terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Prisão de Crivella afasta Republicanos como alternativa para Bolsonaros

Partido era uma atraente opção de refúgio para o presidente Jair Bolsonaro, que apoiou o prefeito do Rio na eleição municipal; sigla já abriga os filhos Flávio (senador) e Carlos (vereador)

O encarceramento preventivo por corrupção do prefeito do Rio, Marcelo Crivella,  nesta terça, 22, tende a afastar definitivamente o Republicanos como alternativa partidária para Jair Bolsonaro em 2022. A legenda, que neste ano cresceu em número de prefeituras,  era uma atraente opção de refúgio para o ocupante do Planalto. Acolhera seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro,  denunciado pela suposta prática de “rachadinha”,  e o vereador Carlos Bolsonaro, gladiador do clã nas redes sociais. Assim, Bolsonaro apoiou a candidatura do mandatário local à reeleição.  Mas não deu certo. Colheu mais uma derrota eleitoral e uma proximidade incômoda para quem tem o discurso moralista como peça de propaganda. Resta-lhe agora buscar o maior distanciamento possível do alcaide enrolado com a Justiça, buscar novo pouso em terras fluminenses e apostar na má memória do eleitor.

Crivella até fez a parte dele. Depois de mais de uma década aliado ao PT – foi até ministro da Pesca, durante o comissariado petista – trocou a esquerda pela direita, ainda no segundo turno da campanha de 2016.  Na prefeitura, radicalizou na agenda de costumes, mandando apreender uma revista na Bienal do Livro em 2019.  Nela, dois personagens masculinos se beijavam. Também caprichou no populismo que brilha nas redes sociais. Destruiu cabines de pedágio da Linha Amarela,  injustamente cobrados, afirmava. Na campanha à reeleição, prometeu até redução  de IPTU, em uma cidade de obras paradas e serviços públicos deteriorados, segundo ele por falta de dinheiro. Também denunciou, delirantemente, a possibilidade de “pedofilia nas escolas”, se perdesse a eleição.  Não funcionou. No segundo turno, foi surrado pelo ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) em todas as zonas eleitorais.

O prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicano), é levado ao IML para fazer exame de corpo de delito Foto: Wilton Junior/Estadão

Mesmo com a resistência do comando do Republicanos à sua eventual filiação,  o presidente investiu, na campanha de 2020, no namoro com o prefeito carioca. Sem partido desde que brigou com o PSL, no fim de 2019, Bolsonaro sabia onde se metia. Tinha consciência de que Crivella foi eleito, em 2016, em uma derrota da esquerda, de caráter nacional, que reduziu drasticamente o número de prefeituras do PT, em meio à ressaca do impeachment da presidente Dilma Rousseff .  No Rio, esse recuo atingiu o candidato do PSOL, Marcelo Freixo, cuja eventual eleição à prefeitura, pregava a direita, seria “o caos”. Mas também não ignorava que os anos da administração do Republicanos no Rio revelaram um gestor que parecia desinteressado da cidade. Viu que o aliado era  um prefeito de crescente impopularidade,  que enfrentava escândalos como  o da reunião do “fala com a Márcia” – funcionária que facilitaria atendimento médico a apadrinhados do prefeito – e o dos “Guardiões do Crivella”, capangas encarregados de intimidar parentes de pacientes que reclamassem do atendimento na saúde pública e os repórteres que tentassem entrevistá-los.  E que derrotou, com verbas e cargos,  pedidos de impeachment na Câmara dos Vereadores,  chegando à campanha de 2020 muito questionado.

Ainda assim, a máquina oficial e o apoio de Bolsonaro parecem ter ajudado Crivella a ir ao segundo turno. O discurso de ultradireita, no campo dos costumes,  e uma campanha centrada na proximidade com o presidente – às vezes, na propaganda de TV, parecia que era ele, e não Crivella, o candidato  – agruparam o eleitorado conservador. Mas não foram suficientes para lhes dar a vitória – 2020 não é 2018. O próprio Bolsonaro percebeu o que ocorria. No segundo turno, negou-se a gravar vídeo de apoio e circunscreveu a aliança a elogios – tímidos – na internet.  Parecia tentar reduzir o impacto da derrota arrasadora que se aproximava. O resultado apenas confirmou o que as pesquisas apontavam.

Se para Crivella a derrota foi um revés relevante na carreira política, para Bolsonaro foi mais um “preste atenção” emitido pelo eleitorado dos grandes centros  – como o de São Paulo, que barrou a extrema direita do segundo turno. A prisão desta terça praticamente encerra a carreira do prefeito – que tende a virar a ex-grande aposta da Igreja Universal do Reino de Deus, patrocinadora do Republicanos, na qual o mandatário municipal é bispo licenciado. A operação do MP do Rio dá ainda a Bolsonaro a companhia de um preso por corrupção, cuja reeleição (fracassada) recomendou aos cariocas e com quem, mesmo antes da campanha eleitoral, apareceu dançando e rindo.


O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, e o presidente Jair Bolsonaro, durante evento com líderes evangélicos no Rio em fevereiro Foto: Reprodução

Mesmo para os mais devotos,  é algo difícil de explicar – como é para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva justificar a proximidade que teve com outro preso do Rio, o ex-governador Sérgio Cabral Filho, condenado a perto de 300 anos de cadeia.  Em cenário tão conturbado, a permanência dos primeiros filhos na legenda do prefeito preso, em tese, fica mais difícil, e a transferência do presidente, impossível.

Wilson Tosta, Chefe de Reportagem da Sucursal de O Estado de São Paulo do Rio de Janeiro.

Graduado em Jornalismo pela UFRJ em 1984, sou mestre em História Comparada pela mesma universidade e trabalho no Estado desde 1998. Acompanhei profissionalmente a política brasileira a partir da primeira eleição presidencial pós-redemocratização, em 1989 – e ainda hoje me surpreendo diariamente.

O papel de Crivella no 'QG da Propina', segundo as investigações que levaram à prisão do prefeito do Rio

 O papel de Crivella no 'QG da Propina', segundo as investigações que levaram à prisão do prefeito do Rio

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, é escoltado por policiais após ser detido, em 22 de dezembro de 2020. /   Ele foi preso em casa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por volta das 6h. / CRÉDITO,REUTERS

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), foi preso na manhã de terça-feira (22/12) em uma ação conjunta entre a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro, a apenas nove dias de encerrar seu mandato.

Derrotado por Eduardo Paes (DEM) nas eleições municipais realizadas em novembro, Crivella foi apoiado em sua tentativa fracassada de reeleição pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Com a prisão, Crivella se torna o primeiro prefeito a se juntar a uma longa lista de políticos do Rio de Janeiro presos, que inclui os ex-governadores Moreira Franco, Luiz Fernando Pezão, Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho e Sérgio Cabral.

Crivella foi preso em casa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por volta das 6h. Segundo o advogado de defesa Alberto Sampaio, o prefeito foi pego ainda de pijamas em casa, conforme informações do portal G1.

Operação Hades

O empresário Rafael Alves (de costas, de branco) é apontado como operador do esquema de pagamento de propina da Prefeitura do Rio de Janeiro. / CRÉDITO,GETTY IMAGES

A ação desta terça-feira é um desdobramento da Operação Hades, que foi deflagrada em março e investiga um suposto "Quartel General da Propina" na Prefeitura do Rio de Janeiro.

Além de Crivella, foram presos nesta manhã o empresário Rafael Alves, apontado como operador do esquema; Fernando Moraes, delegado aposentado; Mauro Macedo, ex-tesoureiro da campanha de Crivella; além dos empresários Adenor Gonçalves dos Santos e Cristiano Stockler Campos.

O ex-senador Eduardo Lopes (Republicanos-RJ) também é alvo da operação, mas não foi encontrado.

Todos eles foram denunciados pelo Ministério Público pelos crimes de organização criminosa, lavagem de dinheiro, corrupção ativa e corrupção passiva.

O MP disse que o valor arrecadado pela organização criminosa chega a R$ 50 milhões.

Como funcionava o 'QG da Propina', segundo o MP

Conforme o Ministério Público, empresas que tinham interesse em fechar contratos ou tinham dinheiro para receber do município entregavam cheques a Rafael Alves. A partir do pagamento, o empresário facilitaria a assinatura de contratos e pagamento das dívidas.

O MP diz que Crivella liderava a organização criminosa e orquestrou sua operação.

"Relatórios de inteligência financeira, depoimento de colaboradores e de testemunhas revelaram a existência de uma bem estruturada e complexa organização criminosa liderada por Crivella e que atuava na Prefeitura desde 2017", diz o órgão, em comunicado oficial.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, na inauguração da obra "Cuentos", no Rio de Janeiro, Brasil, 19 de junho de 2017. CRÉDITO,EPA

O MP diz que Crivella liderava a organização criminosa e orquestrou sua operação.  

Segundo o MP, o prefeito era assessorado por Rafael Alves, Mauro Macedo e Eduardo Lopes.

"Os três, dentro da ideia de divisão de trabalho orquestrada por Crivella e sob a sua liderança, exerciam a função de aliciadores de empresários para participação em esquemas de corrupção, voltados para a arrecadação de vantagens indevidas mediante promessas de contrapartidas que seriam viabilizadas pelo prefeito."

Mensagens de celular

Ainda conforme o Ministério Público, mensagens armazenadas nos celulares de Rafael Alves e outros investigados revelaram indícios de fraudes e pagamentos milionários de propina na contratação do grupo Assim Saúde pelo Previ-Rio (Instituto de Previdência e Assistência do Município do Rio de Janeiro).

"Por meio de Christiano Stockler Campos, a organização realizou contato com os executivos do grupo e deixou claro que, sem que se chegasse a um acordo de propina, a Assim teria grandes dificuldades em novas contratações com a Prefeitura do Rio de Janeiro", informa o MP.

O então presidente do conselho de administração do grupo, Aziz Chidid Neto, teria sido convidado pelo delegado aposentado José Fernando Moraes Alves para um almoço com pessoas "que poderiam lhe ajudar com as renovações dos seus contratos", entre eles o empresário Adenor Gonçalves, diz ainda o MP, com base no relato de João Carlos Gonçalves Regado, presidente do grupo Assim.

Aliado de Bolsonaro

O Presidente do Brasil Jair Bolsonaro e o Prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella durante execução do hino nacional durante a inauguração da Escola Civico-Militar General Abreu em 14 de agosto de 2020 no Rio de Janeiro, Brasil

Mesmo com o apoio de Bolsonaro, Crivella não se reelegeu. / CRÉDITO,GETTY IMAGES

Crivella foi apoiado por Bolsonaro em sua tentativa de reeleição para prefeito. O presidente chegou a gravar um vídeo de campanha ao lado do correligionário.

"A esquerda tenta, a todo custo, voltar de todas as maneiras", dizia a propaganda.

"Quem tem essa tendência de pintar de vermelho. Essa ideologia nefasta que não deu certo em lugar nenhum do mundo. É mais um motivo para eu pedir ao eleitor: vote no Crivella 10 para prefeito do Rio de Janeiro", dizia Bolsonaro no vídeo.

Crivella então respondia: "O presidente da República do Brasil me chama ao dever, me dá uma missão, e eu vou cumprir, presidente."

Conforme a jornalista Andréia Sadi, da GloboNews e do portal G1, pessoas próximas ao governo agora temem que a prisão de Crivella seja associada a Bolsonaro.

"Fontes afirmam que, por um erro de estratégia do presidente na campanha, o Planalto deu de 'bandeja' à oposição a possibilidade de exploração da prisão de Crivella — e vão colar o episódio à imagem do governo federal", escreve.

'Perseguição política' e 'injustiça'

"Isso é uma perseguição política. Lutei contra todas as empreiteiras, tirei recursos do pedágio, do carnaval, e isso é perseguição. Quero que se faça justiça", disse Crivella após sua prisão, segundo o jornal O Globo.

O advogado de Crivella, Alberto Sampaio, considerou a prisão uma "injustiça" e disse que vai solicitar a revogação da prisão preventiva, conforme o mesmo jornal.

A defesa do ex-senador Eduardo Lopes informou que o político está morando em Belém, no Pará, onde deve se apresentar à polícia.

As defesas dos outros denunciados ainda não haviam se pronunciado.

Fonte: BBC NEWS BRASIL, em 22.12.2020

Por que Bolsonaro pode sofrer uma 'tempestade perfeita' na política e na economia em 2021


O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, antes da cerimônia do Dia da Bandeira no Palácio do Planalto, em Brasília, em 19 de novembro de 2020. / CRÉDITO,REUTERS

Presidente terá de lidar com testes a seu governo em diferentes áreas no próximo ano

Quando o calendário virar de 2020 para 2021, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) terá de lidar com uma conjunção de problemas em várias frentes: na economia, na política interna e na relação com os outros países.

A série de fatores negativos pode ser lida como uma espécie de "tempestade perfeita", um período que testará a resiliência da gestão de Bolsonaro, segundo especialistas de várias áreas.

Nas relações internacionais, o governo do capitão reformado do Exército sofrerá um abalo com a chegada ao poder do democrata Joe Biden, que assumirá como o 46º presidente dos Estados Unidos em 20 de janeiro. Bolsonaro foi um dos últimos líderes mundiais a reconhecer a vitória eleitoral do futuro mandatário americano.

Na economia, Bolsonaro terá de lidar com o fim do auxílio emergencial e dos demais programas de socorro financeiro criados durante a pandemia do novo coronavírus — e com os efeitos da interrupção dos pagamentos sobre sua popularidade.

Segundo projeção de um sociólogo ouvido pela BBC News Brasil, cerca de um terço da população brasileira estaria hoje vivendo abaixo da linha da pobreza definida pelo Banco Mundial (R$ 434 por pessoa por mês), se não fosse pelo auxílio.

No xadrez político em Brasília, o presidente enfrentará um período de incertezas: Câmara e Senado definirão no dia 1º de fevereiro seus presidentes para os próximos dois anos, o que obrigará Bolsonaro a fazer novas concessões e acordos para tentar emplacar aliados no comando das duas casas legislativas.

Três focos de tensão para Bolsonaro em 2021

Para complicar, o Congresso entrará 2021 sem a Lei Orçamentária Anual (LOA) do ano que vem aprovada, o que limitará a capacidade de gastos do governo ao mínimo, pelo menos nos primeiros meses.

Finalmente, há a pandemia do novo coronavírus: no fim de 2020, o país voltou a registrar um novo aumento no número de casos e de mortes, depois de meses de declínio. Segundo pesquisadores que acompanham os números da pandemia, a situação configura uma segunda onda do vírus, que voltará a tensionar os serviços de saúde e pode comprometer a retomada da economia.

"A verdade é que todo presidente, da metade para a frente do governo, o cenário começa a mudar. Aquela lua-de-mel (do começo do mandato) já passou, e as articulações (para a eleição seguinte) começam a ser feitas. A gente sabe também que o ambiente político é muito guiado pela circunstância econômica. Então, se a gente enfrentar uma crise econômica mais forte (...), pode ser que ele enfrente bem mais dificuldades", diz o cientista político Bruno Carazza.

"Bolsonaro vai ser realmente testado no ano que vem (2021). Este ano (2020) foi um ano atípico, em que ele não conviveu com restrições fiscais (graças ao 'orçamento de guerra' aprovado pelo Congresso), e 2019 foi o ano do início do governo, quando ele tinha a popularidade da eleição a favor dele e conseguiu aprovar a reforma da previdência. Então, ele navegou bem em 2019, e 2020 foi um ano super atípico. Agora, ele vai ser realmente testado em 2021", disse Carazza, que é professor do Ibmec e da Fundação Dom Cabral.

A seguir, a BBC News Brasil detalha cada uma dessas fontes de tensão para o ocupante do Planalto.

Um adversário ideológico na Casa Branca

O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, faz um discurso antes do Dia de Ação de Graças em Wilmington, em 25 de novembro de 2020. / CRÉDITO,REUTERS

No dia 20 de janeiro, o democrata Joe Biden tomará posse como o 46º presidente dos Estados Unidos.

Para o governo brasileiro, esse cenário está longe de ser o ideal. Jair Bolsonaro e seus filhos nunca esconderam que tinham lado na disputa presidencial americana: o lado do atual presidente, o republicano Donald Trump, derrotado nas urnas.

Bolsonaro foi o último líder de um país do G20, o grupo das 20 maiores economias do mundo, a reconhecer a vitória de Biden.

Além disso, o presidente brasileiro chegou a dizer, sem apresentar provas, que houve fraude na eleição dos EUA.

Segundo telegramas diplomáticos obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro recebeu do embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, análises baseadas em notícias falsas — o material enviado por Washington questionava a lisura do pleito.

Enquanto a maioria dos chefes de Estado e de governo parabenizou o democrata em 7 de novembro, quando a contabilização de votos permitiu que se projetasse sua vitória, Bolsonaro aguardou até 15 de dezembro, depois que o resultado foi confirmado pelo Colégio Eleitoral.

Ao reconhecer a vitória de Biden, Bolsonaro disse que estará "pronto a trabalhar com o novo governo e dar continuidade à construção de uma aliança Brasil-EUA".

Fernanda Magnotta é coordenadora do curso de relações internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Segundo ela, o Brasil sempre viu os Estados Unidos como um parceiro prioritário — o que é novo, no governo Bolsonaro, é o alinhamento "ideológico" a Donald Trump.

"O que a gente vê no governo Bolsonaro até agora é mais que um alinhamento automático desses que a gente já conhecia. O que a gente assistiu foi um alinhamento ideológico. Só que não é um alinhamento ideológico com os Estados Unidos, é um alinhamento ideológico com o 'trumpismo', em particular", diz ela.

"O risco de estabelecer uma política de governo, e não de Estado, é que os governos vão e vêm. E na medida em que os governos vão, a gente se torna vulnerável", diz ela.

Segundo Magnotta, o governo brasileiro enfrentará dificuldades de três tipos num governo Biden.

O primeiro é de agenda: o próximo mandatário norte-americano estará focado em temas domésticos, como o enfrentamento à pandemia de covid-19.

"Isso já é ruim para o Brasil, porque, querendo ou não, o país vai estar no final da fila para apresentar suas credenciais e suas demandas para o governo americano. Não vai ser visto como um parceiro que merece atenção imediata", diz ela.

Depois, há a divergência em termos de valores: Biden foi eleito defendendo pontos de vista opostos aos de Bolsonaro e de Donald Trump em várias áreas — inclusive na chamada "agenda de costumes".

"Então, quando uma nova narrativa chega à Casa Branca, e a narrativa anterior é incompatível, vai haver a necessidade do governo brasileiro de tomar medidas para se desvencilhar da narrativa anterior. Se não fizer, vai sofrer as consequências do isolamento", diz Magnotta.

Por fim, há a relação comercial entre Brasil e Estados Unidos: o Brasil é um país agroexportador, cuja imagem na área ambiental se tornou muito ruim nos últimos anos. Se não agir para mudar esta percepção, pode acabar sendo escanteado pela administração Biden, que elegeu o meio ambiente como uma de suas prioridades.

"Caso o governo brasileiro não tome as medidas para lidar com isto com uma certa celeridade, pode acabar se tornando 'útil' para os Estados Unidos, em certa medida, escolher o Brasil como uma espécie de mau exemplo a ser combatido", diz ela.

Na economia, o fim do auxílio emergencial

O Ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, fala durante um seminário sobre a retomada da economia brasileira, em Brasília, em 8 de dezembro de 2020

Equipe de Guedes vinha tentando, sem sucesso, criar alternativas para financiar programa que substituiria Bolsa Família. / CRÉDITO,REUTERS

Nos últimos meses, a equipe econômica do governo apresentou várias ideias para financiar a chamada "Renda Cidadã", um programa cujo objetivo era substituir e ampliar o atual Bolsa Família, de modo a amenizar o choque provocado pelo fim do auxílio emergencial.

Foram várias as sugestões do time de Paulo Guedes para conseguir dinheiro: uma nova CPMF, o congelamento do valor das aposentadorias e até o uso do dinheiro de emendas parlamentares. Mas, ao fim, estas ideias fracassaram, e o Bolsa Família deve continuar como está.

Junto com o auxílio emergencial, que chegou a atingir mais de 66,2 milhões de brasileiros, também devem acabar em janeiro outras iniciativas criadas para minimizar a destruição econômica provocada pelo vírus.

Um deles é o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que permitiu às empresas reduzir a jornada de trabalho e os salários dos funcionários, que passaram a ser complementados por recursos públicos. Sem a medida, há a expectativa de mais demissões.

Além disso, linhas de crédito criadas para auxiliar as empresas durante a pandemia também devem se encerrar neste fim de 2020.

O sociólogo Rogério Barbosa, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), afirma que, sem o auxílio emergencial, quase um terço da população brasileira pode cair abaixo da linha da pobreza definida pelo Banco Mundial, de R$ 434 por pessoa por mês.

Sem o benefício, a pobreza teria chegado a 35% dos brasileiros já em maio de 2020, no auge das medidas de restrição contra o novo coronavírus, acrescenta o pesquisador, que se concentrou em estudar os efeitos da pandemia sobre a pobreza no Brasil nos últimos meses. Ao longo do ano de 2020, porém, o índice foi diminuindo, graças às pessoas que voltaram a trabalhar.

"O problema é que isso tem um teto. Quando os negócios fecham, eles acumulam dívidas, eles acumulam uma série de custos, e não conseguem simplesmente abrir depois. Você vai ter custos com contador; custos com fornecedores (...). Negócios pequenos que fecham não reabrem imediatamente depois que a economia puder funcionar, depois da vacina."

"O fim da calamidade pública, nominalmente, não vai ser o fim da calamidade econômica", afirma o sociólogo, que é também pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da Universidade de São Paulo (USP).

"Em julho (de 2020), 7% da população vivia exclusivamente de auxílio emergencial. São 14 milhões de pessoas. São pessoas que não têm emprego, não tem nada."

"O risco disso é muito grande. Tem um risco de curto prazo, que é a pobreza absoluta, pessoas morrendo de fome. Isso pode gerar uma fratura social importante, uma crise de legitimidade do sistema político. A pressão social sobre a política pode aumentar, em momentos assim", afirma.

Em Brasília, incertezas na relação com o Congresso


Líder do Partido Progressista (PP), deputado Arthur Lira, fala à imprensa, após reunião com Jair Bolsonaro, em Brasília. É o nome apoiado pelo Planalto para o comando da Câmara

Um terceiro foco de tensão para Bolsonaro em 2021 é a relação com o Congresso.

No dia 1º de fevereiro, Câmara e Senado elegerão seus presidentes para os próximos dois anos — e, desde o fim das eleições municipais, esta é a principal disputa de poder em Brasília.

Para Bolsonaro, é vital conseguir emplacar um aliado no comando das duas casas do Legislativo, especialmente da Câmara. Além de decidir quais projetos serão pautados, é o presidente da Casa Baixa que decide sobre aceitar ou não um pedido de impeachment — atualmente, há quase 60 demandas do tipo aguardando na fila.

No momento, a eleição mais tensa, do ponto de vista do governo, é justamente a do comando da Câmara: o deputado Arthur Lira (PP-AL) é o postulante apoiado pelo Planalto. Ele deve concorrer contra o nome a ser escolhido pelo grupo do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), o atual presidente da Câmara.

No começo de dezembro, Lira lançou sua candidatura à presidência com o apoio de cinco partidos do Centrão: PP, PL, PSD, Solidariedade e Avante. As legendas somam 135 nomes.

Já o grupo reunido em torno de Rodrigo Maia conseguiu atrair os partidos de oposição e soma hoje 11 siglas: DEM, MDB, PSL, PSDB, Cidadania, PV, PT, PSB, PCdoB, Rede e PDT. São 281 deputados nestes partidos.

Apesar disso, os apoios das legendas raramente se traduzem diretamente em votos, porque o escrutínio é secreto. Além disso, o grupo de Rodrigo Maia ainda não escolheu um candidato, e a demora favorece o Arthur Lira.

Para tentar ganhar apoios para o deputado do PP alagoano, o Planalto tem negociado com os parlamentares.

Recentemente, o governo liberou R$ 1,9 bilhão para obras de infraestrutura a serem indicadas pelos deputados; e em Brasília já se fala na realização de uma reforma administrativa para liberar espaços para políticos que venham a apoiar Arthur Lira.

Um dos parlamentares a ser acomodados é o atual vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos-SP), que deixou o grupo de Maia para apoiar o candidato do Planalto.

Finalmente, quando o calendário virar de 2020 para 2021, Bolsonaro precisará da boa vontade dos congressistas para votar duas medidas extremamente importantes, que não foram apreciadas este ano.

A primeira é a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021. Sem a aprovação do Orçamento, o governo seguirá funcionando à base dos chamados Duodécimos — o que impede gastos novos ou investimentos.

A segunda medida a ser aprovada é a chamada PEC Emergencial, uma proposta que traz mecanismos para tentar controlar a trajetória da dívida pública, impedindo que o governo fure o chamado teto de gastos.

André Shalders - @andreshalders, da BBC News Brasil em Brasília /22.12.2020

Coronavírus: Brasil tem 968 mortos e 55,2 mil novos casos de covid-19 em 24h

Foto à noite, mostra mulher parada em ponto de ônibus com máscara e, ao fundo, uma projeção de luz no prédio do Congresso dizendo: Luto 100 milCRÉDITO,REUTERS/ADRIANO MACHADO

O Brasil teve 968 mortos e 55,2 mil novos casos de coronavírus registrados nas últimas 24h, segundo o boletim mais recente do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), desta terça (22/12).

Com isso, desde o início da pandemia, o total de casos do país chegou a 7.318.821 e o de óbitos, a 188.259. Na sexta, o país havia ultrapassado novamente a marca de mil mortes de covid-19 registradas em apenas um dia.

O Estado com o maior número de vítimas fatais é São Paulo (45.395), seguido do Rio de Janeiro (24.594) e Minas Gerais (11.258).

O Brasil continua como o segundo país com maior número de mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 321,3 mil óbitos por covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

O país foi superado em número de casos, entretanto, pela Índia (10,1 milhões), agora em segundo lugar depois dos Estados Unidos (18,1 milhões).

Fonte: BBC News Brasil

Olha aí, Presidente Bolsonaro! O Presidente Putin assina leis para se tornar "intocável" após deixar o poder

Presidente russo sanciona legislação que garante cargo de senador vitalício e imunidade judicial para ex-mandatários e suas famílias. De agora em diante, ex-presidentes não poderão ser presos ou interrogados. 

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, em coletiva de imprensa

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, sancionou nesta terça-feira (22/12) duas leis que terão impacto no seu próprio futuro caso ele venha a deixar o poder. Uma delas prevê que ex-presidentes se tornem senadores vitalícios na câmara alta do Parlamento após deixarem o Kremlin. Outra envolve a concessão de imunidade e impede que ex-mandatários e seus parentes se tornem alvo da Justiça.

A nova legislação vem na esteira de mudanças abrangentes iniciadas por Putin no sistema político russo neste ano. Elas incluíram emendas constitucionais que permitem que o presidente tenha a opção de concorrer a mais dois mandatos presidenciais de seis anos – originalmente, Putin teria que deixar o poder em 2024. Ele está em seu segundo mandato consecutivo e no quarto no total.

As leis sancionadas agora estão sendo encaradas como uma salvaguarda para um futuro em que ele não estiver mais no poder – seja a partir de 2036 ou antes. No Chile, por exemplo, o cargo de senador vitalício foi usado pelo ex-ditador Augusto Pinochet para se proteger da Justiça – a posição foi abolida em 2005. 

Já a lei que garante imunidade – promovida pelo partido governista Rússia Unida – prevê que ex-presidentes não poderão ser perseguidos administrativamente nem penalmente, nem detidos, presos ou interrogados. Ela ainda inclui proteção para os familiares de ex-presidentes.

Até agora, ex-presidentes russos só tinham imunidade em relação aos atos cometidos durante o mandato presidencial ou relacionados ao exercício do cargo, mas não estavam protegidos de causas penais ou administrativamente vinculadas a fatos anteriores ou posteriores.

Essa regalia só beneficiará o atual presidente e seu antecessor, Dimitri Medvedev, que exerceu o cargo entre 2008 e 2012.

A partir de agora, um ex-presidente só poderá ser privado de imunidade pelo Senado com base em uma acusação de alta traição feita no Parlamento ou por cometer um crime grave, acusações que devem ser corroboradas pela Suprema Corte.

A acusação contra um presidente deve receber o respaldo de dois terços das duas câmaras do Parlamento russo. O Senado terá três meses para tomar uma decisão, prazo para que a acusação não seja considerada rejeitada. Mas, para dificultar ainda mais que isso aconteça, a legislação aprovada nesta terça-feira também prevê que presidentes em exercício indiquem até 30 senadores ao Conselho da Federação.

Deutsche Welle, 22.12.2020

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Vacina contra covid-19: como os países estão usando militares para planejar logística


Ministro de Saúde, Eduardo Pazuello
CRÉDITO,MARCELO CAMARGO/AG. BRASIL

General Pazuello chegou ao Ministério da Saúde em abril, quando a pasta era comandada por Nelson Teich, na posição de secretário-executivo

"Nesses poucos dias que eu estou aqui, a impressão que eu tenho é que a gente precisa ser muito mais eficiente do que a gente é hoje. A gente está falando de logística, de compra, de distribuição, e ele é uma pessoa muito experiente nisso, vem trazer uma contribuição no momento que a gente corre contra o tempo."

Foi assim que o então ministro da Saúde, Nelson Teich, anunciou em abril o novo secretário-executivo da pasta, general Eduardo Pazuello, quando este assumiu a vaga deixada por João Gabbardo.

Oito meses depois, o "especialista em logística" é agora ministro da Saúde e as primeiras vacinas contra a covid-19 começam a ser aplicadas em alguns países.

No Brasil, o programa de imunização divulgado no fim de semana pelo governo e reapresentado nesta quarta-feira (16/12) tem uma série de lacunas.

Não há um cronograma concreto de vacinação — segundo Pazuello, porque nenhuma vacina foi aprovada ainda pela Anvisa — e, até o momento, a previsão é de cobertura de 25% da população do país, cerca de 50 milhões de brasileiros, incluídos na primeira fase.

Há também um temor de que possam faltar insumos como agulhas e seringas — o processo de licitação para compra desses materiais foi aberto apenas nesta quarta.

Mundo afora, dezenas de países vinham há meses se preparando para o momento em que as vacinas fossem de fato aprovadas. Alguns deles, inclusive, contam com a experiência dos militares na área de logística para planejar a distribuição — é o caso de Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Suíça, entre outros.

Soldados também ajudam a rastrear contatos e realizar testes

Nos EUA, o chefe de operações da força-tarefa lançada em maio para desenvolver, produzir e distribuir a vacina — a Operação Warp Speed — é um general: Gustave Perna.

O diretor de Suprimentos, Produção e Distribuição, por sua vez, é um tenente-general aposentado, Paul Ostrowski.

Os militares têm trabalhado nos bastidores, a partir das diretrizes apontadas pelas autoridades de saúde, especialmente na aquisição de insumos — agulhas, seringas, swabs, curativos, gelo seco — e no planejamento da distribuição, conforme detalhou o vice-chefe de gabinete para políticas do departamento de Saúde e Serviços Humanos, Paulo Mango, em uma teleconferência em outubro.

"Nós temos os maiores especialistas em logística no Departamento de Defesa trabalhando em conjunto com o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) para dar as diretrizes de todo detalhe logístico que você possa imaginar", disse, conforme noticiado pela pasta.

Os EUA, país com maior número de mortos por covid-19 no mundo, começaram a vacinar sua população nesta semana.


General Gustave Perna, à frente da Operation Warp Speed: Defesa trabalha em conjunto com o CDC, agência americana de pesquisa em saúde pública

Na Alemanha, os militares estão envolvidos na força-tarefa para tentar conter a pandemia desde o início e, de acordo com o governo, também devem participar do planejamento do programa de vacinação, que começa no próximo dia 27 de dezembro.

Hoje, cerca de 6 mil soldados têm auxiliado em tarefas administrativas, trabalhado no rastreamento de contatos, realizado testes diagnósticos em aeroportos.

Em Portugal, militares também têm sido usados para reforçar o rastreamento de contatos — uma das estratégias apontadas pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como fundamentais para desacelerar a curva de infecção.

Como a covid-19 é transmissível mesmo por aqueles que não apresentam sintomas — ou seja, quem nem sabe que está doente pode estar contaminando outras pessoas —, uma política de testagem em massa e rastreamento dos casos positivos, para que estes sejam isolados, é fundamental para dificultar a disseminação do novo coronavírus.

Conforme o plano divulgado pelo governo português no dia 4 de dezembro, as Forças Armadas também auxiliarão no desenvolvimento da operação logística que distribuirá as vacinas.

Militares brasileiros

Os militares brasileiros também têm sido usados nas ações do governo de combate à pandemia. Segundo um balanço divulgado em junho pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo, a atuação teve início com a operação que repatriou em fevereiro os brasileiros de Wuhan, na China.

Segundo ele, até o meio do ano haviam sido mobilizados 34 mil homens e mulheres das Forças Armadas em ações que envolveram a entrega de material e de cestas de mantimentos em áreas remotas, transporte de insumos, campanhas de conscientização e desinfecção de locais públicos.

Ainda conforme o balanço, a Operação Covid-19 conta com um centro de operações conjuntas para coordenar e planejar o emprego das Forças Armadas no combate à pandemia.

O uso dos militares, entretanto, não impediu que o país chegasse à posição de segundo país com maior número de mortes, superior a 182 mil.


Eduardo Pazuello e Jair Bolsonaro
CRÉDITO,ISAC NÓBREGA/PR

Previsão para início da vacinação no Brasil é fevereiro de 2021

Desafio logístico global

Na solenidade em que divulgou o programa, na quarta, o ministro Pazuello pediu que os brasileiros não se preocupassem com a questão logística.

"A logística é simples. Apesar de o nosso país ser deste tamanho, temos estrutura, temos companhias aéreas, Força Aérea Brasileira, temos toda a estrutura já planejada e pronta."

O professor Hani Mahmassani, diretor do Transportation Center da Northwestern University, pondera, contudo, que a vacinação contra a covid-19 é um grande desafio logístico em todo o planeta.

"Ao contrário de outros episódios, em que houve desenvolvimento da vacina primeiro e sua administração depois, desta vez tudo acontece ao mesmo tempo, as etapas se sobrepõem", destaca.

Além disso, acrescenta, alguns imunizantes requerem condições especiais de armazenamento. A vacina da Pfizer, por exemplo, são conservadas a 70ºC negativos, o que requer um planejamento minucioso de seu transporte e estoque.

"Gelo seco virou uma commodity valorizada", brinca.

No caso específico dos EUA, que não conta com um sistema público de saúde como o Brasil, uma parte do processo está sob responsabilidade dos Estados e municípios, que estão usando de hospitais e farmácias a centros comunitários e tendas improvisadas como locais de vacinação.

A distribuição pelo país, também de proporções continentais, está sendo feita em parceria com empresas como UPS e Fedex.

Para o especialista em logística, um bom indicador de como o programa de imunização vai se desenrolar é a forma como o país lidou com a questão dos testes diagnósticos ou mesmo os equipamentos de proteção individual.

No início, eles eram escassos em todo o planeta. À medida que o tempo foi passando, alguns países conseguiram encontrar caminhos para solucionar esses gargalos.

É o caso dos EUA, diz ele. A restrição na capacidade de processamento dos testes, contudo, segue sendo um problema e mantém o ritmo de novos diagnósticos aquém do desejável.

No Brasil, que segue testando menos que o recomendável pela OMS, soube-se em novembro que 6,8 milhões de testes diagnósticos para covid-19 com vencimento em dezembro não haviam sido distribuídos, estavam estocados no Ministério da Saúde. Alguns dias depois, a Anvisa estendeu por quatro meses o prazo de validade.


Farmacêutico enche seringa com vacina da Pfizer-BioNTech no Estado americano de Indianapolis
CRÉDITO,BRYAN WOOLSTON/REUTERS

'Seleção de craques sem técnico'

O médico sanitarista Adriano Massuda, professor da FGV-Saúde, um centro de estudos em planejamento e gestão de saúde, acrescenta ainda como um precedente negativo a ineficiência do governo federal na centralização da compra de produtos essenciais, como respiradores.

"O Brasil tem um poder de compra enorme (a nível federal), que não foi usado."

Como resultado, muitos Estados e municípios tentaram negociar por conta própria, alguns ensaiando consórcios regionais, como no caso do Nordeste.

"Isso provoca inflação a nível local, municípios competindo entre si", acrescenta.

Uma das razões para os problemas de gestão no Ministério da Saúde, em sua avaliação, é o processo de "militarização" pelo qual a pasta vem passando, com a substituição de quadros técnicos por militares sem experiência no planejamento ou execução de políticas públicas de saúde.

"Isso tem afetado vários programas, inclusive o Programa Nacional de Imunização. Os programas estão perdendo capacidade operacional", diz ele, relembrando o caso recente envolvendo testes para diagnóstico de HIV.

O Ministério da Saúde deixou vencer o contrato da empresa que realizava exames de genotipagem no SUS, usados em diagnósticos de HIV e hepatites virais, e os procedimentos na rede pública foram suspensos, com expectativa de retomada em janeiro, após conclusão da nova licitação.

Massuda, que foi secretário-executivo substituto no Ministério da Saúde entre 2011 e 2012 e secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em 2015, ressalta que os militares foram usados recorrentemente no passado em campanhas de imunização no país, mas como um "braço operacional", atendendo áreas de difícil acesso, por exemplo.

Agora, assumiram a coordenação, sem, entretanto, terem dimensão da complexidade do sistema de saúde. A logística à qual estão habituados, ele acrescenta, é bem diferente.

O especialista lembra que o Brasil tem a vantagem de ter um sistema de saúde descentralizado, no nível dos municípios, que permitiu uma "enorme capilarização da infraestrutura assistencial" e abriu espaço para o país atingisse uma ampla cobertura vacinal, uma das maiores do mundo.

"A gente tem uma infraestrutura que já deveria ter sido utilizada para ações preventivas (para evitar o aumento exponencial de casos)", afirma.

"São 260 mil agentes comunitários de saúde, mais de 40 mil equipes de saúde da família. É como se fosse uma seleção com os melhores craques, mas com técnicos que não sabem organizar o time", compara.

Para além do desafio logístico, há uma última — porém imprescindível — etapa em que a atuação do ministério também deixa a desejar: convencer as pessoas da importância da vacina. Nesse caso, diz ele, o governo erra ao dar ênfase a supostos tratamentos precoces sem evidência científica de eficácia; ao não passar uma mensagem clara à população sobre a imunização.


Agente de saúde vacina criança em Manaus
CRÉDITO,ALTEMAR ALCANTARA/SEMCOM

Vantagens que o SUS confere ao Brasil não foram bem aproveitadas pelo governo no combate à pandemia, diz especialista

Um governo de militares

O antropólogo Piero Leirner, que estuda os militares desde os anos 1990, concorda que a logística dos quartéis é bastante diferente daquela necessária para coordenar um sistema de saúde.

Durante a formação, de maneira geral, os militares brasileiros aprendem sobre a logística aplicada a fins militares, "voltada para ideia do que deveria ser a proteção do território", por exemplo.

Para ele, parte da resposta ineficiente do governo à pandemia se deve também à crença entre a alta cúpula do Exército de que o uso da cloroquina seria de fato um caminho para a solução.

"Eles estavam apostando as fichas nisso, tanto que o Exército começou a produzir cloroquina em massa", diz o professor UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor de O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida, lançado em setembro, que analisa a relação dos militares com a política nos últimos anos.

O pesquisador chama atenção ainda para o fato de que a "militarização" do ministério da Saúde não é um caso isolado no governo. Conforme o TCU (Tribunal de Contas da União), o total de militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo dobrou na gestão Bolsonaro — até julho, eram mais de 6 mil, segundo a instituição.

Segundo Leirner, os militares aos poucos ganham "controle das informações do Estado e dos orçamentos", e o fazem por meio de uma "abordagem indireta", que tenta preservar a imagem das Forças Armadas e poupá-las de críticas.

Camilla Veras Mota - @cavmota, da BBC News Brasil em São Paulo - 18 dezembro 2020

Governo libera R$ 1,9 bilhão para deputados em meio a disputa pela Presidência da Câmara


Rodrigo Maia em sessão da Câmara em 17 de dezembro

CRÉDITO,MARYANNA OLIVEIRA/CÂMARA DOS DEPUTADOS

Novo e PSOL dizem que dinheiro 'extra' é para garantir apoio à candidatura de Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara; relator do texto nega

O governo aproveitou a última sessão de votações do Congresso em 2020 para liberar R$ 1,9 bilhão para indicações de parlamentares.

Congressistas de esquerda e de direita dizem que o objetivo da liberação de dinheiro é conquistar apoios para o candidato do Palácio do Planalto à Presidência da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), no começo de fevereiro. O relator da medida, porém, nega.

O dinheiro poderá ser usado em sete ações orçamentárias de quatro ministérios: Agricultura e Pecuária; Desenvolvimento Regional; Educação, e Turismo.

As ações escolhidas permitem que o dinheiro seja aplicado em coisas que parlamentares costumam fazer para agradar seus eleitores: melhorias urbanas, como o calçamento de uma rua; investimentos em escolas públicas; e até a compra de máquinas agrícolas, como tratores.

Embora não se trate de emendas parlamentares formais ao Orçamento, os ministérios costumam receber - e muitas vezes acolher - indicações dos congressistas sobre onde aplicar o dinheiro.

A liberação do dinheiro foi feita por meio da votação de um projeto, o Projeto de Lei do Congresso nº 29 de 2020.

Enviado em setembro, o projeto trazia, de início, remanejamentos de verbas de apenas R$ 48 milhões - nos ministérios da Agricultura, Desenvolvimento Regional, e Turismo.

No dia 15 de dezembro, porém, o Executivo mandou uma "mensagem modificativa" ao Congresso, alterando o projeto e aumentando o valor total para R$ 3,3 bilhões.

De início, o objetivo era quitar parte das dívidas do Brasil com a Organização das Nações Unidas (ONU) e outros organismos internacionais.

No caso da ONU, a dívida acumulada do Brasil com o orçamento regular da entidade tinha chegado a US$ 391 milhões, o equivalente a cerca de R$ 1,98 bilhão.


                                       Medida estava em projeto sobre dívidas da ONU
               

                      Deliberação durante voto do PLN29 na Câmara no dia 17 de dezembro

CRÉDITO,MARYANNA OLIVEIRA/CÂMARA DOS DEPUTADO

O valor é mais de duas vezes a contribuição anual do país ao organismo internacional. Isto significa que, se o Brasil não quitar ao menos uma parte do débito até o fim de 2020, corre o risco de perder o voto na Assembleia Geral da entidade, algo que nunca aconteceu antes.

Acusações de 'toma lá, dá cá'

O relatório de Domingos Neto destina R$ 616,1 milhões para a ONU - o que afasta, por ora, o risco do Brasil ser punido na entidade. O projeto ainda precisa da sanção do presidente Jair Bolsonaro.

"Esse projeto não poderia ter sido votado, na nossa opinião. Primeiro, porque tem um prazo, de 48h, entre a apresentação do relatório e a votação, que não foi cumprido. E depois, o relator (Domingos Neto, do PSD do Ceará) não poderia ter incluído linhas orçamentárias novas, que não estavam previstas no texto original", disse o deputado Paulo Ganime (Novo-RJ), líder da bancada do partido na Câmara.

"E ainda tem a questão do mérito. Uma parte desse dinheiro pode vir a ser usada para atender a interesses políticos de deputados ligados ao governo, para apoiar a candidatura de Arthur Lira", diz Ganime.

A bancada do Novo votou contra o PLN - e partidos de esquerda como PT, PSB, PDT, PSOL, Rede e PCdoB tentaram obstruir a votação.

"Ele (Domingos Neto) criou, no relatório, a categoria de 'emendas de relator', que não são as emendas comuns, aquelas que os parlamentares têm direito, que estão previstas na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias). Essa emenda de relator é onde vão ser destinados esses recursos", diz a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), líder do partido na Câmara.

"E claro, tem a ver com a eleição do Arthur Lira, sem dúvida (...). E nós fomos ao Supremo (Tribunal Federal), também. Porque além da gravidade das emendas em si, do PLN 29, a votação passou por cima do Regimento (interno da Câmara) e da Constituição, que garantem que tenha que votar a derrubada dos vetos (presidenciais, na Sessão do Congresso) antes de qualquer pauta. Ou seja, não poderia votar o PLN antes de apreciar os vetos. Então nós fomos ao Supremo para que a sessão seja cancelada", disse a líder do PSOL à BBC News Brasil.

A reportagem da BBC News Brasil questionou o Ministério das Relações Exteriores (MRE) e a Secretaria de Comunicação do Palácio Planalto (Secom) sobre o assunto - mas não obteve respostas.

O relator do PLN 29, Domingos Neto, também foi procurado pela reportagem por meio de ligações e mensagens de texto, mas não quis falar.

Ao jornal Valor Econômico, Domingos Neto negou que os créditos extras estejam ligados à eleição para o comando da Câmara, que acontece no dia 1º de fevereiro. "A eleição na Câmara está contaminando todas as votações. Infelizmente", disse ele.

Deputado Domingos Neto (PSD-CE) em sessão da Câmara em 17 de dezembro

CRÉDITO,MARYANNA OLIVEIRA/CÂMARA DOS DEPUTADOS

Deputado Domingos Neto (PSD-CE) foi relator da proposta

De onde veio o dinheiro - e para onde vai

Remanejamentos de verbas acontecem com frequência na administração pública: é a solução encontrada pelo Executivo para retirar recursos de uma área e colocar em outra conforme as necessidades, com a concordância do Congresso.

No caso do PLN 29, o R$ 1,9 bilhão que agora irrigará obras nas bases eleitorais de congressistas estava previsto, inicialmente, para o pagamento de dívidas do governo com outros organismos internacionais menores, que não a ONU.

O Ministério da Economia também pediu aos parlamentares que usassem o valor para pagar cotas de capital devidas ao Novo Banco de Desenvolvimento, mais conhecido como Banco dos Brics.

"(O texto do governo trazia uma) última ação orçamentária, que estava com R$ 1,9 bilhão, quase R$ 2 bilhões, que eram para organismos menores. Que não estava detalhado qual era o organismo, e que poderia ser para qualquer um que não estivesse lá dentro daquela lista exaustiva", diz um técnico especializado em Orçamento da Câmara.

"Primeiro, ele (Domingos Neto) retirou R$ 1,2 bilhão desses R$ 1,9 bilhão, e fez a alocação para os ministérios da Agricultura, do Desenvolvimento Regional, da Educação e do Turismo", explica ele.

Congresso recebe projeções de imagens sobre os 60 anos de Brasília em dezembro de 2020

CRÉDITO,NAJARA ARAUJO/CÂMARA DOS DEPUTADOS

Dinheiro poderá ser usado em sete ações orçamentárias de quatro ministérios: Agricultura e Pecuária; Desenvolvimento Regional; Educação, e Turismo

Finalmente, na sessão desta quarta-feira (16), o relator negociou liberações adicionais a partidos de centro-direita como DEM e MDB, que passaram a apoiar o texto e votaram a favor do PLN 29.

Para tanto, Domingos Neto "fez a limpa na ação (orçamentária) de R$ 1,9 bilhão. E colocou mais dinheiro na Agricultura, no Desenvolvimento Regional, no Turismo e na Educação", diz o técnico.

No texto final aprovado pela Câmara e pelo Senado, o ministério com mais recursos passou a ser o Desenvolvimento Regional, comandado pelo ex-deputado tucano Rogério Marinho, com R$ 830 milhões.

No ministério, o dinheiro está vinculado a ações como o "Apoio à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano" e o "Apoio a Projetos de Desenvolvimento Sustentável Local Integrado".

O resultado também representa uma derrota para o ministro da Economia, Paulo Guedes, que já discutiu publicamente com Marinho algumas vezes.

No Ministério do Turismo são R$ 443,1 milhões para "apoio a projetos de infraestrutura turística", enquanto o Ministério da Agricultura contará com R$ 437 milhões para "fomento ao setor agropecuário".

Por fim, a pasta da Educação recebeu R$ 100 milhões para o "apoio à expansão da rede federal de educação profissional".

André Shalders - @andreshalders da BBC News em Brasília / 18 dezembro 2020

Bolsonaro e Trump uniram conservadores, populistas e esotéricos new age, diz autor de livro sobre Bannon e Olavo


Em foto de março, Bolsonaro assina livro de visitas da Casa Branca, com Trump sorrindo atrás

CRÉDITO, ALAN SANTOS/PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

A ascensão de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto em 2018 marca, nas palavras do professor de relações internacionais Benjamin Teitelbaum, uma "estranha coincidência": a chegada ao centro do poder no Brasil e nos Estados Unidos do tradicionalismo, uma filosofia religiosa marginal, que empresta conceitos do hinduísmo, do judaísmo, da cabala e do islamismo, embora não pertença a nenhuma dessas religiões nem seus seguidores se restrinjam a elas.

O tradicionalismo defende que o auge da humanidade é uma sociedade baseada em conceitos espirituais — e não materiais — e que conte com uma hierarquia social bem definida e fronteiras físicas e políticas para as relações entre as diferentes comunidades.

Ainda segundo essa vertente de pensamento, estaríamos hoje no extremo oposto ao desejável, em uma era das trevas em que o liberalismo econômico, a massificação das populações e a globalização apagam por completo a virtude de uma sociedade humana.

Relegado a seitas pequenas e à periferia da filosofia religiosa, a última vez em que o tradicionalismo ocupou posição de relevo em uma democracia ocidental foi durante a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1930, quando adotou uma roupagem que incluía a noção de superioridade da raça branca para dar estofo intelectual ao fascismo, na Itália.

Recentemente, no entanto, o tradicionalismo ganhou tração novamente ao ser incorporado — e ajudar a moldar — candidaturas políticas vencedoras do novo populismo de direita. Segundo Teitelbaum, é como se houvesse um campo político em comum entre o eleitor populista típico — homem, com baixa escolaridade e vida rural — e os esotéricos consumidores de livros metafísicos "new age".

É para explicar a junção entre esses mundos tão distantes que Teitelbaum, professor da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, faz um mergulho na corrente de pensamento que inspirou tanto Steve Bannon, ex-conselheiro de Donald Trump e artífice de sua eleição à Casa Branca em 2016, quanto Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo radicado no Estado da Virgínia, nos EUA.

Ele acrescenta ainda na análise o russo Alexandr Dugin, ideólogo que gravita o círculo de poder de Vladimir Putin. Teitelbaum defende que, em comum, todos eles têm a fonte filosófica tradicionalista para nortear sua atuação política. Além de se debruçar sobre os escritos dos autores, o pesquisador conduziu uma série de entrevistas com eles. O resultado é a obra Guerra pela Eternidade, recém-lançada no Brasil pela Editora Unicamp.

Os conceitos tradicionalistas ajudam a explicar posicionamentos políticos em diferentes frentes. O que têm em comum a recusa em aceitar o resultado da eleição, os ataques sucessivos à imprensa profissional e a promoção de soluções anticientíficas para lidar com a pandemia de coronavírus? Todas essas ações foram tomadas no governo Trump. E todas são ancoradas no tradicionalismo.

"Os tradicionalistas lançam mão de um conceito do hinduísmo chamado de inversão. Eles dizem que, nesta era das trevas atual, a maioria dos principais agentes de serviços de interesse público vai desempenhar a função oposta daquela que deveria desempenhar", explica Teitelbaum, para exemplificar na sequência:

"A comissão eleitoral, cujo objetivo primordial é registrar a opinião da população, provavelmente dará o resultado oposto ao que o povo decidiu. Um cientista vai espalhar ignorância sobre o mundo natural e um médico vai prejudicar seus pacientes, ao passo que o jornalista vai, na verdade, desinformar. O tradicionalismo empresta profundidade teórica e cor ao discurso populista."

Em entrevista à BBC News Brasil, ele explica como o tradicionalismo parece ter ascendido, a influência dele sobre Olavo de Carvalho e o chanceler Ernesto Araújo, sua relação com o coronavírus, o que deve acontecer com a saída de Donald Trump do poder nos EUA e a relação com a China. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.


Benjamin Teitelbaum / CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

Para o professor Benjamin Teitelbaum, Bolsonaro e Trump uniram conservadores e esotéricos


BBC News Brasil - O que é o tradicionalismo e como ele conseguiu chegar ao centro do poder em países como o Brasil e os Estados Unidos?

Benjamin Teitelbaum - Até recentemente, o tradicionalismo não era uma filosofia política. Em vez disso, podia ser definido como uma vertente de pensamento religiosa e espiritual. Alguns de seus escritores tiveram uma pequena representação no mainstream — a relevância política veio com o fascismo na Segunda Guerra Mundial — mas depois disso e na maior parte de sua história social, o tradicionalismo se limitou a seitas.

O tradicionalismo é o modo pelo qual as pessoas olham para o mundo hoje e identificam a globalização e o liberalismo social como sendo produtos de uma crescente ausência de fronteiras no mundo e na vida política e social.

Os tradicionalistas veem a falta de fronteiras e a secularização tanto como sintomas, quanto prova de uma profecia de que vivemos agora na idade das trevas. E eventualmente, de alguma forma, o mundo como conhecemos entrará em colapso e veremos em seu lugar um mundo mais virtuoso, que tem fronteiras de todos os tipos. Um mundo espiritualmente organizado, que não é definido por realizações financeiras ou pelo que chamam de "globalismo". Esse mundo já teria existido, mas a humanidade o perdeu, e os seguidores do tradicionalismo são aqueles que conseguem ter lampejos do que seria esse mundo ideal.

BBC News Brasil - E como esse conjunto de ideias, que esteve na maior parte do tempo restrito a pequenas seitas, chega ao centro do poder em países como Brasil e Estados Unidos? Há uma organização por trás disso ou é algo que acontece de modo fortuito em diferentes partes do mundo?

Teitelbaum - À primeira vista, é apenas uma coincidência muito estranha. A coincidência é que essa pseudoteoria política que desde a Segunda Guerra Mundial não tinha representação na política democrática ocidental de forma alguma, de repente, entre 2018 e 2019, especialmente com a ascensão de Bolsonaro, se incorpora ou passa a gravitar uma série de regimes populistas ao redor do mundo.

Não parece haver uma organização, em todos os casos, esses indivíduos (Steve Bannon, Olavo de Carvalho) chegaram ao tradicionalismo por canais próprios e independentes. Então é fortuito. Por outro lado, no entanto, é preciso olhar para o zeitgeist ("espírito do tempo", em alemão). Se pensarmos no tempo em que vivemos, nos damos conta de que é uma era de turbulência, de revolução em alguns aspectos, de transformação radical, mudanças dramáticas para frente e para trás.

E isso acontece simultaneamente em toda a Europa, América do Norte, Sul da Ásia, América Latina. Nós vemos uma insatisfação generalizada das populações com o status quo. Se esse é o espírito de nossa época, então também não me parece estranho que os intelectuais, os gurus, os pensadores procurem pelas alternativas mais dramáticas que possam encontrar para oferecer uma saída. Então essa é a questão: o tradicionalismo é a alternativa teórica mais profundamente oposta ao liberalismo que alguém poderia propor.

BBC News Brasil - Qual é a diferença do tradicionalismo para o conservadorismo que conhecemos?

Teitelbaum - As diferenças são mais nítidas quando se pensa em termos de motivação e objetivo final. O tradicionalista médio e o homem branco do campo dos Estados Unidos, ou o pequeno agricultor do sul do Brasil, podem ter valores aparentemente parecidos. Eles podem ansiar por uma volta ao passado, ou daquilo que gostavam no passado, como os papéis sociais mais definidos, ou a sensação de ter um maior controle sobre sua existência. Ou até mesmo porque sentem que lá atrás entendiam melhor a política e a economia.

Mas para o conservador, a motivação em celebrar todas essas coisas não está necessariamente em uma teoria religiosa, numa profecia que deve se cumprir sobre o mundo.

Um conservador nos EUA, por exemplo, provavelmente pensa que as coisas costumavam ser melhores e alimenta o desejo de transformar a sociedade para que se pareça mais com o que costumava ser. Um tradicionalista, especialmente nas formas mais ortodoxas — e Olavo de Carvalho não é exatamente um deles nesse sentido particular —, pensaria que o declínio atual é profetizado e necessário, porque precisamos passar por um período de turbulência a fim de voltar para onde as coisas costumavam ser boas.

Então, os tradicionalistas anseiam pela destruição. Eles podem até de uma forma masoquista ou melancólica, desejar que as coisas sejam ruins agora.

Há tradicionalistas que apoiam o liberalismo e tudo o que eles alegam odiar porque pensam que ele precisa prosperar para depois entrar em colapso. Não faz parte do conservadorismo esse apelo apocalíptico, mas faz parte do tradicionalismo esse desejo de destruição e a crença de que as coisas têm que ser destruídas para haver um renascimento em virtude.

BBC News Brasil - O tradicionalismo, de acordo com seus estudos, obteve muitas vitórias ao enfraquecer órgãos multilaterais de relações entre os países, ao levar governos a tomar decisões que contrariassem a ciência. A pandemia de coronavírus foi um golpe para o tradicionalismo?

Teitelbaum - Depende com quem você fala. Uma coisa que devemos ter em mente é que, por não ser uma filosofia política, o tradicionalismo é muito vago em alguns pontos. E assim as pessoas podem tirar significados diferentes deles. O coronavírus é um ótimo exemplo.

Dois dos tradicionalistas que acompanhei mais de perto em meu livro, Steve Bannon e Alexander Dugin, colocaram isso de maneiras diferentes, mas ambos viam o vírus como um elemento de fortalecimento de sua visão de mundo.

Para Dugin, o vírus era uma punição para o globalismo, um veneno injetado em nosso caótico movimento cosmopolita, uma resposta ao nosso desprezo pelas fronteiras e nossa incapacidade de controlar os movimentos das pessoas neste mundo. Nessa lógica, o novo coronavírus introduz no mundo um novo sistema de punição e recompensa, que favorece tanto as ilhas geográficas quanto as ilhas políticas.

Bannon, em termos diferentes, disse que achava que poderia ver com a pandemia o fortalecimento da comunidade local novamente e um alargamento das escalas geográficas.

Já para Olavo e para o chanceler Ernesto Araújo, quem considero um tradicionalista, o coronavírus foi apenas mais um exemplo de como o globalismo estava se perpetuando. Para eles, foi a China quem orquestrou este novo vírus e esta nova pandemia para unificar o mundo em torno de si.

As duas perspectivas são inteligíveis dentro da lógica do tradicionalismo.

BBC News Brasil - As pessoas certamente podem acomodar suas visões de mundo a certas filosofias, mas quando te perguntei sobre a pandemia como um fator negativo para os tradicionalistas, me referia por exemplo à perda da eleição por Trump.

É possível que uma parte dos eleitores tenha punido Trump nas urnas por sua resposta ao vírus, que parece bastante inspirada no tradicionalismo: o fechamento de fronteiras, primordialmente, mas uma certa negação da ciência em relação a máscaras e a defesa de tratamentos sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina, ou a retirada de organismos multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde. O que deve acontecer com esse pensamento agora que ele perdeu?

Acompanhado de Trump, Bolsonaro cumprimenta integrantes do governo americano

CRÉDITO,ALAN SANTOS / PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Bolsonaro já afirmou 'amar' Trump, mas não foi retribuído pelo americano

Teitelbaum - Para te dar uma resposta mais completa sobre isso, eu precisaria ter visto mais apoiadores de Trump refletindo sobre a derrota dele. Mas, eles não estão fazendo isso e seguem dizendo que ele não perdeu, que há outra explicação nisso, e a explicação é a corrupção da burocracia moderna. Para os eleitores de Trump, não é uma conversa sobre o coronavírus, mas sobre como não se pode confiar nas instituições, na máquina burocrática moderna. A eleição representa isso.

Eu acrescentaria mais um aspecto. É verdade que os tradicionalistas na política subiram muitos degraus, estão mais visíveis. Mas eles continuam sendo poucos e não se pode dizer que suas ideias estejam ficando mais populares.

Por fim, a maneira como alguém como Steve Bannon interpreta a política não depende de Trump. Quero dizer, Trump era apenas uma ferramenta, na melhor das hipóteses, em sua ideologia, mas ele chegou a me confidenciar que estava muito animado com uma pré-candidata democrata à Presidência, (a líder espiritual e escritora) Marianne Williamson. Ela não adotava nenhuma das políticas de Bannon, mas falava sobre uma espécie de conflito cósmico entre o bem e o mal na sociedade.

Ela foi ridicularizada por ser o tipo de candidata esotérica na primária democrática. Mas se alguém assim passasse no crivo do processo, Bannon teria sentido que mudou algo com aquela campanha mais profunda de reposicionar os EUA como uma comunidade espiritual e lutar contra a política que se concentrava apenas em liberdade econômica ou em justiça econômica. Bannon adoraria ver debates entre sacerdotes. Portanto, seu movimento político pode ser mais profundo e não tão ligado a Trump quanto pode parecer.

BBC News Brasil - O que estamos vendo nos EUA agora, de acusações infundadas de fraude eleitoral e a recusa em aceitar o resultado, tem algo a ver com o tradicionalismo? O presidente Bolsonaro também afirmou, sem provas, que em 2018 houve fraude eleitoral no Brasil.

Teitelbaum - Isso ilustra o cruzamento de conceitos entre populismo e tradicionalismo, em uma espécie de congregação na esfera ideológica de direita. O questionamento da legitimidade da eleição é um lugar onde essas duas filosofias e suas maneiras de ver o mundo se cruzam.

O populismo dirá, genericamente, que o sistema é corrupto e os membros do establishment mandam no governo. E o sistema, ou o establishment, são os burocratas, funcionários públicos, cientistas, jornalistas, universidades, professores. O tradicionalismo diz a mesma coisa. Mas acrescenta que isso faz parte de um plano cósmico amplo e que estamos fadados a isso.

Os tradicionalistas lançam mão de um conceito do hinduísmo chamado de 'inversão'. Eles dizem que nesta era das trevas em que estamos vivendo, a maioria dos principais agentes de serviços de interesse públicos vai desempenhar a função oposta daquela que deveria desempenhar.

É realmente um passo simples para um tradicionalista se alinhar a um populista para dizer que a comissão eleitoral ou a eleição em si, cujo objetivo primordial é registrar a opinião da população, nessa era de declínio provavelmente dará o resultado oposto ao que o povo decidiu. Ou que um cientista vai espalhar ignorância sobre o mundo natural e um médico vai prejudicar seus pacientes, ao passo que o jornalista vai, na verdade, desinformar. O tradicionalismo empresta profundidade teórica e cor ao discurso populista.

BBC News Brasil - Segundo o seu argumento, parece que o tradicionalismo caiu como uma luva para o populismo e, ao mesmo tempo, viu nele uma possibilidade de chegar ao poder em países como o Brasil. Por que essa simbiose funcionou tão bem agora?

Teitelbaum - Essa é uma pergunta excelente e eu não tenho certeza se eu realmente sei a resposta. Se nós olharmos ao longo da maior parte da história, essa simbiose não funcionaria.

Se falarmos em termos sociológicos e não ideológicos, parte do que estamos vendo é que o eleitor populista médio, homem, de menor escolaridade, muitas vezes de vida rural, todos esses marcadores demográficos que conhecemos que aumentam o apoio aos partidos nacionalistas na Europa e a Trump e Bolsonaro, esse eleitor tem agora um espaço onde ele pode juntar forças com espiritualistas e esotéricos do "new age", aquelas pessoas que vão à seção de metafísica das livrarias e que normalmente são de um espaço social muito diferente do eleitor populista.

O que eles compartilham é essa insatisfação geral com o status quo, isso é o que está acontecendo aqui. Estamos vendo essa mudança mais profunda de opinião na sociedade, mas qual vai ser a funcionalidade e a profundidade dessa ligação, eu não saberia dizer.

Benjamin Teitelbaum

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL

Benjamin Teitelbaum estudou o pensamento político de Steve Bannon

BBC News Brasil - Como o sr. avalia a influência de Olavo de Carvalho no governo brasileiro? Ao mesmo tempo em que ideologicamente ele parece ter ditado as cartas durante um período, as posturas de Olavo são detonadoras de crises frequentes, e parece que em busca de estabilidade, o presidente Bolsonaro faz um jogo de aproximação e afastamento com ele. Faz sentido?

Teitelbaum - Olavo deliberadamente não aceitou uma posição formal no governo, que lhe foi oferecida. E isso é indicativo da personalidade mais ampla de Olavo, que é de não se associar a nada além de si mesmo. Tendo dito isso, qualquer observador do Brasil saberá que na medida em que um comentário público em uma rede social tem um papel a desempenhar na política e mudar posições governamentais, essa é a extensão do poder e da influência de Olavo. E o governo Bolsonaro está cheio de políticos que levam em consideração a rede social em sua atuação, o que torna o governo ainda mais suscetível a Olavo.

E há também um discurso sobre a influência do Olavo. Eduardo, o filho de Bolsonaro, já disse mais de uma vez que seu pai deve a eleição a Olavo. Mas, honestamente, é muito difícil dizer que isso é verdade, seria muito difícil quantificar isso, dizer que a formação dessa base eleitoral veio daí.

Mas esse é o discurso que existe em torno de Bolsonaro, e ele angariou poder político informal com essa percepção. Quanto à funcionalidade dessa figura para o governo, não acho que devamos atribuir intencionalidade, cálculo político ou mesmo lógica a tudo o que Olavo faz, mas na medida em que queremos entendê-lo, a estabilidade certamente não é um valor que ele irá perseguir. E a falta de interesse dele em estabilidade e o anseio por ruptura, destruição e demolição andam lado a lado.

E podem ser explicados pelo seu envolvimento anterior com o tradicionalismo. Olavo não atribui muito valor ao sistema político e a uma administração que funcione bem. Essas não são coisas que vão entusiasmá-lo. O que o anima é a destruição e a demolição.

BBC News Brasil - O sr. conhece bem o chanceler brasileiro Ernesto Araújo. Como ele poderá liderar um relacionamento entre o Brasil e os Estados Unidos sob administração de Joe Biden?

Teitelbaum - Essa é uma questão que devia ser colocada para todo o governo Bolsonaro, não só para o Araújo. Bolsonaro e Araújo apostaram na existência de uma espécie de Internacional Populista (em analogia à Internacional Comunista, fundada por Vladimir Lênin, em 1919, para congregar as forças comunistas de diferentes países ao redor do mundo) capaz de compensar a perda da China (como aliado principal), como uma força orientadora do Brasil no mundo. E nunca houve uma Internacional Populista, o mais próximo que se chegou foi a algo com a Polônia e a Hungria, e só. Então acho que é um grande erro geopolítico.

É um erro geopolítico, claro, mas se você quisesse buscar uma justificativa para isso, você teria que notar que essas pessoas, Ernesto Araújo, Olavo de Carvalho, e suas outras contrapartes, estão no governo porque não se importam muito em manter o funcionamento do sistema.

Steve Bannon e Olavo de Carvalho

CRÉDITO,REUTER / Steve Bannon (à esq.) conversa com o professor e guru conservador Olavo de Carvalho, em foto de arquivo

Eles não querem ser a parte responsável de um governo. E eles não querem ver uma rede geopolítica global robusta que seria capaz de hospedar o Brasil como membro. Ainda assim, acho que foi um erro de cálculo porque eles estavam fazendo quase tudo que podiam para se alinhar com Trump e os Estados Unidos quando deveriam saber o tempo todo que estavam colocando os pés em uma canoa muito instável.

BBC News Brasil - Steve Bannon, o ideólogo de Trump a quem o senhor seguiu de perto, foi recentemente preso em um processo no qual é acusado de ter se apropriado de doações que apoiadores de Trump fizeram para construir um muro na fronteira com o México. Esse episódio mudou sua forma de vê-lo?

Teitelbaum - Não, não mudou minha visão. Eu o respeito como um pensador sério, cujo pensamento seja digno de atenção e análise. E acho que conceder isso a ele não significa que ele não possa ser um corrupto ou alguém que corrompa, ou que tenha feito ou faça outras coisas ruins. Temo que chamar alguém de interessante ou mesmo chamar alguém de inteligente à sua maneira seja visto como um elogio abrangente demais, quando não é. Ele elegeu Trump, ele fez uma série de coisas relevantes, e é interessante tentar entender a lógica dele, o porquê ele as fez.

No caso do processo, temos uma situação um tanto estranha. Ele foi preso acusado de lavagem de dinheiro para sua organização na questão do muro. O que muitas pessoas não se deram conta é que ele foi preso em um iate de um filantropo chinês. E ele estava ali por alguma razão, e a polícia rebocou o iate, para fazer buscas ali.

Eu não sou advogado, mas estudiosos do direito que olharam para o papel específico de Bannon nesse processo têm dito que os outros presos envolvidos estão em apuros, mas há boas chances de Bannon se safar das acusações de lavagem de dinheiro. Então a ação no iate poderia estar relacionada às atividades de Bannon na China. E isso é muito factível porque ele teve tantos negócios, ele movimentou tanto dinheiro, tem tantas associações envolvidas em tantos projetos, muitas das quais faliram, aliás, que não seria difícil que algo ilegal tenha acontecido em algum ponto dessas transações.

BBC News Brasil - O que explica a oposição desses ideólogos à China?

Teitelbaum - A China surge como o grande contrapeso para os Estados Unidos, quer você goste disso ou não, e Bannon e Olavo claramente não gostam. Suas razões para não gostar disso são o materialismo e o secularismo que a China representa, além de os chineses operarem uma forma de globalização na qual os Estados Unidos não estão. Mas não se trata só de uma oposição política nacionalista, há um tipo mais profundo de oposição espiritual à China. A China funciona como o avatar da falta de fronteiras do capitalismo, materialismo e secularismo que eles rejeitam.

BBC News Brasil - Em uma entrevista à BBC News Brasil em meados deste ano, Olavo de Carvalho criticou duramente seu livro quando foi publicado e negou que seja tradicionalista. Por que ele fez isso?

Teitelbaum - Bem, ele reage dessa forma a muitas pessoas que escrevem sobre ele. Então eu esperava isso um pouco, mas ainda assim fiquei surpreso. Parece-me bastante óbvio que o material sobre a tariqa (organização esotérica da qual Olavo fez parte) realmente o incomodou. Eu fiquei surpreso porque na entrevista que ele deu a você, ele diz alguns insultos a mim para depois basicamente repetir toda a história conforme contei. Há apenas algumas exceções que contradizem coisas que ele mesmo me disse em entrevistas. E ele sabe disso.

Notavelmente, ele não estava na tariqa porque estava interessado na filosofia persa. Ele estava lá porque ele estudava tradicionalismo e queria praticar. Ele não queria que fosse apenas um estudo teórico, queria viver a prática do tradicionalismo.

Outra coisa é que ele compara sua experiência na tariqa como se fosse equivalente à passagem dele pelo Partido Comunista. Isso não é real. Ele jamais traduziu as obras de Karl Marx e as distribuiu. E quando ensinou sobre comunismo aos seus alunos, ele o fez sem qualquer caráter elogioso, enquanto com o tradicionalismo, ele se debruçou em traduzir obras do judaísmo referentes a ele e continua a ensinar o tradicionalismo para gerações de estudantes.

Alguns de seus ex-alunos descrevem suas experiências em aulas como tendo sido compelidos a celebrar René Guénon (um dos mais importantes autores do tradicionalismo) como uma espécie de divindade. Então essa história está aí e não sou o primeiro a falar sobre ela, mas vê-la exposta dessa forma parece realmente ter incomodado um tanto quanto o Olavo.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington, em 19 dezembro 2020

Imunidade e responsabilidade do presidente

A imunidade do presidente da República é muito ampla, mas não é total. Tudo o que se faz no cargo é plenamente passível de responsabilização

Ao tratar das responsabilidades do chefe do Executivo, a Constituição dispõe: “O presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções” (art. 86, § 4.º). Excepcionalíssima, essa imunidade é atribuída exclusivamente ao presidente da República. Seu objetivo é assegurar condições para o exercício do cargo, impedindo a responsabilização de qualquer ato, por mais grave que seja, não relacionado às funções presidenciais.

A Constituição fez, assim, clara opção. Considera que é preferível atrasar a investigação de eventuais atos ilegais do presidente da República que não estejam relacionados à sua função presidencial do que submeter o ocupante do Palácio do Planalto a pressões judiciais que poderiam trazer graves prejuízos ao País. Mais do que preservar a pessoa do presidente da República, essa imunidade constitucional vem proteger o exercício da função presidencial. Seu objetivo é assegurar que o chefe do Executivo federal possa, de fato e de direito, exercer o poder que lhe foi conferido pelo voto popular.

Muitas vezes, essa imunidade foi criticada, como se fosse instrumento de impunidade. A autoridade que, de certa forma, concentra mais poder no País teria um regime privilegiado. Concorde-se ou não com a crítica, é preciso reconhecer que a imunidade do presidente da República é de fato muito ampla. Ele não pode ser responsabilizado por nenhum ato estranho ao exercício de suas funções.

Esse quadro de ampla e excepcionalíssima imunidade pode, de fato, conduzir a uma equivocada impressão: a de que o presidente da República seria, na vigência do mandato, irresponsável por seus atos. Trata-se de não pequeno engano. A despeito da imunidade constitucional relativa a todos os atos estranhos ao exercício de suas funções, o presidente da República – precisamente por ter um cargo com amplos poderes, envolvendo áreas muito amplas – tem uma imensa responsabilidade, também jurídica, sobre seus ombros.

Ao contrário do que possa parecer, não é nada difícil que o chefe do Executivo pratique, no exercício do mandato, uma atividade ilegal. Levando o raciocínio ao extremo, para que haja um ato ilícito não é necessário que o presidente da República integre uma organização criminosa ou utilize o cargo para desviar recursos públicos para contas bancárias de familiares. Em 2016, por exemplo, o País acompanhou o julgamento das ilegais pedaladas fiscais da presidente Dilma Rousseff.

Mas não são apenas atos de natureza fiscal que podem trazer problemas jurídicos ao ocupante do Palácio do Planalto. A título de exemplo, basta que um presidente da República não respeite zelosamente os limites e finalidades dos órgãos públicos que servem ao Executivo federal para que seus atos facilmente tangenciem os campos da ilegalidade. A lei tem parâmetros precisos. Por exemplo, a presença do diretor-presidente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e do chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) em reunião para tratar da defesa jurídica de um filho do presidente da República é claro indício de uso indevido do aparato público em benefício particular, o que constitui crime de responsabilidade. O que dizer se a agência ainda produz relatórios informais para os advogados do primogênito? 

Além disso, há muitas luzes sobre o exercício da Presidência da República. Dificilmente um ato presidencial fora dos limites legais não é notado, por exemplo, pela Procuradoria-Geral da República.

A imunidade do presidente da República é muito ampla, mas não é total. Tudo o que se faz no cargo é plenamente passível de responsabilização. Nesse sentido, as disposições constitucionais não são uma autorização para que se faça o que quiser no cargo e com o cargo – ainda que algum incauto possa assim pensar. Na verdade, toda a Constituição está orientada precisamente para o exercício responsável do poder. Por isso, comete grave engano, com sérias consequências jurídicas, quem acha que a imunidade do art. 86 é um alvará para fazer o que bem entender na Presidência da República.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 21 de dezembro de 2020 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Brasil registra 811 mortes por coronavírus nas últimas 24 horas

País já contabilizou 185.687 óbitos e 7.163.912 casos de Covid-19 desde o início da pandemia.

O consórcio de veículos de imprensa divulgou novo levantamento da situação da pandemia de coronavírus no Brasil a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde, consolidados às 20h desta sexta-feira (18).

O país registrou 811 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, chegando ao total de 185.687 óbitos desde o começo da pandemia. Com isso, a média móvel de mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 748. A variação foi de +29% em comparação à média de 14 dias atrás, indicando tendência de alta nos óbitos pela doença.

Em casos confirmados, desde o começo da pandemia 7.163.912 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus, com 52.385 desses confirmados no último dia. A média móvel nos últimos 7 dias foi de 46.800 novos diagnósticos por dia. Isso representa uma variação de +14% em relação aos casos registrados em duas semanas, o que indica tendência de estabilidade nos diagnósticos.

17 estados e o DF apresentaram alta na média móvel de mortes: PR, RS, SC, MG, RJ, SP, DF, GO, MS, MT, PA, RO, AL, BA, CE, PB, RN e SE

Brasil, 18 de dezembro

Total de mortes: 185.687

Registro de mortes em 24 horas: 811

Média de novas mortes nos últimos 7 dias: 748 (variação em 14 dias: +29x%)

Total de casos confirmados: 7.163.912

Registro de casos confirmados em 24 horas: 52.385

Média de novos casos nos últimos 7 dias: 46.800 por dia (variação em 14 dias: +14%)

(Antes do balanço das 20h, o consórcio divulgou um boletim parcial às 13h, com 184.992 mortes e 7.120.103 casos confirmados.)

Estados

Subindo (17 estados + o DF): PR, RS, SC, MG, RJ, SP, DF, GO, MS, MT, PA, RO, AL, BA, CE, PB, RN e SE

Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente (7 estados): ES, AC, AM, RR, TO, PE, PI

Em queda (1 estado): MA

Não divulgou (1 estado): AP

Por G1 / 18/12/2020 13h00  Atualizado há 2 minutos