terça-feira, 27 de outubro de 2020

Espírito monárquico

Mais uma vez, o presidente trata o aparato do Estado como extensão da sua casa.
 
O presidente Jair Bolsonaro participou de uma reunião com duas advogadas de seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, para discutir supostas irregularidades em relatórios produzidos por órgãos federais de fiscalização a respeito do parlamentar, enrolado no escândalo das rachadinhas. Estiveram no encontro o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem.

Mais uma vez, o presidente Bolsonaro trata a Presidência da República e o aparato institucional do Estado como uma extensão de sua casa, usando-os como instrumentos para resolver problemas particulares. 

Nunca é demais lembrar: o artigo 37 da Constituição, que o sr. Bolsonaro jurou respeitar e fazer respeitar, diz que o presidente da República, bem como qualquer outro integrante da administração pública, deve se pautar pelo princípio da impessoalidade. Isto é, nenhum funcionário público pode usar o cargo para fins privados – especialmente o presidente da República, por razões óbvias.

O mesmo artigo constitucional diz que outro princípio fundamental da administração pública é o da publicidade, exigência igualmente ignorada pelo presidente Bolsonaro. A reunião com as advogadas do filho Flávio Bolsonaro, realizada no dia 25 de agosto, não constava da agenda oficial nem do presidente nem de seu ministro do GSI. 

Não fosse o trabalho da imprensa, portanto, os cidadãos brasileiros seriam privados da informação segundo a qual o presidente da República se reuniu de maneira inapropriada com as advogadas de seu filho e envolveu os chefes do GSI e da Abin, para tratar de assuntos de exclusivo interesse de sua família.

Assim, pouco importa do que foram se queixar as advogadas de Flávio Bolsonaro ao pai deste – que vem a ser o chefe formal dos órgãos federais cujo trabalho é verificar se os cidadãos, como o citado senador, não estão burlando o Fisco. O que interessa é que o presidente as recebeu em sigilo e, segundo o que se sabe, usou seu poder para verificar a possibilidade de atender ao pleito da defesa do filho, envolvendo inclusive o serviço de inteligência federal, sabe-se lá com que propósitos obscuros.

Não é de hoje que o presidente Bolsonaro encara suas questões particulares como se fossem de Estado. No caso mais rumoroso, corre no Supremo Tribunal Federal um inquérito para apurar se Bolsonaro interferiu politicamente na Polícia Federal para favorecer sua encrencada família, segundo acusou o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.

Também não é de hoje que o senador Flávio Bolsonaro não se defende objetivamente das acusações que sofre, limitando-se a lançar mão de chicanas e manobras protelatórias que tão bem caracterizaram a defesa de muitos dos réus do mensalão e do petrolão, escândalos de triste memória.

Primeiro, o senador moveu montanhas para manter o foro por prerrogativa de função, que não cabia nesse caso. Depois, alegou que o Ministério Público não podia fazer acusações com base em dados oriundos de suposta quebra de sigilo bancário. Agora, sua defesa pretende colocar sob suspeita a produção de relatórios de órgãos de fiscalização que podem comprometê-lo.

Em seu esforço para procrastinar o acerto de contas com a Justiça, o senador Flávio Bolsonaro parece de fato contar com a prestimosa ajuda do pai, que nunca escondeu que seus filhos precedem o interesse público. “Pretendo beneficiar filho meu sim”, já disse o presidente, em outra ocasião, sobre sua disposição de usar o cargo para dar uma forcinha à prole. 

E o mais espantoso é que ninguém no entorno de Bolsonaro expressa desconforto com isso. Ao contrário, parece considerar realmente que o Estado que Bolsonaro chefia temporariamente deve estar a serviço dos integrantes da “família presidencial”, expressão que não por acaso consta tanto da nota do ministro Augusto Heleno como da nota do senador a respeito da reunião sobre as supostas irregularidades na Receita – e que é muito mais apropriada a uma monarquia do que a uma república.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo. Publicado em 27.10.2010

Não é o arroz, presidente

Executivo precisa informar com urgência – e de forma crível – como pretende manter a recuperação e arrumar suas contas a partir de janeiro.

Com a grosseria habitual, o presidente Jair Bolsonaro mandou um cidadão incomodado com a alta de preços comprar arroz na Venezuela. Também de forma habitual, a reação tosca serviu para afastar um assunto desagradável e complicado. Não serviu, no entanto, para atenuar o desajuste dos preços nem para afastar uma das principais ameaças à continuação da retomada econômica. A inflação diminui o poder de compra das famílias, já afetado pela redução do auxílio emergencial e pelo desemprego recorde. O custo do arroz, tema do incidente na Feira Permanente do Cruzeiro, no Distrito Federal, é apenas um detalhe bem visível do problema diante do Executivo. Será o presidente capaz de perceber o desafio real?

Bem comportados até há pouco tempo, os preços no varejo voltaram a assombrar as famílias. A prévia da inflação, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), bateu em 0,94%, a maior variação para um mês de outubro desde 1995. A alta acumulada no ano foi de 2,31%. Em 12 meses o IPCA-15 subiu 3,52%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sem correção da renda familiar, preços mais altos acabam resultando em menor poder de consumo.

A maior pressão, como no mês anterior, veio de alimentos e bebidas. Esse componente ficou 2,24% mais caro e, por seu peso no orçamento familiar, contribuiu com 0,45 ponto para o aumento geral de 0,94%. Carnes, óleo de soja, arroz, tomate e leite longa vida foram os produtos com maiores altas de preços, na parte alimentar.

Famílias de baixa renda são as mais prejudicadas pelo encarecimento da comida e de outros itens essenciais, como o gás de cozinha. Em setembro, houve aceleração da alta de preços para famílias de todas as faixas de renda e as mais pobres foram as mais afetadas.

A inflação por faixa de renda mensal é acompanhada regularmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As famílias são agrupadas em seis faixas. Em setembro, as taxas de inflação dos diferentes estratos variaram amplamente, desde 0,29% para a faixa de renda muito alta até 0,98% para a de renda muito baixa.

Cerca de três quartos da inflação dos muito pobres, em setembro, são explicáveis pela alta de preços da comida. Para as famílias de renda média, a alimentação mais cara produziu 0,39 ponto porcentual da inflação de 0,56%. Para os consumidores do extremo superior o item alimentação contribuiu com 0,20 ponto do total de 0,29%. A diferença, quando se observa o período de um ano, é muito grande. Nos 12 meses até setembro de 2020 a inflação da classe de renda muito baixa atingiu 4,3%, enquanto a das pessoas de renda muito alta ficou em 1,8%.

As famílias pobres foram, proporcionalmente, as mais beneficiadas pelo auxílio emergencial, diminuído a partir de setembro e com extinção prevista para o fim de ano. Essas famílias também estão, normalmente, entre as mais afetadas pelas más condições do mercado de trabalho.

No fim de setembro estavam desocupados 14 milhões de trabalhadores, 14,4% da força de trabalho, mas o número de pessoas em condições precárias (desempregadas, desalentadas e outras) passava de 30 milhões.

Empregos devem surgir neste fim de ano, mas a melhora é sazonal. Não se sabe se as contratações igualarão as de 2019 nem se a mão de obra retida pelas empresas na virada do ano, quando a maior parte é dispensada, será maior ou menor que a de períodos anteriores.

Como nem o Orçamento está definido, é difícil qualquer previsão para 2021. Além disso, o Executivo nem sequer esboçou uma estratégia para sustentação da retomada. Em setembro, o Índice de Confiança do Comércio, medido pela Fundação Getúlio Vargas, diminuiu de 99,6 para 95,8 pontos, depois de cinco altas consecutivas. O Executivo precisa informar com urgência – e de forma crível – como pretende manter a recuperação e arrumar suas contas a partir de janeiro. Sem um mínimo de segurança, será difícil planejar os negócios, o dólar continuará alto e a inflação seguirá pressionada. O problema é bem mais grave que o preço atual do arroz.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo. Publicado originalmente em 27;10.2020

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A ideologia bolsonarista

Na luta contra a vacina anticovid-19, os atos do presidente mostram um traço arbitrário.

Um aspecto da extrema direita no poder, do ponto de vista ideológico, é o desprezo pela ciência e, em decorrência, no caso brasileiro, pela saúde dos cidadãos. O que se apresenta como uma das grandes conquistas civilizatórias é relegado a mero instrumento de luta política, desaparecendo a preocupação com o bem coletivo. 

É simplesmente assustador que, o País alcançando a astronômica cifra de mais de 155 mil mortos pela covid-19, o debate provocado pelo presidente e suas hostes digitais gire em torno de um combate contra a vacina. Não se discute a saúde, mas os meios de propagação da morte.

Os exemplos são inúmeros deste teatro da doença e de sua aceleração, o Brasil ostentando um dos maiores índices de mortandade por milhão de habitantes. Um campeonato mundial que deveria ser motivo de vergonha, não de júbilo. Tudo está invertido, como se a perversão dos valores devesse ser a regra. A cloroquina é talvez o mais aberrante, graças à propaganda utilizada, quando é um medicamento, para esses fins, comprovadamente inútil, ineficaz. Na escassez de recursos, no entanto, milhões foram gastos por simples ordem presidencial, com o apoio de Donald Trump, que fez uma “doação” ao Brasil. Signo de “amizade”, dizia-se, quando é, na verdade, exposição de falta de consideração. O que não serve lá foi enviado para cá. Desculpem a expressão, fomos tratados como uma república bananeira.

O recente episódio da vacina Sinovac-Butantan é mais um desta ópera-bufa, que está se tornando trágica. O presidente Bolsonaro, por ato arbitrário, decide sem nenhum fundamento não comprar a vacina “chinesa”, por esta supostamente contrariar não se sabe bem lá o quê, senão o seu interesse pessoal. Vacinas são imunizações contra doenças importantes para o bem da população, não devem, de forma alguma, ser objeto de disputa política. Politizar a vacina significa menosprezar os brasileiros. Não há vacina chinesa, não há vacina do Doria, não há vacina do Bolsonaro, mas um potente instrumento de combate à doença. Se nome deveria receber, seria o dos cientistas que a descobriram. O resto é pura demagogia.

Acontece que o bolsonarismo, enquanto ideologia, introduziu a (falsa) discussão sobre a vacina num contexto de teoria da conspiração, seja contra os “chineses”, seja contra o governador de São Paulo. Tornar os chineses objeto de opróbrio, como se fosse o inimigo, atenta contra o bom senso e os interesses nacionais. A China é hoje o maior parceiro comercial do Brasil e deve ser tratada com todo o respeito e reconhecimento que essa posição lhe confere. Os chineses são os maiores importadores do agronegócio e investidores no País. Do ponto de vista dos nossos interesses, a posição presidencial pode estar causando um sério prejuízo. Além do mais, se esse desprezo pela China fosse coerente, o bolsonarismo deveria estar advogando pelo não uso de tênis, roupas, computadores e utensílios eletrônicos, cuja boa parte dos componentes é lá produzida. Deveriam abandonar a comunicação digital e as redes sociais. Ganhariam em credibilidade. E o País agradeceria.

Ainda quanto ao agronegócio, por boas e más razões a imagem do País no estrangeiro é péssima. Boas razões: a comunicação social é muito ruim e a política do ataque só nos tem prejudicado. Más razões: muitas ONGs e países estrangeiros querem prejudicar o Brasil, reduzindo a competitividade do setor e favorecendo grandes empresas e grupos estrangeiros. Acontece que a percepção é que conduz negócios e protagonismo político. Imaginem, agora, se a imagem de não combate à covid-19 no Brasil vier acoplada a uma imagem ambiental ruim? A confluência dessas duas imagens pode trazer graves prejuízos às exportações brasileiras e aos investimentos no País.

Quanto ao governador João Doria, está simplesmente fazendo o trabalho dele à frente de um Estado pujante, industrializado e inovador na área científica. Se isso lhe propiciar dividendos políticos, direito dele, por estar colaborando diretamente para a saúde dos paulistas e dos brasileiros. Ademais, a atitude do presidente Bolsonaro pode estar causando imenso prejuízo ao seu candidato à Prefeitura paulistana, Celso Russomanno, que pode ficar indiretamente com a pecha de ser contra a vacina, contra a saúde dos paulistanos. Defende ele os habitantes de sua cidade ou as diatribes do presidente? A vida ou a morte?

A ideologia bolsonarista não se caracteriza apenas por seus traços autoritários, mas também pela arbitrariedade. Não necessariamente um presidente autoritário ou um tirano faz um mau governo. Xenofonte, na Grécia, já ensinava que tiranos podem governar segundo noções de bem, até mesmo para sua permanência no poder e pelo reconhecimento dos súditos. O problema do autoritarismo é que resvala facilmente para o arbítrio, não podendo o governante ser substituído em eleições. Ora, os atos do presidente estão mostrando, nesta luta contra a vacina, um traço fundamentalmente arbitrário, para além de autoritário.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente em O Esdtado de São Paulo, edição de 26.10.2020

Os números da Segurança Pública

União e Estados seguem repetindo os erros de sempre, e o crime organizado se reinventa.

Compilado pela equipe do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com base nos registros das Polícias Civil e Militar de cada unidade da Federação, da Polícia Federal e de órgãos governamentais da União, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública que acaba de ser divulgado não deixa margem a dúvidas. Mostra que, apesar de 2019 ter sido o ano com menor taxa de homicídios da atual década, o número de assassinatos voltou a subir no primeiro semestre deste ano, revelando que o nível de violência no País continua alto, com taxas muito acima das de países desenvolvidos e em desenvolvimento. 

Entre janeiro e junho, foram registradas 25.712 mortes violentas intencionais – cerca de 7,1% a mais com relação ao mesmo período do ano passado. O aumento ocorreu em 21 dos 27 Estados brasileiros, inclusive o de São Paulo, cujas taxas eram proporcionalmente mais baixas do que a maioria das unidades federativas. Essas mortes são resultantes de homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de ação policial. 

Responsável por 13,3% do total de mortes violentas, este último indicador atingiu no ano passado o maior patamar desde 2013, quando a letalidade policial passou a ser objeto do Anuário. São Paulo e Rio de Janeiro, o primeiro e o terceiro Estados mais populosos do País, respectivamente, responderam por 42% das mortes causadas por ação policial em 2019. 

Entre os fatores responsáveis pelo aumento da violência no primeiro semestre de 2020, segundo os coordenadores do Anuário, três merecem destaque. Em primeiro lugar, eles afirmam que as unidades federativas com as maiores taxas de crescimento de mortes violentas intencionais, entre janeiro e junho, foram Ceará, Paraíba, Maranhão e Espírito Santo – ou seja, Estados onde ocorreram greves de policiais militares, deflagradas por reivindicações corporativas, e atritos entre as forças de segurança e os governos locais, decorrentes de divergências políticas.

Em segundo lugar, estão as disputas territoriais do crime organizado que foram provocadas pela política de isolamento social no combate à pandemia. Como as lideranças foram isoladas em penitenciárias de segurança máxima, perdendo contato com suas quadrilhas, surgiram novos chefes nas ruas, explicam os coordenadores do Anuário. A pandemia também alterou o abastecimento das redes de tráfico. Por causa da redução da oferta de voos e restrições de viagens, os grandes narcotraficantes passaram a brigar por rotas terrestres de transporte de drogas que estavam sob o controle de facções rivais. 

Em terceiro lugar, destaca-se a conhecida simbiose entre a incompetência do governo na articulação nacional de um programa de segurança pública, por um lado, e a falta de recursos financeiros, por outro. Segundo o Anuário, no ano passado os gastos efetivos do governo federal com segurança caíram 3,8% com relação a 2018. “O discurso de prioridade política não foi acompanhado de melhoria da qualidade do gasto ou do aumento de despesas”, observou o diretor executivo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima. Além disso, a União e os Estados continuaram investindo mais na compra de armas e viaturas do que em informação, planejamento e estratégia, disse ele. 

Com relação às vítimas, o Anuário não trouxe novidades. Mais uma vez registrou que, em 2019, a maior parte das vítimas foi de homens jovens e negros. Por faixa etária, o grupo mais afetado foi o de até 29 anos, com 51,5% do total. Por cor, 74,4% das vítimas eram negras. 

Levantamentos como esse são fundamentais para orientar a formulação de políticas públicas. Mas, para que elas sejam eficientes e consistentes, as diferentes instâncias governamentais têm de respeitar os números e compreender o que eles apontam. Infelizmente, na União e em vários Estados a questão da segurança foi convertida em marketing eleiçoeiro, o que explica por que a atuação do poder público permanece marcada pela inépcia, enquanto a dinâmica do crime organizado vai mudando.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 26.10.2020

Lua tem muito mais água do que se pensava, sugerem estudos

Pesquisas confirmam presença de moléculas de H2O na superfície lunar e apontam que água estaria espalhada em abundância pelo satélite, inclusive em forma de gelo.


A abundância de água na superfície lunar é considerada importante para futuras missões no espaço

A Lua pode ser muito mais rica em água do que se pensava anteriormente, segundo apontaram dois estudos publicados na revista científica Nature Astronomy nesta segunda-feira (26/10).

Até a metade dos anos 1990, a ciência acreditava que o satélite da Terra era completamente seco. Foi quando surgiu uma série de descobertas sugerindo que a Lua poderia ter vestígios de água em sua superfície.

Agora, os novos estudos não só comprovaram a existência de moléculas de H2O no astro, como apontaram que elas estariam presentes em grandes quantidades, inclusive em forma de gelo.

A água é um recurso precioso, e uma presença relativamente abundante da substância na superfície lunar é considerada importante para futuras missões de astronautas e robôs no espaço, que poderiam extraí-la para beber, se refrescar ou até mesmo usá-la como combustível.

Em coletiva de imprensa nesta segunda-feira, a Nasa saudou o que chamou de "nova descoberta emocionante". A agência espacial americana planeja enviar astronautas de volta à Lua em 2024.

Uma equipe de cientistas liderada por Casey Honiball, do Centro de Voos Espaciais Goddard, da Nasa, detectou moléculas de água na superfície da Lua, presas dentro de vidros naturais ou entre grãos de detritos.

Pesquisas anteriores que encontraram indícios da presença de água no satélite não haviam sido capazes de distinguir se se tratava mesmo de água (H2O) ou de hidroxila, uma molécula composta de um átomo de hidrogênio e um de oxigênio. O novo estudo, por sua vez, usou um método de detecção que produziu resultados inequívocos.

O segundo estudo se concentrou nas chamadas "armadilhas geladas" na Lua, regiões em sua superfície que estão em estado constante de escuridão e onde as temperaturas não passam de 163 °C negativos. O frio é suficiente para que água congelada permaneça estável por bilhões de anos.

Liderada pelo cientista Paul Hayne, da Universidade de Colorado, a pesquisa sugere que a Lua possui cerca de 40 mil quilômetros quadrados de áreas permanentemente sombreadas, não iluminadas pelo Sol, que potencialmente podem abrigar bolsões ocultos de água congelada. A maioria está localizada nas regiões polares.

"Nossa pesquisa mostra que uma infinidade de regiões previamente desconhecidas da Lua podem abrigar gelo", conta Hayne. "Nossos resultados sugerem que água pode estar muito mais difundida nas regiões polares da Lua do que se pensava anteriormente, tornando mais fácil acessá-la, extraí-la e analisá-la."

Mas um mistério que ainda permanece sem solução é a fonte da água lunar. "A origem da água na Lua é uma das grandes perguntas que estamos tentando responder por meio desta e de outras pesquisas", afirma o cientista. "Atualmente, as principais hipóteses são cometas, asteroides ou pequenas partículas de poeira interplanetária, vento solar e a própria Lua, através da liberação de gases de erupções vulcânicas."

Segundo Hayne, compreender a origem da água na Lua também pode lançar luz sobre as origens da água na Terra – "ainda uma questão em aberto na ciência planetária".

Publicado originalmente por Deutsc Welle, em 26.10.2020.

Vacina de Oxford apresenta resposta robusta em idosos

Resposta imunológica nos mais velhos é semelhante à de adultos mais jovens, segundo reportagem do "Financial Times" confirmada por fabricante. Imunizante contra covid-19 está sendo testado no Brasil.


   


Médica aplica vacina no braço de mulher 

Os estudos clínicos da vacina de Oxford e da AstraZeneca são uns dos mais avançados atualmente

A vacina contra a covid-19 desenvolvida pela farmacêutica sueco-britânica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford apresentou uma forte resposta imunológica entre idosos, semelhante à registrada em adultos mais jovens, segundo uma reportagem publicada nesta segunda-feira (26/10) pelo jornal Financial Times. A informação foi confirmada pelo laboratório.

O imunizante é um dos que estão sendo atualmente testados no Brasil. Os ensaios clínicos de fase 3 são os últimos realizados para identificar a segurança e eficácia da proteção da vacina. Em caso de resultados positivos, agências reguladoras estão liberadas para aprovar o imunizante e iniciar a vacinação em massa.

Segundo o Financial Times, fontes familiarizadas com o estudo afirmaram que a vacina gera em idosos anticorpos e as chamas células T, cujo principal objetivo é identificar e matar patógenos invasores ou células infectadas. Os resultados neste grupo teriam animado os pesquisadores.

A idade é um dos principais fatores de risco da covid-19, devido ao enfraquecimento do sistema imunológico ao longo dos anos. Por isso, os idosos são um dos grupos que mais precisam de proteção contra a doença.

Em julho, resultados preliminares dos ensaios clínicos da vacina já indicavam que ela gerava anticorpos e células T no grupo de adultos saudáveis com idade entre 18 e 55 anos. Os detalhes das descobertas mais recentes devem ser publicados em breve.

Após a publicação da reportagem, a AstraZeneca confirmou os resultados e acrescentou que eles mostraram ainda reações adversas menores entre idosos.

"É encorajador ver que as respostas imunes foram semelhantes entre adultos mais velhos e mais jovens e que a reatogenicidade [capacidade da vacina de gerar reação adversa] foi menor em idosos, nos quais a gravidade da covid-19 é maior", ressaltou um porta-voz da farmacêutica.

Ele acrescentou ainda que os resultados "constroem ainda mais o corpo de evidências para a segurança e imunogenicidade" da vacina, chamada de AZD1222.

Corrida por uma vacina

Uma vacina é vista como uma virada no jogo na batalha contra a covid-19, que já resultou na morte de mais de 1,15 milhão de pessoas em todo o mundo e gerou uma grave crise econômica global.

Os estudos clínicos da vacina de Oxford e da AstraZeneca são uns dos mais avançados atualmente. O imunizante deve ser um dos primeiros a ser aprovado no mundo.

Essa vacina usa um adenovírus que carrega um gene para uma das proteínas do coronavírus Sars-Cov-2. O adenovírus é projetado para induzir o sistema imunológico a gerar uma resposta protetora contra o vírus causador da covid-19. A tecnologia ainda não foi usada em uma vacina aprovada para uso humano, mas foi testada em vacinas experimentais contra outros vírus, como o causador do ebola.

O imunizante de Oxford foi o primeiro a receber autorização para testes no Brasil. Depois, mais três receberam a autorização, o mais recente da Janssen, unidade farmacêutica da Johnson & Johnson. Ele é tido pelo governo brasileiro como uma das principais apostas para a imunização contra o covid-19 no país.

No mês passado, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) assinou o contrato de Encomenda Tecnológica (Etec) com a AstraZeneca. A Etec garante ao Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) o acesso a mais de 100 milhões de doses do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para o processamento final (formulação, envase, rotulagem e embalagem) e controle de qualidade, ao mesmo tempo em que garante à Fiocruz a transferência total da tecnologia.

Realizados no Reino Unido, Brasil, Estados Unidos e África do Sul, os ensaios clínicos da vacina de Oxford, porém, não transcorreram sem problemas até agora. Em setembro, eles chegaram a ser paralisados por um curto período após um voluntário do Reino Unido apresentar uma reação adversa. Além disso, um voluntário morreu recentemente no Brasil, mas, segundo imprensa local, ele teria recebido um placebo, e não o imunizante.

Publicado originalmente por Deutsch Welle, em 26.10.2020

sábado, 24 de outubro de 2020

Ainda o futuro

 Difícil voltar ao que havia antes. Mas não sabemos bem o que virá nem o que queremos

A notícia de que uma segunda onda de disseminação do coronavírus atingiu diversos países europeus dramatizou a questão que nos perturba desde o início do ano: que futuro teremos? Em que medida ele será afetado pelas medidas que acompanharam a marcha da covid-19 pelo mundo? Quando virão as vacinas e que efeitos terão?

No Brasil, em particular, tudo ganha maior proporção, dado o caráter atrabiliário e anticientífico do presidente da República. Seus esgares ideológicos sugerem uma preferência explícita pela morte e pelo descaso, menosprezam vacinas e põem planos eleitorais à frente de providências médicas e sanitárias. Colidem com o bom senso e a responsabilidade. Embaçam ainda mais o futuro.

Não restam dúvidas de que a vida já sofre mudanças importantes. Estamos sendo obrigados a alterar hábitos e comportamentos às pressas, sem o devido processamento mental, prático e organizacional. Em dez meses vivemos como se houvessem transcorrido vários anos. Pulamos do mundo físico, material, analógico para o mundo digital. A casa passou a ser refúgio valorizado e os filhos, acompanhados mais de perto. O delivery aumentou e novas atividades produtivas brotaram. A mal chamada “uberização” invadiu setores bem estruturados.

Ingressamos com vigor no teletrabalho. A flexibilidade de horários articula-se com maiores doses de informalidade. Novos padrões infiltraram-se inapelavelmente na vida cotidiana, com vantagens e desvantagens: menos movimentação e deslocamentos, mas mais percepção de que se trabalha 24 horas por dia, de que ficamos mais dependentes de celulares e computadores, mais estressados e angustiados. A torrente de informações que desaba sobre nós provoca pasmo e confusão. A informalização crescente desprotege, causa insegurança e medo.

Tudo, porém, é seletivo e tem um claro corte de classe: as maiorias sofrem para se adaptar, ficam desempregadas com facilidade e sentem na pele a corrosão da renda. Cada passo no processo de digitalização produz uma modificação no plano do trabalho. Há mais produtividade e a mão de obra passa a ser substituída com rapidez. Máquinas de inteligência artificial deslocam os humanos, competem com eles, terminam por vencê-los. A obsolescência surge em cada curva da estrada. A exigência de qualificação torna-se a porta de entrada do mundo do emprego, que, no Brasil, paga alto preço pela baixa qualidade do sistema educacional. A nova economia pede a incorporação de recursos técnicos e intelectuais de novo tipo, cria exigências atitudinais e de formação continuada. A maioria da população está longe disso. Tudo é arrastado pela voracidade do mercado. A “desregulamentação” é do tipo arrasa-quarteirão: desmonta o que existia e de algum modo protegia.

Difícil imaginar que possamos voltar ao que havia antes. Estamos amarrados a um presente que se modifica incessantemente sem que consigamos atravessar a névoa que embaça o futuro.

Não se trata de uma “nova normalidade”. Mudanças socioculturais transcorrem quase sempre em silêncio, de modo molecular, e nos espasmos de seus fluxos vão se impondo aos indivíduos, convencendo-os de que é preciso adotar novos hábitos e valores. Mesmo quando há uma metamorfose social não há modificações repentinas. Não serão os condicionantes da covid, nem o modo como a pandemia está sendo administrada, que farão a vida ser virada de ponta-cabeça num átimo. Os efeitos dos vigorosos processos em curso amadurecerão aos poucos, em decantação. Com mais sofrimento que prazer.

Porque a política está congelada no tempo. Os partidos continuam aprisionados à mesmice. No Brasil, são desafiados pelos movimentos de renovação política, que fazem intenso trabalho pedagógico. Há protestos variados pelo mundo, mais lutas contra o racismo, a discriminação, a violência policial. A agenda eleitoral permanece ativa, a defesa da democracia agrega vozes, formando uma retórica de indignação que poucos resultados produz. Os governos continuam inoperantes, líderes “populistas” seguem se multiplicando, sem que a política consiga confrontá-los. A situação é terrível para os partidos mais à esquerda, que sofrem por estar numa posição antissistêmica sem terem uma ideia clara de sistema alternativo e sem terem, também, sustentação social consistente, o que decorre da desconstrução a que está submetida a estrutura de classes.

Ainda não se pôs em movimento uma política dedicada a pensar o futuro. Sem ela ficamos às cegas, agarrados às nossas fantasias, aos nossos fantasmas, às narrativas impulsionadas pelas redes.

Não sabemos bem o que virá pela frente, nem o que queremos. Talvez consigamos deslindar o que não desejamos: o autoritarismo, as discriminações, o racismo, a violência, a insegurança. Mas a forma do futuro permanece imprecisa, uma esfinge perturbadora. E assim permanecerá enquanto não surgir uma proposição política democrática que organize o presente e elabore uma carta de navegação que nos una e nos leve ao futuro.

Marco Aurélio Nogueira, o autor deste artigo, é Professor Titular de Teoria Política da UNESP. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 24.102020.

Leopoldo López, líder opositor, deixa a Venezuela

Líder opositor, de ascendência espanhola, se refugiou na Embaixada da Espanha em 30 abril de 2019 após uma rebelião frustrada contra Maduro; segundo sua família, ele fugiu do país e segue para a Espanha

Leopoldo López, um dos mais importantes líderes da oposição na Venezuela, deixou a embaixada espanhola em Caracas. Segundo sua família, ele fugiu para a Espanha neste sábado, 24. Economista de 49 anos, um dos fundadores do partido Vontade Popular, López sempre foi um dos críticos mais duros do regime chavista.

Tanto que, em agosto, quando o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, deu indulto a 110 opositores, entre políticos, jornalistas e ativistas, López não estava entre eles. Ele permaneceu enclausurado na Embaixada da Espanha em Caracas. 

De acordo com o jornal espanhol El País e a agência de notícias France Presse, López já havia cruzado a fronteira com a Colômbia com o objetivo de viajar para a Espanha onde vive seu pai, Leopoldo López Gil, deputado do Parlamento Europeu pelo Partido Popular (PP) espanhol. 


Em imagem de arquivo, Leopoldo López acena para jornalistas ao retornar para o interior da embaixada espanhola em Caracas, onde estava na condição de hóspede Foto: REUTERS/Manaure Quintero

"Ele deixou a embaixada por vontade própria e saiu da Venezuela de forma obviamente secreta, clandestina, pela fronteira com a Colômbia rumo à Espanha”, afirmou o pai de López. Lilian Tintori, mulher de López, já havia deixado a Venezuela, em junho de 2019, e se estabelecido em Madri. 

Perseguição

O ativismo político de López vem sendo uma dor de cabeça para o chavismo desde 2014, quando ele apoiou manifestações de rua contra o regime. Diferentemente de outros líderes moderados da oposição, como Henrique Capriles, que aceitam buscar o poder por meio de eleições, López é considerado mais radical e sempre defendeu os protestos populares para redemocratizar a Venezuela. 

Entre fevereiro e maio de 2014, os protestos incentivados por ele foram reprimidos com violência pelo regime. As manifestações deixaram 43 mortos, mais de 5 mil feridos e 3,6 mil presos. López foi para a cadeia, condenado a quase 14 anos por conspiração e incentivo à violência. Ele passaria a maior parte do tempo em Ramo Verde, uma prisão militar nos arredores de Caracas.

Em 2017 chegou a ter prisão domiciliar concedida, mas logo voltaria a ser perseguido de novo. Em abril de 2019, após participar de uma quartelada fracassada contra Maduro, ele se refugiou na embaixada do Chile, depois na espanhola – onde estava desde então.

Nos últimos anos, organizações de defesa dos direitos humanos descreviam o opositor como “preso político". Tanto Barack Obama quanto Donald Trump, os dois últimos presidentes americanos, pediam a sua libertação. / AFP e REUTERS.

Publicado por O Estado de São Paulo, em 24.10.2020.

Brasil passa das 156,9 mil mortes e 5,3 milhões de casos por covid-19


Foto à noite, mostra mulher parada em ponto de ônibus com máscara e, ao fundo, uma projeção de luz no prédio do Congresso dizendo: Luto 100 mil CRÉDITO,REUTERS/ADRIANO MACHADO

O coronavírus já infectou oficialmente 5.380.635 pessoas e causou a morte de 156.903 no Brasil, segundo o boletim mais recente do Ministério da Saúde, divulgado neste sábado (24/10).

Deste total, 27,7 mil casos da doença e 434 óbitos foram registrados nas últimas 24 horas. O Estado com o maior número de vítimas é São Paulo (38.726), seguido por Rio de Janeiro (20.171) e Ceará (9.246).

O país continua como o segundo do mundo com maior número de mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 222 mil mortes pela covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

O Brasil foi superado em número de casos, entretanto, pela Índia (7,8 milhões), agora em segundo lugar depois dos Estados Unidos (8,5 milhões de casos). Os EUA seguem sendo o país com o maior número de mortos pela pandemia: 224,7 mil vítimas fatais da covid-19 até este sábado, segundo a Universidade Johns Hopkins.

Publicado por BBC News / Brasil, em 24.10.2020.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Uma trilha sonora para um Brasil pandêmico

O presidente está mais para lobisomem de filme de Mazzaropi do que para Duce... 

O presidente da República está em plena Revolta da Vacina. Tem ciúme da vacina. Tem ciúme de quem a tem e mais ciúme ainda de quem a terá. O presidente se descabela e se rebela. Homem do seu tempo, vive com ardor o ano de 1904. Quer atirar cadeiras nos mata-mosquitos de Oswaldo Cruz, mas o sanitarista, mau brasileiro, impatriótico, sumiu de cena antes que terminasse o ano da desgraça e não mais se voluntaria a receber desaforos.

O presidente, resoluto, impoluto e estulto, não desiste. Não abre mão da revolta. Na falta do Cruz, dispara perdigotos contra o Instituto Butantan. A vacina que se cuide. Estão pensando o quê?

A fúria presidencial, impetuosa, pomposa e prosa, é máscula, mas dança conforme a cançoneta: “Anda o povo acelerado/ com horror à palmatória/ por causa dessa lambança/ da vacina obrigatória”. Na voz do cantor Mário Pinheiro, os versos ressequidos arranham o mármore do Palácio do Planalto. Raiva da vacina. Ódio febril e varonil.

E o que virá depois? Inútil tentar descobrir. No Brasil, o passado é imprevisível (abraço, Pedro Malan).

Autoridades da Casa Branca visitam o palácio. A presidente do EximBank, o Banco de Exportação e Importação dos EUA, e o ministro da Economia daqui mesmo assinam um memorando que pode render empréstimos de até US$ 1 bilhão para o Brasil. Em troca, apoios auriverdes à cruzada de Washington para afugentar do mercado as tecnologias e empresas chinesas na implantação do 5G. Ao lado do presidente, o conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos participa da cerimônia.

Pensa o improvável leitor que essa solenidade foi anteontem, certo? Pois pensa errado. Outra vez, estamos mergulhados no interminável passado imprevisível. Ao fundo, Juca Chaves e um violãozinho se infiltram pelo ar-condicionado: “Hoje em dia o meu Brasil/ é uma país independente/ dentre as coisas que nós temos/ vê-se até dois presidentes./ (...) Um do sul, outro do norte/ que governam muito bem/ só que o norte é bem mais forte e governa o sul também (...)”.

Se fôssemos um pouco mais briosos – e irônicos –, iríamos de Assis Valente, o mais valente de todos e todas. Iríamos de Brasil Pandeiro. Celebraríamos malandramente que “o Tio Sam anda querendo conhecer a nossa batucada”. Festejaríamos desconfiados que “na Casa Branca já tocou a batucada de ioiô e iaiá”.

Depois disso, a gente brasileira abriria mão da malícia. Alguém desfilaria de bananas na cabeça – Carmem Miranda que nos acuda – e sacaria da manga do paletó, ou do decote, a carta ufanista que faz do samba o Rei Momo da cultura pátria, o símbolo brasileiro por excelência. Se não tiver samba, vai de rumba mesmo. Zé Carioca de mãos dadas a Mickey Mouse, Getúlio Vargas em bombachas. Se faltar a rumba, volte o samba-exaltação na veia, Ary Barroso na cabeça, “mulato inzoneiro” no meio da testa, hino nacional em feitio de batucada, jamais de oração. “Ai, essas fontes murmurantes”, coitado do jornalismo. Ai, esses vazamentos trepidantes. Ai, esse passado alucinante.

A TV Brasil exibiu com exclusividade um jogo do escrete canarinho. Consta que o narrador deu de mandar um abraço para o presidente do sul, o que deixou em estado de alerta máximo a vigilância democrática. Com toda a razão, embora não seja de hoje que as emissoras estatais botam banca e montam palanque para as “otoridade” se derramarem nos elogios recíprocos, fazendo campanha eleitoral fora de temporada. Não, não é de hoje. O cacoete da autopromoção em microfones públicos é antigo: é do passado.

O presidente prometera acabar com a EBC, a estatal que controla a TV Brasil, mas não era para acreditar. Não dava para acreditar. A facção de extrema direita que ganhou as eleições se julga a portadora da verdade e como confunde verdade com propaganda não pode viver sem propaganda. Ficaria sem verdade. Por isso jamais jogará fora um equipamento como a EBC, prontinho para ser repaginado em usina de verdades absolutas.

O que nos salva, agora, é que a facção de extrema direita que aí está não tem competência nem para ser fascista. Não é pra valer. Não tem compromisso com a coerência. Na TV Brasil, o presidente está mais para lobisomem de filmes de Mazzaropi (reprisados todos os dias) do que para Duce ou técnico de futebol. O seu fascismo é pastiche. Anauê paranauê. O fascismo termina no colo do Centrão, que quando o mercado favorece é direitão, mas não é bobo, não.

Um surdo pequeno bate o compasso. O presidente chuta a causa autoritária para escanteio e se enturma na patota do dinheiro na cueca, mais velha que a Revolta da Vacina. Entra a cuíca, que não é cueca, para entrecortar o balanço com agudos miúdos. Que samba bom. A voz macia de Blecaute estufa os alto-falantes estatais. De terno claro, camisa branca sem gravata, ginga natural, ele manda ver: “Ô, que samba bom/ ô, que coisa louca/ eu também tô aí/ tô aí, que é que há/ também tô nessa boca”.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Professor da Escola de Comunicações, Artes e Humanidades da Universidade de São Paulo. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 22.10.2020.

Um presidente contra a Saúde

O que Bolsonaro deseja – e assim faz valer – é uma pasta incondicionalmente subserviente a suas idiossincrasias políticas e ideológicas

Em plena pandemia, o presidente Jair Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde porque eles insistiram em seguir os protocolos profissionais. Os médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich recusaram-se a indicar um medicamento contra as evidências científicas e, por isso, tiveram de deixar a pasta. O presidente Bolsonaro queria um ministro da Saúde obediente às suas ordens, mesmo que elas afrontassem a ciência e a medicina. Foi assim que se chegou ao nome de Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde. Tão logo assumiu a pasta, o general de brigada ampliou, em estrita obediência ao arbítrio do chefe, o uso de cloroquina em pacientes com covid-19.

Ontem, o presidente Bolsonaro reiterou que, durante seu mandato, não quer o Ministério da Saúde atuando pela saúde pública. O que ele deseja – e assim faz valer – é uma pasta incondicionalmente subserviente a suas idiossincrasias políticas e ideológicas.

Na terça-feira, em reunião virtual com os 27 governadores, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, anunciou a assinatura de um protocolo de intenções para adquirir 46 milhões de doses da vacina Coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan. Era uma decisão estritamente técnica, em benefício da população. No momento, a Coronavac é a vacina em estágio de testes mais avançado, tendo mostrado, até agora, os melhores índices de segurança. Com um investimento estimado em R$ 1,9 bilhão, a compra até o fim do ano permitiria iniciar a vacinação já em janeiro de 2021.

Na ocasião, Eduardo Pazuello fez questão de esclarecer eventual dúvida ou desconfiança sobre a origem da vacina. Segundo o ministro da Saúde, a “vacina do Butantan será a vacina brasileira”, lembrando que o imunizante, tendo sido desenvolvido na China, será produzido integralmente no Instituto Butantan, em São Paulo.

O anúncio do protocolo para a compra dos 46 milhões de doses era uma excelente notícia para a população. O governo federal, por meio do Ministério da Saúde, dava sua contribuição para pôr fim à pandemia do novo coronavírus. A boa notícia, no entanto, durou pouco. Ontem, o presidente Bolsonaro fez questão de deixar claro que seu governo não trabalha com parâmetros técnicos e que a saúde da população não é prioridade.

Em resposta ao comentário de um jovem numa rede social – “Presidente, a China é uma ditadura, não compre essa vacina, por favor” –, Jair Bolsonaro respondeu que a vacina “não será comprada”. Em outro comentário, o presidente da República voltou a negar publicamente a informação dada pelo ministro da Saúde. Diante do pedido de uma internauta para que Eduardo Pazuello fosse exonerado urgentemente do Ministério da Saúde, porque ele estaria atuando como cabo eleitoral de João Doria, governador de São Paulo, Jair Bolsonaro disse: “Não compraremos a vacina da China”.

Assim, Eduardo Pazuello tornou-se, num período de seis meses, o terceiro ministro da Saúde a ser desmentido publicamente pelo presidente Bolsonaro, simplesmente por agir de forma coerente com o interesse público e as evidências médicas. Por respeito ao seu nome e, muito especialmente, por zelo com a saúde da população, era o caso de o general de brigada pedir as contas, assim como fizeram Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.

No entanto, não foi o que se viu até aqui. Logo após os dois comentários do presidente Bolsonaro, o secretário executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, disse que “houve interpretação equivocada da fala do ministro da Saúde” sobre a compra de doses da Coronavac e que a pasta não firmou “qualquer compromisso com o governo do Estado de São Paulo ou com o seu governador no sentido de aquisições de vacinas contra a covid”.

Mas o presidente Bolsonaro voltou a desmentir ontem mesmo o Ministério da Saúde, dizendo que mandou “cancelar” o protocolo de intenções assinado na terça-feira. “Presidente sou eu”, disse, como se a loucura de impedir o trabalho do Ministério da Saúde pudesse ter alguma similaridade com o exercício da autoridade. É a ignorância que se faz arbítrio.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
22 de outubro de 2020 | 03h00

Brasil fecha mais empresas do que abre pelo 5º ano seguido, aponta IBGE

Entre 2014 e 2018, país perdeu cerca de 382,5 mil empresas e 2,9 milhões de pessoas assalariadas. Comércio é o setor que mais perdeu empresas.

Um levantamento divulgado nesta quinta-feira (22) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que o Brasil teve saldo negativo pelo quinto ano seguido. Isso significa que mais empresas foram fechadas do que abertas no país neste período.

De acordo com o levantamento, entre 2014 e 2018 o país perdeu cerca de 382,5 mil empresas, o que implicou na perda de 2,9 milhões de trabalhadores assalariados.

Apenas uma em cada quatro empresas sobrevive por mais de 10 anos no Brasil, aponta IBGE

O levantamento considera somente as entidades empresariais, excluindo os Microempreendedores Individuais (MEIs), órgãos da administração pública, entidades sem fins lucrativos e as organizações internacionais que atuam no país.

“O comportamento de saída e entrada de empresas tem relação direta com a atividade econômica do país. Só em 2014, 218 mil fecharam as portas. Nos anos seguintes, esse movimento continuou, mas num patamar menor, refletindo a atividade econômica do período, que vem sendo fraca desde então”, avaliou o gerente da pesquisa, Thiego Gonçalves Ferreira.

Na passagem de 2017 para 2018, o saldo negativo foi de quase 65,9 mil empresas – o terceiro mais intenso da série. Enquanto 697,1 mil novos negócios foram abertas no ano, 762,9 mil encerraram suas atividades.

O comércio foi o setor que apresentou a maior variação negativa entre abertura e fechamento de empresas de 2017 para 2018, enquanto o segmento de saúde humana e serviços sociais foi o que teve o maior saldo positivo, ou seja, que abriu mais do que fechou empresas.

O levantamento mostrou, também, que o pessoal ocupado assalariado aumentou em 419,8 mil em 2018, uma alta de 1,3%. O IBGE destacou que este contingente foi empregado, sobretudo, pelas empresas sobreviventes.

Do total de trabalhadores assalariados, 97,3% estava ocupado em empresas sobreviventes. Nessas empresas, a participação dos homens foi 60,8%, contra 39,2% de mulheres, e o percentual de empregados com nível superior chegou a 15,2%.

“Os homens também são maioria nas empresas novas e nas que fecharam as portas. Mas a participação de pessoas com maior escolaridade é menor. O que nos leva a inferir que a população mais escolarizada é mais avessa a ingressar nessas empresas, optando pelas sobreviventes, uma vez que elas também remuneram melhor”, apontou o gerente da pesquisa, Thiego Ferreira.

País volta a ter avanço de Empresas de Alto Crescimento

Em contrapartida ao saldo negativo de empresas, o Brasil voltou a registrar, em 2018, aumento do número das chamadas Empresas de Alto Crescimento (EAC), após cinco anos seguidos de queda.

IBGE classifica como EAC aquelas companhias com pelo menos 10 empregados assalariados que conseguem aumentar seu quadro de pessoal acima de 20% ao ano, por três anos seguidos. "Esse crescimento está associado ao empreendedorismo", enfatizou o órgão.

Em 2018, o número de EACs avançou 11,9%, somando 22,7 mil. Esse número, no entanto, foi o terceiro menor da série histórica. O maior número dessas empresas no país foi registrado em 2012 (35,2 mil), enquanto o menor, em 2017 (20,3 mil).

Essas empresas de alto crescimento representaram 1,0% das empresas ativas e 5,0% das empresas com 10 ou mais pessoas ocupadas. Elas foram responsáveis por 11,2% das pessoas assalariadas e pelo pagamento de 9,1% dos salários e outras remunerações.

Thiego Ferreira observa que sustentar o alto crescimento é algo raro entre as empresas. “A pesquisa mostrou que apenas 5,6% das empresas que se tornaram de alto crescimento entre 2008 e 2013 repetiram o feito cinco anos depois. É uma taxa baixa. Mais baixa ainda quando olhamos no horizonte de 10 anos (3,1%). Isso mostra o quão difícil é voltar a crescer mais pra frente”, disse ele.

Quase 2,6 mil eram empresas “gazelas”

Do total de empresas de alto crescimento, 11,4% (2.597 mil) eram as chamadas “gazelas”, que têm até cinco anos de idade. Elas também cresceram 7,2% em 2018. São empresas que empregaram 198,8 mil pessoas e pagaram R$ 4,6 bilhões em salários e outras remunerações, o equivalente

 Por Daniel Silveira, G1 — RJ / Publicado originariamente por G1, em 22.10.2020.

Segurança jurídica está no reconhecimento do que foi aprovado pelo legislador

Por Marco Aurélio Mello

A sequência no processo-crime sinaliza apurar-se para, selada a culpa, mediante a ocorrência do trânsito em julgado do título condenatório, prender-se, em verdadeira execução da pena. Essa é a regra. A confirmá-la tem-se o Capítulo 3 — Da Prisão Preventiva — do Código de Processo Penal. Preceitua o artigo 311:

[...]

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

[...]

O artigo 312 revela os móveis da prisão preventiva:

[...]

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

[...]

Segue-se o § 1º, a dispor:

[...]

§ 1º A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4º)

[...]

No § 2º, pedagogicamente, está revelado:

[...]

§ 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.

[...]

Seguem-se os artigos 313 a 316 versando a matéria.

O conjunto de normas revela que a regra é o acusado — até então simples acusado, ante o princípio constitucional da não culpabilidade — responder solto, sendo exceção a prisão preventiva, também apontada como processual. Todo e qualquer preceito que encerre exceção deve ser interpretado de forma estrita. É o que nele se contém, não havendo campo para a criatividade.

Antes da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 — denominado "pacote anticrime" —, não se tinha previsão explícita sobre a duração da custódia provisória, da mitigação do princípio da não culpabilidade. Então, ficou pacificado que se deveria aferir a limitação dos dias de prisão provisória observando-se os prazos relativos à instrução processual, para chegar-se a decisão no processo-crime. Extravasados esses prazos, ter- se-ia o excesso referente à custódia preventiva.

Mais do que isso, a revelar a excepcionalidade da medida, tem-se o artigo 283 do Código de Processo Penal, declarado harmônico com a Constituição Federal na apreciação das ações declaratórias nº 43, 44 e 54. Eis o preceito:

[...]

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.

[...]

Colhe-se do artigo 387 do Código de Processo Penal, mais precisamente do § 1º, que o juiz, ao proferir sentença condenatória, decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva, ou de outra providência cautelar, sem prejuízo do conhecimento de apelação que vier a ser interposta. Mais ainda, o § 2º encerra que o tempo de custódia provisória, prisão administrativa ou internação, no Brasil ou no estrangeiro, será computado para fins de determinação do regime inicial de pena privativa de liberdade. Mesmo diante desse balizamento normativo, os dados revelados pelo Departamento Penitenciário Nacional, Órgão ligado ao Ministério da Justiça, em 14 de fevereiro de 2020, mediante o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2019, demonstram que dos 758.676 presos, no País, 253.963 são provisórios, equivalendo a 33,47% da população carcerária.

Observando o princípio da não culpabilidade, inseriu-se no artigo 316 do Código de Processo Penal preceito cogente. A cabeça do dispositivo prevê que o juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para a subsistência, e novamente determiná-la, se vierem razões que a justifiquem. O parágrafo único é de clareza solar, valendo ter presente a norma de hermenêutica e aplicação do Direito segundo a qual, onde o texto da lei é explícito, não cabe interpretação. O que se dirá reescrever a própria norma, substituindo- se o julgador ao Legislativo?

Tem-se hoje, considerado o parágrafo único do artigo 316, introduzido, repita-se, pelo pacote anticrime, Lei nº 13.964/2019, que, imposta a custódia preventiva, deverá o Órgão emissor da decisão revisar a necessidade da manutenção a cada 90 dias, mediante ato fundamentado, de ofício, sob pena de tornar ilegal a prisão. Iniludivelmente tem-se preceito que atende, em primeiro lugar, a dignidade do homem, do custodiado, que não pode ser jogado, ao que o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo disse, às masmorras, esquecido como se animal fosse. É um ser humano e deve ser tratado como tal. Em segundo lugar, a norma imperativa do parágrafo em discussão dispõe cumprir, ao emissor da decisão que implicou custódia preventiva, revisá-la a cada 90 dias, pouco importando onde esteja o processo, na maioria das vezes eletrônico. Não se trata de algo inviável, no mundo da computação. Há de haver, quer no Judiciário, quer no Ministério Público — Estado-acusador —, quer na Defensoria Pública, quer na polícia, cadastro contendo a situação jurídica daqueles que, uma vez acusados do cometimento de desvio de conduta, estejam sob a custódia do Estado. Pelo preceito, renovada a necessidade, mediante pronunciamento judicial fundamentado, da prisão preventiva, não se tem o excesso de prazo. O legislador foi explícito ao cominar consequência para o extravasamento dos 90 dias sem a formalização de ato fundamentado renovando a custódia. Previu, na cláusula final do parágrafo único do artigo 316, que, não havendo a renovação, a análise da situação do preso, a prisão surge ilegal. A tanto equivale, sem sombra de dúvida, a cláusula final: "[...] sob pena de tornar a prisão ilegal".

Garantias e franquias legais e constitucionais não são acionadas pelo homem médio. São acionadas por aqueles envolvidos em processo-crime, e isso ocorre para que haja julgamento justo. Por isso mesmo, tem-se, no artigo 261 do Código, que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor. Mais do que isso, onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo, muito menos para inserir distinção não contemplada.

A garantia em análise é linear e alcança todo e qualquer custodiado, pouco importando a imputação a lhe recair sobre os ombros.

Nunca é demasiado reconhecer que a atuação do Judiciário é vinculada ao Direito aprovado pelo legislador, pelo Congresso Nacional. Nessa premissa está a segurança jurídica, a revelação de viver-se não em um regime de exceção, mas num Estado Democrático de Direito.

Sob o ângulo da autodefesa, há de reconhecer-se, como direito natural, o cidadão estar em lugar incerto e não sabido, não se submetendo a ato ilegal. Na apreciação do pedido de implemento de medida acauteladora no momentoso habeas corpus nº 191.836/SP, examinei dois temas. Quanto ao primeiro, relativo à subsistência, ou não, dos fundamentos da ordem de prisão cautelar, consignei:

[...]

2. O Juízo, ao determinar a prisão, referiu-se a dados obtidos mediante interceptação telefônica, vídeos, depoimentos e vigilância policial realizados durante investigação. Assentou participação do paciente em grupo criminoso voltado ao tráfico internacional de drogas e a apreensão de quase 4 toneladas de cocaína. O Tribunal de Justiça, no julgamento da apelação, concluiu persistirem os motivos que ensejaram a custódia. O quadro indica em jogo a preservação da ordem pública e a aplicação da lei penal. Sem prejuízo do princípio constitucional da não culpabilidade, a prisão mostrou-se viável, ante a periculosidade, ao menos sinalizada. Daí ter-se como fundamentado o pronunciamento atacado. A inversão da ordem do processo-crime — no que direciona a apurar para, selada a culpa, em verdadeira execução da pena, prender — foi justificada, atendendo-se ao figurino legal.

[...]

O segundo tema ficou ligado ao critério objetivo da duração da prisão provisória. Constatando inobservada a norma imperativa, cogente, do parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal e, portanto, extravasado o período máximo de 90 dias relativo à custódia provisória, inexistente qualquer ato renovando-a como exigido, implementei a medida acauteladora, observando, acima de tudo, a Constituição Federal: "a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;" — artigo 5º, inciso LXV.

O quadro agravou-se, sobremaneira, quando o presidente do Supremo, à margem dos ditames legais e regimentais, arvorando-se em visão totalitária, censor do ato embora ombreando com o prolator da decisão, veio a afastá-la do cenário jurídico. Fê-lo, totalmente sem base legal, na suspensão de liminar nº 1.395. Tendo Sua Excelência levado o prounciamento, infrutífero — porque já solto e em local incerto e não sabido o acusado —, ao Plenário, este, nada obstante reconhecendo a inexistência do poder exercido pelo presidente, confirmou-o, por escore acachapante de 9 voto a 1. Votaram confirmando o ato do presidente Luiz Fux os ministros Alexandre de Moraes, Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Manifestei-me em sentido diametralmente oposto. Primeiro, escancarando a visão totalitária do presidente. Depois, observando não a pura literalidade do parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal, mas o objetivo da norma. Em síntese, considerado instrumental voltado a preservar a liberdade de locomoção, que tem parte única — o paciente, personificado pelo impetrante —, o Tribunal acabou por sinalizar a prisão preventiva de um acusado. O habeas corpus é ação de mão única e visa beneficiar, não prejudicar, o paciente. É possível, segundo a legislação de regência, em qualquer processo, defrontando-se o julgador com ilegalidade — no caso, cominada pela norma — a alcançar a liberdade de ir e vir, implementar ordem, não havendo campo para cogitar-se do instituto da supressão de instância no que, em última análise, objetiva beneficiar, jamais prejudicar, a parte — repita-se no habeas corpus unicamente o paciente, atuando o Ministério Público como fiscal da lei, não integrando, por isso mesmo, a relação jurídica processual.

Na atuação individual, considerado exame de pedidos de tutela de urgência, tendo em vista a decisão do Pleno, tenho ressalvado óptica pessoal em sentido diverso, assentando descaber, no campo precário e efêmero, o afastamento da custódia, deixando para tornar efetiva a compreensão sobre o tema por ocasião do julgamento em colegiado.

Ao tomar posse em cargo de Juiz, há 41 anos, mais precisamente em 6 de novembro de 1978, jurei observar a Constituição Federal e as Leis da República. Assim hei de encerrar os dias judicantes, quando deixarei o ofício com o sentimento do dever cumprido.

Marco Aurélio Mello é o Ministro Decano do Supremo Tribunal Federal. Este artigo foi publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 22.10.2020.

STJ declara ilegal a conversão em preventiva, de ofício, da prisão em flagrante

As alterações promovidas no CPP pelo "pacote anticrime" (Lei 13.964/19) excluíram a possibilidade de juiz poder converter, de ofício, a prisão em flagrante em preventiva.

Com esse entendimento, a 5ª Turma do STJ concedeu a ordem em um Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública de Goiás. A decisão declara nula a conversão, de ofício, de prisão em flagrante em prisão preventiva — sem ter havido manifestação da autoridade policial ou do Ministério Público. 

A medida já havia sido reconhecida como prática ilegal em liminar concedida em junho. O STJ, antes da edição do "pacote anticrime", tinha jurisprudência no sentido de que tal conversão poderia ser decretada, sim, de ofício (Tema 10 da Edição 120, "Jurisprudência em Teses"):

"Não há nulidade na hipótese em que o magistrado, de ofício, sem prévia provocação da autoridade policial ou do órgão ministerial, converte a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal — CPP".

O defensor público Márcio Rosa Moreira, titular da 2ª Defensoria Pública de 2º Grau, explica que "esse é um caso paradigmático, pois terá reflexos em outros processos e teve especial atenção da instituição". "Mesmo com decisão recente da 6° Turma em sentido diverso, hoje, [20/10], por unanimidade, a 5ª Turma do STJ concedeu a ordem, fixando entendimento pela ilegalidade da conversão da prisão de ofício".

O HC foi impetrado para solicitar a soltura imediata de um homem e uma mulher que tiveram a prisão preventiva decretada pelo juiz sem que houvesse solicitação de autoridade policial ou do Ministério Público. 

No caso, o defensor público apontou, entre outros argumentos, a ilegalidade existente na decretação de prisão preventiva de ofício. Ele lembrou que, apesar de as audiências de custódia terem sido dispensadas pelo Conselho Nacional de Justiça durante o período da epidemia de Covid-19, a observância das formalidades legais para a decretação da prisão preventiva deve ser mantida, o que não ocorreu no caso em questão, pois não houve requerimento prévio do Ministério Público ou representação da autoridade policial.

"No sistema processual acusatório, a atividade jurisdicional depende da acusação da parte, pois o juiz não é órgão persecutório e não deve se imiscuir na investigação policial, tudo para não comprometer a sua necessária imparcialidade", argumenta Márcio Rosa Moreira.

HC 590.039 (GO)

Publicado por Consultor Jurídico, em 22.10.2020

Brasil já tem mais de 155 mil mortos por covid-19 após registro de mais 565 óbitos


Foto à noite, mostra mulher parada em ponto de ônibus com máscara e, ao fundo, uma projeção de luz no prédio do Congresso dizendo: Luto 100 milCRÉDITO,REUTERS/ADRIANO MACHADO

Homenagem em Brasília às mais de 100 mil pessoas que perderam a vida para a covid-19 no país; marca foi ultrapassada em agosto

O coronavírus já infectou pelo menos 5.298.772 pessoas e levou 155.402 delas a óbito no Brasil, segundo o boletim mais recente do Ministério da Saúde, divulgado nesta quarta-feira (21/10).

Deste total, 24.818 casos da doença e 565 óbitos foram registrados nas últimas 24 horas. O Estado com o maior número de vítimas é São Paulo (38.371), seguido por Rio de Janeiro (19.945) e Ceará (9.227).

O país continua como o segundo do mundo com maior número de mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 220 mil mortes pela covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

O Brasil foi superado em número de casos, entretanto, pela Índia (7,5 milhões), agora em segundo lugar depois dos Estados Unidos (8,2 milhões de casos).

BBC News Brasil, em 21.10.2020

O que se sabe sobre a morte de voluntário da vacina de Oxford no Brasil

Médico brasileiro atuava na linha de frente no combate à pandemia e morreu de complicações decorrentes da covid-19. Fontes ligadas ao estudo afirmam que ele recebeu placebo, e não o imunizante.

Mão com luva azul segura seringa de vacina. Ao fundo, um letreiro diz AstraZeneca.

Cerca de 20 mil pessoas participam dos testes da vacina desenvolvida pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford

Um médico brasileiro que era voluntário nos testes da vacina de Oxford contra o coronavírus morreu por complicações de covid-19. A vítima é o carioca João Pedro Rodrigues Feitosa, de 28 anos. Ele morreu no dia 15 de outubro, mas a notícia da morte veio à tona nesta quarta-feira (21/10) após reportagem do jornal O Globo.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) confirmou a morte de um voluntário brasileiro, mas afirmou que, por questão de sigilo, não podia revelar a identidade da vítima. A Anvisa disse que foi informada do falecimento na última segunda-feira. Segundo a agência, uma investigação foi realizada pelo Comitê Internacional de Avaliação de Segurança, que sugeriu o prosseguimento do estudo. 

A vacina é desenvolvida pela farmacêutica sueco-britânica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford e é considerada uma das mais promissoras entre os imunizantes atualmente em teste.

Em comunicado, a Universidade de Oxford informou que, após avaliação cuidadosa do caso, "não houve preocupações quanto à segurança do ensaio clínico".

Assim como a Anvisa, a AstraZeneca e a Universidade de Oxford alegam cláusulas de sigilo para não divulgar detalhes do caso. No entanto, fontes ligadas à pesquisa afirmaram à TV Globo que o voluntário recebeu placebo, e não o imunizante.  

Até o momento, aproximadamente 8 mil voluntários participaram de testes da vacina no Brasil. O estudo é randomizado e cego, ou seja, metade dos voluntários recebe o imunizante, e a outra metade, não. Os participantes não sabem se receberam ou não a dose da vacina.

Segundo nota de pesar divulgada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde Feitosa estudou, ele estava atuando na linha de frente no combate ao novo coronavírus nas redes privada e municipal de Saúde do Rio de Janeiro.

"A Reitoria da UFRJ — juntamente com toda a comunidade universitária — presta sinceras condolências aos familiares e amigos do nosso ex-aluno em meio a esse momento de tristeza que ceifou a vida do João, que havia acabado de se diplomar e não poupou esforços para atuar no enfrentamento da pandemia de covid-19, que já acumula mais de 40 milhões de casos no mundo", diz a nota.

Continuidade do estudo 

Responsável pelo estudo no Rio de Janeiro, o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) disse, também em nota, que análises rigorosas dos dados colhidos até o momento "não trouxeram qualquer dúvida com relação a segurança do estudo, recomendando-se sua continuidade". 

O instituto afirma que, após a inclusão de mais de 20 mil participantes nos testes ao redor do mundo, todas as condições médicas registradas foram cuidadosamente avaliadas pelo comitê independente de segurança, pelas equipes de investigadores e autoridades regulatórias locais e internacionais.

A vacina desenvolvida pela AstraZeneca e pela Universidade de Oxford é tida pelo governo brasileiro como uma das principais apostas para a imunização contra o covid-19 no país. No mês passado, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) assinou o contrato de Encomenda Tecnológica (Etec) com a AstraZeneca. A Etec garante ao Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) o acesso a mais de 100 milhões de doses do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para o processamento final (formulação, envase, rotulagem e embalagem) e controle de qualidade, ao mesmo tempo em que garante à Fiocruz a transferência total da tecnologia.

Pausa nos testes

Em setembro, a AstraZeneca interrompeu os testes da vacina de Oxford para investigar uma suposta reação adversa grave em uma paciente no Reino Unido. Um comitê independente foi formado para revisar a segurança dos ensaios, algo que a empresa e a Organização Mundial da Saúde (OMS) descreveram como um evento rotineiro em grandes estudos médicos que envolvem milhares de voluntários. Os testes foram retomados quatro dias depois.

A vacina de Oxford e da AstraZeneca usa um adenovírus que carrega um gene para uma das proteínas do coronavírus Sars-Cov-2. O adenovírus é projetado para induzir o sistema imunológico a gerar uma resposta protetora contra o vírus causador da covid-19. A tecnologia ainda não foi usada em uma vacina aprovada para uso humano, mas foi testada em vacinas experimentais contra outros vírus, como o causador do ebola.

O imunizante de Oxford foi o primeiro a receber autorização para testes no Brasil. Depois, mais três receberam a autorização, o mais recente da Janssen, unidade farmacêutica da Johnson & Johnson.

No começo desta semana, o Instituto Butantan, parceiro da farmacêutica chinesa Sinovac no país, anunciou que os resultados preliminares dos ensaios clínicos da fase 3 da vacina contra o coronavírus que estão sendo feitos no Brasil revelaram a segurança do imunizante.

Publicado originalmente por Deutsch Welle, em 22.10.2020

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Em discurso na Pensilvânia, Obama pede alta participação na eleição para evitar outro fracasso

Ex-presidente manifestou apoio a Joe Biden na Filadélfia

 O ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, pediu aos eleitores do candidato democrata Joe Biden nesta quarta-feira, 21, que se mobilizem e não confiem nas pesquisas favoráveis ​​para as eleições de 3 de novembro, em um longo discurso no qual também denunciou seu sucessor Donald Trump.

O ex-presidente Barack Obama discursa em evento de campanha do candidato democrata Joe Biden em Filadélfia, na Pensilvânia Foto: Michael M. Santiago/Getty Images/AFP

"Não podemos confiar um no outro. Não me importo com as pesquisas", disse ele em um comício na Filadélfia, no Estado da Pensilvânia.

“Nossa democracia não vai funcionar se as pessoas que deveriam ser nossos líderes mentirem todos os dias e simplesmente inventarem coisas. E ficarmos entorpecidos diante disso”, acrescentou, em clara alusão ao atual presidente dos Estados Unidos.

Obama disse ainda que Trump provou ser "incapaz de levar o trabalho a sério". "Este não é um reality show. É a realidade", disse. "E o resto de nós tem que viver com as consequências de ele se mostrar incapaz de levar o trabalho a sério."

 /AFP / Redação, O Estado de S.Paulo. 21 de outubro de 2020 | 19h25. Atualizado 21 de outubro de 2020 | 20h07

"Aliança com Centrão não atenuou fascismo de Bolsonaro"

Luiz Eduardo Soares, cujo novo livro analisa fascismo e bolsonarismo, diz que novas aproximações políticas e postura mais branda do presidente não significam moderação em seu "programa fascista", que mobiliza o ódio.

O presidente Jair Bolsonaro

"Tínhamos o dragão na sala de visita, hoje ele está na garagem. Mas continua sendo o dragão", afirma antropólogo

O presidente Jair Bolsonaro lidera um movimento com características fascistas, que evoca uma ideologia elaborada ainda na década de 1930, no integralismo brasileiro, posteriormente assimilada pela ditadura militar e infiltrada no período democrático. Considera-se guiado pela vontade de Deus e não vê limites para o exercício da violência com o objetivo de destruir o inimigo, representado no comunismo ou no mal. Para fazer isso, mobiliza o ódio na sociedade para alimentar um "espírito de linchamento".

A análise é do antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública e autor dos livros que deram origem aos filmes Tropa de elite. Ele lançou, no final de setembro, o livro Dentro da noite feroz – O fascismo no Brasil, pela Boitempo Editorial, no qual interpreta o movimento em torno do presidente à luz das ideias e experiências fascistas.

Em entrevista à DW Brasil, Soares afirma que a aproximação de Bolsonaro com o Centrão e a redução da frequência de suas falas radicais, ocorridas após ver seu filho Flávio Bolsonaro e aliados sofrerem revezes em investigações judiciais, não indicam que o presidente se moderou, mas apenas que houve um recuo temporário em sua estratégia de longo prazo. "Antes, tínhamos o dragão na sala de visita. Hoje temos um dragão na garagem. Mas continua sendo o dragão, e seus propósitos continuam sendo os mesmos", diz.

Ele associa o sucesso do bolsonarismo à capacidade de aplacar inseguranças provocadas por mudanças rápidas na sociedade, como o questionamento dos significados tradicionais de homem, mulher e família, aliado ao apoio das polícias – segundo o antropólogo, um enclave autoritário em meio à democracia – e de parcela da elite econômica. 

Soares diz que apenas cerca de 15% da população concorda com o "programa fascista" do presidente, e que o apoio ao governo Bolsonaro, hoje em torno de 40% dos eleitores, deve diminuir com o fim do auxílio emergencial, abrindo "possibilidades de disputa política".

DW Brasil: Qual é a origem da ideologia fascista no Brasil?

Luiz Eduardo Soares: Os traços fascistas se converteram em programa ideológico e político nos anos 1930, sob a liderança de Plínio Salgado, no movimento integralista, que exaltava o fascismo e o nazismo e pleiteava a união do Brasil ao Eixo na Segunda Guerra Mundial. Eles tentaram dar um golpe de Estado contra Getúlio [Vargas], não foram bem-sucedidos e foram para a clandestinidade, mas não deixaram de exercer influência e deter um quinhão da opinião pública brasileira.

Nos anos da ditadura, de 1964 a 1985, os velhos integralistas tiveram uma participação ativa. Um dos exemplos é Filinto Müller, que tinha sido o chefe da polícia política no Estado Novo, responsável por muitas mortes e torturas, e se tornaria, nos anos 1970, líder do governo militar no Senado pela Arena.

Sempre houve candidatos que se identificavam com programas integralistas ou neointegralistas, e eles voltaram a agir publicamente no século 21, em várias manifestações. No Rio, por exemplo, saindo em marchas, queimando bandeiras, e, depois de 2010, apoiando candidaturas, particularmente da família Bolsonaro.

Mas os traços fascistas ou protofascistas ultrapassam os limites de um partido ou de um movimento específico e se enraizam na sociedade, camuflados e articulados a outros valores e símbolos. Somos um país de quatro séculos de escravidão, autoritário e muito violento. Além do integralismo, que é uma referência ao novo partido que Bolsonaro está tentando criar, temos na sociedade elementos que se articulam facilmente a essa nebulosa fascista que Bolsonaro encarna e inscreve na política.

O sr. pode citar exemplos recentes de situações em que o fascismo se manifesta?

Quando Bolsonaro elogia como herói nacional um torturador, estuprador e assassino como o [coronel Carlos Alberto Brilhante] Ustra, ele eleva esse personagem ao status de referência identitária nacional. A exaltação à violência, nesse caso, vem associada à ideia de uma pátria do bem, sob proteção divina, que luta contra o mal. E quem é o inimigo? O grande Outro, contra o qual se identificam aqueles que são próximos a Bolsonaro.

Sempre que grupos se agregam, forma-se identidade por oposição, até nos esportes. O diferencial é quando a identidade se produz pela definição do Outro não como adversário ou antagonista, mas como inimigo que deve ser destruído em uma guerra santa. Quando nossa percepção do mundo tem como fundamento a vontade divina, acreditamos que não há limite para o exercício da violência, e temos como meta a destruição do inimigo, que representaria o comunismo, o diabo ou o mal, temos uma estrutura de concepções e valores análoga ao que se categoriza como fascismo.

O último discurso que Bolsonaro fez antes do segundo turno das eleições de 2018, por celular da casa dele, ouvido na Avenida Paulista, prometia às oposições a ponta da praia, a fuga do país, o exílio. A ponta da praia significa, na linguagem da repressão da ditadura, a execução. Naquele momento, ele abomina as diferenças. Sabemos que o grupo ligado a Bolsonaro deseja eliminar o pluralismo. O bolsonarismo se define como uma revolução para destruir tudo o que está aí, o que envolve a Constituição, os direitos conquistados e as instituições como se organizam.

Qual é a função do ódio e da pulsão de destruição nessa ideologia?

É central. O fascismo precisa mobilizar o ódio e a sociedade para que ela se sinta identificada nesse esforço guerreiro bélico comum contra o mal, alimentando um espírito de linchamento. Para que haja a efetivação desse regime simbólico de construção de identidade, é necessário que o afeto dominante seja o ódio, porque só o ódio se encaixa na afirmação de que estamos numa guerra e precisamos eliminar os inimigos.

Bolsonaro se aproximou do Centrão nos últimos meses e reduziu a frequência de manifestações mais radicais. Esse movimento atenuou o que o sr. define como traços fascistas?

Não, porque em nenhum momento ele voltou atrás em relação ao que pensa e ao que diz. O que houve foi uma mudança tática. Ele viu que a correlação de forças estava pendendo contra ele e recuou. Mas não há nenhuma mudança em relação à estratégia. Antes, tínhamos o dragão na sala de visita. Hoje temos um dragão na garagem. Mas continua sendo o dragão, e seus propósitos continuam sendo os mesmos. Não podemos confundir a tática com a substância do que está em jogo.

O governo Bolsonaro é hoje apoiado por cerca de 40% da população. Como o sr. explica isso à luz da sua análise do fascismo?

Uma consideração que derivaria de um mal-entendido sobre o que digo seria: "Se o Bolsonaro venceu as eleições, é porque a maioria do povo brasileiro é fascista". De jeito nenhum. O voto é uma escolha num determinado momento entre candidaturas. Uma adesão muitas vezes parcial ao ideário. Não temos mais que 15% da sociedade identificando-se plenamente com o bolsonarismo, que é o programa fascista.

Há dois elementos importantes [para explicar o apoio a Bolsonaro]. Um é o auxílio emergencial, que tem um impacto grande. A população que acompanha o dia a dia pela mediação das suas necessidades de sobrevivência, o que é mais imperioso, se sente atendida e declara seu apoio. Que não é necessariamente permanente. O auxílio vem sendo retirado e a crueza da crise vai mostrar a sua profundidade. Será difícil manter esse nível de popularidade.

O outro elemento, que conversa com o fascismo, é o que eu chamo de demanda por ordem. Não no sentido da segurança pública, que também está envolvida. Há uma demanda da sociedade brasileira pela restauração de uma ordem no nível do ser, por referências fixas.

Nossa época é de mudanças rápidas e profundas, com muita angústia. E surgiram movimentos libertadores, como o movimento feminista, que começa a bater contra o patriarcalismo, e nesse espaço surgem novas possibilidades para a constituição de si em que sexo, corpo e gênero se separam e podem se combinar de formas inesperadas. Isso desestabiliza as figuras arquetípicas de homem, mulher e família. Os machos formados no patriarcalismo sentem de forma muito aguda, precisam se proteger contra isso e contra o que está dentro de cada um deles, e descobrem lideranças capazes de endereçar o seu discurso a essa demanda.

O que é o bolsonarismo, senão vingança do macho, o retorno do macho grosseiro rudimentar? Bolsonaro promete restaurar as âncoras, em um apelo dirigido pelo que há de neurótico e defensivo em cada um e cada uma, porque muitas mulheres absorvem essa cultura machista também.

Nesse quadro, como o sr. interpreta o apoio de parte da elite econômica a Bolsonaro?

Os candidatos preferenciais da elite eram outros, mas foram ficando pelo caminho. Bolsonaro foi o pangaré que passava e surpreendia mostrando a possibilidade de vitória. Quando essa possibilidade se tornou real, as elites acenaram de volta, [dizendo] "fingimos que não estamos vendo o banho de sangue que você traz no seu programa, porque supostamente somos civilizados, desde que você implemente aqui a nossa agenda".

Como as polícias se ligam ao neofascismo no Brasil?

Tivemos uma transição para a democracia negociada, e havia um preço a se pagar. Os militares reservaram uma área que deveria se manter fora do processo de democratização, que foi a segurança pública. Houve mudanças na legislação, mas os policiais e as estruturas organizacionais eram as mesmas. Esse espaço se constituiu como um enclave na democracia, com valores e práticas refratários a ela. É um universo grande, que hoje corresponde a quase 800 mil profissionais. Há contradições, mas o que sempre dominou foi a continuidade com o passado. E temos também uma rede de cumplicidade [com a Justiça e o Ministério Público], com apoio popular.

Se há problemas de crime é porque não se matou o suficiente, essa sempre foi a toada. Por isso, havia bolsonarismo nas polícias muito antes de Bolsonaro. Quando Bolsonaro aparece, suas palavras soam como música. Ele realiza esse messianismo das polícias que esperavam um redentor que iria acabar com essa democracia e essa história de direitos humanos, e de dar autoridade para que a força vencesse o mais fraco em nome desses valores. Uma espécie de saneamento, de higiene, que se dá pelo sangue.

Nesta sexta-feira (23/10), o referendo sobre a proibição do comércio de armas e munição no Brasil faz 15 anos, em um momento em que o governo federal patrocina iniciativas para flexibilizar a compra de armas e munição. Qual o papel das armas nesse contexto?

Se há um consenso no meio científico que se dedica a essa questão é que mais armas implicam em mais crime, mais acidentes e violência doméstica, mais feminicídios e mais suicídios. Que conflitos interpessoais tendem a se converter mais em crimes de morte.

Flexibilização no acesso às armas significa também a provisão para o mercado ilegal, pois facilita o acesso de criminosos e do tráfico de armas às armas. É um caminho que favorece o crime, particularmente as milícias. Além disso, todos os meios que facilitavam investigações para rastrear munições e armas estão sendo destruídos.

O referendo de 2005 foi um momento triste da nossa história, tínhamos uma oportunidade de radicalizar o controle das armas, e houve uma reversão. A despeito dessa derrota, preservamos o controle e ampliamos o rastreamento até Bolsonaro chegar ao poder.

Como superar o que o sr. descreve como ameaça fascista no Brasil?

Não tenho uma resposta. Precisamos mobilizar todos os recursos disponíveis. Escrever livros, participar dos debates, fortalecer entidades, associações, organizações não governamentais, cobrar das instituições reação a essa corrosão. Apelar à sensibilidade internacional, que tem sido muito importante – se não foi capaz de impedir a devastação ambiental, tem chamado a atenção para limites.

Temos do outro lado a força econômica associada ao fascismo, que agora se veste de ovelha, como que a legitimar as adesões de camadas médias e das elites. As camadas populares terão o seu momento de enfrentamento com a dura realidade quando os auxílios emergenciais forem interrompidos. Temos diante de nós muitas possibilidades de disputa política.

Publicado originalmente por Deutsch Welle, em 21.10.2020.

Bolsonaro desautoriza Pazuello e diz que não vai comprar vacina chinesa

Ministro da Saúde havia anunciado acordo com São Paulo para compra de 46 milhões de doses produzidas pelo Instituto Butantan. Presidente fala em "traição" e diz que seu governo não mantém diálogo com João Doria.

Bolsonaro vem se posicionando publicamente contra uma potencial vacinação obrigatória. Ao longo da pandemia, preferiu apostar em tratamentos sem comprovação

O presidente Jair Bolsonaro reagiu de maneira agressiva nesta quarta-feira (21/10) ao acordo firmado por seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, com o estado de São Paulo, que prevê a compra de 46 milhões de doses da Coronavac, vacina contra o coronavírus da empresa chinesa Sinovac a ser produzida no Brasil em parceria com o Instituto Butantan.

A reação de Bolsonaro ocorreu no Facebook, em resposta a seguidores radicais que se posicionaram contra a vacina. "Não será comprada", escreveu Bolsonaro para um seguidor, em letras maiúsculas. "Qualquer coisa publicada, sem comprovação, vira TRAIÇÃO", reagiu Bolsonaro a um comentário de outro usuário, que acusou Pazuello de agir pelas costas do presidente.

"Tudo será esclarecido hoje. Tenha certeza, não compraremos vacina chinesa. Bom dia", respondeu Bolsonaro para outra seguidora, que acusou Pazuello de ser um "Mandetta milico". Ela se referia a um dos antecessores de Pazuello no ministério, Luiz Henrique Mandetta, demitido pelo presidente por não concordar com a ingerência errática de Bolsonaro na pasta.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, Bolsonaro ainda disparou várias mensagens no mesmo tom para seus ministros e aliados no Congresso. "Alerto que não compraremos uma só dose de vacina da China, bem como o meu governo não mantém qualquer diálogo com João Doria na questão do covid-19. PR Jair Bolsonaro", diz o texto, citando o governador paulista, desafeto de Bolsonaro e chefe do Executivo de um estado que concentra mais de um quinto da população brasileira.

Depois, Bolsonaro divulgou um comunicado nas suas redes sociais em que chama a Coronavac de "vacina chinesa de João Doria". "Não se justifica um bilionário aporte financeiro num medicamento que sequer ultrapassou sua fase de testagem", escreveu.

"Qualquer vacina, antes de ser disponibilizada à população, deverá ser COMPROVADA CIENTIFICAMENTE PELO MINISTÉRIO DA SAÚDE e CERTIFICADA PELA ANVISA. O povo brasileiro NÃO SERÁ COBAIA DE NINGUÉM. Diante do exposto, minha decisão é a de não adquirir a referida vacina."

Mais tarde, Bolsonaro afirmou durante um evento que a compra de vacinas estava descartada até a comprovação da eficácia de algum dos imunizantes. "A vacina precisa de comprovação científica para ser usada, não é como a hidroxicloroquina", acrescentou.

O anúncio da compra de 46 milhões de doses havia ocorrido um dia após o Instituto Butantan afirmar que resultados preliminares dos ensaios clínicos da Coronovac feitos no Brasil revelaram a segurança do imunizante contra a covid-19.

Em reunião com governadores, Pazuello ainda havia afirmado que esperava começar a vacinação com a Coronavac já em janeiro, após a aprovação da Anvisa. O ministério havia informado que pretendia investir R$ 1,9 bilhão na compra da Coronovac produzida no Brasil pelo Butantan. De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, o ministro havia enviado em 19 de outubro um ofício ao instituto confirmando a compra de 46 milhões de doses da Coronavac.

Após as declarações de Bolsonaro, o Ministério da Saúde voltou atrás e disse que "não há intenção" por parte do governo federal de adquirir "vacinas chinesas". A pasta afirmou ainda que houve "uma interpretação equivocada" da fala de Pazuello sobre o imunizante, mas reconheceu a assinatura de um protocolo de intenção com o Instituto Butantan para a compra da vacina.

O ministério apagou ainda um tuíte publicado na terça-feira no qual anunciava a compra da vacina chinesa. O conteúdo era semelhante ao de uma nota divulgada pela pasta, que também foi alterada no site oficial.

Postura de Bolsonaro na pandemia

Bolsonaro nunca compartilhou qualquer entusiasmo com potenciais vacinas. Ao longo da pandemia, ele preferiu promover "curas" sem comprovação científica, como a aplicação da hidroxicloroquina no tratamento da doença. Além de minimizar o vírus, o presidente também agiu sistematicamente para sabotar a imposição de medidas de distanciamento social no país.

Mais recentemente, ele passou a agir ativamente contra a possibilidade de uma vacinação obrigatória, contrariando uma medida assinada pelo seu próprio governo no início da pandemia.

O fato de a linha de frente da produção da vacina ter sido assumida pelo governo João Doria, seu desafeto, e envolver a China – vista como inimiga por muitos bolsonaristas, inclusive membros de sua família – adicionou ainda mais combustível à fogueira ideológica do presidente.

Fritura

As falas que desautorizaram Pazuello publicamente foram encaradas pela imprensa brasileira e parte do meio político como o início de um processo de fritura. No cargo desde maio, Pazuello substituiu o médico Nelson Teich, que ficou menos de um mês no posto.

Sem experiência na área de gestão da saúde pública, Pazuello logo se tornou um facilitador das vontades do presidente no ministério, mesmo quando as ordens se chocavam com o consenso científico. Ele editou protocolos para a expansão do uso da hidroxicloroquina e chegou a tentar esconder os números da pandemia.

Por outro lado, tentou melhorar as relações do ministério com os governadores do país, que estavam em pé de guerra com Bolsonaro por causa das atitudes erráticas do presidente.

Segundo o jornal O Globo, Bolsonaro está repetindo o processo que desencadeou na queda de Mandetta, cuja atuação havia causado ciúmes no presidente e sua família. O jornal aponta que o presidente reclamou para auxiliares que Pazuello está "querendo aparecer demais, está gostando dos holofotes, como o Mandetta".

Nesta mesma quarta-feira, Pazuello testou positivo para a covid-19. Ele se torna assim o 12º integrante do primeiro escalão do governo Bolsonaro a contrair o coronavírus.

Em meio a mais uma ofensiva do presidente, a covid-19 segue avançando no Brasil, ainda que não com o mesmo ritmo de meses atrás. O país acumula o segundo maior número de mortes associadas à doença: 154.837. Também concentra o terceiro maior número de casos no planeta: mais de 5,2.

Publicado por Deutsch Welle, em 21.10.2020