terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Decrépito torturador de almas, Bolsonaro não cabe no cargo que ocupa, nem cabe no Brasil

Presidente tem a sorte de se deparar com gente que silencia sobre seus criminosos desvarios, cujos limites morais podem não ser tão baixos quanto os dele, mas com pontos de intersecção

A esta altura de 2020, qualquer pessoa que acompanhe minimamente o noticiário sabe que não há o que se surpreender com as atrocidades perversas que saem da boca do presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Ao zombar da tortura da ex-presidenta Dilma Rousseff ele só mostra sua verve de torturador que sempre soubemos que ele tinha. Não há diferença entre a frase dita nesta segunda, 28, ―“Dizem que a Dilma foi torturada e fraturaram a mandíbula dela. Traz o raio-X para a gente ver o calo ósseo”― e o “Quem procura osso é cachorro”, dita em maio de 2009, quando ele humilhava parentes de desaparecidos na ditadura ―assassinados por militares que pensam como Bolsonaro― que faziam pressão por localizar os restos mortais de seus familiares.

Bater covardemente em alguém, ainda mais uma mulher, ex-presidenta, só é típico dos bárbaros, dos mesquinhos, dos pequenos que têm inveja, dos futriqueiros venenosos, dos picaretas. Debater o porquê dele ter sido eleito e o que isso diz dos seus eleitores é algo que já se estendeu até demais nestes últimos dois anos. Já sabemos que Bolsonaro não é o mal puro, mas a síntese da maldade coletiva de um Brasil perverso, deformado. Não se trata somente da deformação dos que identificam e celebram sua crueldade, mas a distorção dos que não tiveram a chance de aprender e alcançar o que uma frase tão delinquente quanto a que ele pronunciou sobre Dilma faz mal à saúde do Brasil e à nossa democracia. A frase não é só sobre o passado. Ela tem uma correia de transmissão com a tortura que acontece nas delegacias e nas periferias do país todos os dias.

Custa chamar Bolsonaro de presidente da República. Ele não cabe nesse posto. Não representa o povo brasileiro, nem uma aspiração coletiva, nem um exemplo a ser seguido. Seus dois anos já demonstram que ele seria incapaz de fazer história com grandes realizações e contribuições para o Brasil. Não tem bondade, não tem empatia, não tem honra, nem respeito. Tem atitudes de um covarde, um sabotador nacional, com auxílio de muitos que o ajudaram a chegar lá e agora se descolam, como o ex-ministro Sergio Moro. O ex-juiz sabia exatamente o tamanho da própria credibilidade naquele momento e recebeu todos os alertas de quem era e agora vira e mexe o critica. Mas a última vez que Moro o criticou, no último dia 28, foi em função do atraso na campanha da vacinação. Não para condená-lo por Bolsonaro ter exortado a tortura a que foi submetida a ex-presidenta Dilma.

Bolsonaro sobrevive e, sim, uma tempestade perfeita pode reconduzi-lo ao poder em 2022. Ele tem a sorte de se deparar com uma época de lideranças fracas no Brasil, de gente que silencia sobre seus criminosos desvarios, cujos limites morais podem não ser tão baixos quanto os dele, mas com pontos de intersecção. É o constrangimento de ver o Supremo Tribunal Federal e procuradores de São Paulo envolvidos em pedido de prioridade na vacinação. É o marketing de gestor do governador João Doria cortando verbas de Ciência em São Paulo ―afora uma viagem desastrada quando os números da covid-19 estavam subindo. É deputado se gabando de ter ganhado fuzil de presente. Justiça seja feita, Bolsonaro tem um papel fundamental para a história brasileira ao mostrar aos que defendem a democracia o tamanho da nossa arrogância e ignorância sobre o Brasil real. Nos contentamos com pouco achando que o pouco era muito porque era somente para nós.

Pois bem. Os anestesiados pelo pavor da miséria no poder com a ultradireita estão ganhando anticorpos e, se o presidente ainda goza de prestígio num grupo de eleitores, esse mesmo grupo vai cobrar a fatura quando os erros de Bolsonaro trouxerem a colheita. Ele, que apontava o confinamento vertical no início da pandemia como um antídoto para proteger a economia ―e não ficar para trás num mundo competitivo―, teve a incompetência de deixar o Brasil a esmo para montar uma campanha de vacinação nacional e isso cobrará seu preço no tempo da nossa recuperação. Mais valeram as picuinhas e as artimanhas grotescas do que focar num plano que finalmente o poderia colocar à altura de um estadista.

Bolsonaro não cabe no cargo de presidente e sua monstruosidade se destaca a cada dia no mundo em que vivemos. No momento em que a Argentina avança no debate sobre aborto, jovens vão às ruas no Peru, chilenos reescrevem sua Constituição, mexicanos e costa-riquenhos lideram a vacinação na América Latina, o presidente brasileiro vai se tornando um corpo estranho. É o presidente que mente ao mundo culpando indígenas pelos incêndios no Pantanal, o machista arcaico num mundo cada vez mais feminista, o torturador de Dilma no dia do seu impeachment.

Pode ser que faltem dois ou até seis anos para que o peso de suas palavras o derrubem por si só. Para que seja o pária nacional, o antiexemplo, a dor na alma, a vergonha do Brasil. Tal qual quando na ditadura havia uma vergonha popular de dizer que se apoiou os crimes covardes do governo militar. Bolsonaro é o representante dos militares que iam botar bomba no atentado do Riocentro, dos militares que esconderam o rosto da fotografia enquanto Dilma era interrogada então com 22 anos. Dilma pode não ter sido tão popular enquanto presidente e isso é uma verdade que não se pode apagar. Mas seu tamanho e sua trajetória estarão altivas nos livros de história. Os de Bolsonaro, não.

CARLA JIMÉNEZ, EL PAÍS / 29.12.2020

Brasil encerra ano sem saber se o pior já passou

Desigualdade em ascensão, um governo sem um plano claro, uma economia debilitada, um país isolado: o Brasil de 2021 é uma verdadeira era das incertezas. O fundo do poço, dizem especialistas, pode ainda não ter chegado.

Pandemia já deixou quase 200 mil mortos no país

Com um cenário político turbulento como pano de fundo, um presidente em constante conflito com outros poderes e incertezas sobre a chegada de uma vacina para a covid-19, os brasileiros chegam ao fim de 2020 sem saber se o pior da pandemia - e da crise econômica associada à ela - já passou no país, cada vez mais isolado internacionalmente.

"O ano de 2020 é surpreendente", avalia o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social. "O mercado de trabalho foi para o inferno, mas olhando para a renda de todas as fontes, a gente foi para o céu."

Entre os países emergentes, nenhum gastou tanto com auxílios como o Brasil, lembra Neri. E com esse auxílio emergencial, que chegou a 67 milhões de brasileiros, um terço da população, "a taxa de pobreza foi para o menor nível da historia documentada, depois de todos os índices terem piorado muito entre 2014 e 2019, os anos de grande recessão dos pobres."

"Com isso, 15 milhões de pessoas saíram da pobreza, comparado com 2019. A pirâmide de distribuição de renda nunca foi tão boa quanto em setembro de 2020", afirma. 

O governo, que se diz seguidor da Universidade de Chicago, foi mais para Cambridge e John Maynard Keynes, com sua política anticíclica. Só que o auxílio caiu pela metade, a partir de setembro, e com isso a pobreza aumentou 17% em um único mês. "Uma parte das pessoas que tinham saído da pobreza já voltaram", comenta o especialista. 

Agora, frente à segunda onda da pandemia, os caixas do governo já estão vazios, deixando a situação fiscal do Brasil deteriorada, com uma dívida bruta de mais de 90%. E ainda não há nada anunciado para substituir o auxílio emergencial, que se encerra em dezembro.

"O Brasil de 2021 agora é uma verdadeira era das incertezas máximas", diz Neri. E o resumo de 2020? "Olhamos para 2020 como uma espécie de um realismo fantástico sul-americano, uma situação muito ruim no mercado de trabalho que deve ditar o que acontece em 2021."

A natureza do governo Bolsonaro

"O Brasil está longe do fundo do poço", avalia o cientista político Marco Aurélio Nogueira. Para ele, o cenário político turbulento deve contribuir para a continuação da crise. "As guerras contra o Congresso e a Suprema Corte prosseguirão. Porque compõem um programa de trabalho do presidente, assim como os ataques à imprensa. Essa é a natureza do governo e da persona do presidente." 

Quanto mais as eleições de 2022 se aproximam, mais radical o presidente tende a ficar, acredita Nogueira. Para ele, o caso da vacina contra o coronavírus é emblemático. "Ele fala em união num dia, e grita contra a vacina no outro." Com isso, ele tenta dar sustento aos dois grupos que são importantes para seu plano de reeleição: a grande massa do povo, e os setores radicalizados do bolsonarismo.

E ainda haverá uma disputa dura sobre as duas presidências do Congresso, principalmente pela da Câmara, que definirá se o governo terá uma vida dura, se perder esta eleição, ou uma vida um pouco mais tranquila, caso consigo emplacar o próprio candidato.

Mas, mesmo assim, as tarefas para 2021 serão difíceis. "É um governo muito ruim, sem qualidade, sem capacidade de articulação, sem generosidade para com a sociedade", diz Nogueira. Isso, segundo ele, afeta todos os ministérios, mas, principalmente, os ministérios de Saúde e Educação e a área da cultura. 

"Mas o desgoverno também é muito prejudicial para o Meio Ambiente e para o relacionamento externo do Brasil. Não por acaso, são dois dos ministérios mais frágeis e mais carregados de problemas, mais criadores de atritos do governo Bolsonaro", comenta.

Lembrando que, em 2021, Bolsonaro não terá mais Donald Trump como aliado ideológico na Casa Branca. Joe Biden, por sua vez, deve se juntar aos europeus para pressionar o Brasil a investir na preservação ambiental. O novo presidente estadunidense já deixou claro que até pode pensar em sanções contra quem não protege o meio ambiente.

O resumo que Nogueira faz de 2020 é duro: "O governo deixou de lado o governar, não governou e tentou compensar essa falta de governança com uma exacerbação do discurso ideológico. Não poderia dar certo isso, sobretudo num país com tantos problemas como o Brasil".  

A dúvida da vacina

Para um ano de 2021 melhor que 2020, muito depende do sucesso da vacina no Brasil. Num ritmo de 600 mortes por dia, o Brasil se aproxima, atualmente, de 200 mil óbitos por covid-19. Mas até nesta área de vacinas, o Brasil está atrás.

"O Brasil tinha tudo para ser, provavelmente, o primeiro país da América Latina a vacinar sua população inteira, pois tem um dos melhores programas de imunização do mundo, e nós sabemos fazer vacina e sabemos fazer campanha de vacinação", diz a microbiologista Natália Pasternak Taschner, da USP. "A grande surpresa foi ver que o atual governo realmente conseguiu atrapalhar até o que a gente tinha de melhor, por falta de planejamento, por falta de gestão e por interesse político."

Assim, o Brasil começa 2021, segundo Pasternak, com uma superestrutura para a vacinação, mas sem vacina. "Não foram feitos acordos internacionais em números suficientes para garantir o número de doses necessárias para vacinar uma população tão grande como a nossa", diz. 

Neste momento, o governo brasileiro só fechou um contrato, com o laboratório AstraZeneca, cuja vacina vai atrasar. E o governo paulista tem um contrato com a chinesa Sinuvac, cuja vacina Coronavac ainda está cercada de dúvidas frente à sua eficácia. E que sofreu ataques fortes pelo governo de Jair Bolsonaro por ser a 'vacina chinesa".

"Provavelmente não vamos conseguir vacinas toda a população em 2021", avalia Pasternak. Mas ela espera que, pelo menos, será possível vacinar uma parte tão grande que "vamos poder retomar um pouco da nossa vida normal, da nossa economia, da nossa sociedade".

Podia ter sido melhor. "Não houve vontade política, e não houve - até este momento - uma conscientização da gravidade da situação. Nem pelo governo federal e nem por grande parte da população, como estamos vendo agora com as festas de final do ano", afirma. "As pessoas ainda não entenderam que elas tem um papel para cumprir na prevenção da doença. O comportamento delas pode definir como será o nosso ano de 2021." 

Para o economista Neri, o Brasil ainda não chegou no fundo do poço "Talvez a gente estivesse com a cara surpreendentemente para fora do poço. Só que a gente vai voltar para o poço. Podemos até chegar a um lugar mais baixo no fundo do poço do que a gente estava antes da crise", diz. Mas o economista não é só pessimista. "Às vezes, o Brasil, quando está na beira do abismo, começa a fazer coisas para não cair."

Deutsche Welle, em 29.12.2020

O ano em que o Brasil virou pária

Gestão desastrosa da pandemia e antagonismo com parceiros aceleraram isolamento do país, em processo celebrado pelo governo como conquista. Hoje, nenhuma nação da estatura do Brasil tem reputação tão ruim no mundo.

Em outubro, o ministro Ernesto Araújo disse que, se a atual política externa do Brasil "faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária".

A fala de Araújo escancarou pelo segundo ano consecutivo o isolamento do país no cenário internacional, e que o quadro não vem ocorrendo por acidente, mas aparentemente como um projeto voluntário do governo Bolsonaro.

Em 2019, a diplomacia brasileira já havia se tornado uma "caixinha de surpresas" propensa a alimentar crises regulares, com desprezo ao multilateralismo e instituições internacionais.

Em 2020, em vez de reverter esse "novo curso" que só empurrou o país para um isolamento nunca visto desde a redemocratização, o governo trilhou o mesmo caminho, dobrando a aposta em cada crise e erodindo ainda mais o soft power acumulado pelo país nas últimas décadas.

O Brasil continuou a se distanciar dos seus vizinhos latino-americanos; foi na contramão de boa parte do mundo na gestão da pandemia de covid-19; fez apostas fracassadas como a manutenção de uma pretensa relação especial com Donald Trump; se viu excluído de debates onde o país costumava ter voz ativa, como a questão do meio ambiente; e reforçou uma política de hostilidade a grandes parceiros comerciais, como a União Europeia e a China.

"Nenhum país da estatura do Brasil tem reputação tão ruim", diagnosticou o diplomata Rubens Ricupero em abril. "A imagem positiva acabou", apontou Friedrich Prot von Kunow, presidente da Sociedade Brasil-Alemanha (DBG) e que foi embaixador no Brasil entre 2004 e 2009.

Mas a diplomacia da maior economia da América Latina já demonstrou não ligar para esses diagnósticos. "Esse pária aqui, esse Brasil, essa política do povo brasileiro, tem conseguido resultados", completou Araújo no seu discurso em outubro.

Entre os "resultados" da diplomacia bolsonarista estão: a continuidade da perda de apoio para o acordo entre Mercosul e União Europeia mesmo entre países europeus mais simpáticos ao pacto, como a Alemanha; e até a perspectiva da imposição de sanções internacionais ao país por causa da sua gestão relapsa do desmatamento.

Bolsonaro e Ernesto Araújo. Juntos, os dois colocaram o Brasil numa posição de isolamento nunca vista desde a redemocratização

Se em 2019 algumas das ações da diplomacia bolsonarista ainda provocavam alguma reação de setores do governo, temorosos de possíveis consequências econômicas, como as alas militar e do agronegócio, o mesmo não foi observado de 2020.

Araújo continuou a ter mão livre no Itamaraty para implementar sua agenda "antiglobalista” na máquina diplomática brasileira, endossando ataques de um dos filhos do presidente à China e transformando o ministério num palco de palestras para blogueiros propagadores de fake news.

A imagem do país como vilão ambiental continuou a se firmar no exterior, graças à persistência do desmatamento e a péssima repercussão de falas e ações do ministro Ricardo Salles, que reforçaram a pressão na Europa pelo boicote a produtos brasileiros.

Se houve alguma reação para frear a nova diplomacia bolsonarista, ela veio do Congresso brasileiro. Em dezembro, em uma derrota estrondosa para o Itamaraty bolsonarista, um embaixador indicado por Araújo para um posto em Genebra foi rejeitado pelo Senado por 37 votos a 0. Foi apenas a terceira rejeição do tipo na história da Casa. Apenas governos enfraquecidos como a segunda administração Dilma Rousseff (2015) e Jânio Quadros (1961) haviam sofrido derrotas similares em indicações para postos diplomáticos.

A cegueira em relação aos EUA

O alinhamento sem ressalvas ao EUA de Donald Trump se aprofundou em 2020. O governo colheu alguns frutos dessa aliança, como as assinaturas de um acordo militar e de tratados comerciais. No entanto, Brasília continuou a fazer concessões generosas – como isenções na importação de etanol dos EUA – e ainda teve que engolir medidas por Washington para reduzir a entrada de aço e alumínio brasileiros, que exemplificaram a relação desigual entre os dois países.

Bolsonaro também continuou a manifestar sua idolatria por Trump, torcendo abertamente pela reeleição do republicano, para o desânimo de diplomatas veteranos, que alertaram sobre os riscos de a bajulação do brasileiro queimar pontes com os democratas.

Bolsonaro e Trump em março. Brasileiro foi aos EUA para assinar acordo militar, mas viagem ganhou notoriedade pela quantidade membros da comitiva que voltaram com covid-19

Em 2019, Bolsonaro já havia exibido comportamento similar em relação às disputas presidenciais na Argentina e no Uruguai. No entanto, a atitude com a eleição nos EUA foi mais longe. Semanas antes do pleito, o governo Bolsonaro chegou a fornecer um palco em Roraima para que o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, fizesse um duro discurso contra o regime chavista, no que foi encarado como um gesto para conquistar o voto conservador latino no estado da Flórida.

Depois do pleito, Bolsonaro também endossou acusações sem provas de Trump de que a eleição foi marcada por fraudes. "Tenho minhas fontes", disse Bolsonaro. Pouco depois, a imprensa revelou qual seria essa "fonte": o embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster. Em vez de fornecer informações precisas sobre o que se passava nos EUA – algo que se espera de qualquer diplomata –, Forster simplesmente repassou o discurso repleto de fake news do líder republicano, mesmo diante da vitória incontestável do democrata Joe Biden, num sinal de como o serviço diplomático brasileiro foi contaminado pela visão fanática de Araújo.

Municiado com o que queria ouvir – e não com o que realmente se passava –, Bolsonaro se recusou por semanas a reconhecer a vitória de Biden, permanecendo em companhia de outros párias internacionais como a Rússia e Coreia do Norte. Quando o resultado foi oficializado pelo colégio eleitoral em 14 de dezembro, o Brasil foi o último país do G20 a finalmente reconhecer Biden.

A vitória democrata não marcou apenas uma decepção pessoal para Bolsonaro e Araújo. Também sinaliza mais problemas para o Brasil. Biden, que prometeu adotar uma política ambiental oposta a de Trump, chegou a mencionar em setembro a possibilidade de impor sanções ao Brasil por causa da má gestão do país na questão do desmatamento. Em resposta, Bolsonaro insinuou a possibilidade de um conflito militar entre o Brasil e o novo governo americano em relação à Amazônia.

Covid-19: na contramão do mundo

Em abril, ainda da primeira fase da pandemia, Araújo explicou como a diplomacia brasileira deveria encarar a pandemia. A prioridade não era a busca de cooperação internacional contra o coronavírus, mas o que o ministro chamou de "comunavírus", que seria uma conspiração "comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado".

O Brasil seguiu sem ressalvas o americano Trump em uma ofensiva contra a Organização Mundial da Saúde. O comportamento permaneceu intocado até mesmo depois da derrota eleitoral do republicano.

O americano Mike Pompeo e Araújo em Roraima. Governo Bolsonaro forneceu palco para que o secretário de Estado fizesse um afago no eleitorado latino da Flórida

Ao longo da pandemia, Bolsonaro também adotou um comportamento pessoal que emulou o roteiro inicialmente desenhado por Trump: minimizar o vírus, sabotar esforços de distanciamento e promover "curas" sem comprovação científica. Trump, no entanto, respondeu citando o Brasil como "mau exemplo" de gestão da pandemia, em parte para tirar o foco de suas próprias ações desastradas.

Mas Bolsonaro também logo superaria seu homólogo americano. Apesar de ter minimizado a covid-19, Trump direcionou recursos robustos para o desenvolvimento de uma vacina, que já começou a ser aplicada nos EUA.

Bolsonaro, em contraste, pouco fez para garantir a imunização em massa. O Brasil segue atrás até mesmo de outras nações da América Latina. "Não dou bola para isso”, disse Bolsonaro logo depois do Natal.

O líder brasileiro ainda tem alimentando paranoia sobre os imunizantes, afirmando que não pretende se vacinar. É o único chefe de estado ou de governo do mundo que vem agindo contra esforços de imunização em massa. O brasileiro também não manifestou interesse em participar de reuniões internacionais sobre a gestão da crise.

O comportamento rendeu a Bolsonaro comparações no exterior com outros líderes que preferiram ignorar a pandemia, como os ditadores de Belarus, Nicarágua e do Turcomenistão, outros personagens da "Aliança de Avestruz", como definiu o Financial Times.

Antagonismo renovado contra a China

Em 2019, o governo Bolsonaro já havia ensaiado atritos com a China, mas o comportamento foi interrompido após reclamações de exportadores, temerosos de alguma retaliação do maior parceiro comercial do país.

Em 2020, tais freios não fizeram diferença.  Em dois episódios distintos, em março e novembro, Eduardo Bolsonaro, o filho "03” do presidente –que atua muitas vezes como eminência parda do Itamaraty –, lançou ataques contra o governo chinês em questões como a gestão da pandemia e o 5G. Em abril, quando ainda ocupava o cargo de ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicou um tuite racista que ridicularizou o sotaque chinês, acusando ainda o país asiático de planejar dominar o mundo. Como reforço, redes ligadas à família Bolsonaro espalharam mensagens xenófobas e paranoicas contra os chineses, como teorias conspiratórias de que o vírus havia sido criado em laboratório.

Os chineses, que por décadas exerceram uma diplomacia discreta, reagiram com uma fúria inédita em relação ao Brasil. Em março, o embaixador chinês no Brasil afirmou que Eduardo Bolsonaro havia contraído um "vírus mental”. Em novembro, a embaixada elevou o tom outra vez e disse que o Brasil poderia vir a "arcar com consequências negativas” caso persistisse nessa rota. Em vez de tentar acalmar a situação, o ministro Araújo repreendeu os chineses pela reação e pediu retratação.

A advertência provocou temores de alguma retaliação econômica, como as tarifas que Pequim impôs à Austrália ao longo do ano em produtos como cevada e carne bovina, no que foi encarado como uma reação de Pequim às críticas de autoridades australianas sobre a gestão da pandemia no país asiático.

Pouco caso em relação aos vizinhos

Antes mesmo de tomar posse, Bolsonaro e sua equipe manifestaram desprezo pelo Mercosul. Em 2019, o presidente chegou a afirmar que poderia retirar o Brasil do bloco caso a Argentina "criasse problemas" sob o governo de Alberto Férnandez. Em 2020, a relação com o maior parceiro comercial do Brasil na América do Sul não melhorou. Desde a posse de Férnandez, em dezembro de 2019, o líder brasileiro só foi conversar pela primeira vez com seu homólogo argentino no fim de novembro.

No segundo ano de governo, a diplomacia bolsonarista evitou até mesmo se aproximar de governos com quem poderia ter mais afinidade ideológica, como o colombiano Iván Duque e o chileno Sebastián Piñera. Foram raras as ocasiões em que Bolsonaro dialogou com os dois líderes em 2020.

Bolsonaro também evitou participar em dezembro de duas reuniões virtuais organizadas por Piñera que envolveram a Aliança para o Pacífico e o Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul), organização que o Brasil aderiu em 2019 durante o esvaziamento da Unasul. O objetivo do último encontro era discutir a propagação do coronavírus pela América do Sul.

Já o alinhamento automático do Brasil com os EUA esvaziaram outros mecanismos, como o Grupo de Lima (formado por 14 países da região), criado para encontrar uma solução para a crise da Venezuela. Hoje, o Brasil se limita a discutir a situação do país vizinho essencialmente com os EUA. Em janeiro, a diplomacia bolsonarista também decidiu retirar o Brasil da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que reúne 33 países.

Vilão ambiental, mais uma vez

Em 2020, a pandemia obscureceu a pauta ecológica, mas o derretimento da imagem brasileira na área persistiu, desta vez com o reforço das queimadas no Pantanal A fala de Ricardo Salles sobre aproveitar a crise para desmantelar regulamentos ambientais provocou ultraje entre organizações do exterior e parlamentares europeus.

Petições também foram lançadas na Alemanha e Reino Unido para pressionar redes de supermercado a boicotarem produtos brasileiros. As redes responderam ameaçando aderir ao boicote caso inciativas como a MP da grilagem" fossem aprovadas no Brasil. Em junho, foi a vez de 29 fundos de investimento e pensão, que administram US$ 4,1 trilhões, alertarem contra a o projeto e sobre o aumento do desmatamento no Brasil.

Em 2019 o governo brasileiro havia respondido iniciativas similares com insultos. Neste ano, ocorreram novas reações agressivas – como a bravata de Bolsonaro sobre a divulgação de uma lista de países que compram madeira ilegal do Brasil –, mas o governo tentou lançar algumas iniciativas para melhorar a imagem, que, porém, se revelaram amadoras.

Protesto do Greenpeace em Berlim contra a destruição da Amazônia. ONGs continuaram a ser alvos do governo Bolsonaro em 2020

No início de novembro, o vice-presidente Hamilton Mourão, que assumiu a tarefa de combater às queimadas, convidou embaixadores europeus para um giro pela Amazônia. A iniciativa não impressionou. O representante da Alemanha afirmou que a percepção alemã sobre a destruição da floresta não mudou.

Ao longo de 2020, os alemães e os noruegueses continuaram a bloquear recursos do Fundo Amazônia diante da falta de empenho brasileiro em combater o desmatamento e em reverter decisões unilaterais por parte de Brasília que mudaram a gestão dos recursos.

Ao mesmo tempo em que tentava cultivar os embaixadores, o governo brasileiro lançou uma campanha publicitária para questionar "interesses nem sempre claros na Amazônia”, insinuando que estrangeiros querem se apossar da floresta. Mourão, por sua vez, divulgou no Twitter um vídeo com texto em inglês que contestava a escala das queimadas na Amazônia – só que as imagens mostravam um mico-leão-dourado, animal típico da Mata Atlântica.

O país também continuou a perder espaço nas discussões internacionais sobre as mudanças climáticas, onde o país costumava ter uma voz ativa. Em dezembro, o país ficou de fora da lista de palestrantes da Cúpula da Ambição Climática 2020, organizada pela ONU. Em novembro, o Bolsonaro já tinha evitado participar de uma reunião do G20 sobre clima.

Em 2021, o país enfrenta a perspectiva de mais pressão internacional sobre o tema, especialmente com a chegada de um reforço no campo ambiental: o governo Biden, que promete recolocar os EUA na agenda de combate às mudanças climáticas.

A agonia do "grande trunfo" de 2019

A questão ambiental continuou a erodir o que foi promovido em 2019 pelo governo Bolsonaro como seu maior feito diplomático: a assinatura do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. No ano passado, as queimadas, o desmatamento e a retórica agressiva de Bolsonaro já tinham alimentando a rejeição ao tratado em vários países da Europa.

No entanto, em 2020, o acordo começou a perder apoio até mesmo entre países europeus que ainda manifestavam entusiasmo pelo pacto, notadamente a Alemanha. Merkel disse em agosto que tinha "sérias dúvidas" sobre o tratado. Sua ministra da Agricultura foi mais explícita e se posicionou contra o acordo. O governo Merkel também admitiu em setembro que a cooperação com o governo federal brasileiro está sendo cada vez mais difícil.

Em junho, o parlamento da Holanda aprovou uma moção para que o governo rejeite o pacto, se juntando aos legislativos da Áustria e Valônia (região da Bélgica), que em 2019 já haviam tomado essa iniciativa.

Em outubro, foi a vez de o Parlamento Europeu apontar que não ratificará o acordo "na sua forma atual". Já a França, a principal opositora do pacto, reforçou sua posição com a divulgação de um relatório sobre potenciais efeitos do tratado sobre o meio ambiente. O país ainda lançou um plano para expandir o cultivo de leguminosas em solo francês e diminuir a dependência à soja brasileira.

Jean-Philip Struck para Deutsche Welle, em 29.12.2020.



Coronavírus: Mortes no Brasil passam de 1,1 mil em 24h

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país


Profissional da saúde cuida de paciente na UTI covid do hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto AlegreCRÉDITO,DIEGO VARAS/REUTERS

O Brasil teve 1.111 mortos e 58,7 mil novos casos de coronavírus registrados nas últimas 24h, segundo o boletim mais recente do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) de terça-feira (29/12).

Com isso, desde o início da pandemia, o total de casos do país chegou a 7.563.551 e o de óbitos, a 192.681.

O estado com o maior número de vítimas fatais é São Paulo (46.195), seguido do Rio de Janeiro (25.078) e Minas Gerais (11.615).

O Brasil continua como o segundo país com maior número de mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 336,9 mil óbitos por covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

O país foi superado em número de casos, entretanto, pela Índia (10,2 milhões), agora em segundo lugar depois dos Estados Unidos (19,4 milhões).

BBC News Brasil

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O juiz de garantias

Faltam limites a setores da magistratura quando são contrariados seus interesses corporativos

Quase um ano após o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, ter concedido liminar suspendendo por tempo indeterminado a implantação do juiz de garantias, criado pela Lei 13.964/19, um grupo de advogados criminalistas apresentou à Corte um pedido de habeas corpus coletivo pedindo a retomada do julgamento do mérito deste caso.

A Lei 13.964, que altera o antigo Código de Processo Penal de 1941, foi aprovada no final de 2019, depois de tramitar por dez anos no Congresso. Adotado há décadas em vários países europeus, com o objetivo de assegurar a isenção da magistratura criminal, preservar o equilíbrio nas ações penais e garantir a segurança jurídica, o juiz de garantias é o responsável pela condução das diligências e pela salvaguarda dos direitos fundamentais dos presos. Ele atua na fase de produção de provas, de controle da constitucionalidade das investigações e de expedição de mandados de busca e apreensão. Cabe a ele autorizar buscas e apreensões, determinar o trancamento ou a prorrogação do inquérito, adotar medidas cautelares restritivas ao ir e vir do acusado e decidir sobre pedidos de quebra de sigilo bancário e telefônico e de arquivamento. Pela Lei 13.964, uma vez terminada a etapa de instrução e aceita a denúncia do Ministério Público, o processo é transferido para outro juiz, que será responsável pelo julgamento do mérito.

Essa divisão de tarefas sempre causou polêmica nos meios jurídicos. As associações de advogados alegam que, sem essa separação de funções, os juízes criminais têm pouca motivação para revisar eventuais erros cometidos no inquérito e, na maioria das vezes, atribuem excessiva credibilidade aos resultados das investigações em que atuaram. Já a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) defende a tese de que os magistrados que conduzem a fase de instrução devem ser os mesmos que julgam o mérito e prolatam a sentença. Para a entidade, a divisão de tarefas atrasa a tramitação dos processos criminais e acarreta problemas de insegurança jurídica. Também lembra que 40% das comarcas judiciais têm apenas um único magistrado. Por isso, a criação do juiz de garantias exigiria realização de concursos e contratação de serventuários num período em que, por causa da crise fiscal, a Justiça carece de recursos até para pagar despesas de custeio.

Nesse embate, fica evidente que, ao suspender por tempo indeterminado a implantação do juiz de garantias, Fux demonstrou provir dos quadros da magistratura. O argumento que invocou é prova disso – a figura do juiz de garantias foi uma “medida feita para depreciar o juiz da causa”, disse ele. Além disso, sua estratégia foi a mesma que usou quando atuou como relator nas ações que questionavam a constitucionalidade do auxílio-moradia concedido pelas diferentes instâncias e braços especializados do Poder Judiciário aos seus membros, como forma de burlar o teto salarial do funcionalismo. Quando não pedia vista e engavetava as ações em seu gabinete, concedia liminar e deixava para as calendas o julgamento de mérito.

Na realidade, esse confronto entre criminalistas e juízes criminais prima, desde o início, mais por seus aspectos políticos do que jurídicos. Do ponto de vista técnico-legal, por exemplo, o habeas corpus coletivo não é o instrumento processual adequado para pedir ao Supremo Tribunal Federal a retomada do julgamento. Mas foi o meio que os criminalistas utilizaram para pressionar publicamente o presidente da Corte para cassar a liminar ou levar o caso a plenário. Por seu lado, com apoio da Ajufe, Fux vem alegando que, se a liminar for suspensa, ela abrirá brechas legais para a anulação da condenação de presos perigosos, o que não é verdade.

Acima de tudo, o que esse embate revela é a falta de limites de alguns setores da magistratura quando seus interesses corporativos são contrariados. As entidades de juízes foram ouvidas pelo Congresso antes da aprovação da Lei 13.964. Contudo, tendo perdido numa votação inquestionável, elas recorreram a expedientes discutíveis para impedir a entrada em vigor de uma decisão aprovada por um Poder independente. 

Editorial / Notas e Informações - O Estado de São Paulo, edição de 28.12.2020

Coronavírus no Brasil: 331 mortos nas últimas 24 horas

Totais

Mortes: 191.207

Casos: 7.486.094

O país registrou 331 mortes pela Covid-19 nas 24 horas anteriores ao balanço das 20h de domingo (27), chegando ao total de 191.146 óbitos desde o começo da pandemia. Com isso, a média móvel de mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 625. A variação foi de -4% em comparação à média de 14 dias atrás, indicando tendência de estabilidade nos óbitos pela doença.

De acordo com os números levantados até as 20h de domingo (27), 7.481.400 brasileiros têm ou já tiveram o novo coronavírus desde o começo da pandemia; 16.472 desses casos foram confirmados nas 24 horas anteriores. A média móvel nos últimos 7 dias foi de 34.864 novos diagnósticos por dia. Isso representa uma variação de -19% em relação aos casos registrados em duas semanas, o que indica tendência de queda nos diagnósticos.

8 apresentaram alta na média móvel de mortes: MS, MT, AC, AM, PA, RO, AL e SE.


Brasil, 27 de dezembro

Total de mortes: 191.146

Registro de mortes em 24 horas: 331

Média de novas mortes nos últimos 7 dias: 625 (variação em 14 dias: -4%)

Total de casos confirmados: 7.481.400

Registro de casos confirmados em 24 horas: 16.472

Média de novos casos nos últimos 7 dias: 34.864 por dia (variação em 14 dias: -19%)

Estados

Subindo (8 estados): MS, MT, AC, AM, PA, RO, AL e SE

Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente (12 estados): PR, RS, SC, ES, GO, AP, BA, MA, PB, PE, PI e RN

Em queda (5 estados + DF): RJ, SP, DF, RR, TO e CE

Não divulgou (1 estado): MG

Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).

Vale ressaltar que há estados em que o baixo número médio de óbitos pode levar a grandes variações percentuais. Os dados de médias móveis são, em geral, em números decimais e arredondados para facilitar a apresentação dos dados.

Fonte: G1

Petrobras eleva diesel em 4% e gasolina em 5% a partir de terça-feira

Nova alta no preço dos combustíveis foi a segunda anunciada em duas semanas.

A Petrobras informou nesta segunda-feira (28) que vai elevar em 4% o preço médio do diesel em suas refinarias e em 5% o da gasolina a partir de terça-feira (29), em meio a uma alta do petróleo nas últimas semanas e uma desvalorização do real frente ao dólar nas últimos dias.

A nova alta no preço dos combustíveis foi a segunda anunciada em duas semanas. Em 15 de dezembro, a estatal elevou o preço do diesel e da gasolina.

Com a alta de 4%, o preço médio do combustível mais vendido do Brasil passará a ser de R$ 2,02 por litro. No acumulado do ano, a redução do valor é de 13,2%, segundo informou a Petrobras.

Já o preço médio da gasolina da Petrobras para as distribuidoras será de R$ 1,84 por litro, acumulando no ano redução de 4,1%.

Apesar da alta das cotações dos combustíveis da Petrobras na terça-feira, especialistas apontam a permanência de uma defasagem ante a paridade de importação.

"Faz cerca de três semanas que a Petrobras trabalha com defasagem de mais de 10 centavos em relação ao mercado internacional e segue bem próxima a esse nível mesmo com o ajuste de hoje", afirmou à Reuters o chefe da área de óleo e gás da consultoria INTL FCStone, Thadeu Silva.

"O ajuste atual foi menos da metade do necessário para termos paridade de importação", acrescentou ele, comentando que tem havido atrasos nos repasses da alta do petróleo para os combustíveis da Petrobras.

O presidente da Associação Brasileira de Importadores de Combustíveis (Abicom), Sérgio Araújo, também ressaltou a defasagem nos preços ante ao mercado externo e frisou que "as importações por agentes privados continuam inviabilizadas".

A Petrobras defende que seus preços seguem a chamada paridade de importação, impactada por fatores como as cotações internacionais do petróleo e o câmbio.

O repasse dos reajustes nas refinarias aos consumidores finais nos postos não é garantido, e depende de uma série de questões, como margem da distribuição e revenda, impostos e adição obrigatória de etanol anidro e biodiesel.

Fonte: Reuters / G1

2020: 72% dos brasileiros tiveram um ano ruim, aponta pesquisa

A grande maioria dos brasileiros chega ao fim de 2020 querendo esquecer definitivamente o ano que passou e com a esperança de que 2021 será bem melhor.

É o que aponta uma pesquisa do instituto Ipsos, na qual 72% dos participantes disseram que 2020 foi ruim para si e suas famílias.

O índice teve um aumento de 10 pontos percentuais em relação ao levantamento do ano anterior, quando 62% terminaram o ano insatisfeitos.

Foi um patamar quase igual à da média global — de 70% — da pesquisa, feita com 23 mil pessoas, com idades entre 16 e 74 anos, em 31 países, entre 23 de outubro e 6 de novembro.

Mas o aumento no mundo, na comparação de 2020 com 2019 foi ainda maior, de 20 pontos percentuais.

Otimismo e confiança

Em relação a 2021, 81% dos brasileiros disseram esperar um ano melhor para si e suas famílias.

O otimismo no Brasil ficou acima da média global: 77% do total dos participantes responderam que 2021 vai ser melhor.

Os países mais otimistas foram China (94%), Peru (92%) e México (91%), enquanto o Japão (44%) foi o mais pessimista. Os outros dois menores índices foram os da França (53%) e da Alemanha (63%).

Entre os brasileiros, 60% disseram ainda que o desempenho da economia global será melhor no próximo ano, acima da média mundial, de 54%.

A confiança é maior na China (86%), na Arábia Saudita (76%), na Índia (76%) e no Peru (72%).

França (31%), Bélgica (37%) e Espanha (40%) tiveram os menores índices de confiança em uma desempenho econômico global melhor em 2021.

BBC News Brasil.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Um ano para não esquecer

2021 há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos

 O ano de 2020 termina com a tragédia instalada: somente no Brasil são quase 8 milhões de infectados, os mortos os mortos se aproximando de 200 mil. A situação calamitosa, que impulsionou as vacinas para o primeiro plano, deixou patente a incompetência generalizada do governo federal, que assistiu com escárnio, indiferença e passividade à disseminação do vírus.

A gestão do general Pazuello no Ministério da Saúde limitou-se a reverberar as posições do presidente. Não se preocupou em elaborar tempestivamente um plano de imunização. Um ministério militarizado, distante dos profissionais da área e de seus conhecimentos, distante até mesmo da capacidade logística sempre lembrada como virtude dos militares.

Somente no final do ano, quando a pandemia repicava com força, o ministério saiu da letargia e apresentou um plano. Elaborado às pressas e repleto de indefinições. O próprio presidente, que ensaiou posar de conciliador, continuou a vociferar contra a vacinação, chegando ao absurdo de sugerir que os vacinados poderiam converter-se em “jacarés”. Liberou seus seguidores para a divulgação de insanidades seriais. Uma enxurrada de boçalidades caiu sobre os brasileiros, minando sua confiança e sua concentração. Como estaremos depois das festas e dos ritos do verão?

Medo, angústia, insegurança infiltraram-se pelos poros da sociedade. O vírus revelou a fragilidade humana perante suas próprias criações, fez o ruim ficar péssimo. Sem instâncias de coordenação, o desentendimento se alastrou, com um cortejo de horrores. O choque de “narrativas” reforçou os polos entre os quais nos agitamos. Demos de cara com nossas chagas sociais, com a marginalização, a segregação, a precariedade existencial de tantos brasileiros.

A pandemia se encontrou com uma sociedade que já sofria com a pauperização, a fragmentação, a perda de direitos, um governo que cria inimigos artificiais, mas se acovarda diante de inimigos reais.

Entraremos em 2021 com dúvidas e indefinições. Não se sabe quantas doses de imunizante estarão à disposição, de que laboratórios virão, quando começará a campanha e até quando ela se estenderá. Não há cronograma nem indícios de planejamento, o que significa que o processo poderá ressentir-se da falta de controles fundamentais quando se mexe com vacinas complexas, a serem aplicadas em duas doses espaçadas no tempo. Desperdiça-se a consagrada expertise brasileira em imunizações.

Enquanto não houver vacinação em massa a vida não voltará ao “normal”, a economia não se recuperará, a desigualdade continuará a se aprofundar, o País irá se inviabilizando, com menos chances de entrar nas cadeias de valor e nos fluxos da inovação tecnológica do nosso tempo.

Um ano de pandemia e confinamento, mesmo que seletivo, marcará a vida dos brasileiros. Mexerá com sua psique, com seu imaginário, com o modo como organizam as atividades, trabalham, consomem e educam os filhos. As crianças e os jovens são um capítulo à parte, alijados da escola, das interações afetivas, das amizades. Que adultos se tornarão depois dessa experiência dolorosa? Com que gap educacional?

Os brasileiros não abraçaram o distanciamento social como deveriam. Não puderam fazê-lo, acossados pelas exigências do emprego, da busca de renda. Muitos não souberam e não aceitaram. Parte da população deixou-se levar pelo discurso presidencial, pela agitação dos bolsonaristas de plantão, pregadores da ignorância. Tudo ajudou a que o povo extravasasse o desejo de se aglomerar. Enquanto os mais pobres foram às ruas para trabalhar, os mais ricos encheram bares, shoppings e restaurantes.

O tamanho da tragédia sanitária corresponde ao tamanho da tragédia política que se abateu sobre os brasileiros. Ausência de governo sempre produz caos. Pior ainda quando um governo que não governa insiste em pregar a desunião, ataca instituições, repete à exaustão uma narrativa doentia, sustentada pela burrice, pela provocação barata, pela agressividade. Os três Poderes da República não se entendem, a Federação não funciona, há pouca coesão, os brasileiros estão desorientados e confusos.

Chegamos ao fim do ano sentindo a falta que faz um governo que garanta vidas, direitos, boas políticas. O ano também foi de ausências: da voz das ruas e dos democratas, da sua capacidade de se opor aos desmandos do poder e de dar um “basta” aos arroubos criminosos do presidente.

Andamos, porém, em pista de mão dupla: as eleições municipais produziram fatos e novas lideranças, um clima de entendimento político emergiu da disputa pela presidência da Câmara dos Deputados, Trump foi derrotado, a ciência está vencendo a covid.

Por certo aprendemos algo em 2020, conhecemos melhor nossos limites e imperfeições. Não vamos recomeçar do zero, nem desprezar o patrimônio que acumulamos à custa do esforço de um povo dedicado, sofrido, que sabe arrancar a vida pela raiz.

Que venha, pois, o ano novo. Ele há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos nos desvios perversos da História.

Marco Aurélio Nogueira, o autor deste artigo, é Professor Titular de Teoria Poçítica da UNESP / Universidade do Estado de São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 26.12.2020.


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Um Natal diferente

O novo ano se afigura mais promissor, mas é insensato arriscar a alegria do próximo Natal com a falta de cuidado em 2020

 Os brasileiros viverão um Natal atípico pela primeira vez em muitas gerações. O crescimento do número de casos e mortes decorrentes da covid-19 no País impõe a adoção de medidas de proteção individual e coletiva que não combinam com as confraternizações que marcam os festejos de fim de ano, celebrações tão caras às famílias brasileiras.

Em São Paulo, o governador João Doria determinou o retorno de todo o Estado à fase vermelha do Plano São Paulo, a mais restritiva, entre o Natal e o Ano-Novo. Isto significa que apenas os serviços essenciais – supermercados, farmácias, postos de combustíveis, serviços de comunicação – poderão ser prestados à população. Independentemente de quaisquer considerações que possam ser feitas sobre a efetividade da medida, o simples fato de o governo estadual ter de retroceder no plano de flexibilização é um indicativo muito claro de que as coisas não vão bem.

Em todo o País, autoridades têm alertado a população quanto aos riscos envolvidos em viagens, festas com muita gente – algumas clandestinas – e reuniões entre familiares que não residem no mesmo local, entre outras situações, no momento em que a pandemia dá sinais de recrudescimento. Teme-se, com razão, que, uma vez ignoradas as recomendações das autoridades sanitárias, a Nação assista a uma explosão de casos e mortes por covid-19 nos primeiros dias de 2021. Já é muito triste encerrar 2020 com mais de 190 mil brasileiros mortos. Cada cidadão pode contribuir com o seu esforço pessoal para que o novo ano não comece ao som do pranto de ainda mais famílias enlutadas.

Passados longos nove meses de pandemia, todos os cidadãos sabem exatamente o que deve ser feito para evitar o espalhamento descontrolado da doença. Mais importante do que as determinações estatais é, e sempre foi, a responsabilidade individual. Orientações não faltaram, em que pesem as tentativas de desqualificá-las. Deve-se usar corretamente as máscaras de proteção individual – que, ao fim e ao cabo, protegem o coletivo. Deve-se higienizar bem as mãos. E, tão ou mais importante, deve-se evitar quaisquer aglomerações. A preservação de vidas depende fundamentalmente da sobreposição do bem-estar de toda a sociedade à fruição individual.

É mais do que hora de calar fundo nos corações e mentes dos brasileiros um espírito de altruísmo e uma consciência cidadã, sem os quais se põe sob inaceitável risco a capacidade de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e mais vidas de nossos concidadãos.

Os festejos de Natal podem ser diferentes neste 2020 tão marcante, mas seu espírito não. Ao contrário. O amor, a compaixão, a solidariedade e a comunhão fraterna podem, e devem, estar mais vivos do que nunca. Familiares podem estar fisicamente separados em virtude das circunstâncias excepcionais, mas os laços que os unem serão reforçados pela virtude de seu sacrifício e pelo espírito comunitário que ligará milhões de outras famílias estranhas em todo o País que decidiram se unir em prol do interesse coletivo. Poucas coisas traduzem com mais verdade o espírito do Natal – sejam cristãos ou não, ou mesmo crentes – do que o sentimento de irmandade.

O Natal é tempo de alegria, é tempo de gente amada reunida em torno da mesa para partilhar a ceia, umas mais abundantes, outras menos, mas todas imbuídas do mesmo espírito de amor e congregação. Com os necessários cuidados e adaptações, nada impede que assim seja neste ano, apenas envolvendo um número menor de participantes. Os meios de comunicação virtual não substituem a presença física, evidentemente, mas ajudam a aproximar uns aos outros. O ano impôs a todos privações extraordinárias. Quanto maior for o engajamento nas ações de proteção, mais rápido será o retorno à vida como era antes.

O novo ano se afigura mais promissor com a perspectiva do início da vacinação de toda a população contra a covid-19. Prenuncia tempos menos duros. É insensato arriscar a alegria do próximo Natal, sem os entes queridos que terão sucumbido à falta de cuidado dos seus em 2020.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo - 24 de dezembro de 2020


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

STJ determina que Crivella cumpra prisão domiciliar

Prefeito do Rio será monitorado por tornozeleira eletrônica e segue afastado do cargo. Ele foi preso preventivamente no contexto de investigação sobre esquema de propinas

Ao ser preso, Crivella afirmou que foi o prefeito que mais lutou contra a corrupção no Rio

O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, concedeu nesta terça-feira (22/12) prisão domiciliar ao prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Ele havia sido afastado do cargo e preso preventivamente na manhã do mesmo dia, em operação conjunta da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro.

Segundo decisão liminar de Martins, Crivella deve ser monitorado por tornozeleira eletrônica, segue afastado do cargo e está proibido de manter contato com terceiros e de falar ao telefone. Ele também deverá entregar aparelhos telefônicos, computadores e tablets às autoridades.

A ação em que Crivella foi preso é um desdobramento de uma investigação que apura, desde 2018, um suposto esquema de propina na prefeitura, com base em delação do doleiro Sérgio Mizrahy. A apuração já havia resultado em ações anteriores da Operação Hades.

Ao solicitar o habeas corpus, a defesa de Crivella afirmou que a prisão preventiva fora "decretada com base em presunções genéricas e abstratas, desamparadas de qualquer base legal". "O prefeito terá sua inocência demonstrada no curso do processo", declararam os advogados.

O ministro Martins, do STJ, justificou a prisão domiciliar por Crivella ter 63 anos e pertencer ao grupo de risco da covid-19, mas argumentou que a medida era necessária para "evitar a prática de novas infrações penais, tendo em conta que o mandato de prefeito do município do Rio de Janeiro expira em 1º de janeiro de 2021”.

Apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, Crivella disputou neste ano a reeleição contra Eduardo Paes (DEM) e perdeu no segundo turno, por 64% a 36% dos votos válidos.

"QG da propina"

O Ministério Público acusa Crivella e outras 25 pessoas de organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva. Crivella seria o líder de um "QG da propina" existente na prefeitura.

O esquema seria comandado pelo empresário Rafael Alves, apontado como amigo íntimo de Crivella e que também foi preso nesta terça. Para o MP, Crivella sabia das propinas e autorizava as ilegalidades.

Segundo os investigadores, o "QG da propina" se aproveitou das dificuldades financeiras da prefeitura desde 2018, que obrigou o poder público a escolher quais fornecedores seriam pagos, para cobrar suborno de empresários de serviços não essenciais que quisessem receber os valores devidos. 

O valor arrecadado pela organização criminosa foi de pelo menos R$ 50 milhões, segundo o MP, que ainda desconhece como o valor teria sido dividido entre os envolvidos.

"Apesar de toda a situação de penúria [da Prefeitura], que não tem dinheiro nem para o pagamento do décimo terceiro, muitos pagamentos eram feitos em razão por conta da propina”, disse o subprocurador-geral Ricardo Ribeiro Martins em entrevista coletiva na terça-feira (22/12).

Segundo ele, os pedidos de prisão foram solicitados pois havia indícios de que o esquema não seria interrompido ao final do mandato de Crivella

Em sua delação, segundo o Ministério Público, o doleiro Mizrahy afirmou que Rafael Alves se referia a Crivella como "01 [zero um]". Mizrahy também teria declarado que "em determinada transação financeira realizada em março de 2018, restou explícito em mensagens trocadas pelo aplicativo Whatsapp que certa quantia em dinheiro seria destinada ao prefeito". 

Para os promotores, Crivella seria o "vértice da organização criminosa" e Rafael Alves, Mauro Macedo, ex-tesoureiro da campanha de Crivella, e Eduardo Benedito Lopes estariam no "primeiro escalão" da quadrilha.

A investigação analisou quase 2 mil mensagens trocadas entre Crivella e Rafael Alves. A análise mostrou, segundo os investigadores, que os dois eram próximos e que Alves interferia na escolha de empresas que prestariam serviços ao poder público, sugeria nomes para ocupar cargos de confiança e solicitava a anulação de atos administrativos. 

Ao chegar à Cidade da Polícia terça-feira, Crivella atribuiu a sua prisão a uma perseguição política. "Lutei contra o pedágio ilegal, tirei recursos do Carnaval, negociei o VLT, fui o governo que mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro", afirmou. Ele disse esperar por justiça.

Após ser preso, fazer exames no IML e participar de audiência de custódia, Crivella foi levado ao presídio de triagem de Benfica, na zona norte do Rio.

Os seus advogados afirmaram que não havia provas de que Crivella se beneficiava com a propina ou que a autorizava e que o prefeito está a dias do fim do mandato e não oferece risco à ordem pública. 

João Francisco Neto, advogado de Rafael Alves, afirmou que a prisão de seu cliente era "espalhafatosa e desnecessária". 

Deutsche Welle, 23.12.2020

Democracia desmoralizada

Mundo da irresponsabilidade generalizada gestou a catastrófica presidência de Jair Bolsonaro e a eleição do prefeito Marcelo Crivella

E eis que mais um governante do Rio de Janeiro foi preso. Muito ainda se falará sobre o rumoroso caso do prefeito Marcelo Crivella, detido a nove dias do final de seu desastroso mandato, sob acusação de chefiar organização criminosa movida a propinas. Mas nem é preciso esperar o desfecho do caso para que se constate a incrível frequência com que o eleitor fluminense escolhe mal seus dirigentes.

Recorde-se que o agora fichado Crivella conseguiu a proeza de ir para o segundo turno na eleição passada mesmo tendo legado à cidade que governava a pior administração de que se tem notícia. Ou seja: não contentes em terem jogado fora seu voto há quatro anos, quando Crivella foi eleito a despeito de ser quem é, muitos eleitores do Rio de Janeiro tornaram a fazê-lo quando já deveria estar clara para todos a sua inépcia.

Se a prisão do prefeito do Rio de Janeiro ainda no exercício do cargo, por incrível que pareça, já não tem tanta importância, pois se trata de evento tristemente corriqueiro na vida política fluminense, a notícia deve servir para que os eleitores brasileiros reflitam sobre como têm exercido seu direito de voto.

A escolha de governantes e representantes no Legislativo por meio do voto livre e direto não é algo trivial. Ao exercer esse direito, o eleitor assume a corresponsabilidade pelos destinos de sua cidade, de seu Estado e do País, razão pela qual deve fazê-lo de maneira consciente e ponderada.

Sabe-se, contudo, que isso nem sempre acontece, por uma série de razões – a começar pela desinformação e pela falta de educação cívica de parte considerável dos eleitores, que ou tomam seus desejos particulares como se fossem os interesses da coletividade na hora de decidir o voto ou fazem sua opção sem qualquer reflexão. Esse processo medíocre de escolha, quando generalizado, raramente deixa de resultar em desastre.

É evidente que o eleitor pode ser induzido a tomar decisões equivocadas por uma propaganda eleitoral eficiente ou pelo carisma do candidato, que com isso consegue esconder seus defeitos de caráter ou de formação. Mas é difícil entender como o mesmo eleitor que se queixa da corrupção e da inaptidão dos políticos é capaz de eleger, sem pestanejar e em sequência, candidatos tão flagrantemente desonestos e despreparados para a administração pública.

Era preciso uma dose cavalar de ingenuidade para acreditar, por exemplo, que Jair Bolsonaro, cujo único feito relevante até se tornar presidente foi ter transformado sua família numa holding parlamentar, seria mesmo o líder que moralizaria a política. Ou então que esse mesmo Jair Bolsonaro seria capaz de governar o País tendo se notabilizado em toda a sua vida política por sua gritaria reacionária, e não pelo par de projetos irrelevantes que apresentou no Congresso. No entanto, Bolsonaro venceu – e, mesmo sendo o pior presidente da história nacional, ainda vai razoavelmente bem nas pesquisas de opinião.

Diz-se que demagogos ganham eleições e mantêm alguma popularidade como consequência do cansaço dos cidadãos, desencantados com a política em geral. Por essa perspectiva, pode-se argumentar que o voto representa uma forma de protesto, mas também, e isso é mais grave, pode ser uma maneira de sabotar o processo eleitoral em si mesmo, desmoralizando a democracia – regime que, para muitos eleitores, infelizmente nada diz.

É como se os eleitores estivessem a declarar que o desfecho da eleição, qualquer que seja, não lhes diz respeito, renunciando liminarmente à responsabilidade que cabe a cada um dos cidadãos. E o eleito, nesse espírito, também assume pronto a repelir qualquer responsabilidade, que é sempre dos outros – sejam aqueles que lhe deixaram uma “herança maldita”, sejam aqueles que, segundo diz, não o deixam governar.

Tem-se então o mundo da irresponsabilidade generalizada, que gestou a catastrófica Presidência de Jair Bolsonaro, bem como a eleição do prefeito Crivella e de outros tantos picaretas – todos empenhados em alimentar a avacalhação da democracia, pois disso depende sua manutenção no poder.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, 23 de dezembro de 2020 


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Entenda por que Marcelo Crivella está preso; Leia a decisão da Justiça que põe o prefeito do Rio no topo do ‘QG da Propina’

Desembargadora Rosa Guita apontou a existência de esquema de corrupção dentro da Prefeitura envolvendo servidores, empresários e 'laranjas' que interferiam em licitações e em tomadas de decisões em troca de propinas

O prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (Republicanos-RJ) foi afastado do cargo e preso nesta terça, 22, sob acusações de integrar ‘intrincado esquema criminoso’ para interferir em licitações para beneficiar empresários em troca de propina. As investigações começaram com a delação do doleiro Sérgio Mizrahy, que relatou como funcionava o ‘QG da Propina’ dentro da Prefeitura carioca.

A prisão de Crivella foi determinada pela desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, e atingiu outras seis pessoas: o empresário Rafael Alves, o delegado aposentado José Fernando Moraes Alves, o ex-tesoureiro de Crivella Mauro Macedo, o ex-senador Eduardo Benedito Lopes (ainda não localizado e considerado foragido), Christiano Borges Sotckler Campos e Adenor Gonçalves.

Segundo a magistrada, o Ministério Público do Rio relatou a existência de esquema de corrupção dentro da Prefeitura envolvendo servidores, empresários e ‘laranjas’ que ‘interfeririam nas tomadas de decisão, agilizando pagamentos a empresas específicas e interferindo nos processos de licitação’ para beneficiar empresas que consentiam em pagar propinas a agentes públicos, como o homem de confiança do Prefeito Marcelo Crivella, Rafael Alves, que, por sua vez, contava com o doleiro Sérgio Mizrahy para ‘branquear os valores recebidos’.

Na delação, Mizrahy afirma que o esquema criminoso teria se intensificado na campanha de Crivella à Prefeitura do Rio em 2016, ocasião em que Rafael Alves teria lhe solicitado contas bancárias para receber quantias em espécie a serem utilizadas na campanha.

“Uma vez eleito, Marcelo Crivella, o denunciado Rafael Alves passou a ocupar uma sala na sede da Riotur, mesmo sem exercer qualquer cargo público, local onde o colaborador esteve por diversas vezes para lhe entregar valores em espécie provenientes das operações de troca de cheques mediante cobrança de ‘taxa de serviço'”, detalha a desembargadora. “Relatou ainda o colaborador Sérgio Mizrahy que Rafael Alves cobrava propina para autorizar o pagamento de faturas atrasadas a empresas credoras, destinando o percentual de 20% a 30% a Marcelo Alves, seu irmão, então presidente da Riotur, e outro percentual ao prefeito Marcelo Crivella”.

Além das confissões, o doleiro entregou mensagens de WhatsApp trocadas com os envolvidos no esquema envolvendo a cobrança de recebimento de determinadas quantias em espécie a pedido do ‘Zero Um’, codinome atribuído a Crivella. Segundo a magistrada, as conversas entre investigadores demonstram a ciência e participação do prefeito no esquema de desvios.

“Algumas bem explícitas, sobre a ‘roubalheira’ no seu governo e a sobre a exigência de ‘retorno financeiro’ no ‘investimento’ que nele (leia-se, Crivella) havia sido feito”, detalhou a magistrada. “Ora, em assim sendo, é evidente que o prefeito se locupletava dos ganhos ilícitos auferidos pela organização criminosa, que, na realidade, se instalara no município já com tal propósito, pois, do contrário, não colocaria o futuro político em risco apenas para favorecer terceiros, como mera ‘dívida de campanha’.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Foto: Gabriela Biló / Estadão

Para a desembargadora Rosa Guita, Rafael Alves, mesmo sem ocupar qualquer cargo na Prefeitura, ‘influía diretamente nas mais variadas tomadas de decisões’ de Crivella, incluindo na escolha de empresas para prestar serviços para a administração carioca.

“Tudo a firmar a imagem de que realmente era o homem de confiança do Prefeito Marcelo Crivella, de modo a sugerir que este não só anuía com os esquemas criminosos, mas deles também participava, chegando, inclusive, a assinar pessoalmente documentos a fim de viabilizar os negócios do grupo criminoso”.

Crivella foi detido em casa na manhã desta terça e levado à Cidade da Polícia, onde passará por exame de corpo de delito às 15h. No local, declarou à imprensa que é vítima de ‘perseguição política’ e disse que foi o governo que ‘mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro’.

O Republicanos, partido do prefeito, divulgou nota afirmando que aguarda ‘detalhes e os desdobramentos’ da prisão. “O partido acredita na idoneidade de Crivella e vê com grande preocupação a judicialização da política”, afirmou a legenda.

Investigações avançam, empresários confessam. As investigações contra Crivella avançaram em setembro, com buscas contra o prefeito e a apresentação voluntária de quatro empresários que decidiram fechar acordos de delação premiada: João Alberto Felippo Barreto, Ricardo Siqueira Rodrigues, Carlos Eduardo Rocha Leão e João Carlos Gonçalves Regalo.

João Felippo Barreto relatou à Promotoria que pagou propinas a Rafael Alves por meio de cheques emitidos por suas empresas, administradas por ‘laranjas’. Segundo o Ministério Público do Rio, os repasses alcançaram a cifra de R$ 1,3 milhão entre julho de 2017 e janeiro de 2019.

“No ponto, este colaborador esclareceu que pagava 2% de propina sobre o valor de todas as faturas que viesse a receber do Tesouro Municipal, e relatou que, a partir do momento em que firmou o acordo com Rafael Alves, jamais teve problemas para receber os seus créditos”, anotou a desembargadora.

Os empresários João Carlos Gonçalves Regado e Carlos Eduardo Rocha Leão, do setor da saúde, afirmaram ao investigadores que pagavam 3% de propina sobre o que receberiam dos contratos firmados para a prestação de serviços da Prefeitura do Rio. Os repasses eram feitos mensalmente por contratos fictícios e notas frias, variavam entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões e foram registradas em planilhas levadas às autoridades.

“Ou seja, há nos autos prova documental em abundância apta a demonstrar a verossimilhança dos depoimentos prestados pelos colaboradores João Carlos Gonçalves Regado e Carlos Eduardo Rocha Leão”, apontou a desembargadora.

O empresário Ricardo Siqueira Rodrigues confessou ter adiantado R$ 1 milhão em propinas à organização criminosa para ‘adiantar’ benefícios com a Prefeitura. O repasse ocorreu após encontro com Rafael Alves intermediado por Arthur Cesar Menezes Soares, o ‘Rei Arthur’, em 2016.

Em outro episódio, envolvendo a empresa Mktplus, é frisado que Crivella ‘abdicou de sua usual cautela, tratando pessoalmente do pagamento dos créditos da citada empresa’ e pressionou Paulo Messina, então chefe da Casa Civil da Prefeitura, a efetuar os repasses.

Paulo Roberto Netto, de O Estado de São Paulo, em 22 de dezembro de 2020 | 11h49

Desembargadora disse que Crivella tinha ‘voraz apetite pelo dinheiro público’ e cita delações sobre propinas da Fetranspor

Doleiro Álvaro Novis e seu funcionário Edmar Moreira Dantas delataram repasses ao ex-tesoureiro de Crivella, Mauro Macedo, também denunciado nesta terça, 22

 A desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, afirmou que o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), tinha um ‘voraz apetite pelo dinheiro público’ que não se limitou à sua gestão no comando da administração municipal. A magistrada relembrou delações do doleiro Álvaro Novis e seu funcionário, Edmar Moreira Dantas, que delataram repasses de propinas a Crivella em 2010 e 2012.

As acusações contra o prefeito foram reforçadas na delação do ex-presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), Lélis Teixeira, que o Estadão teve acesso em dezembro de 2019. Segundo ele, o ex-tesoureiro da campanha de Crivella, Mauro Macedo, procurou os empresários do transporte em 2010 pedindo ajuda para quitar dívidas de campanha de Crivella ao Senado. A solicitação foi levada a José Carlos Lavoura, presidente da Fetranspor, e João Monteiro, da Rio ônibus.

Macedo solicitou R$ 450 mil para pagamento de gastos. O valor foi aprovado por Lavouras, que combinou o repasse por meio do doleiro Álvaro Novis, também delator da Lava Jato, no escritório de Macedo, na rua da Candelária. A versão de Lélis bateu o que foi relatado por Noves e Edmar Dantas – ambas as delações foram citadas nesta terça, 22, na ordem de prisão contra Crivella.

“Este voraz apetite pelo dinheiro público não se limitou à atual gestão do prefeito Marcelo Crivella”, apontou a juíza. “O então colaborador Edmar M. Dantas afirmou que, por determinação de José Carlos Lavouras, da Fetranspor, efetuou, nos anos de 2010 e 2012, pagamento de propinas ao atual prefeito Marcelo Crivella, então senador, totalizando, à época, R$ 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil reais), pagamentos estes que eram entregues ao também denunciado Mauro Macedo, um dos seus operadores financeiros, em uma sala comercial na Rua da Candelária, alugada por Marcelo Crivella. Ou seja, há muito o atual prefeito recebe propinas”.

Quando a delação de Lélis Teixeira foi divulgada, a assessoria de imprensa da Prefeitura do Rio de Janeiro negou as acusações, afirmou que a imprensa estava ‘ sendo usada como massa de manobra para atender a interesses claramente eleitorais’ e que ‘se existe um político que não poderia ter se beneficiado de algum esquema com os empresários de ônibus, este político é Marcelo Crivella’.

Ao ser conduzido à Cidade da Polícia nesta terça, Crivella declarou que é vítima de ‘perseguição política’ e disse que foi o governo que ‘mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro’.

O Republicanos, partido do prefeito, divulgou nota afirmando que aguarda ‘detalhes e os desdobramentos’ da prisão. “O partido acredita na idoneidade de Crivella e vê com grande preocupação a judicialização da política”, afirmou a legenda.

O prefeito do Rio Marcelo Crivella é preso em casa na manhã desta terça, 22. Foto: Wilton Júnior / Estadão

Crivella é acusado de integrar organização criminosa que instaurou um ‘QG da Propina’ dentro da Prefeitura do Rio. O esquema consistia em pagamento de vantagens indevidas para favorecimento de empresários, como contratos com a administração pública e repasse de verbas. A intermediação ficava com o empresário Rafael Alves, homem de confiança de Crivella.

As investigações tiveram início com a delação do doleiro Sérgio Mizrahy, que era acionado por Alves para ‘branquear os valores recebidos’. Segundo ele, as propinas eram pagas para garantir o pagamento de faturas atrasadas a empresas credoras. Em troca, Alves recebia entre 20% a 30% do valor junto a seu irmão, Marcelo Alves, então presidente da Riotur, e outro percentual era destinado a Crivella.

A desembargadora afirmou que Rafael Alves, como gestor da campanha eleitoral do prefeito em 2016, ‘abordou diversos empresários oferecendo-lhes vantagens em contratações junto à futura administração’, mesmo sem ter um cargo oficial na Prefeitura.

“Após a eleição, o prefeito Marcelo Crivella fortaleceu a posição de Rafael Alves na administração, dando-lhe trânsito livre para negociar com empresários a venda de vantagens junto à Prefeitura, sempre mediante pagamento de vultosas quantias a título de propina”, frisou a magistrada.

Para Rosa Guita, o envolvimento de Rafael Alves no caso ‘salta aos olhos’ e Crivella tinha ciência do esquema de corrupção na Prefeitura. Conversas levadas por Mizrahy e quatro empresários que delataram as propinas apontam a cobrança de recebimento de determinadas quantias em espécie a pedido do ‘Zero Um’, codinome atribuído a Crivella.

“É evidente que o prefeito se locupletava dos ganhos ilícitos auferidos pela organização criminosa, que, na realidade, se instalara no município já com tal propósito, pois, do contrário, não colocaria o seu futuro político em risco apenas para favorecer terceiros, como merca ‘dívida de campanha’, destacou a juíza, relembrando que Crivella declarou ter intenção de disputar o governo do Estado em 2022. “É possível afirmar, portanto, diante do seu propósito de permanecer na vida pública, que tal prática perdurará”.

Paulo Roberto Netto e Fausto Macedo, de O Estado de São Paulo, em 22 de dezembro de 2020 | 18h27

Prisão de Crivella afasta Republicanos como alternativa para Bolsonaros

Partido era uma atraente opção de refúgio para o presidente Jair Bolsonaro, que apoiou o prefeito do Rio na eleição municipal; sigla já abriga os filhos Flávio (senador) e Carlos (vereador)

O encarceramento preventivo por corrupção do prefeito do Rio, Marcelo Crivella,  nesta terça, 22, tende a afastar definitivamente o Republicanos como alternativa partidária para Jair Bolsonaro em 2022. A legenda, que neste ano cresceu em número de prefeituras,  era uma atraente opção de refúgio para o ocupante do Planalto. Acolhera seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro,  denunciado pela suposta prática de “rachadinha”,  e o vereador Carlos Bolsonaro, gladiador do clã nas redes sociais. Assim, Bolsonaro apoiou a candidatura do mandatário local à reeleição.  Mas não deu certo. Colheu mais uma derrota eleitoral e uma proximidade incômoda para quem tem o discurso moralista como peça de propaganda. Resta-lhe agora buscar o maior distanciamento possível do alcaide enrolado com a Justiça, buscar novo pouso em terras fluminenses e apostar na má memória do eleitor.

Crivella até fez a parte dele. Depois de mais de uma década aliado ao PT – foi até ministro da Pesca, durante o comissariado petista – trocou a esquerda pela direita, ainda no segundo turno da campanha de 2016.  Na prefeitura, radicalizou na agenda de costumes, mandando apreender uma revista na Bienal do Livro em 2019.  Nela, dois personagens masculinos se beijavam. Também caprichou no populismo que brilha nas redes sociais. Destruiu cabines de pedágio da Linha Amarela,  injustamente cobrados, afirmava. Na campanha à reeleição, prometeu até redução  de IPTU, em uma cidade de obras paradas e serviços públicos deteriorados, segundo ele por falta de dinheiro. Também denunciou, delirantemente, a possibilidade de “pedofilia nas escolas”, se perdesse a eleição.  Não funcionou. No segundo turno, foi surrado pelo ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) em todas as zonas eleitorais.

O prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicano), é levado ao IML para fazer exame de corpo de delito Foto: Wilton Junior/Estadão

Mesmo com a resistência do comando do Republicanos à sua eventual filiação,  o presidente investiu, na campanha de 2020, no namoro com o prefeito carioca. Sem partido desde que brigou com o PSL, no fim de 2019, Bolsonaro sabia onde se metia. Tinha consciência de que Crivella foi eleito, em 2016, em uma derrota da esquerda, de caráter nacional, que reduziu drasticamente o número de prefeituras do PT, em meio à ressaca do impeachment da presidente Dilma Rousseff .  No Rio, esse recuo atingiu o candidato do PSOL, Marcelo Freixo, cuja eventual eleição à prefeitura, pregava a direita, seria “o caos”. Mas também não ignorava que os anos da administração do Republicanos no Rio revelaram um gestor que parecia desinteressado da cidade. Viu que o aliado era  um prefeito de crescente impopularidade,  que enfrentava escândalos como  o da reunião do “fala com a Márcia” – funcionária que facilitaria atendimento médico a apadrinhados do prefeito – e o dos “Guardiões do Crivella”, capangas encarregados de intimidar parentes de pacientes que reclamassem do atendimento na saúde pública e os repórteres que tentassem entrevistá-los.  E que derrotou, com verbas e cargos,  pedidos de impeachment na Câmara dos Vereadores,  chegando à campanha de 2020 muito questionado.

Ainda assim, a máquina oficial e o apoio de Bolsonaro parecem ter ajudado Crivella a ir ao segundo turno. O discurso de ultradireita, no campo dos costumes,  e uma campanha centrada na proximidade com o presidente – às vezes, na propaganda de TV, parecia que era ele, e não Crivella, o candidato  – agruparam o eleitorado conservador. Mas não foram suficientes para lhes dar a vitória – 2020 não é 2018. O próprio Bolsonaro percebeu o que ocorria. No segundo turno, negou-se a gravar vídeo de apoio e circunscreveu a aliança a elogios – tímidos – na internet.  Parecia tentar reduzir o impacto da derrota arrasadora que se aproximava. O resultado apenas confirmou o que as pesquisas apontavam.

Se para Crivella a derrota foi um revés relevante na carreira política, para Bolsonaro foi mais um “preste atenção” emitido pelo eleitorado dos grandes centros  – como o de São Paulo, que barrou a extrema direita do segundo turno. A prisão desta terça praticamente encerra a carreira do prefeito – que tende a virar a ex-grande aposta da Igreja Universal do Reino de Deus, patrocinadora do Republicanos, na qual o mandatário municipal é bispo licenciado. A operação do MP do Rio dá ainda a Bolsonaro a companhia de um preso por corrupção, cuja reeleição (fracassada) recomendou aos cariocas e com quem, mesmo antes da campanha eleitoral, apareceu dançando e rindo.


O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, e o presidente Jair Bolsonaro, durante evento com líderes evangélicos no Rio em fevereiro Foto: Reprodução

Mesmo para os mais devotos,  é algo difícil de explicar – como é para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva justificar a proximidade que teve com outro preso do Rio, o ex-governador Sérgio Cabral Filho, condenado a perto de 300 anos de cadeia.  Em cenário tão conturbado, a permanência dos primeiros filhos na legenda do prefeito preso, em tese, fica mais difícil, e a transferência do presidente, impossível.

Wilson Tosta, Chefe de Reportagem da Sucursal de O Estado de São Paulo do Rio de Janeiro.

Graduado em Jornalismo pela UFRJ em 1984, sou mestre em História Comparada pela mesma universidade e trabalho no Estado desde 1998. Acompanhei profissionalmente a política brasileira a partir da primeira eleição presidencial pós-redemocratização, em 1989 – e ainda hoje me surpreendo diariamente.

O papel de Crivella no 'QG da Propina', segundo as investigações que levaram à prisão do prefeito do Rio

 O papel de Crivella no 'QG da Propina', segundo as investigações que levaram à prisão do prefeito do Rio

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, é escoltado por policiais após ser detido, em 22 de dezembro de 2020. /   Ele foi preso em casa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por volta das 6h. / CRÉDITO,REUTERS

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), foi preso na manhã de terça-feira (22/12) em uma ação conjunta entre a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro, a apenas nove dias de encerrar seu mandato.

Derrotado por Eduardo Paes (DEM) nas eleições municipais realizadas em novembro, Crivella foi apoiado em sua tentativa fracassada de reeleição pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Com a prisão, Crivella se torna o primeiro prefeito a se juntar a uma longa lista de políticos do Rio de Janeiro presos, que inclui os ex-governadores Moreira Franco, Luiz Fernando Pezão, Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho e Sérgio Cabral.

Crivella foi preso em casa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por volta das 6h. Segundo o advogado de defesa Alberto Sampaio, o prefeito foi pego ainda de pijamas em casa, conforme informações do portal G1.

Operação Hades

O empresário Rafael Alves (de costas, de branco) é apontado como operador do esquema de pagamento de propina da Prefeitura do Rio de Janeiro. / CRÉDITO,GETTY IMAGES

A ação desta terça-feira é um desdobramento da Operação Hades, que foi deflagrada em março e investiga um suposto "Quartel General da Propina" na Prefeitura do Rio de Janeiro.

Além de Crivella, foram presos nesta manhã o empresário Rafael Alves, apontado como operador do esquema; Fernando Moraes, delegado aposentado; Mauro Macedo, ex-tesoureiro da campanha de Crivella; além dos empresários Adenor Gonçalves dos Santos e Cristiano Stockler Campos.

O ex-senador Eduardo Lopes (Republicanos-RJ) também é alvo da operação, mas não foi encontrado.

Todos eles foram denunciados pelo Ministério Público pelos crimes de organização criminosa, lavagem de dinheiro, corrupção ativa e corrupção passiva.

O MP disse que o valor arrecadado pela organização criminosa chega a R$ 50 milhões.

Como funcionava o 'QG da Propina', segundo o MP

Conforme o Ministério Público, empresas que tinham interesse em fechar contratos ou tinham dinheiro para receber do município entregavam cheques a Rafael Alves. A partir do pagamento, o empresário facilitaria a assinatura de contratos e pagamento das dívidas.

O MP diz que Crivella liderava a organização criminosa e orquestrou sua operação.

"Relatórios de inteligência financeira, depoimento de colaboradores e de testemunhas revelaram a existência de uma bem estruturada e complexa organização criminosa liderada por Crivella e que atuava na Prefeitura desde 2017", diz o órgão, em comunicado oficial.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, na inauguração da obra "Cuentos", no Rio de Janeiro, Brasil, 19 de junho de 2017. CRÉDITO,EPA

O MP diz que Crivella liderava a organização criminosa e orquestrou sua operação.  

Segundo o MP, o prefeito era assessorado por Rafael Alves, Mauro Macedo e Eduardo Lopes.

"Os três, dentro da ideia de divisão de trabalho orquestrada por Crivella e sob a sua liderança, exerciam a função de aliciadores de empresários para participação em esquemas de corrupção, voltados para a arrecadação de vantagens indevidas mediante promessas de contrapartidas que seriam viabilizadas pelo prefeito."

Mensagens de celular

Ainda conforme o Ministério Público, mensagens armazenadas nos celulares de Rafael Alves e outros investigados revelaram indícios de fraudes e pagamentos milionários de propina na contratação do grupo Assim Saúde pelo Previ-Rio (Instituto de Previdência e Assistência do Município do Rio de Janeiro).

"Por meio de Christiano Stockler Campos, a organização realizou contato com os executivos do grupo e deixou claro que, sem que se chegasse a um acordo de propina, a Assim teria grandes dificuldades em novas contratações com a Prefeitura do Rio de Janeiro", informa o MP.

O então presidente do conselho de administração do grupo, Aziz Chidid Neto, teria sido convidado pelo delegado aposentado José Fernando Moraes Alves para um almoço com pessoas "que poderiam lhe ajudar com as renovações dos seus contratos", entre eles o empresário Adenor Gonçalves, diz ainda o MP, com base no relato de João Carlos Gonçalves Regado, presidente do grupo Assim.

Aliado de Bolsonaro

O Presidente do Brasil Jair Bolsonaro e o Prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella durante execução do hino nacional durante a inauguração da Escola Civico-Militar General Abreu em 14 de agosto de 2020 no Rio de Janeiro, Brasil

Mesmo com o apoio de Bolsonaro, Crivella não se reelegeu. / CRÉDITO,GETTY IMAGES

Crivella foi apoiado por Bolsonaro em sua tentativa de reeleição para prefeito. O presidente chegou a gravar um vídeo de campanha ao lado do correligionário.

"A esquerda tenta, a todo custo, voltar de todas as maneiras", dizia a propaganda.

"Quem tem essa tendência de pintar de vermelho. Essa ideologia nefasta que não deu certo em lugar nenhum do mundo. É mais um motivo para eu pedir ao eleitor: vote no Crivella 10 para prefeito do Rio de Janeiro", dizia Bolsonaro no vídeo.

Crivella então respondia: "O presidente da República do Brasil me chama ao dever, me dá uma missão, e eu vou cumprir, presidente."

Conforme a jornalista Andréia Sadi, da GloboNews e do portal G1, pessoas próximas ao governo agora temem que a prisão de Crivella seja associada a Bolsonaro.

"Fontes afirmam que, por um erro de estratégia do presidente na campanha, o Planalto deu de 'bandeja' à oposição a possibilidade de exploração da prisão de Crivella — e vão colar o episódio à imagem do governo federal", escreve.

'Perseguição política' e 'injustiça'

"Isso é uma perseguição política. Lutei contra todas as empreiteiras, tirei recursos do pedágio, do carnaval, e isso é perseguição. Quero que se faça justiça", disse Crivella após sua prisão, segundo o jornal O Globo.

O advogado de Crivella, Alberto Sampaio, considerou a prisão uma "injustiça" e disse que vai solicitar a revogação da prisão preventiva, conforme o mesmo jornal.

A defesa do ex-senador Eduardo Lopes informou que o político está morando em Belém, no Pará, onde deve se apresentar à polícia.

As defesas dos outros denunciados ainda não haviam se pronunciado.

Fonte: BBC NEWS BRASIL, em 22.12.2020