do quadrilhão do PP e foi alvo de denúncia (ainda não recebida pela Justiça) de corrupção passiva e lavagem de dinheiro Foto: Agência Senado

O senador Fernando Collor de Mello (PROS-AL), que tem acompanhado Bolsonaro em eventos e viagens, é reú na Lava-Jato sob acusação de receber propina desviada da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras. Caso está pronto para ser julgado. PGR pediu condenação do senador a 22 anos de prisão Foto: Jorge William / Agência O Globo

Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) foi alvo da PF em 2019 sob suspeita de recebimento de propina quando era ministro de Dilma — caso está sob investigação. Também foi acusado de receber propina desviada de obras da Petrobras, mas denúncia foi rejeitada pelo STF Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Líder do governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros (PP-PR) foi alvo de operação do Gaeco do Paraná sob suspeita de ter recebido propina da Galvão Engenharia, que fechou acordo de delação premiada na Lava-Jato. Foi cotado para Ministro da Saúde Foto: Jorge William / Agência O Globo

Valdemar Costa Neto (PL-DF) - Maior cacique do PL e quem convidou Bolsonaro para se filiar à legenda, foi condenado pelo STF a sete anos de prisão no mensalão. Também foi alvo de investigação sobre propina na Ferrovia Norte-Sul.

Em outubro do ano passado, o ministro Celso de Mello, que também votaria, se aposentou e foi substituído por Nunes Marques. Com a nova configuração do colegiado, Mendes cogita retomar o julgamento ainda neste semestre, na esperança de seu ponto de vista sair vitorioso. Isso porque o voto de Celso de Mello era uma incógnita e, no STF, ministros acreditam que Nunes Marques votará contra Moro, por ser visto como garantista.

O constitucionalista Mamede Said, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), avalia que a demora em devolver os casos para julgamento contribui para a morosidade da Justiça, que já está congestionada com muitos processos:

— O pedido de vista é um direito do magistrado em qualquer tribunal, em geral, para firmar uma ideia mais precisa sobre matéria. Mas muitas vezes (em que) ele é utilizado, acaba surtindo efeito de procrastinar, retardar o julgamento do feito.

Temas polêmicos

Atualmente, entre os pedidos de vista no STF, 207 são do plenário. Nesses casos, os 11 ministros participam do julgamento. Outros 90 são da Primeira Turma, formada por cinco ministros; e 80, da Segunda Turma, constituída por outros cinco magistrados. Dos 377 pedidos de vista no STF, 152 já foram devolvidos e, em tese, a votação pode ser retomada a qualquer momento, dependendo apenas de o presidente da Corte, Luiz Fux, incluir os processos na pauta.

Entre os processos que aguardam reposição na agenda está o que versa sobre a criminalização do porte de drogas para consumo próprio. Em setembro de 2015, o ministro Teori Zavascki pediu vista no julgamento. Com a morte dele, em janeiro de 2017, o seu substituto, o ministro Alexandre de Moraes, herdou o processo e em novembro de 2018, devolveu o caso para ser analisado em plenário. O então presidente do STF, Dias Toffoli, chegou a marcar o julgamento por duas vezes no ano seguinte, mas o retirou de pauta. Até agora, três ministros votaram: o relator Gilmar Mendes, que defendeu a descriminalização do porte para uso de todo tipo de droga; e Fachin e Luís Roberto Barroso, que votaram pela descriminalização, mas só para o porte de maconha.

(Leia: Armamento em poder de civis aumenta 65% em dois anos e ultrapassa 1 milhão)

Num outro caso, em maio de 2012, o ministro Luiz Fux pediu vista no julgamento de uma ação da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra uma lei do Estado do Rio de Janeiro que trata da organização do Tribunal de Justiça local e prevê, entre outros itens, algumas gratificações, como o auxílio pré-escolar. Em dezembro de 2017, Fux devolveu o caso para julgamento. Um ano depois, Toffoli, então presidente a Corte, marcou o julgamento para março de 2019, mas, logo depois, o retirou da pauta.

Na Suprema Corte dos Estados Unidos, os ministros podem rejeitar o julgamento de uma causa em razão de a questão envolver valores que não estão maduros socialmente para serem julgados. A Constituição brasileira não permite isso. A válvula de escape para esse filtro, muitas vezes, acaba sendo o pedido de vista.

O pedido de vista mais antigo aguardando julgamento no plenário é do ministro Carlos Ayres Britto, que se aposentou em 2012. A interrupção do julgamento foi em agosto de 2006. Ele devolveu o caso para a pauta em fevereiro de 2012, mas a ação jamais voltou a julgamento. O processo trata do quorum necessário para o Legislativo deliberar sobre acusação contra governador por crime de responsabilidade.

Também no plenário, Gilmar Mendes pediu vista de um processo em agosto de 2011 e ainda não o devolveu. É o caso mais antigo do plenário sem devolução do ministro. O caso trata de execução extrajudicial no Sistema Financeiro de Habitação.

Na Primeira Turma, o caso mais antigo de pedido de vista é de um processo de uma empresa de energia elétrica do Espírito Santo que questiona o cálculo de alguns impostos federais. Fux interrompeu o julgamento em outubro de 2016. O ministro não integra mais o colegiado desde setembro do ano passado, quando assumiu a presidência do STF. Na Segunda Turma, o recorde é de um processo com pedido de vista também de Ayres Britto em agosto de 2010 e jamais devolvido para julgamento. É um processo em que uma empresa aérea tentou anular uma multa aplicada pela Justiça.

A assessoria de comunicação do STF divulgou nota defendendo o direito dos ministros de pedirem vista e ponderando sobre as dificuldades de elaborar a pauta de julgamentos. “É prerrogativa dos ministros pedirem vista para estudarem melhor os processos em andamento na Corte. Em relação à pauta do plenário, que é elaborada pelo presidente da Corte, a definição dos julgamentos é feita em interlocução com os relatores dos casos, respeitando sempre que possível a prioridade por eles solicitada, e levando em conta casos que demandam solução em prol da segurança jurídica do país”, diz o texto.

Outros tribunais

O pedido de vista não é um mecanismo apenas do STF; ele existe também nos outros tribunais brasileiros. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, pedidos de vista vêm retardando a análise, pela Quinta Turma da Corte, de habeas corpus do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no caso da “rachadinha” na Alerj. Em novembro do ano passado, o relator, ministro Felix Fischer, votou para negar os pedidos da defesa, mas o ministro João Otávio de Noronha pediu vista.

O regimento interno do STJ prevê que a vista deve ser devolvida em até 60 dias, prazo que fica suspenso durante o recesso e as férias. Noronha fez isso dentro o prazo e, na última terça-feira, votou a favor de parte dos pedidos da defesa. Mas o julgamento não foi concluído porque o próprio relator pediu nova vista.

Carolina Brígido e André de Souza, O Globo, em 15/02/2021 

A qualidade dos serviços públicos

Maioria dos cidadãos não está satisfeita, segundo pesquisa do Instituto Idea Big Data

Há não muito tempo, era comum ver na entrada das chamadas repartições públicas uma placa onde se lia que “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela” é crime que pode levar à pena de detenção de seis meses a dois anos ou multa, de acordo com o art. 331 do Código Penal. Não é improvável que a advertência ainda possa estar nas paredes de algumas dessas agências de atendimento ao público.

Uma advertência nesses termos logo na entrada de um local onde se prestam serviços públicos dá uma boa ideia da qualidade do atendimento que o cidadão está prestes a receber, que pode ser tão ruim a ponto de exasperá-lo.

Evidentemente, casos extremos de má prestação de serviços públicos que levam o contribuinte a cometer o crime de desacato são raros, mas a percepção geral da população é que à alta carga tributária não há uma contrapartida do Estado em bons serviços.

Pesquisa realizada pelo Instituto Idea Big Data, a pedido do movimento Livres, apurou que a maioria da população apoia uma política de avaliação de desempenho dos servidores públicos, além de mudanças nas regras de estabilidade no cargo, inclusive para os que estão em serviço.

Nada menos do que 70% dos entrevistados pelo Idea Big Data disseram ser favoráveis à avaliação de desempenho dos servidores como meio indicado para proporcionar progressões na carreira. Hoje, são comuns casos de aumento de salário e promoções por tempo de serviço, de forma automática. Sem dúvida, isso é um grande fator de acomodação dos servidores, que não têm qualquer estímulo para melhorar suas qualificações e desempenhos, como ocorre corriqueiramente na iniciativa privada.

Em setembro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso um simulacro de reforma administrativa que mal tangencia a questão da avaliação de desempenho e a estabilidade dos atuais servidores da ativa. Se tudo der certo, o plano do governo federal poderá surtir efeitos daqui a 30 anos. Não atende à premente necessidade do País.

As pressões que as corporações de servidores públicos exercem sobre os Três Poderes são tão fortes que até hoje nenhuma reforma administrativa que representasse real avanço para o Brasil conseguiu ser aprovada. Houve ganhos pontuais aqui e ali ao longo do tempo, mas nada capaz de transformar a mentalidade dos servidores que, a bem da verdade, se servem do Estado.

Para qualquer presidente da República seria difícil, mas não impossível, mexer nesse vespeiro. O histórico de Bolsonaro indica que não será ele quem vai conseguir. Não porque seja difícil e ele não está à altura do desafio – e não está mesmo –, mas porque nem sequer passa por sua cabeça adotar medidas duras, porém vitais para o País, que possam lhe causar quaisquer embaraços eleitorais na campanha pela reeleição.

Perderá o País se uma reforma administrativa digna do nome não vingar mais uma vez, seja pela tibieza de Bolsonaro, seja pela baixa resistência dos parlamentares às pressões das corporações de servidores.

Em sua coluna no Estado, a economista Ana Carla Abrão lembrou muito bem que “a qualidade do serviço público é o principal instrumento de geração de oportunidades e de mobilidade social”. Para uma massa de cidadãos que nascem na pobreza, escreveu a colunista, não há alternativa, senão no Estado, para que esses cidadãos reduzam o abismo que os separa dos que podem pagar por serviços de educação e de saúde de qualidade.

Um projeto de reforma administrativa sério tem de ter como norte indesviável o aumento da eficiência dos servidores e da qualidade na prestação de serviços aos cidadãos. Mexer no chamado “RH do Estado” não se presta apenas a gerar economia para o Tesouro. Sem dúvida, com uma administração mais enxuta, o Estado terá dinheiro para investir mais em áreas essenciais do serviço público, como saúde, educação e infraestrutura, alimentando um círculo virtuoso. Mas o principal objetivo da reforma é diminuir a brutal desigualdade que há séculos mantém o Brasil aferrado ao atraso.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2021 

Denis Lerrer Rosenfield: Representação truncada

A vida dos cidadãos não é levada em conta. A sociedade clama por mudanças

 A pandemia invadiu a vida das pessoas de forma nunca vista, introduzindo a doença e o medo da morte no seio de cada família. Diante de tão aterrorizante realidade, a população vê os países mais avançados se vacinando e abrindo caminho para o futuro, enquanto os responsáveis pelo governo federal se comprazem com malabarismos da pior qualidade, num cenário que, não fosse trágico, seria cômico. Os discursos são tão disparatados e anacrônicos que sua mera listagem, além de longa, seria enfadonha.

Em todo caso, da “gripezinha” à luta contra a vacina “chinesa”, passando pelo dito “tratamento precoce”, uma espécie de poção mágica para incautos, o espetáculo oferecido à Nação é de completa irresponsabilidade. Pessoas adoecendo e morrendo, e a única preocupação dos políticos parece ser a eleição presidencial de 2022. E até lá quantos padecerão?

A crise fiscal se avoluma, os gastos não são cortados, os privilegiados de sempre guardam os seus benefícios e os estamentos estatais defendem os “seus” direitos – aliás, só os deles. Enquanto isso, o País definha economicamente, com alto desemprego, milhões na miséria, à beira da sobrevivência, e a expectativa de vida cai.

O atual governo foi eleito com uma agenda liberal, que, dizia-se, seria conduzida com rigor. No primeiro ano de mandato, nada foi feito, salvo uma reforma da Previdência amplamente preparada pelo governo anterior. No segundo ano, a desculpa foi a pandemia, contra a qual nada foi levado a cabo. E neste começo do terceiro volta o palavrório usual com a reforma da economia e do Estado.

Curiosamente, temos uma situação paradoxal, pois a esquerda retoma a luta contra o “neoliberalismo”, contra a responsabilidade fiscal, sem que liberalismo nem contenção de gastos se tenham realizado. O pior serviço do atual governo consiste em ter matado a ideia liberal sem que ela tenha sequer existido praticamente.

Os partidos e os políticos, por sua vez, em vez de vocalizarem os anseios da sociedade, estão mais preocupados com suas brigas intestinas, como se estas fossem o mais importante problema da República. Talvez o sejam em sua conotação negativa, ao expressarem o desmonte da representação política. A sociedade não se reconhece em seus representantes. É como se os parlamentares e os partidos vivessem num mundo à parte, só deles, povoado por emendas, cargos e interesses particulares dos mais diferentes tipos, dotados de vida própria. A vida dos cidadãos não é levada em consideração, enquanto esses seres inanimados guardam toda a sua vitalidade. Raras, infelizmente, são as exceções.

As disputas pela presidência da Câmara dos Deputados e do Senado, com suas intrigas e traições, exibiram uma cena parlamentar e partidária desconectada da realidade. O governo procurou eleger os seus e desestruturar as oposições, os parlamentares negociavam individualmente ou coletivamente os seus votos, enquanto o País seguia à deriva. A sociedade, alarmada, observou um processo longínquo, distante dos seus afazeres cotidianos de sobrevivência e de luta pela vida. Há um crescente estranhamento entre a sociedade e a sua representação, tendo como resultado o enfraquecimento das instituições representativas.

A democracia vive na medida em que suas instituições sejam fortes. No momento em que os parlamentares e os eleitos em geral, no Executivo e no Legislativo, apresentam, sem nenhum pudor, o jogo do “toma lá dá cá”, sem que dele se siga nenhum projeto ou realização coletiva, numa espécie de tributo que o vício poderia pagar à virtude, ocorre a debacle da representação política. A política esgotar-se-ia nessa negociação, à qual se seguiriam outras, num jogo sem fim.

Os partidos perdem o seu valor, o seu significado. A sociedade não se vê naqueles que deveriam ser os seus representantes. A “velha política”, tão abominada nas últimas eleições presidenciais, bandeira do então candidato Bolsonaro, é agora conduzida por “novos” e “velhos” políticos, incluídos militares que se apresentavam como avessos a tais práticas. A contradição é manifesta.

Se o divórcio entre a representação política e a sociedade se acentua, se a política renuncia a valores morais e a noções de bem coletivo, se instituições e estamentos do Estado não tornam viável o bem público, se os interesses mais comezinhos tomam a cena pública, o caminho está aberto para soluções demagógicas e autoritárias. Se os partidos e as instituições nada valem, líderes procurarão estabelecer contato direto com uma sociedade aflita e desamparada.

Cria-se um caldo de cultura propício à emergência de “salvadores” da pátria, daqueles mesmos que tudo fazem para corroer e desestruturar a democracia. O discurso passa a ser sem mediações entre o líder e a sociedade, vendendo qualquer narrativa, contanto que ela pegue, suscitando a adesão, por mais mentirosa que seja. E aí de nada adianta dizer que foi o resultado das urnas, pois eleições sozinhas, sem instituições democráticas, podem ser também a via para o autoritarismo.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo,  é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 15.02.2021.

Aviso aos navegantes: Após se livrar do impeachment, Trump enfrenta tentativas de levá-lo à prisão

Sugestão para que a Justiça seja acionada e responsabilize o ex-presidente pelo ataque ao Congresso dos EUA é de um ex-aliado, senador Mitch McConnell, e foi citada até por um dos advogados do republicano

 Absolvido no julgamento de impeachment graças ao voto da maioria dos senadores de seu partido, Donald Trump ainda poderá responder pela incitação à invasão ao Capitólio no dia 6 de janeiro, mas na Justiça. A sugestão de responsabilizá-lo nos tribunais pelo ataque ao Congresso partiu de um dos principais líderes do Partido Republicano, senador Mitch McConnell, e foi mencionada até por um dos advogados do presidente, como estratégia para livrá-lo do juízo político que poderia torná-lo inelegível.

Ex-presidente Donald Trump joga golfe em Mar-a-Lago, seu resort na Flórida Foto: Divulgação

“Não há possibilidade de que o presidente dos EUA possa correr solto em janeiro no final de seu mandato e simplesmente ir embora impune”, disse Bruce Castor, um dos advogados do ex-presidente no processo de impeachment. “O Departamento de Justiça sabe o que fazer com essas pessoas”, afirmou o defensor de Trump. O ex-presidente se irritou com a menção de seu próprio advogado a uma possível condenação judicial.

No impeachment, democratas sustentavam que absolver o republicano seria o equivalente a criar uma permissão para presidentes em fim de mandato cometerem crimes, diante da ausência de punição para os que estão fora do cargo. A defesa do republicano contra-argumentava ao dizer que os tribunais comuns podem condenar um ex-presidente e não há uma “exceção de janeiro”, como sugerem os democratas. 

No sábado, após votar pela absolvição do ex-presidente, o líder do Partido Republicano no Senado, Mitch McConnell, defendeu que o ex-presidente respondesse na Justiça por seus atos. Ele afirmou que Trump é responsável pelo ataque ao Capitólio, mas argumentou que o impeachment não é cabível contra ex-presidentes. 

“Apesar de ex-presidentes não estarem elegíveis para sofrer impeachment, eles ainda podem ser – e isso é extremamente importante – responsabilizados nos tribunais de Justiça ordinários”, disse McConnell. “O presidente Trump ainda é responsável por tudo o que ele fez durante o mandato, como um cidadão normal. Ele não se livrou de nada ainda. Ainda. Temos um sistema de Justiça criminal nesse país, temos litígio civil.”

O FBI investiga os envolvidos no ataque ao Capitólio. Mais de 125 pessoas foram presas nas duas semanas após o episódio e cerca de 200 já foram acusadas criminalmente. Trump não é investigado no caso. Em uma das acusações feitas na quinta-feira, procuradores informaram que uma das invasoras esperava as orientações do então presidente, a primeira menção direta ao possível envolvimento dele. O caso pode ser investigado também na esfera local, pelo procurador-geral do Distrito de Columbia, Karl Racine. 

Na semana passada, procuradores da Geórgia anunciaram que investigam a tentativa de Trump de interferir no resultado da eleição do Estado, onde Joe Biden teve maioria dos votos. Os investigadores se debruçam sobre duas ligações feitas pelo ex-presidente. Em uma delas, Trump pediu ao Secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, para encontrar votos para reverter a eleição.

As apurações na Geórgia se somam a outras já em andamento.

Procuradores de Nova York apuram as finanças do ex-presidente e possível fraude em seus negócios. No passado, advogados de Trump se recusaram a colaborar com o caso e entregar declarações de imposto de renda do republicano com o argumento de que ele era um presidente no exercício. Agora não é mais.

Condenar e prender o ex-presidente, no entanto, não é um cenário provável, escreveu o jornalista do Washington Post Philip Bump. “A discussão da responsabilidade de Trump na Justiça Criminal serve como um lembrete de que esta ainda é uma ameaça não teórica que o ex-presidente enfrenta”, afirma Bump. 

Beatriz Bulla / Correspondente / Washington, O Estado de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2021

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Há reação política contra a Lava Jato e apatia com volta ao poder de envolvidos em corrupção, afirma Deltan

O ex-coordenador da Lava Jato no Paraná Deltan Dallagnol diz que partidos e políticos alvos da operação paulatinamente recuperaram o espaço perdido e que, como resultado, há “uma certa apatia ou mesmo cinismo” no país hoje

A força-tarefa que ele comandou em Curitiba de 2014 a 2020 foi dissolvida neste mês e incorporada a um Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), em iniciativa que acabou gerando pouca repercussão política ou mobilização de apoiadores.

À Folha ele comparou o contato que mantinha com o então juiz Sergio Moro ao relacionamento de advogados com ministros de cortes superiores e negou que tenha havia conluio.

A entrevista foi feita por email, a pedido do procurador.

Fora da Lava Jato desde setembro, o ex-coordenador da operação sofreu outros reveses recentemente.

A defesa do ex-presidente Lula conseguiu acesso em janeiro a mensagens trocadas pelo procurador no aplicativo Telegram, hackeadas em 2019, e tem trazido a público mais conversas da época das investigações. O STF (Supremo Tribunal Federal) confirmou na terça (9) o direito de Lula de manusear os arquivos.

A defesa ainda tenta anular na corte as condenações impostas a ele em Curitiba

O procurador da República Deltan Dallagnol

Como viu a decisão do STF sobre as mensagens? O sr. considera que há como reverter o abalo na credibilidade sofrido pelas autoridades da Lava Jato com essa exposição? 

- O STF ainda não apreciou a questão de ser um material ilegal, não autenticado e não reconhecido. Há quem veja nele uma base para acusar a Lava Jato de excessos na investigação, o que é um equívoco.

Em direito muito pode ser debatido, mas jamais houve afrontas à lei. Se tivessem ocorrido violações à lei na obtenção de dados fiscais ou de provas no exterior, ou a indevida investigação de pessoas com foro privilegiado, tudo isso seria facilmente comprovável, afinal o histórico de todos os atos probatórios, desde a suspeita inicial até a prova resultante, está nos processos.

Passados dois anos da exposição sensacionalista do material, nada de ilegal foi de fato identificado pelas centenas de advogados porque não houve.

Pesquisa divulgada nesta semana mostrou que 80% da população apoia a Lava Jato, o que demonstra que a sociedade confia na solidez do trabalho. Contudo, não sei como se verá essa questão no futuro porque seu debate está muito poluído por narrativas que têm compromissos com interesses e não com a verdade.

Mas até um nome de votos historicamente a favor da operação, como Cármen Lúcia, se posicionou de maneira crítica agora. 

- A ministra ressalvou no seu voto que não estava apreciando as questões referentes à legalidade, eficácia probatória ou conteúdo do material. Apenas concedeu acesso à defesa do ex-presidente em atenção ao princípio da ampla defesa, o que é algo muito mais limitado.

Não é necessário, ao menos, fazer autocrítica em relação à proximidade com o juiz? Se o juiz mantivesse contatos com as defesas da mesma maneira, o sr. também não consideraria problemático? 

- Advogados têm contatos com juízes diariamente em todo o Brasil, e isso é legal. Figurões vão ao STF de bermuda. Não temos um décimo do acesso a certos ministros das cortes superiores que muitos advogados ou mesmo réus têm.

Com o juiz da Lava Jato, é evidente que tínhamos um contato mais frequente. Quando um advogado tem cinco casos criminais sob a responsabilidade do juiz, ele marca uma reunião. Quando você tem mil casos, trocar mensagens é mais eficiente.

Ninguém alega que exista prova da inocência de alguém nas mensagens, mas que o juiz teria se excedido na proatividade. Ora, no sistema brasileiro, o juiz pode produzir provas e buscar os valores da Justiça como verdade e agilidade. Fazer isso não é favorecer o Ministério Púbico, e sim a Justiça. Se o juiz fala para o advogado ou réu que, se quer provar seu álibi, precisa trazer provas do que diz, não há nada de errado nisso.

A tese do comando pelo ex-juiz ou de conluio com o Ministério Público é desmontada pelo fato de que o ex-juiz absolveu mais de 20% dos réus e indeferiu centenas de pedidos da força-tarefa.

No caso envolvendo o ex-presidente Lula, mais de uma dezena de pedidos do Ministério Público foram indeferidos e mais de 60 da defesa foram deferidos. O caso foi rejulgado completamente e confirmado por três julgadores independentes e depois pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça].

Não há no material, que não é reconhecido por nós por várias razões que vão de indicativos de sua edição e deturpação até a impossibilidade de lembrar e resgatar o contexto de milhares de mensagens trocadas há anos, qualquer predefinição de resultados, ações contrárias a fatos e provas, supressão de provas de inocência, fraudes processuais ou prática de crimes.

Sempre pautamos nosso trabalho pela lei. Sempre há, contudo, discordâncias legítimas em matéria de direito e tem também, claro, muita gente que quer ver erros e anular condenações.

A força-tarefa errou ao intervir em assuntos que não eram de sua atribuição, como a eleição no Senado, a apresentação de propostas legislativas ou a gestão de recursos pagos pela Petrobras? Também não avalia que houve exposição em demasia de autoridades da operação? Em que medida esses fatores colaboraram para o enfraquecimento da investigação? 

O enfraquecimento da operação decorre principalmente da proibição da prisão após o julgamento da segunda instância, de amarras legislativas colocadas na colaboração premiada e em prisões, da transferência para a Justiça Eleitoral dos casos de corrupção política, da cisão e redistribuição pelo Brasil de casos com íntima relação que estavam concentrados em Curitiba e do desmonte das forças-tarefas.

Há, ainda, uma reação política às investigações. Se o sistema de Justiça criminal propicia a impunidade, é legítimo que seus atores, que conhecem suas amarras, proponham e defendam mudanças. As iniciativas que mencionou tinham por objetivo justamente aumentar a integridade na política, mudar leis no Congresso e fortalecer a atuação da sociedade civil em matéria anticorrupção.

O sr. não participa mais da equipe, mas a Procuradoria já trabalha com a hipótese de anulação de muitos dos atos e processos da operação devido ao caso Telegram? Como seria esse cenário?  

- Esse cenário não é trabalhado porque não vai se concretizar.

Tenho absoluta segurança no trabalho feito, sempre lastreado em fatos e provas colhidos dentro da lei. Embora a interpretação do direito sempre possa ser debatida, aplicamos a lei de modo coerente nos diferentes casos em que atuamos e sempre defendemos e respeitamos padrões internacionais de proteção a direitos fundamentais.

A título de exemplo, criticou-se a troca de mensagens com autoridades estrangeiras em matéria de cooperação internacional. Contudo, esqueceram de dizer que isso é legal e recomendado por manuais de organismos nacionais e internacionais. Conversar sobre provas que estão sendo remetidas pelos canais oficiais é não só correto como recomendável.

Porém a sentença do caso tríplex parece seriamente ameaçada. Ao menos dois ministros já sinalizaram que votarão por considerar que o juiz foi parcial no processo. Isso tende a gerar um efeito cascata. Em entrevista recente, um desses ministros sinalizou que não seria usado o material dos hackers no julgamento.

- É difícil prever o resultado do julgamento, mas, se for reconhecida a suspeição, isso provavelmente ocorrerá com base na discussão de decisões específicas proferidas pelo ex-juiz federal ao longo das investigações e processos envolvendo o ex-presidente. Nesse caso seria uma decisão com efeitos apenas nesse caso em particular.

​A gestão de Augusto Aras certamente ficará marcada pela iniciativa de mudar a dinâmica dos trabalhos de investigação da Lava Jato. Como avalia o trabalho do procurador-geral até o momento? 

- O procurador-geral tem atribuições relevantes em diferentes áreas em que não trabalho e deve exercer sua função com absoluta independência em relação aos demais Poderes.

Na área anticorrupção, entendo que as forças-tarefas da Lava Jato, agora Gaecos, precisariam ter uma estrutura muito maior do que têm, o que é uma questão de priorização. O modelo de trabalho anticorrupção precisa ainda assegurar a plena independência dos procuradores.

Quase não houve comoção com o fim simbólico da força-tarefa. A que atribui essa falta de mobilização?

- Houve um enfraquecimento progressivo do combate à corrupção, o que diminuiu os resultados e a visibilidade do trabalhoAlém disso, a pauta anticorrupção cedeu lugar para questões mais urgentes, como a pandemia e seus efeitos sobre a saúde pública e a economia.

Não houve mudanças sistêmicas e estruturais necessárias para fortalecer a integridade no país e, paulatinamente, agentes e partidos políticos envolvidos com a corrupção retomaram espaços de poder.

Como resultado, há uma certa apatia ou mesmo cinismo, que não nos levarão a lugar algum que seja bom. É preciso sermos realistas, mas mantermos a esperança e o bom combate.

O apoio de 80% da sociedade à Lava Jato mostra que existe uma demanda clara por mais justiça e integridade, que deve ser canalizada de algum modo para transformação. Em muitos lugares, a grande corrupção reduziu como fruto de um amadurecimento geracional e civilizatório. É um trabalho permanente.

​​Quais perspectivas de trabalho há para o MPF diante dessa nova realidade e quais as pendências da operação? 

- Quando saí da força-tarefa, ainda havia muito trabalho por fazer, muitos casos envolvendo corrupção multimilionária.

Embora os acordos de colaboração premida tenham se reduzido drasticamente desde a decisão que proibiu a prisão em segunda instância, ainda havia a perspectiva de acordos com empresas que recuperariam centenas de milhões de reais.

Contudo, são investigações e negociações complexas e, para serem feitas, é necessário suporte da administração em termos de procuradores com dedicação exclusiva e assessores. Na falta disso, é difícil falar em perspectivas. Só quem está hoje na equipe tem condições de dizer o que poderá ou não ser feito.

O presidente Jair Bolsonaro disse em outubro: "Acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo". Como o sr. e colegas receberam essa declaração? Qual a avaliação sobre o desempenho de Bolsonaro em ações contra a corrupção? 

- Se não houver mudanças sistêmicas na política e na Justiça, reduzindo o apelo do dinheiro nas campanhas, a impunidade e a ineficiência do foro privilegiado, a grande corrupção política continuará aí, independentemente do presidente ou partido da vez.

A intensidade dessa corrupção poderá variar, assim como a prioridade dada a seu combate, mas continuará a ser uma realidade. As mudanças sistêmicas dependem da atuação dos três Poderes. Enquanto não ocorrem, a corrupção continua e com toda força. Pesquisa recente mostrou que a maior parte da população credita o fim da Lava Jato à reação política. Isso é um sinal de que a sociedade espera mais contra a corrupção.

Diferentes entidades e nomes como ex-procuradores-gerais e ex-ministros do STF dizem que a democracia está em risco no país hoje com a incitação a atos antidemocráticos e declarações pondo em dúvida a lisura das eleições. O sr. concorda com esse posicionamento? 

- Não há qualquer evidência da falta de lisura das eleições. As manifestações autoritárias preocupam, mas acredito na força da nossa democracia, regime que tem o apoio da grande maioria da população, segundo pesquisas.

Um dos principais objetivos do combate à corrupção, aliás, é o fortalecimento do Estado de Direito e da democracia, evitando que propinas bilionárias dobrem a lei e influenciem eleições. Quem rouba mais tem mais dinheiro e consequentemente maiores chances de se reeleger.

Como tem sido a sua atuação no MPF fora da Lava Jato? O sr. admite a hipótese de disputar eleição para cargos públicos ou a descarta?​ 

- A Lava Jato ocupava a maior parte dos meus dias, inclusive fins de semana. Desde minha saída para dar atenção à saúde de minha filha mais nova, pude fazer um curso no Mind Institute sobre essa questão e participar ativamente do tratamento.

Então, eu foquei nisso e no trabalho ordinário. Atuo ainda no combate à corrupção, pois acredito que há muito a fazer para melhorarmos a situação no Brasil. Não tenho hoje planos de candidatura, mas sim de contribuir como procurador e como cidadão para o fortalecimento da integridade e da cidadania.

DELTAN DALLAGNOL, 41, é procurador da República desde 2003. Graduado em direito pela Universidade Federal do Paraná, tem mestrado na Universidade Harvard (EUA). Chefiou a força-tarefa de Curitiba de abril de 2014 até setembro de 2020

Entrevista a Felipe Bächtold, publicada originalmente pela Folha de São Paulo, edição de 14.02.2021.

Tasso Jereissati: 'Partidos foram triturados no Congresso'

Tucano atribui o racha em sua legenda às eleições na Câmara e no Senado, marcadas, segundo ele, pela ‘captação individual de votos’

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) em seu gabinete de trabalho Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) afirmou, em entrevista ao GLOBO, que seu partido, assim como os demais, foi “triturado” durante a eleição para as presidências da Câmara e do Senado e agora tem a oportunidade de se reconstruir.

Para ele, o melhor nome para disputar a eleição de 2022 será aquele que conseguir unir as legendas de centro, da esquerda à direita, a fim de evitar a polarização como a que ocorreu no segundo turno do último pleito, entre Jair Bolsonaro e petista Fernando Haddad.

Como o senhor avalia o cenário atual do PSDB? O partido está rachado?

O PSDB está num momento de transição, de reconstrução, procurando manter os seus princípios iniciais e fundamentais. Ao mesmo tempo, esse período agora é diferente, em que todos os partidos, todos, foram triturados ou tratorados pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. Em uma olhada panorâmica, o DEM rachou, PSDB trincou, PSD teve problemas... Isso porque o processo que se instalou nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual.

Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. Isso fez com que pessoas, de bolsonaristas a petistas, votassem nos mesmos candidatos. Essa questão de não haver uma coesão absurda não é privilégio do PSDB, todos os partidos estão vivendo problemas.

É possível encontrar uma saída?

É um bom momento para o PSDB se reconstruir, estávamos vivendo isso... Tínhamos uma candidatura natural (à Presidência da República) do governador de São Paulo (João Doria), que só pelo fato de ser governador de São Paulo já o torna presidenciável, e se abre uma nova perspectiva trazendo ao cenário mais um outro candidato de uma parcela do PSDB, o Eduardo Leite (RS), que traz uma perspectiva extremamente democrática para voltarmos às discussões dos nossos ideais, dos nossos princípios. E vai prevalecer aquele que se identificar mais com esses princípios. Tem que ser um princípio que junte mais os partidos de centro.

Considerando os nomes de Doria e Leite, qual deles tem o melhor perfil hoje para unificar o centro? Avalia que Doria tenderia mais para a direita do que para o centro?

Eu acho que antes de definirmos o nome, temos que definir o que queremos. Estamos vivendo um momento que, além dos partidos, vivemos uma crise de valores, uma crise sanitária, econômica e social. Então, eu acho que aquele que tiver capacidade de unir desde o centro mais à direita até o mais à esquerda, com o propósito de acabar a polarização em que (entre) a extremíssima esquerda e a extremíssima direita, o ódio é que está prevalecendo... Esse que tiver mais capacidade de fazer essa união será o candidato ideal.

Mas ainda não está na hora de definir (um nome), e sim o que queremos e conversar com outros partidos, inclusive com a possibilidade de aparecer outro nome com poder de agregação.

O senhor vê Luciano Huck com uma dessas alternativas?

Tem essa possibilidade. Não estou dizendo que seja ele, estou colocando. É um rapaz novo, não vejo problema no fato de não ser político, existem vantagens e desvantagens. Ele tem feito um esforço enorme de aprender, captar soluções e ideias que estão pairando pelo mundo. É um rapaz de centro.

A situação na Câmara e no Senado mostrou a bancada dividida e em parte apoiando o nome de Bolsonaro à presidência das Casas. Não é um sinal de que é difícil unir o partido e fazer oposição?

Essa definição de oposição em relação ao governo está tomada. É uma definição que está sendo reforçada com a ratificação do nome de Bruno Araújo (ao comando do PSDB). A diferença que houve durante as eleições não é um desafio só nosso, e sim de todos os partidos e democratas. Houve uma manipulação profunda que dizimou a unidade dos partidos.

O PSDB tem um alinhamento na área econômica com o governo. Como fazer essa diferenciação em relação a outras pautas?

Olhando em uma visão geral nós temos, sim, uma identidade muito grande, não total, na área econômica, mas nas outras questões temos uma distância enorme. Se for para falar de política externa, é o oposto da apresentada pelo ministro de Relações Exteriores, que é incompreensível. Se formos falar de tendência ao autoritarismo, somos um partido que nasceu da redemocratização. Enfrentamento da pandemia, coronavírus e Ministério da Saúde... É um desastre que chega a ser quase criminoso. As coisas que aconteceram e estão acontecendo beiram a irresponsabilidade total.

A nossa identidade é nessa questão da pauta econômica mais liberal, porém não é 100%. Nada nos impede quando as pautas econômicas chegam no Congresso de apoiarmos o governo. Fomos oposição ao (ex-presidente) Lula e à (ex-presidente) Dilma e nunca fizemos o quanto pior melhor. Se vier, por exemplo, uma proposta muito boa para a Saúde vamos aprovar.

Pensando em 2022, o senhor teme um cenário como o da última eleição, com Bolsonaro e o candidato do PT no segundo turno? Isso colocaria o PSDB numa situação difícil?

O Bolsonaro ganhou as eleições porque havia um forte sentimento antipetista na população brasileira. Eu costumo dizer que o Bolsonaro nasceu do PT. Quando o PT começou a dividir o Brasil entre nós e eles, dividiu o Brasil e acabou levando para a radicalização. Isso se transformou na extrema direita. Isso (cenário de 2018) só vai se repetir se nós, do centro, centro-direita, centro-esquerda, formos muito divididos novamente para a eleição. Porque você tem um nicho certo de eleitores na extrema esquerda e na extrema direita.

Se esse centro que é a maioria ficar todo subdividido, pode ser, como aconteceu, que a subdivisão leve a uma reedição de uma maneira piorada dessa polarização que só gerou ódio, dividiu a população. As pessoas não querem saber de argumentos. Tenho grande esperança de que possamos construir uma candidatura de centro mais sólida.

Como o senhor vê a sinalização, por exemplo, do ACM Neto não descartar um apoio a Bolsonaro lá na frente?

Eu acredito que o Neto disse isso mais como uma figura de linguagem, tipo “não estou descartando algum cenário”. Porque todas as vezes em que eu conversei com ele, além de negar de maneira muito veemente qualquer aproximação com Bolsonaro, não é da índole dele, da criação dele, qualquer aliança maior com um governo com esses defeitos.

O senhor falou do antipetismo. Avalia que a oposição do PSDB ao PT e especialmente a postura na eleição de 2014 de questionar o resultado contribuiu para esse ambiente?

Não foi nem a oposição do PSDB ao PT. Quando o PT fez o ‘nós e eles’ visou principalmente o PSDB, demonizou os nossos governos, neoliberalistas, os nossos candidatos, todo o primeiro governo do Lula tinha o negócio da herança maldita. Tudo era feito para demonizar o PSDB. Isso fez com que os eleitores do PSDB acabassem nas mãos da extrema direita, que criou o Bolsonaro.

Aécio Neves (MG) influênciou na eleição da Câmara no apoio ao candidato de Bolsonaro. A permanência dele atrapalha a imagem do PSDB?

Esse assunto está morto. O Aécio não está influindo, está calado lá. Ele não é mais uma liderança do partido, não tem relevância dentro das discussões. É um assunto morto e não tem por que abrir essa ferida. Temos outros assuntos tão importantes agora que isso seria sair do foco.

O que achou das explicações de Eduardo Pazuello ao Congresso? Ainda vê necessidade da CPI da Covid?

A grande maioria do PSDB assinou a CPI da Pandemia e estamos defendendo principalmente depois do depoimento do ministro da Saúde, que não respondeu as questões fundamentais. Alguém de governo tem que ser responsabilizado para que isso não volte a se repetir.

A situação em Manaus evidenciou mais a crítica que se faz ao governo na pandemia?

Claro. Aquilo foi um caos, um conjunto de crimes em relação à total falta de sensibilidade com o que estava acontecendo em Manaus, pessoas morrendo asfixiadas no meio da rua e o governo distribuindo cloroquina. E não só em Manaus. Cidades estão parando de vacinar por falta de vacina. É um conjunto de crimes, e alguém precisa ser responsável por isso. Não é possível que centenas de milhares venham a falecer e essa negligência fique impune. Até para que não volte a acontecer.

Entrevista a Julia Lindner, publicada originalmente em O Globo, edição de 14/02/2021 

Vice da Câmara diz que Bolsonaro invadiu competência do Congresso ao editar decretos sobre armas

Para Marcelo Ramos (PL-AM), cabe exclusivamente ao Legislativo a análise de regras de flexibilização do acesso a armas no país. Presidente afirma estar regulamentando Estatuto

O vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM) — Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

O vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), criticou em uma rede social neste domingo (14) a atitude do presidente Jair Bolsonaro de editar decretos que flexibilizam o uso e a compra de armas de fogo no país. Para o parlamentar, o assunto deveria ser tratado no Congresso e Bolsonaro invadiu uma competência exclusiva do Legislativo.

Na última sexta-feira (12), o presidente da República assinou quatro decretos que modificam decretos anteriores editados pelo próprio Bolsonaro. A flexibilização no uso e na compra de armas foi uma das principais promessas de campanha do presidente e uma das principais causas defendidas por ele nestes dois anos de mandato.

Na rede social, Marcelo Ramos disse que "mais grave do que o conteúdo dos decretos" é o fato de Bolsonaro, na avaliação do deputado, "exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Pode Legislativo".

"O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando projeto de lei à Câmara", declarou Ramos.

Decretos são atos do presidente da República que devem regulamentar leis. Por isso, não passam pela aprovação do Congresso. No caso, Bolsonaro afirma que está regulamentando o Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003. As novas regras passam a valer em 60 dias.

Entre outros pontos, os decretos aumentam o número de armas que um cidadão comum pode adquirir; ampliam o número de categorias profissionais que têm direito a comprar armas e munições controladas pelo Exército; flexibilizam a comprovação de aptidão psicológica para colecionadores, atiradores e caçadores (CACs); e mudam as regras de munição e armas para os CACs.

Os novos decretos de Bolsonaro sobre armas também foram alvos de críticas de entidades da área de segurança pública.

O Instituto Igarapé classificou os novos atos como "continuação do desmonte da política de controle de armas e munições do Brasil", o que "não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade".

O Instituto Sou da Paz expressou "indignação" em relação às mudanças. "Com esses decretos, já são mais de 30 atos normativos publicados nos últimos dois anos que levaram ao aumento recorde de armas em circulação no ano passado – contrariando todos os cientistas que dizem que mais armas em circulação no Brasil nos levarão a uma tragédia em perda de vidas e deterioração democrática", afirma a entidade.

Para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública , inexistem argumentos válidos em favor "da liberação da compra de até 60 armas por um único colecionador, 30 armas por caçadores ou até 6 armas para cidadãos".

Em nota, a entidade afirmou ainda ser "inaceitável o desmonte dos mecanismos de fiscalização, sobretudo do trabalho do Exército brasileiro, seja pela liberação de produtos controlados ou mesmo pelo rastreamento de munição e concessão do porte".

Por G1 — Brasília, em 14/02/2021 19h47  Atualizado há 2 minutos