quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato

Abro a coluna com a verve mineira.

JK?

Anos de chumbo. Tempos magros, época de fechadura braba. Falar em Juscelino era pecado mortal. Tempo de mudança das placas dos carros, as chamadas alfanuméricas. A Câmara Municipal de Diamantina oficia ao Contran solicitando as letras JK para as placas dos carros do município, "como uma forma de homenagear o grande estadista John Kennedy". O Contran não atende. Um conterrâneo de Juscelino desabafa:

– Esse pessoal do Conselho deve ser republicano, eleitor do Nixon.

(Historinha de Zé Abelha)

Domando as feras

Chegando a quase um ano de governo, o presidente Jair Bolsonaro dá sinais de que poderá respirar com mais tranquilidade nos próximos tempos. Para tanto, algumas hipóteses estão na mesa: o resgate paulatino da condição econômica do país dá sinais, mesmo leves, de recuperação; a melhoria da articulação na esfera parlamentar, pavimentando os passos do programa de reformas; e o fechamento de acordos com os parceiros comerciais do Brasil, a partir da poderosa China. O fato é que as feras precisam ser domadas. O clima natalino do presidente sinaliza o slogan: "Jair amor e paz".

Contenção da linguagem

Constata-se que o presidente contém sua linguagem rude e tosca. Deixou de dar entrevistas polêmicas na porta do Palácio da Alvorada, que acirra os ânimos dos opositores e gera indignação junto a movimentos organizados. Claro, a peroração desbocada mobiliza suas bases. Mas enfrenta o risco de afastar parcela ponderável de seu eleitorado, principalmente setores do meio da pirâmide. Esse visível arrefecimento, deduz-se, é consequência da soltura de Lula, que passou 580 dias na prisão. Lula saiu com a boca aberta. E pronto para tirar o atraso de meses em silêncio. Jair entendeu que acirrar a linguagem agora seria alimentar o Lula palanqueiro.

Lula em palanque

Lula, mais azedo e provocativo, já iniciou sua perambulação pelo Brasil, fazendo os primeiros chamamentos ao pleito de 2020. Foi a Salvador e ao Recife para ser homenageado e começar a costurar acordos. O Nordeste é sua praia por excelência. Até demonstra vontade de vir a morar em São Paulo ou até em Recife, voltando ao Pernambuco natal. A campanha de 2020 está começando sob a crença de que a eleição de uma imensa bacia de prefeitos será fundamental para o sucesso da campanha presidencial e de governadores em 2020. O PT quer voltar ao centro do poder. Sem autocrítica, diz Lula. O que significa que o Partido não reconhece que errou. Não haverá, portanto, confessionário. Veremos, assim, ataques em massa aos adversários. "Lula guerra e fogo" sabe: a melhor defesa é o ataque.

Capitais e grandes cidades

A campanha será balizada pela estratégia de eleger o maior número de prefeitos no maior número de capitais e cidades-polo que concentram cerca de 75% dos votos, ou seja, mais de 100 dos 150 milhões de eleitores. O gargalo mor será o Sudeste. Mais racional do que emocional. O voto paulista, por exemplo, obedece mais à lógica ditada pela cabeça do que ao fervor que jorra do coração. É evidente que os polos emotivos ainda dão o tom aqui e ali. Mas o voto está saindo do coração para subir à cabeça. Foi o que se viu em outubro de 2018, a eleição de quebra frontal de paradigmas.

São Paulo

Em São Paulo, travar-se-á uma das mais renhidas campanhas. Lula até gostaria de ter um candidato competitivo para disputar o voto de nove milhões de eleitores da capital. E resgatar o cinturão vermelho que abrange o ABC e cidades da grande São Paulo, onde a cor vermelha deu lugar a outros tons. De seu coração, Fernando Haddad seria o candidato do PT a prefeito. Este recusa. Por isso Lula remete sinais de reaproximação com a ex-prefeita Mara Suplicy, que, por sua vez, gostaria de ser apoiada por uma frente de oposição. Ela está no PDT. A mulher de Haddad, Ana Estela, pode até vir a compor como vice a chapa apoiada pelo PT.

Pleito disputado

A eleição paulistana será uma guerra. Se Bruno Covas se recuperar da doença que o acomete, será forte candidato, ainda mais quando dá exemplo de enfrentamento e coragem: passou mais de 20 dias no hospital, despachando com o secretariado. O PSD de Kassab deve vir com Andrea Matarazzo, que conhece bem a capital por ter sido secretário das administrações regionais. O PT, se não surgir com Haddad nem com Marta, tem outros nomes: o vereador Eduardo Suplicy, os deputados Federais Alexandre Padilha, Carlos Zarattini e Jilmar Tatto. O PSL pode vir com a deputada Joice Hasselmann caso não feche acordo com o PSDB de Covas. Hasselmann poderia ser a vice. O Novo já escolheu seu pré-candidato: o empresário Filipe Sabará. Há outros nomes: Celso Russomanno (PRB), Márcio França, ex-governador (PSB) e Guilherme Boulos (PSOL) ou deputada Federal Sâmia Bomfim. A campanha paulistana será uma bússola para projeção da campanha de 2022.

BH

MG tem o 2º maior eleitorado do país e a eleição em Belo Horizonte será também emblemática. O prefeito Alexandre Kalil está bem na fita para a reeleição. Mas outros nomes estão na lista: o ex-prefeito Márcio Lacerda, João Vitor Xavier, Leonardo Quintão, Marcelo Álvaro Antônio (o ministro acusado de plantar um "laranjal" no pleito de outubro de 2018), Reginaldo Lopes e Eros Biondini.

RJ

O Rio de Janeiro terá também uma campanha nervosa. O prefeito Marcelo Crivella (PRB) buscará a reeleição, contando com as máquinas pública e evangélica. Deve se ancorar em discurso ideológico. Pela esquerda, o deputado Federal Marcelo Freixo (PSOL) tentará chegar ao Executivo carioca pela 3ª vez. O PDT pretende lançar a deputada estadual Martha Rocha. O PSB tende a fechar com o deputado Federal Alessandro Molon. Ao centro, o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) é perfil forte. Paes pode adotar um discurso de combate à polarização, jogando Crivella para um lado ultraconservador e pintando Freixo como um esquerdista radical. Quem será apoiado por Wilson Witzel, o governador?

Salvador

João Isidório, do Avante, é um forte candidato. Foi o deputado estadual mais votado, com 110 mil votos, no rastro do prestígio do pai, o Sargento Isidório, deputado Federal mais votado da Bahia. João acaba de ser ungido como pastor. Outros nomes: a deputada Federal Lídice da Mata (PSB), o médico Fábio Vilas-Boas, o ex-deputado Walter Pinheiro e Bruno Reis, vice-prefeito, do DEM.

Fortaleza

Na capital do Ceará, o embate será entre nomes como o deputado estadual Heitor Ferrer (Solidariedade), a deputada Federal Luizianne Lins (PT), que já foi prefeita de Fortaleza; os deputados estaduais André Fernandes (PSL) e Silvana Oliveira (PR), o deputado Federal Capitão Wagner (Pros) e o empresário Geraldo Luciano (Novo). Postulantes pelo PDT como o presidente da AL, José Sarto, e o ex-presidente da Câmara e hoje deputado Salmito Filho; no PSDB, os nomes ventilados são o da médica Mayra Pinheiro, atual secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (STGES) do governo Bolsonaro; e o médico Carlos Roberto Martins Rodrigues, o Cabeto, que comanda a Secretaria da Saúde do governador Camilo Santana (PT).

Curitiba

Na capital do Paraná, são cotados para integrar a lista: o atual prefeito Rafael Greca (DEM). Greca poderá ter apoio do PSDB. Tem feito gestão bem avaliada. O deputado estadual Delegado Francischini (PSL) já teria oficializado sua pré-candidatura à prefeitura em evento nacional de filiação do partido. Seu sucesso dependerá do duvidoso fortalecimento do PSL. Ney Leprevost (PSD), nome forte ligado ao governador Carlos Massa Ratinho Junior (PSD). O deputado Federal Gustavo Fruet (PDT), que, em maio, deu mais um passo no sentido de oficializar seu nome como um dos postulantes à prefeitura de Curitiba. O PT deverá ter um nome na disputa. Dr. Rosinha, diretor estadual do partido, cita nomes prováveis como Tadeu Veneri e Mirian Gonçalves, vice-prefeita na gestão de Fruet. O próprio Dr. Rosinha é uma possibilidade. João Arruda (MDB) deve entrar no embate, ex-deputado e candidato ao governo em 2018. Pelo PTC, possivelmente Zé Boni. O Partido Novo está em processo de escolha de um nome. Há, ainda, nomes como o do ex-prefeito Luciano Ducci (PSB), do deputado Federal Paulo Martins (PSL) e da deputada estadual Maria Victoria (PP).

Porto Alegre

Any Ortiz deverá ser lançada pelo Cidadania (antigo PPS). Além de Any, são ventilados nomes como Juliana Brizola (PDT), Luciana Genro (PSOL), Manuela d'Ávila (PCdoB), Maria do Rosário (PT) e Mônica Leal (PP). Se todos os nomes se confirmarem, seria o recorde de candidaturas femininas em Porto Alegre, que já conta com 12 pré-candidatos, distribuídos entre seis partidos, a mais de um ano do pleito. O DEM lançou o ex-vereador de Porto Alegre e atual deputado estadual Thiago Duarte. Além dele, outros dois deputados estaduais têm a intenção de concorrer. Rodrigo Maroni quer disputar o Paço pelo Podemos. O MDB é o partido com mais pré-candidatos. Querem concorrer os vereadores André Carús e Valter Nagelstein; o ex secretário de Segurança Pública no governo José Ivo Sartori, (MDB) Cezar Schirmer; o deputado estadual Sebastião Melo e a secretária de Habitação, comandante Nádia. Além dos já citados, dois são da bancada do PP: Mônica Leal, presidente do Legislativo, e Ricardo Gomes. Além deles, o vice-prefeito Gustavo Paim fecha o quadro de possíveis concorrentes pela sigla.

Natal

A eleição na capital do RN abrigará o atual prefeito Álvaro Dias (MDB), que assumiu a prefeitura com a renúncia de Carlos Eduardo Alves, candidato derrotado ao governo do Estado. Contra ele, poderão disputar o cargo o deputado estadual Kelps Lima (Solidariedade) e a deputada Federal Natália Benevides (PT), que deve ganhar o apoio da governadora Fátima Bezerra. A governadora, mesmo com escassez de recursos, faz uma administração com foco na racionalidade e em resultados. É bem avaliada. O prefeito Dias também tem passado pelo teste. O legado bolsonarista poderá ter também seu peso na campanha. A conferir.

Maceió

Para substituir o prefeito Rui Palmeira, disputarão JHC, João Henrique Holanda Calas, deputado Federal mais votado no pleito de 2018, com 170 mil votos. Alfredo Gaspar de Mendonça Neto pelo MDB. O Cabo Bebeto, grande surpresa eleitoral; Ronaldo Lessa é outro nome que aparece bem nas pesquisas e que pode ser o candidato de setores órfãos, hoje, os chamados "progressistas", entre o centro e a esquerda. Davi Davino ou Marcelo Palmeira; Ricardo Barbosa, a defender o legado do PT – ainda que o primeiro demonstre mais fôlego eleitoral que o lulista; e o PSOL, que deve lançar Basile Christopoulos, alternativa mais à esquerda.

Fecho com o Pará.

Como vão os meninos?

O Pará já teve políticos muito engraçados. Um deles, João Botelho, foi interventor, deputado e constituinte. Certo dia encontra um cabo eleitoral:

– Como vai? E senhora sua esposa? E as crianças?

– Tudo bem, deputado. Minha mulher está ótima. Mas, por enquanto, é só um menino, certo?

– E eu não sei que é um filho só? Mas é um menino que vale por muitos. Então, como vão os meninos?

Gaudêncio Torquato, Jornalista e Consultor de Marketing Político, é Professor Titular na USP.

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terça-feira, 26 de novembro de 2019

Paulo Hartung: “É preciso quebrar a coluna vertebral da apropriação do Estado brasileiro por pequenos grupos”

“A História brasileira é de um Estado burocrático, pesado, caro, e a serviço de uma minoria. Você tem que ter as contas sob controle e tem que ter a capacidade de parar de tomar mais de quem tem menos. A vida mudou, o mundo do trabalho mudou e o setor público ficou parado e sendo regulado por dispositivos feitos para outro tempo”

Que a máquina pública brasileira encontra-se escaldada em um anacronismo sufocante, parece ser um consenso.

Hoje as despesas com pessoal representam o segundo maior gasto primário da União, atrás apenas da Previdência.

Está em curso uma discussão sobre uma reforma prevendo drástica redução no número de carreiras, salários mais alinhados com o setor privado – as projeções mostram uma proporção até 5x maior -, rigorosa avaliação de desempenho, e travas para as promoções.

No entanto, o governo achou por bem postergar a apresentação do projeto, sob a argumentação de que poderia precipitar manifestações. O lobby da categoria é conhecido. Basta lembrar que a frente parlamentar do serviço público no Congresso, conta com 255 deputados, de um total de 513. Quase a metade.

A propósito, para que tantos deputados? Esta é outra discussão. Que também necessariamente passa por um diálogo sobre o país que queremos construir, os costumes e valores dos indivíduos e das instituições.

Junto com Armínio Fraga, o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung, atual CEO da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá) – associação que reúne a cadeia produtiva de árvores plantadas para fins industriais -, é interlocutor, parceiro e conselheiro de Luciano Huck, compondo o núcleo mais próximo do apresentador da Globo.

Os três se encontram esporadicamente, em conversas que giram em torno da formulação de políticas públicas para o país, dentro de um contexto de especulação sobre eventual candidatura de Huck, à presidência da República.

Hartung, economista de formação, ganhou fama por ter encabeçado um projeto de ajuste fiscal que colocou as contas do Espírito Santo em relativa ordem, após três mandatos. E é disso que trata esta entrevista.

Assim como Huck, Hartung também participa do Agora, espécie de think tank agregador de experiências e pensamentos diversos, e do RenovaBR, movimento de renovação política que formou quadros como a deputada Tábata Amaral.

“Não à toa, da Constituição promulgada em diante, nós passamos a reformá-la. O fato é que o desenho de Estado que produzimos em nossa Constituinte de 88 tem características de uma história de Estado de máquina públicas muito exuberantes, caras e ineficientes”.

“Você tem que ter as contas sob controle e tem que ter a capacidade de parar de tomar mais de quem tem menos, porque hoje o sistema tributário faz isso. Ou de dar mais pra quem tem mais – o sistema previdenciário faz isso”.

 “Temos as experiências do Chile, Bolívia e Argentina para refletir e aprender. Só entrega quem organiza – pode ser de direita, esquerda ou centro”.

“Eu conheci o Luciano no início do ano passado. Nossa primeira conversa – eu, ele e Armínio Fraga – durou até de madrugada. Depois fiquei no portão da casa do Armínio conversando e disse a ele o quanto estava absolutamente surpreso. Luciano é um ser humano absolutamente sensível com os desafios sociais do Brasil, extremamente curioso de entender o funcionamento das coisas; ao mesmo tempo um profissional hiper bem-sucedido. Temos uma troca de experiências muito rica.  Operamos em áreas diferenciadas e acabamos tendo complementariedade.

(Com relação ao futuro) Se tem um aprendizado que eu levei da vida política é respeitar o tempo das coisas. Tudo que você gasta de energia no tempo errado é inútil”.

Me fale um pouco da sua trajetória. Quem é o Paulo Hartung?

Eu sou economista de formação. Comecei minha vida no privado. Passei em concursos públicos – que foram cancelados, porque eu tinha uma forte militância de esquerda na universidade; a argumentação era basicamente que não iam nomear subversivos, na época.

Aí eu montei uma editora, comecei minha vida como microempresário. Me convidaram para disputar a eleição, e com isso me elegi deputado estadual, em 1982. Repeti o mandato de estadual. Depois fui deputado federal e prefeito da capital (Vitória).

Quando meu mandato como prefeito acabou, o Fernando Henrique Cardoso, então presidente, me convidou para ir para o BNDES, onde fui diretor e reorganizei a área social. Saí de lá, fui eleito senador, depois governador de 2003 a 2010. Quando saí do governo fui para a iniciativa privada ser conselheiro de algumas empresas, e em 2014 fui eleito governador do Espírito Santo novamente. Disputei oito mandatos, e fui eleito oito vezes.

Você acha que o ajuste fiscal é a coisa mais importante a ser feita hoje no Brasil?

Quando nós fizemos a Constituição de 1988, ela espelhou um modelo de Estado que já vinha sendo desenhado no Brasil. Se você estudar o getulismo, vai encontrar traços desse desenho. Mas, se você olhar o regime militar, também ali vai encontrar traços na Constituição de 88.

Nós elaboramos uma nova Constituição numa hora, eu não digo imprópria, mas com um quadro pouco claro. Nós escrevemos a Constituição com a realidade de um mundo em transformação ainda não percebida pelos líderes brasileiros de então. Não à toa, da Constituição promulgada em diante, nós passamos a reformá-la. A energia do país vem sendo gasta de lá pra cá com reformas e adequações para tentar transformar nosso texto constitucional em um texto contemporâneo. Aquilo que nós desenhamos lá não era suportável pelo aparelho produtivo brasileiro. A conta não ia fechar.

O fato é que o desenho de Estado que produzimos em nossa Constituinte de 88 tem características de uma história de Estado de máquina públicas muito exuberantes, caras e ineficientes.

E minha experiência administrativa mostrou isso. Eu cheguei na prefeitura de Vitória em 1993 e já tive que fazer um ajuste fiscal, porque a prefeitura tinha perdido a capacidade de investir com seus próprios recursos. Quando eu cheguei no governo, em 2003, ele estava quebrado, havia duas folhas de pagamento atrasadas. Eu tive que fazer três ajustes fiscais.

Como combater a desigualdade?

Só cuida das pessoas quem cuida das contas. Se eu não cuido das contas, não tenho dinheiro para comprar um equipamento para um hospital, fazer uma estrada no interior, fazer programas sociais. Essa é a questão.

A História brasileira é de um Estado burocrático, pesado, caro, e a serviço de uma minoria. Fazer uma reforma do Estado brasileiro e ajustar as contas públicas é uma questão de fazer redistribuição de renda e chegar nos pobres.

E como se chega nos pobres?

Nós temos que mudar a alocação de recurso. Você tem que ter as contas sob controle e tem que ter a capacidade de parar de tomar mais de quem tem menos, porque hoje o sistema tributário faz isso. Ou de dar mais pra quem tem mais – porque hoje o sistema previdenciário faz isso; e parar de fazer uma máquina pública cheia de engrenagens, de privilégios.

Então a máquina pública seria nosso maior problema?

O Brasil tem um potencial que não se realizou na sua plenitude. Em todas as listas de países potenciais que circulam,  o Brasil sempre aparece entre os 10 primeiros, ou entre os 5.

O que acontece é que temos problemas graves como a educação básica, distribuição de renda, infraestrutura. É um conjunto de problemas, mas, evidentemente que para equacionar esses problemas precisamos de uma máquina pública que funcione, que seja compatível com a realidade brasileira.

Temos que ter a capacidade de fazer com que a máquina pública funcione no país e não seja um instrumento para agravar nossos problemas. A história da máquina pública no Brasil é de ser um instrumento que agrava os nossos desafios, por exemplo, na distribuição de renda. Precisamos reformar o Estado brasileiro e ter responsabilidade fiscal, ou seja, contas organizadas.

Achava-se que com crédito e consumo íamos empurrar a máquina para frente, e na verdade o país não cresceu, não gerou ou manteve empregos, produziu a maior crise fiscal da nossa história e nós mergulhamos numa recessão econômica que eu, como economista, não conheço nada igual.

Como lidar com as despesas obrigatórias, que chegarão a 94% do Orçamento no ano que vem, e são justamente, obrigatórias?

Se você olhar um gráfico do que era despesa obrigatória no início da jornada pós-constituinte e o que era despesa discricionária, você vai ver que a despesa obrigatória de lá pra cá esmagou a discricionária, tirando a capacidade das prefeituras, dos governos estaduais e do governo federal fazer as coisas pelos brasileiros, e concentrando renda.

Por isso que os concursos públicos são tão concorridos. E é um traço cultural, até.

Claro. E começou lá no Banco do Brasil. Daí vieram os concursos das carreiras de Estado, do Judiciário, e assim por diante.

A reforma da previdência perpetuou as diferenças, em alguma medida?

Essa reforma da previdência dá alguns passos à frente em termos de organização de contas públicas, mas deixa a desejar em outros aspectos. Primeiro, você não incluir estados e municípios. Tem muitas dúvidas no ar. Se você olhar o déficit de previdência dos estados, ele já passa de R$ 100 bilhões/anual.

Tramitar com uma reforma paralela para militares é um outro equívoco, os privilégios estão sendo mantidos.

Mas, há pontos positivos. É só lembrar que tentamos instituir idade mínima no governo FHC, e a votação foi perdida por um voto… Já deveríamos ter idade mínima no país há muito tempo, porque a expectativa de vida evoluiu, não podemos nos aposentar tão jovens, não tem como pagar. A reforma da previdência é um passo à frente numa caminhada de vários passos.

A reforma trabalhista, de uma certa maneira, evidencia também a precarização, a informalidade.

Vamos relativizar. Não é razoável você idolatrar uma legislação tributária feita no período getulista com todas as transformações que o mercado de trabalho vivenciou de lá para cá. A vida mudou e está mudando de uma maneira extremamente veloz, e as relações trabalhistas estão evoluindo.

Existe um desafio do mundo moderno de como você flexibiliza as relações contratuais no mundo do trabalho sem precarizar as relações de trabalho. E esse é um debate mundial.

A tecnologia está evoluindo e destruindo postos de trabalho. Então é necessário melhorar a legislação para abrir novas formas de contratação, de acesso ao mercado. Se você ficar parado numa legislação que copiamos dos italianos – lá no pior momento da vida institucional italiana – , não é razoável. Temos que ter a capacidade de evoluir e fazer um bom debate sobre legislação trabalhista no país.

O autor Yuval Harari diz que no futuro teremos que mudar de profissão e nos reinventar de dez em dez anos. Quando penso nisso e no que é a perspectiva de um funcionário que presta concurso uma vez e é vitalício, eu fico chocado.

Por isso que é necessário redesenhar as carreiras de Estado, para que você valorize o bom funcionário.

Já exerci muitos mandatos públicos, posso dar um depoimento vivido de ter trabalhado com gente competente, com gente dedicada; mas o problema do setor público é que ele ficou parado no tempo. A vida mudou, o mundo do trabalho mudou e o setor público ficou parado e sendo regulado por dispositivos feitos para outro tempo.

Se você tiver uma porta de entrada que não lhe garanta o resto de vida, com um estágio probatório que avalie vocações, vai poder separar as pessoas de talento com os concurseiros que só estão lá pelo salário.

E, em qualquer instituição da vida moderna, a ascensão profissional se dá de maneira triangular. À medida que você vai subindo, as vagas de promoção são menores. Já no Estado brasileiro, chega a um determinado número de anos e você pula de um posto pra outro, tenha desempenho ou não.

É preciso uma regra de avaliação de desempenho pra subir nas carreiras. E a remuneração precisa começar menor para se ter um estímulo de crescimento. Somente com isso você já organiza muito o Estado brasileiro.

Você acha que o Estado deveria ter o direito de demitir quando quisesse?

Claro.

O serviço público precisa ser olhado como um todo e, de certa forma, reinventado. Para que ele possa ser bancado pela sociedade e se transforme em um instrumento a favor do conjunto da sociedade, ou seja, que ele seja um instrumento de distribuição de renda e de oportunidades.

O país tem dinheiro. Ele só não está girando do jeito certo. Certo ou errado?

Tem dinheiro. Os orçamentos existentes – dos municípios, Estados federados e União – trazem recursos necessários para prover entregas extremamente melhores do que o Estado brasileiro vem fazendo ao longo da nossa História. Mas para que isso aconteça, precisa quebrar a coluna vertebral da apropriação do Estado brasileiro por pequenos grupos.

Como?

O que nós precisamos construir são boas narrativas. Eu vejo no Brasil gente muito bem-intencionada com enorme dificuldade de explicar para esse país complexo como o Brasil o que está acontecendo – um diagnóstico claro dos nossos problemas, e qual o remédio que precisamos prescrever para melhorar a vida das pessoas.

O que falta é a capacidade de olhar no branco do olho da sociedade e convencê-la, motivá-la e mobilizá-la nos caminhos. Isso tem a ver com o vazio de liderança que temos no país.

O que você pensa do desempenho do Paulo Guedes?

É um dos ministros que tem uma agenda positiva nesse momento de governo, mas também vejo aspectos negativos.

O trabalho feito na reforma previdenciária, eu acho positivo, como já falei. Já o pensamento dele para a reforma tributária, eu, particularmente, não comungo. Eu sinto que ele queria restabelecer um tributo a la CPMF, ou o nome que viesse a ser dado, com o objetivo nobre de desonerar a folha. O objetivo é bom, mas você reintroduzir no sistema caótico que temos um outro tributo cheio de defeitos, não concordo.

Sobre as três PECS que ele apresentou há 15 dias, eu fiz questão de defender as medidas – com a ressalva que é necessário um pouco de foco em separar o que é prioritário.

Há um governo que foi eleito pelo povo e com um mandato a cumprir. Eu torço para que os bons ministros façam andar suas respectivas agendas.

É o primeiro ano desse governo, se você for para uma oposição radical, corre o risco de não estar fazendo oposição ao governo, e sim aos interesses do país e dos brasileiros. Isso, em qualquer tempo é ruim, mas em um tempo como esse é dramático. A gente vem de uma recessão econômica, de uma evolução de desemprego brutal no país; estamos vivendo com a renda per capita bem abaixo do que ela foi até 2014. Então, só tem uma coisa a fazer: ajudar para que as coisas evoluam no país.

Eu não tenho nenhuma dificuldade. Quando o governo flerta com o autoritarismo, eu falo que está errado. Mas, quando o governo flerta com a medida de modernização do Estado ou da economia, eu escrevo artigo a favor, eu dou entrevista a favor; sou pequenino na formação de opinião público no Brasil, mas o que tenho de relevância, eu coloco a serviço de fazer as coisas certas.

O país não precisa de precipitação, de oposição irracional. Isso não vai ajudar.

A projeção melhorou um pouco, não?

Melhorou. Mas, se olhar no efeito estatístico, é muito pequeno. Cresceu 1.1% ano passado. Esse ano está melhorando pra gente ficar perto de 1%. Qual o efeito disso no mercado de trabalho, na renda das famílias? É muito baixo, precisamos ralar muito. É uma recuperação cíclica e fraca. Fizeram tanta coisa errada que desorganizou muito a economia brasileira. Temos uma corrente amarrada no pé, que são as despesas do Estado, o déficit que a gente produz gastando mais do que tem e assim por diante.

Nossa vizinhança está sendo pedagógica pra gente. No Chile foi a mão pesada em reformas liberais, um pouco desatencioso com mobilidade social. Eles estão no meio de um debate rico, mas não é pra comemorar, é pra aprender com aquela experiência. Já a Bolívia foi para um outro caminho. Não vou fazer um julgamento de valor, mas deu alguma coisa errada lá. O povo foi pra rua. Então, você tem um problema no Chile, e o cara que é mais à esquerda fica esfregando uma mão na outra; aí vem o problema da Bolívia e o cara que é extrema direita fica esfregando uma mão na outra. Eu penso que, ao invés de fazer isso, devemos prestar atenção nesses fenômenos.

E, no meio do caminho tem a Argentina. Os peronistas acabaram de voltar para o governo. O que eles vão fazer com a Argentina?

Não tem mágica.

É isso que pode ser útil para o debate político nacional. Olha o Chile, não tem mágica. O país cresceu, melhorou a renda; tem indicadores interessantes, mas está claro que faltou alguma coisa, se não o povo não iria pra rua com aquela voracidade. O jovem, quando olha para o seu futuro, olha com angústia.

Aí você olha a Bolívia, que melhorou muito nesses últimos anos.

Isso que chama a atenção. Os dois lugares melhoraram.

Talvez lá tenha um outro problema, um problema institucional, que é a tentativa de ficar no poder a vida inteira. A democracia tem a beleza da alternância.

Temos as experiências do Chile, Bolívia e Argentina para refletir e aprender. Só entrega quem organiza – pode ser de direita, esquerda ou centro. Precisamos subir o sarrafo do debate público no Brasil, devemos isso às futuras gerações.

Politicamente, como você se define?

Eu nasci no movimento estudantil, numa militância dentro do partidão. Eu virei o principal líder estudantil da minha geração, fui presidente do diretório central dos estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo naquele período de democratização.

Na minha visão, eu evoluí. Evoluí lendo muito, acompanhando o que estava acontecendo no mundo. Digo que, quando o muro de Berlim caiu, ele não caiu na minha cabeça. Eu já era um militante de centro-esquerda, um social democrata.

Eu sou a favor das reformas liberais que modernizam a economia e o Estado brasileiro, mas eu tenho um olhar forte para o problema da desigualdade social no Brasil, para a necessidade da gente distribuir oportunidades, renda e acesso ao conhecimento nesse país. Isso é fundamental para uma largada igualitária na corrida da vida.

Fale um pouco sobre o Agora.

Quando saí do governo fui convidado a participar do movimento cívico Agora, através do Luciano Huck. Ele foi redesenhado como uma plataforma de discussão de políticas públicas para o Brasil. É superinteressante, pois foca em temas desafiadores e pouco debatidos no país.

Um dos temas que me toca muito é educação básica: como melhorar o processo de aprendizagem dos nossos jovens. E há muitas experiências exitosas no Brasil que precisam ser conhecidas, como a do Ceará, que começou em Sobral; o Ensino Médio em tempo integral de Pernambuco, que começou lá no governo Jarbas Vasconcelos; e agora a experiência do Espírito Santo, do meu último governo.

Há um conjunto de instituições privadas que se dedicaram a olhar os desafios da educação básica, como o Instituto Unibanco, com o programa Jovens de Futuro; e o Instituto Natura, que trabalha muito a questão da integração das redes – entre município e Estado, e montou um programa de regime de colaboração entre rede estadual e municipal.

Então, temos um conjunto de experiências boas em alguns Estados e em instituições privadas. O trabalho do Agora é juntar essas experiências e difundir essas boas práticas.

Qual o objetivo do movimento?

Disponibilizar ideias para que elas possam ser utilizadas por governos. Enfrentar temas importantes e recuperar tempo perdido. É uma contribuição para qualificar o debate de políticas públicas no Brasil.

E qual a frequência do trabalho do Agora?

O trabalho tem sido intenso.

Outro trabalho a ser desenvolvido é o olhar sobre as favelas. Como você melhora a vida dessa parte da população brasileira. Soluções para serviços públicos, como saneamento dessas áreas; melhorar a habitação e acessibilidades desses lugares. Não podemos enxergar as favelas como parte da paisagem, devemos nos indignar e procurar caminhos.

Há também o olhar sobre a Amazônia. Moram na região amazônica brasileira entre 20 e 25 milhões de pessoas. Como melhorar a vida deles preservando esse patrimônio que o país tem que é a floresta em pé – e que nos entrega serviços ambientais importantes como nosso regime de chuva, que dá produtividade ao nosso agro?

Você também participa de outro movimento.

Sim. Fui convidado na mesma época pelo Eduardo Mufarej para participar de um programa de formação de novas lideranças para o país, que é o RenovaBR. É um tema que sempre me tocou muito. Venho de uma geração que formou muitas lideranças, a geração do período da democratização do país, e de lá pra cá ficou um déficit de formação de lideranças. Então, eu topei o convite e hoje estou no conselho do RenovaBR.

Saímos de um primeiro ciclo que formou mais de 100, e estamos num novo ciclo buscando a formação de mais de 1000 jovens de mais de 500 cidades brasileiras. Há o interesse hoje da juventude em participar da política, da vida pública brasileira. Isso é bom, as pessoas estão topando botar a mão.

Os dois movimentos – Agora e RenovaBR – são trabalhos voluntários, e também participo de outros dois movimentos que me engajei depois, já fora do governo: o Todos pela Educação, onde presido o Conselho Político, para ajudar na articulação das propostas junto ao Congresso Nacional, aos governadores, prefeitos e assim por diante. E a Viviane Senna me convidou para participar de um conselho informal aqui em São Paulo, onde um grupo de lideranças que lidam com o tema debatem mensalmente a política de educação do Estado de São Paulo.

Quais são suas impressões sobre o Luciano Huck?

Eu conheci o Luciano no início do ano passado. Nossa primeira conversa – eu, ele e Armínio Fraga – durou até de madrugada. Depois fiquei no portão da casa do Armínio conversando e disse a ele o quanto estava absolutamente surpreso. Luciano é um ser humano absolutamente sensível com os desafios sociais do Brasil, extremamente curioso de entender o funcionamento das coisas; ao mesmo tempo um profissional hiper bem-sucedido. Temos uma troca de experiências muito rica.  Operamos em áreas diferenciadas e acabamos tendo complementariedade.

Acho que a decisão pessoal que ele tomou depois da eleição foi muito boa. Ele optou por ter uma maior participação e exercer sua cidadania com duas vertentes, nas plataformas do Agora e do RenovaBR. Só de estar nesses dois movimentos cívicos ele dá uma contribuição importante, pois é uma pessoa absolutamente carismática, tem uma capacidade de mobilização invejável, conhecido no Brasil inteiro. E ele empresta seu prestígio para esses dois movimentos, para formar lideranças novas pra política brasileira com o RenovaBR, e ajudar a recrutar pensadores dos mais diversos, com o Agora.

Vocês têm alguma projeção para o futuro?

Não. Tudo que você leu é pura especulação. Se tem um aprendizado que eu levei da vida política é respeitar o tempo das coisas. Tudo que você gasta de energia no tempo errado é inútil.

Entrevista a Morris Kachani, de O Estado de São Paulo, publicada originalmente na edição de 25.11.19. / Colaboração: Flavio Azm Rassekh.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Velório de Gugu será aberto ao público, na Assembleia Legislativa de São Paulo


Gustavo Liberato, o Gugu, quis doar tudo do seu corpo e, por isso, a espera de 50 pessoas na fila dos transplantes no Brasil.

Por isso, também, a demora no traslado da cidade de Orlando, na Flórida, estado norte-americano, onde morreu na última sexta feira, 22.11, num acidente doméstico.

Gugu estava em casa com a mulher Rose Miriam e os três filhos, João Augusto, Maria e Sofia, quando, tentando trocar o filtro do ar condicionado do sótão, o piso despencou e ele caiu de uma altura de 4 metros batendo a cabeça num móvel.

Atendido, de pronto, pela mulher, que é médica, foi levado para um hospital onde ficou em coma por 48 horas. Morte cerebral.

O velório será aberto ao público, no plenário da Assembleia Legislativa de S. Paulo, em hora e data ainda não definidas. A previsão é que o avião trazendo o corpo de Gugu aterrize em Guarulhos ou Congonhas na próxima quinta-feira.

Segundo a Forbes, a revista norte-americana especializada em bisbilhotar as maiores fortunas no mundo, Gugu, dono de um patrimônio de 170 milhões de reais, ocupava a 7ª posição entre os 10 mais no Brasil, seguido por Faustão, Xuxa e Ivete Sangalo.

O 1º lugar nessa lista das 10 maiores fortunas no Brasil continua com Silvio Santos, o homem que deu a Gugu o seu primeiro emprego na televisão. O patrimônio pessoal do dono do SBT estaria na casa dos 7 bilhões de reais.

Filho de imigrantes portugueses, o pai caminhoneiro e a mãe vendedora de roupas, Antônio Augusto de Moraes Liberato, o Gugu, nasceu em São Paulo, Capital, em 10 de abril de 1959.

Aos 12 anos de idade começou a trabalhar como office-boy numa imobiliária. Serviu como coroinha numa Igreja sonhando em trabalhar na televisão.

Foi depois de muito escrever cartas a Silvio Santos sugerindo programas e frustradas tentativas de se aproximar pessoalmente do dono do SBT que Gugu conseguiu, enfim, aos 14 anos de idade, o seu primeiro emprego na televisão, começando como assistente e contratado, aos 19 anos, como produtor.

Pelo sim, pelo não, Gugu formou-se em odontologia e depois em jornalismo. Em 1982, Silvio criou o Viva a Noite, aos sábados, onde Gugu revelou seu talento e carisma.

Os restos mortais de Gugu serão enterrados no Cemitério Getsêmani, no Morumbi, zona oeste de São Paulo.

Por que igrejas evangélicas ganharam tanto peso na política da América Latina? Especialista aponta 5 fatores

"A Bíblia voltou ao palácio", declarou a presidente interina da Bolívia, a senadora Jeanine Áñez, ao tomar posse na semana passada. Alguns dias antes, Fernando Camacho, uma das principais vozes no processo que levou à renúncia de Evo Morales, entrou com a Bíblia em mãos no mesmo edifício e disse que "Deus" retornaria ao "governo".

Os dois são católicos e contaram com o apoio de setores conservadores da igreja e de lideranças evangélicas para enfraquecer Morales.

Nos últimos anos, menções a Deus e a passagens da Bíblia parecem ter se multiplicado em discursos políticos, e o apoio evangélico se tornou instrumental na ascensão de líderes de direita na América Latina e nos EUA.

Para o historiador americano Andrew Chesnut, autor de dezenas de livros e artigos sobre o crescimento das igrejas pentecostais, a forte influência dos evangélicos na ascensão e queda de líderes é uma das principais "tendências" da política atual do continente americano.

O que explica essa influência crescente da religião na política de países do continente?
"Até no México, onde a população pentecostal é pequena, de apenas 8%, um partido político fundado por um pastor pentecostal ajudou a eleger o atual presidente do país, Andrés Manuel Lopez Obrador", disse Chesnut à BBC News Brasil.

"A influência política evangélica é uma das tendências políticas mais importantes das últimas quatro décadas no continente americano", completa o professor, que leciona na Virginia Commonwealth University e assina diversas publicações sobre o papel da religião na América Latina, entre elas o livro Born Again in Brazil: Pentecostal Boom and the Pathogens of Poverty.

Mas o que explica essa influência crescente da religião na política de países do continente? E por que igrejas evangélicas têm conseguido cada vez mais adeptos entre os latino-americanos?

Em entrevista à BBC News Brasil, Chesnut listou 5 fatores que ajudam a responder essas perguntas: a coesão ideológica dos evangélicos, o que facilitaria articulações políticas; o fato de os ritos das igrejas evangélicas serem mais "condizentes" com aspectos da cultura da América Latina; a adoção de regras menos rígidas para a formação de sacerdotes, permitindo maior inserção nas camadas mais pobres; a criação de redes de apoio em comunidades carentes; e a capacidade de ecoar pensamentos compartilhados por setores conservadores da classe média e alta.

Crescimento das igrejas evangélicas - e a entrada delas na política
O continente americano tem vivido uma acentuada queda no número de católicos, ao mesmo tempo em que houve grande aumento na população evangélica.

Segundo o Pew Research Center, principal centro de pesquisa sobre religiões, de 1900 a 1960, os católicos eram 94% da população da América Latina.

Mas esse percentual caiu drasticamente. Levantamento de 2014 do mesmo instituto mostrou que 84% dos entrevistados cresceram como católicos, mas apenas 69% continuavam a se identificar como tal.

Em contraste, só 9% dos latino-americanos foram criados como evangélicos, mas 19% dizem seguir essa religião atualmente. No Brasil, o percentual de evangélicos é ainda maior: de acordo com pesquisa Datafolha, eles já são 29% dos brasileiros, enquanto os católicos deixaram de ser maioria para representar 50% da população.

No Brasil, setores evangélicos formam uma das principais bases de apoio de Jair Bolsonaro
Segundo Andrew Chesnut, que estuda o movimento pentecostal há 25 anos, uma característica importante acompanha o crescimento no número de evangélicos no continente americano: o engajamento político de líderes e integrantes dessa religião.

O pesquisador destaca que os católicos são um grupo mais "heterogêneo", com segmentos ligados à esquerda e outros à direita. Essa pluralidade, na prática, dificultaria uma mobilização política coordenada.

"Dentro do catolicismo você tem setores conservadores, ligados ao Opus Dei, por exemplo, e mais progressistas, como os membros da teologia da libertação. Então, há mais diversidade e isso torna a tarefa de fazer uma aliança católica mais difícil", explica.

"Já os evangélicos são mais homogêneos politicamente. Isso facilita a união e as alianças para eleger determinados políticos."

Os exemplos mais recentes e evidentes da força evangélica na política são a eleição de Jair Bolsonaro e a queda de Evo Morales, na Bolívia. Os dois episódios contaram com apoio crucial de setores evangélicos.

Na queda de Morales, uma figura ligada à ala mais conservadora da Igreja Católica e a lideranças evangélicas ganhou protagonismo: Luis Fernando Camacho.

Ele atua como presidente do Comitê Cívico Pró-Santa Cruz, uma entidade que reúne cerca de 200 instituições, entre associações de moradores, trabalhadores de direita e empresários. O comitê funciona na cidade mais populosa da Bolívia, Santa Cruz de la Sierra, e é chamado de "governo moral".

As constantes menções de Camacho ao "poder de Deus" e o costume de citar trechos da Bíblia fizeram como que chegasse a ser chamado pela imprensa internacional de "Bolsonaro boliviano".

Foi ele o principal articulador dos protestos de rua que culminaram na retirada do apoio da polícia e das Forças Armadas ao governo Morales. Camacho tem o costume de iniciar seus discursos com uma oração e, ao entrar no antigo Palácio do Governo, em La Paz, poucas horas antes da renúncia do presidente, depositou uma Bíblia em cima da bandeira boliviana.

Camacho é católico e contou com o apoio de setores conservadores da igreja e de lideranças evangélicas para derrubar Morales, diz Chestnut
Para Chesnut, Camacho e Bolsonaro têm características em comum.

"A Bolívia, é interessante, porque é um país mais predominantemente católico que o Brasil. Na faixa de 70% dos bolivianos ainda são católicos. Mas, na retirada de Morales do poder, vimos uma forte influência evangélica", avalia.

"Camacho é mais ou menos como Bolsonaro. Ele segue sendo católico, mas tem uma grande influência pentecostal e tem os pentecostais como grandes aliados. E o discurso dele é 100% pentecostal."

A senadora Jeanine Áñez, que se autoproclamou presidente interina da Bolívia após a saída de Evo Morales, segue a mesma linha. Ela entrou ao Palácio de Governo, em La Paz, erguendo uma enorme Bíblia e, atrás de um altar montado com velas e a imagem de Jesus crucificado, se empossou.

"Um aspecto importante do papel que a religião tem exercido em governos latino-americanos é a existência de uma convergência entre os evangélicos e os católicos conservadores", diz Andrew Chesnut.

Embora os exemplos brasileiro e boliviano de influência religiosa na política sejam contundentes, o professor americano diz que a tendência de crescimento da força evangélica nos governos não é característica apenas da América Latina.

Segundo ele, o fenômeno teve início nos Estados Unidos, começou a ganhar força na América Latina na década de 80, com a ascensão de um pastor evangélico como presidente da Guatemala, e pode ser visto claramente hoje no governo de Donald Trump.

Presidente Donald Trump mantém relação de proximidade com setores evangélicos dos EUA
De acordo com reportagem do jornal Washington Post, 61% dos pastores evangélicos dos Estados Unidos manifestaram, num levantamento, intenção de votar em Trump na eleição de 2016. E o presidente americano mantém relações de proximidade com lideranças evangélicas famosas no país.

"Nos EUA, os evangélicos são uma das principais bases eleitores de Trump", diz Chesnut. Segundo ele, um dos reflexos da aproximação do presidente americano com setores religiosos é a decisão de transferir a embaixada dos Estados Unidos em Israel de Tel Aviv para Jerusalém.

Bolsonaro chegou a anunciar que faria o mesmo, para atender ao pleito de grupos evangélicos que se baseiam em intepretações bíblicas para defender que Jerusalém deve ser "protegida" e habitada pelos judeus. O presidente brasileiro acabou, no entanto, decidindo abrir um escritório comercial na cidade, após forte pressão de países árabes e do setor exportador de commodities, que temia retaliações comerciais.

E o que tornou as igrejas evangélicas tão atrativas para o público?
Além da coesão ideológica, que facilita a articulação política dos evangélicos, Chesnut lista quatro fatores que teriam contribuído para o sucesso do movimento pentecostal entre os latino-americanos. Um deles é o fato de as igrejas evangélicas adotarem ritos "mais condizentes com a cultura dos povos da região".

Nesse sentido, as músicas de louvor e a maneira mais informal e direta de os pastores discorrerem sobre trechos da Bíblia cumpririam papel importante.

Outro aspecto listado pelo pesquisador são as redes de apoio criadas pelas igrejas evangélicas para intervir em problemas das comunidades, como casos de alcoolismo, criminalidade e dependência química.

O terceiro fator seria o critério flexível para a formação de sacerdotes — os bispos e pastores.

"Uma grande vantagem que as igrejas pentecostais têm é que os pastores podem se casar e não há os mesmos requisitos educacionais. Um sacerdote católico é parte da elite latino-americana quanto ao nível educacional", diz.

Andrew Chestnut lista três elementos que contribuíram para o sucesso das igrejas evangélicas na América Latina, nos últimos anos
"Essa facilidade de não exigir uma extensa formação acadêmica nem o celibato permitiu uma entrada maior das igrejas pentecostais nas camadas mais pobres."

Além disso, o pesquisador destaca que setores conservadores da classe média e alta dos Estados Unidos e da América Latina passaram a ver suas posições ecoadas nas novas igrejas evangélicas. Entre essas agendas estão a preocupação com o ensino sexual nas escolas, o temor do que chamam de "ideologia de gênero", e a posição firmemente contrária à flexibilização de leis relacionadas ao aborto.

"Havia uma população que compartilhava desses valores: defendia uma agenda anti-LGBT, o antifeminismo e era contrária à legalização do aborto. Essas pessoas não tinham lideranças para representar essas perspectivas da maneira desejada", diz Chesnut.

E qual o impacto dessa influência religiosa na política?
Para o professor americano, o principal temor relacionado ao aumento da ingerência evangélica na política é o de que líderes eleitos com o apoio desses setores acabem aprovando políticas públicas que, na prática, discriminem outros credos religiosos ou que signifiquem retrocessos na conquista de minorias.

"No caso da Bolívia, já vimos comentários racistas por parte da presidente interina. Lá, alguns setores pentecostais enxergam as religiosidades indígenas como satânicas ou pagãs", diz Chesnut.

No Brasil, o pesquisador diz perceber o risco de surgimento de uma atmosfera de intolerância contra religiões de matriz africana. Chesnut fala português e viveu vários anos no Brasil, onde pesquisou o impacto da religiosidade na sociedade e na política.

Na Bolívia, principais líderes de oposição a Evo Morales, Fernando Camacho e Jeanine Áñez, contaram com apoio de setores católicos e evangélicos
Ele lembra que, em agosto, a polícia do Rio de Janeiro prendeu traficantes evangélicos integrantes do chamado "Bonde de Jesus", grupo acusado de promover ataques a igrejas de matriz africana e de expulsar praticantes de candomblé e umbanda das favelas da Baixada Fluminense.

"Há uma preocupação de que as religiões indígenas e afro-brasileiras possam sofrer perseguições com os pentecostais no poder. Grupos violentos podem se sentir impunes ou estimulados a agir dessa maneira", diz Chesnut.

Mas o historiador destaca que o fenômeno do crescimento das igrejas evangélicas vem acompanhado de um movimento bem diferente e que também pode vir a influenciar o cenário político do continente: o aumento no número de pessoas que dizem não ter religião alguma.

"Além do crescimento das igrejas evangélicas, há em vários Estados dos EUA e em vários países da América Latina, inclusive no Brasil, um crescimento rápido das pessoas que não têm nenhuma filiação religiosa. No Brasil, eles já formam quase 10% da população", diz.

E as características desse grupo são opostas às que costumam definir os setores evangélicos e católicos conservadores. "Eles são mais jovens, sabemos que a tendência é de serem de esquerda e mais liberais nos costumes. E estão crescendo quase tão rapidamente quanto os pentecostais."

Resta saber qual dos dois setores terá mais influência eleitoral nos próximos anos.

Nathalia Passarinho - @npassarinho
Da BBC News Brasil em Londres

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato

Abro a coluna relembrando um "causo" de Pernambuco.

Só expectorante

Reunião de vereadores com o chefe político da região numa pequena cidade de Pernambuco. Cada um podia falar sobre os problemas do município, reivindicações, sugestões, etc.. Todos falaram alguma coisa, com exceção de um deles, meio acabrunhado no canto da sala. O chefe político cobrou dele a palavra:

– E você, amigo, não tem nada a dizer?

O vereador, tonto com a provocação, não teve saída. Respondeu:

– Não, doutor, tou apenas expectorante.

Gargalhada geral.

("Causo" do Marco Maciel com relato de Geraldo Alckmin.)

Ganha-ganha

Abre-se a temporada do jogo do ganha-ganha. Lula ganha, Bolsonaro ganha. A saída de Lula da prisão insere o país na arena das contendas de 2020 e 2022. Reforça as posições dos extremos. Acirra o ânimo das alas que já estão armadas e prontas a desembainhar as espadas. As estocadas entre lulopetistas/oposicionistas e bolsonaristas pipocam todos os dias nas redes, e tendem a engrossar com os rompantes das expressões dos comandantes Luiz Inácio e Jair Bolsonaro. Claro, com o reforço dos assessores, do tipo Gleisi Hoffmann e José Dirceu, de um lado, Sérgio Moro e os filhos do presidente, de outro.

Nova caravana

Lula já reabriu o palanque no discurso da soltura em Curitiba, e no Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo. Ambos com toques de virulência. Aliás, ele prometeu sair da prisão mais à esquerda. Dirceu complementou: cabe ao PT retomar o poder. Portanto, o jogo está traçado. Lula surpreendeu pela contundência. Voltou mais feroz. E José Dirceu volta a pregar o ideário socialista (Que modelagem, Zé?). Não se espere recuo desses exércitos em prontidão.

Nordeste abre jornada

Lula vai inaugurar uma nova corrida ao país, começando por Recife, no próximo dia 17. O Nordeste é onde ele tem maior popularidade. Região que espera dominar eleitoralmente, a partir de seu Estado, Pernambuco. O NE vive momento calamitoso com as praias inundadas de óleo. Lula vai tocar no assunto? P.S. Bolsonaro até hoje não foi ver a tragédia.

Margens para o centro

A estratégia de Luiz Inácio é clara: comer pelas bordas, ou seja, das margens para o centro. É uma estratégia adequada, principalmente em face da situação de miséria em que vive grande parcela da população. O IBGE acaba de mostrar os dados da desigualdade que aumenta. Claro, culpa de recessão da economia provocada pelo governo Dilma. Mas Lula, esperto, já manjou: o ataque é melhor que a defesa. E joga a culpa no atual governo. A economia anda de maneira lenta. O desemprego cede pouco. A informalidade é geral. Já o desemprego expande índices de carência e violência.

Sudeste racional

Lula começará a mobilizar seus exércitos pelo Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Deixará o Sudeste para mais tarde. São Paulo é, por excelência, o polo mais contrário ao lulopetismo. Agrega as maiores classes médias, os maiores contingentes de formação de opinião e os maiores conglomerados do trabalho. A capital é um nicho onde o lulismo é bastante rechaçado. Já no Rio de Janeiro, o oposicionismo tende a aceitar melhor a volta de Lula ao cenário. Já o Sul é intensamente conservador. Tende a rejeitar o lulismo.

Instintivo e certeiro

Luiz Inácio sabe de tudo isso. É o mais instintivo político brasileiro. E o melhor de palanque no uso de uma linguagem popular. Mexe bem com metáforas e sofismas. Adota linguagem simples e direta. Motiva as massas. Diante de uma multidão, vira estrela incandescente. Sua capacidade de sacudir o país, claro, dependerá bastante do desempenho da economia. Aliás, é esse o eixo que ele vai empregar para desarmar o palanque de Bolsonaro. Este consultor tende a opinar que o discurso mais feroz de Lula é pior para o lulopetismo. Setores médios que poderiam a ele se juntar permanecerão distantes. Mas o ex-presidente poderá amainar a expressão. A conferir.

União da oposição

Lula pode tentar um acordo com as oposições, formando uma ampla frente. É viável a hipótese? Haverá dificuldades, a partir, por exemplo, de Ciro Gomes, que deseja ser o candidato presidencial do PDT em 2022. Ciro atirou muito em Lula. E ontem voltou a atacar a "natureza de escorpião" do petismo. Ataca para matar. Será tarefa inglória a de alcançar unidade nos interesses de núcleos e grupos em que se repartem as oposições.

Conchavo

Premido pelos casuísmos, Tancredo Neves foi obrigado a fundir o seu PP com o MDB de Itamar. Alguns pepistas pularam do barco e protestaram alegando conchavo. Tancredo foi curto e seco: "Conchavo é a identificação de ideias divergentes formando ideias convergentes". Tinha razão. Há curvas que desembocam em retas.

A radicalização de Bolsonaro

Analisemos, agora, a retórica bolsonariana. Estará recheada de apelos ao medo de eventual volta do PT ao poder. Bolsonaro precisa mobilizar sua militância e fazer maioria, agregando outros núcleos. O medo do PT poderá sustar a desagregação que vem se observando nas alas de apoio ao bolsonarismo. É patente o distanciamento que setores do meio passaram a se afastar do governo, distanciamento que ocorre na esteira de uma expressão radical sob a sombra dos tempos de chumbo. Muitos eleitores de Bolsonaro se afastaram. Por isso, o presidente precisa que Lula radicalize o discurso para ter de volta grupos que dele se afastaram. É um jogo de conveniências.

Quem puxa pelo meio?

Ora, parcela ponderável da população, principalmente os núcleos mais racionais, gostaria de ver um líder com um forte e brilhante discurso de centro. Quem? Até o momento, esse perfil não apareceu. O centro está disperso, difuso. Luciano Huck não possui densidade, escopo para encarnar a identidade de um presidente da República. Mas as massas o conhecem da TV. João Doria não chega às margens. É um perfil centralizador. Ele, ele e ele. Rodrigo Maia tem feito bom trabalho de articulação política, mas compõe melhor a posição de vice. Ciro Gomes é preparado, mas desbocado. Geralmente perde a estribeira e cai do cavalo no meio da campanha. Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, tem bom lastro, mas não atrai apoios. Imagem pouco conhecida.

As metades

Numa noite, às vésperas de 24 de agosto de 1954, quando se matou, Getúlio Vargas conversava, desalentado, desencantado, com José Américo de Almeida, seu ministro da Viação. Confessa:

– Impossível governar este país. Os homens de verdadeiro espírito público vão escasseando cada vez mais.

– Presidente, o que é que o senhor acha dos homens de seu governo?

– A metade não é capaz de nada e a outra metade é capaz de tudo.

Sudeste-nordeste

Há muita água a correr por baixo da ponte. Mas, sob a perspectiva teórica, a construção de uma chapa reunindo o Sudeste e o Nordeste seria a ideal tanto para um lado quanto para outro. Bolsonaro terá mais dificuldades. Afinal, o que fazer do vice Mourão? Essa lógica pode ser derrubada por fatores imponderáveis como aqueles que ocorreram em 2018, a partir da facada dada por Adélio Bispo no candidato Bolsonaro em Juiz de Fora/MG.

Paradigmas

Outras questões se apresentarão: haverá tanta quebra de paradigma quanto o que vimos em 2018? Tempo de TV, apoio de grandes partidos, a força de recursos financeiros, a situação de perfis tradicionais, a atração por perfis novos etc.? A "meninada" eleita sob o manto do PSL continuará a ter prestígio no pleito municipal de 2020 e conseguirá segurar seus índices eleitorais até 2022? Que partidos liderarão os pleitos? Qual o papel do PT? Do Novo? Do PSOL? Do MDB? Do PSD de Kassab? Do PP de Ciro Nogueira? Do PDT de Carlos Lupi? Do PRB dos evangélicos? Do DEM de ACM Neto, Rodrigo Maia e Alcolumbre? E a disputa pelo Fundo Partidário?

Novo partido

Bolsonaro reúne os deputados do PSL para dizer que sairá do partido e criará outro. Possível nome: Aliança Pelo Brasil. Pretende reunir rapidamente 100 deputados na nova sigla. (Em tempo: quem se lembra da velha ARENA – Aliança Renovadora Nacional, sustentáculo do regime militar?). Bolsonaro terá de correr contra o tempo. Para fazer campanha de prefeito, a sigla terá de registrar seu estatuto no TSE seis meses antes do pleito, ou seja, até maio.

Quiçá e cuíca

Benedito Valadares, governador, foi a Uberaba para abrir a Expozebu. E passou a ler o discurso preparado pela assessoria. A certa altura, mandou ver: "cuíca daqui saia o melhor gado do Brasil". Ali estava escrito: "quiçá daqui saia o melhor gado". A imprensa caiu de gozação. Passou-se o tempo. Tempos depois, em um baile na Pampulha, o maestro, lembrando-se do famoso discurso na terra do zebu, começou a apresentar ao governador os instrumentos da orquestra. Até chegar na fatídica cuíca. E assim falou: "e esta, senhor governador, é a célebre cuíca". Ao que Benedito, querendo dar o troco, redarguiu com inteira convicção:

– Não caio mais nessa não. Isto é quiçá!

(Historinha enviada por J. Geraldo).

Judiciário é alvo

A decisão do STF, por 6 a 5, de acabar com a prisão após condenação em 2ª instância, acirra a polarização política. Os "moristas" engrossam as críticas à Suprema Corte. Nunca se viu um tiroteio tão forte contra o altar ex-sagrado do Judiciário. Nunca se leram tantos adjetivos e imprecações contra ministros de nossa mais alta Corte. Nova frente de lutas se abre, tendo de um lado os simpatizantes da ideia de voltar a prisão após condenação em 2ª instância, com mudança no texto constitucional e os contrários. O tema estará em pauta, mas a proposta encontrará muitas curvas antes de chegar à reta final.

Tensões entre Poderes

O fato é que o país vive um ciclo de contundente locução. O debate abre, a cada dia, novos compartimentos. As tensões entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, mesmo sob a preocupação dos presidentes em administrar a crise, tendem a aumentar. O Poder Executivo, por seu lado, é um polo de irradiação de conflitos e que carece de simpatia dos outros Poderes sob pena de ver naufragar as pautas que sugere. Toffoli quer agradar a Bolsonaro e aos presidentes da Câmara e do Senado. Está sob o fio da navalha. A crítica social sobre seu comportamento atinge os píncaros. O fato é que tirou do colo do STF o fardo da prisão após condenação em 2ª instância.

Tensão na região

A renúncia de Evo Morales, na Bolívia, a mobilização social no Chile, a vitória de Fernandez/Cristina Kirchner na Argentina, o rebuliço no Equador, a instabilidade no Peru, o clima de extremas carências na Venezuela e a polarização no Brasil formam, entre outros, fatores de desconfiança e desmotivação de investidores, que se retraem e passam a olhar com receio esses espaços para alocação de seus investimentos. Teria havido golpe na Bolívia? As opiniões se dividem. A esquerda, em uníssono, diz sim. Os analistas mais rigorosos falam em fraude. Evo renunciou face ao laudo da própria OEA comprovando falsificação de resultados.

Esquerda/direita e vice-versa

As economias do Chile e da Bolívia vinham sendo muito elogiadas por outros países por sua macroeconomia. Crescimento vigoroso, PIB ascendente, diminuição da pobreza, mercado financeiro satisfeito e investimentos externos. De repente, uma explosão social, guerra nas ruas. Parece que os governos do chileno Sebastián Piñera e do boliviano Evo Morales, enquanto governavam para o mercado, esqueciam as carências de sua população. As reclamações do povo são quase idênticas contra os governos de direita e de esquerda dos dois países. Os dados sobre a pobreza eram mesmo confiáveis?

Farta feição

José Aparecido chegou à sua Conceição do Mato Dentro/MG, começou a romaria dos amigos. Entrou um coronel, mansos passos e chapéu na mão:

– Bom dia, doutor. Boa viagem?

– Boa. Como vão as coisas?

– Tudo correndo como de costume. Novidade aqui nunca tem e lá pra fora não sei, porque minha televisão está defeituada.

– O que é que aconteceu com ela?

– Não sei não. Às vez farta prosa, às vez farta feição.


Gaudêncio Torquato, Jornalista e Consultor de Marketing Político, é Professor Titular na USP.

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quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Núcleo 'familiar astrológico' do governo Bolsonaro pode prejudicar economia, diz Eduardo Giannetti

"O núcleo familiar astrológico é tenebroso, e ele domina áreas muito importantes, que não podem ser desconectadas do resto", diz o economista Eduardo Giannetti
Pensar que o liberalismo econômico funcionará isoladamente das políticas para o meio ambiente é um erro grave e uma visão tacanha do liberalismo, coloca em risco a própria economia e até o futuro da agenda liberal defendida pela equipe econômica do governo Bolsonaro.

Medidas como a anunciada na semana passada, em que foi derrubado um decreto que proibia o plantio de cana de açúcar na Amazônia e no Pantanal, podem prejudicar não só o meio ambiente, mas também o futuro do agronegócio e a própria agenda liberal defendida pela equipe capitaneada pelo ministro Paulo Guedes, na visão do economista e cientista social Eduardo Giannetti.

"A área econômica não devia se omitir em relação a isso", afirmou Giannetti, PhD em Economia pela Universidade de Cambridge, ex-professor da USP e do Insper, em entrevista à BBC News Brasil.

Giannetti, responsável pelo programa econômico da candidata derrotada à Presidência Marina Silva (Rede), classifica como "tenebroso" o núcleo do governo protagonizado pelos filhos do presidente e por ministros simpatizantes às ideias do escritor Olavo de Carvalho, em especial nos setores do meio ambiente, educação e relações exteriores, que não podem ser desconectados da visão econômica.

"Achar que o liberalismo econômico pode existir independentemente do que acontece nessas áreas é um equívoco grave. A questão do meio ambiente, por exemplo, se for muito mal encaminhada, como vem sendo, vai isolar o Brasil da economia mundial. Vamos passar a sofrer boicotes", diz o economista. "Achar que vai tratar educação, relações internacionais e meio ambiente como brinquedo do núcleo familiar astrológico é um equívoco gravíssimo".

O economista falou à BBC News Brasil na casa dele, em São Paulo, em um intervalo de seu isolamento em uma pousada na cidade histórica de Tiradentes, em Minas Gerais, onde se dedica a escrever seu próximo livro e tem passado a maior parte de 2019. Fugindo radicalmente do barulho e das distrações da cidade grande, já é o sexto livro que ele escreve por lá. "É uma concentração total. Eu pego meu celular, ponho dentro da minha maleta, ponho a minha maleta dentro do armário, fecho o armário a chave e guardo a chave dentro da gaveta. Meu computador não liga internet. É para trabalhar. Eu recomendo".

Giannetti diz que nenhum presidente brasileiro desde a redemocratização — FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro — tratou como prioridade o que teria sido fundamental para garantir ao país um futuro menos que medíocre: dar educação e infraestrutura básicas para a população, como saneamento e transporte público, para formar trabalhadores mais produtivos e cidadãos plenos. "O desafio civilizatório secular do Brasil é a formação de capital humano".

Em sua próxima obra, o autor de Trópicos Utópicos (2016) e O Elogio do Vira-lata e outros ensaios (2018), tratará da ética no livro O Anel De Giges, referência a uma fábula que aparece no livro dois da República de Platão. Na história, um pastor descobre um anel que tem o poder de torná-lo invisível e, por isso, inimputável. "É um livro sobre ética, e a pergunta é o que leva alguém a ser honesto mesmo quando não há nenhum tipo de punição por ser desonesto. O Brasil é um país em que os políticos acham que ganham o anel de Giges quando chegam ao poder".

Leia os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil — O sr. já falou que o principal problema do Brasil é a desigualdade de oportunidades. Por que?

Eduardo Giannetti — A condição de vida em que a pessoa nasce é determinante na sua trajetória. Isso é desigualdade de oportunidades. O filósofo político americano John Rawls, de Harvard, propõe um teste da boa sociedade, que é o principio da escolha sob o véu da ignorância. Nessa proposta, a sociedade ideal é a seguinte: você não nasceu ainda, você não sabe qual vai ser a sua condição ao nascer, o nível de renda da sua família, sua família, seu gênero, a cor da sua pele, sua orientação sexual e você precisa eleger uma sociedade na qual você gostaria de nascer, considerando que tudo pode acontecer com você.

Quais seriam as características da sociedade em que você escolheria nascer? É um experimento mental, os filósofos gostam muito desse tipo de exercício. São duas: a sociedade em que a condição do menos favorecido é menos ruim, porque você quer se proteger da pior possibilidade, e a que existe maior permeabilidade para que você possa ascender e melhorar a sua condição com seu próprio esforço. O Brasil está muito longe de aprender isso. Eu não sou a favor da igualdade de resultados, que é improdutiva e injusta ao mesmo tempo.

BBC News Brasil — Em que todos tivessem o mesmo padrão de vida?

Eduardo Giannetti — Em que todo mundo chega igual independente do que se empenhou, do quanto fez, do talento, de quanto valoriza. Felizmente nem todos valorizam o sucesso financeiro da mesma maneira. É bom que o mundo seja assim. Tem pessoas que preferem criar, tem pessoas que preferem ter relações afetivas, uma vida mais rica socialmente. E tem alguns que preferem ser muito focados em sucesso econômico, e também é bom que alguns sejam assim, desde que não seja todo mundo. [...] É natural que haja desigualdade nessa situação, são valores diferentes. O que não dá para aceitar é uma situação em que o ponto de partida já defina de antemão, antes de qualquer escolha que se faça, os vitoriosos e os perdedores no campo econômico. É nisso que o Brasil está.

Tem uma fábula que é uma graça. Duas crianças estão caminhando pela rua e uma delas percebe que tem duas maçãs, uma pequena e uma grande no chão, e entrega a menor pra amiga. A criança que ganha a maçã pequena começa a reclamar: você me deu a maçã pequena, você é tão injusta, você ficou com a maçã grande e me deu a pequena, achei que você fosse minha amiga. Mas a criança que deu a menor disse: peraí, se você tivesse pego as duas maçãs, o que teria feito? Eu teria dado a maior para você. Então por que você está reclamando?

E, no entanto, a que está reclamando tem absoluta razão. Porque uma coisa é essa resultante acontecer de maneira voluntária, porque uma delas abriu mão. A outra é essa desigualdade ser imposta de uma sobre a outra. O que está em jogo não é o resultado, mas o caminho até ele. O caminho tem que ser respeitado. O que o Brasil não tem, definitivamente, é essa legitimidade no caminho.

Em sua próxima obra, o autor de "Trópicos Utópicos" (2016) e "O Elogio do Vira-lata e outros ensaios" (2018), tratará da ética no livro O Anel De Giges, que discute o que leva alguém a ser honesto mesmo quando não há punição por ser desonesto
BBC News Brasil — Por que?

Eduardo Giannetti — O problema vem da nossa formação, do modelo de colonização que prevaleceu na história do Brasil, de monocultura, escravocrata. Um país que retardou absurdamente a abolição da escravatura e que fez a abolição com muita leviandade, muita inconsequência. Para muitos, até piorou a situação. Teve escravo que se ofereceu de volta, porque a vida ficou ainda pior. As distorções do período longo de escravidão não desaparecem da noite para o dia, elas se perpetuam. O caso do Brasil talvez seja um dos países em que as consequências da escravidão têm mais permanência, porque de certa maneira até hoje as consequências da escravidão estão conosco na desigualdade, na desigualdade de oportunidades, principalmente.

BBC News Brasil — Muitos economistas defendem que o crescimento econômico reduziria a desigualdade. O senhor concorda?

Eduardo Giannetti — Não. Isso é discutido há muito tempo e não só no Brasil. A tese é: primeiro é preciso fazer o bolo crescer, para depois distribuir. Tem uma lógica: com a má distribuição de renda você tem mais poupança, porque a propensão de quem ganha mais é fazer mais poupança. A lógica desse raciocínio furado é que você precisava primeiro fazer a poupança, para daí fazer o investimento, para fazer o bolo crescer, e aí distribuir. O que está errado: isso não leva em conta a formação de capital humano.

Se a distribuição de renda e de oportunidades for muito desigual, como é no Brasil, você vai estar sacrificando o principal insumo de um país, que é o capital humano. Gente inteligente, qualificada, bem preparada, formada para agregar inteligência àquilo que faz. Se você não formar capital humano está condenado a ter um país pobre.

O bolo não vai crescer se não tiver capital humano. O bolo não cresce, o país fica medíocre, se você tem uma oferta abundante de mão-de-obra não qualificada. O desafio civilizatório secular do Brasil é a formação de capital humano.

BBC News Brasil — Passada a recessão, muitas pessoas entraram na pobreza, em um momento em que o país está envelhecendo. Que consequência isso traz pro futuro?

Eduardo Giannetti — Um quadro que já é ruim se agrava pela regressão em um país que começava a dar os primeiros passos para reduzir a desigualdade e dar oportunidades. E que depois de uma recessão tão brutal como o país viveu, condena um número crescente de brasileiros a viver abaixo da linha da pobreza extrema. É um retrocesso. Agora, nós cometemos um erro grave, espero que o Brasil tenha aprendido.

Na época da bonança, quando o superciclo das commodities estava nos favorecendo e o Brasil obteve um adicional de riqueza que o mundo lhe transferiu, pela valorização das commodities, em vez de usarmos isso de maneira prudente e inteligente, formando capital humano, nós fizemos uma farra do consumo via crédito, via distribuição direta de renda. Sem dar a devida atenção à infraestrutura humana, ao saneamento, à educação. Nós consumimos de maneira inconsequente uma chance que o mundo nos deu de aprimorar e melhorar de maneira permanente, consistente, nossa capacidade de gerar riqueza e bem-estar.

BBC News Brasil — Devíamos ter investido em quê, naquela época?

Eduardo Giannetti — A falta de prioridade em ensino fundamental no Brasil durante o ciclo tucano-petista é uma das coisas mais incompreensíveis que eu imagino.

BBC News Brasil — Por que esta etapa do ensino, especificamente?

Eduardo Giannetti — Por que se não tiver isso bem resolvido, o resto não vai. E saneamento básico. Estamos em um país em que quase a metade dos domicílios não tem coleta de esgoto. Então o governo transfere bilhões para o Eike Batista, para a JBS, a extravagância foi enorme de usar o dinheiro do BNDES para fazer campeões nacionais, a Oi, entre outros. E não transfere recursos para resolver essas questões muito elementares do século XIX, que são ensino fundamental de qualidade, saneamento básico e transporte público. A coisa do automóvel foi um escândalo também, um monte de incentivo ao setor automotivo para favorecer o transporte de uma elite que tem automóvel no Brasil, enquanto o transporte público foi deixado totalmente de lado e deteriorado. A produtividade continua extremamente baixa, mas nós tivemos a oportunidade de dar um salto e perdemos. O mundo nos deu uma enorme chance e jogamos fora por afã imediatista. Essa recessão pela qual o Brasil passou em 2015 e 2016 foi uma consequência de manter artificialmente as taxas de crescimento em um momento em que não era mais possível fazê-lo.

BBC News Brasil — No governo Dilma?

Eduardo Giannetti — O governo Dilma foi de uma incompetência épica. O primeiro mandato do Lula foi a melhor surpresa de redemocratização, na minha avaliação. Mostrou alternância de poder no Brasil, com serenidade, com racionalidade na política econômica e na política pública. O Brasil parecia que tinha ganhado uma maturidade adquirida. O governo Dilma tentou forçar a mão e gerou uma mega recessão. O enredo do governo Dilma é muito parecido com o governo Geisel. No sentido de que o Geisel pegou a economia pós um boom em um momento em que a economia global não estava mais favorável e quis manter o milagre econômico artificialmente usando poupança externa; gerou a crise da dívida externa. A Dilma pegou uma economia embalada por um ciclo de commodities e tentou manter o embalo do crescimento, mas, em vez do gasto externo, usou o fiscal, perdeu o controle da despesa pública. Gerou a crise fiscal com a qual nós estamos enrolados até hoje. A diferença entre Dilma e Geisel é que um foi dívida externa e o outro foi dívida bruta interna.

BBC News Brasil — O sr. diz que não acertamos nas prioridades nem no governo FHC, nem Lula nem Dilma. E depois da Dilma?

Eduardo Giannetti — Depois da Dilma nós estamos em guerra de guerrilha estamos para fazer o ajuste fiscal. No Temer criou-se a regra de ouro, o teto do gasto, começou a controlar o gasto, parou de crescer o déficit primário. E agora assistimos a continuação desse filme com esse conjunto muito amplo de medidas anunciadas pelo Paulo Guedes. Se não fizesse isso ia se gerar uma crise financeira, estávamos nesse caminho. Se o Brasil não criar o mínimo de ancoragem fiscal, ou seja, um horizonte em que a dívida pública ao longo do tempo se estabiliza, uma estabilidade da relação dívida/PIB daí virava argentina. Temer e Bolsonaro estão desesperadamente procurando ancoragem fiscal na área econômica.

BBC News Brasil — E a parte social? Essa multidão de novos pobres era inevitável por causa da recessão?

Eduardo Giannetti — Não. Não era inevitável. É compreensível que aumente, mas se se nós tivéssemos políticas públicas bem desenhadas poderíamos atenuar e até reverter muito esse quadro desastroso de piora da desigualdade de piora da pobreza extrema.

BBC News Brasil — Então esse foi um erro dos últimos governos?

Eduardo Giannetti — É um problema que não é simples, porque hoje 93% do orçamento do governo Federal é gasto obrigatório. A margem de manobra para usar o dinheiro de maneira melhor é muito pequena e, para ajustar o fiscal, vai se comprimindo os gastos discricionários, inclusive o investimento. É complexo. Agora o que não dá para entender é que o Brasil tem uma carga tributária de 33% do PIB; de cada três reais de valor que o Brasil cria com o trabalho, um vai para o governo. Temos um déficit nominal, a diferença entre o que o Brasil arrecada e gasta, de 6% do PIB. Então estamos em um país em que 39% de todo o valor criado pela sociedade é intermediado pelo Estado brasileiro. E o ensino fundamental é deplorável, a saúde pública é vergonhosa, metade dos domicílios não têm saneamento básico, a segurança pública é péssima, como a educação. Tem muita coisa errada no setor público brasileiro.

BBC News Brasil — Com tantos vulneráveis, o Estado não tem que ser grande?

Eduardo Giannetti — O que não dá para tolerar é que com essa carga tributária e esse déficit nominal os recursos não apareçam para a sociedade, esse é o problema. Mas porque isso não acontece? Por que gasta com a Previdência dos ricos, o Estado gasta com ele mesmo.

BBC News Brasil — Para manter privilégios?

Eduardo Giannetti — Na Previdência é privilégio. A conta de juros, que está caindo agora, também é muito alta. Você tem 5.570 municípios no Brasil, eu falo isso há 10, 15 anos. Cidades que não têm sequer um posto de saúde decente têm câmara de vereador. Aí você pega educação, o Estado brasileiro gasta uma fatia alta das verbas que destina a educação para financiar a educação dos ricos no ensino superior. Eu não me conformo com isso, é regressivo. Tem que ter uma regra de ouro em que ninguém deixa de fazer universidade porque não pode pagar. Para mim é uma regra de ouro. Mas quem pagou o ensino médio e fundamental porque para de pagar quando chega na parte mais cara da educação? Não dá para justificar. Isso é privilégio também.

BBC News Brasil — Falando do governo Bolsonaro. O senhor diz que um desafio importante, junto com a desigualdade e educação, é o meio ambiente. Como tem visto a atuação nessa área?

Eduardo Giannetti — O governo Bolsonaro tem três vetores, três núcleos razoavelmente bem definidos. O núcleo econômico, liderado pelo Paulo Guedes, tem o núcleo militar, que cuida das áreas de segurança, de geopolítica, e tem o núcleo que eu chamo familiar astrológico. O menos ruim dos três, na minha opinião, é o núcleo econômico. Está longe do que eu imaginaria ser o melhor para o Brasil, mas tem boas intenções e está caminhando na direção correta. O núcleo familiar astrológico é tenebroso, e ele domina áreas muito importantes, que não podem ser desconectadas do resto.

BBC News Brasil — Que áreas?

Eduardo Giannetti — Meio ambiente, educação, direitos humanos. Achar que o liberalismo econômico pode existir independentemente do que acontece nessas áreas é um equívoco grave. A questão do meio ambiente, por exemplo, se for muito mal encaminhada, como vem sendo, vai isolar o Brasil da economia mundial. Vamos passar a sofrer boicotes.

BBC News Brasil — Pode atrapalhar o acordo com a União Europeia?

Eduardo Giannetti — Vai atrapalhar, o agronegócio brasileiro vai ser prejudicado. Vai ser prejudicado por boicotes internacionais e, no longo prazo, vai ser prejudicado por desequilíbrio ecológico interno. Não tem agronegócio sustentável sem a floresta Amazônica de pé.

BBC News Brasil — O governo autorizou na semana passada, por exemplo, o plantio de cana na Amazônia e no Pantanal, revogando um decreto de 2009. Que achou?

Eduardo Giannetti — Isso é um retrocesso inaceitável, a área econômica não devia se omitir em relação a isso.

BBC News Brasil — Não dá para a equipe econômica considerar que, se avançar a agenda liberal, tudo vai dar certo?

Eduardo Giannetti — Isso é uma visão míope e tacanha do liberalismo. E o próprio agronegócio precisa perceber que o futuro dele vai se comprometer se não soubermos usar bem o nosso patrimônio ambiental. O regime pluviométrico não só do centro-oeste, mas do Brasil, do qual depende o agronegócio brasileiro, está muito ligado à preservação do patrimônio ambiental da Amazônia. Podemos estar deflagrando mecanismos de feedback que se autoalimentam que vão tornar o Brasil menos produtivo ainda naquele setor que segura nossa balança comercial e nossa produtividade, que é o magnífico agronegócio. Não dá para separar. Educação é um problema totalmente econômico gritante. Não é um problema de aluno e professor, de ideologia. É uma questão de formação de de capital humano, para qualquer modelo econômico.

BBC News Brasil — Vê efeito da segmentação do debate? Meio ambiente virou coisa de esquerda, contas públicas de direita...

Eduardo Giannetti — Essas divisões são grandes artificialismos são convenções. Educação é um assunto fortemente econômico, meio ambiente fortemente econômico, assim como, para essas áreas o bom andamento da economia também é fundamental, senão não tem recursos para investir em educação, para fazer a preservação ambiental, tudo isso está interligado. Achar que vai tratar educação, relações internacionais e meio ambiente como brinquedo núcleo familiar astrológico é um equívoco gravíssimo.

BBC News Brasil — O senhor participou da campanha eleitoral, em momentos diferentes. Acredita que a situação estaria melhor se Marina tivesse sido eleita?

Eduardo Giannetti — Ninguém é bom juiz em causa própria. Mas não precisava ser tão ruim quanto está sendo.

BBC News Brasil — O senhor vê risco para a democracia, mantendo o caminho atual?

Eduardo Giannetti — Eu vejo risco sim. Eu vejo um risco de polarização raivosa na eventualidade de Lula saindo da cadeia (A reportagem falou com o economista na quinta-feira, 7, antes da saída do ex-presidente, que foi no dia 8). Aliás, nada interessa mais ao grupo bolsonarista do que repolarizar com o Lula de novo ameaçando. Não estou dando opinião, mas que interessa ao grupo radical a repolarização raivosa porque aglutina, eu não tenho dúvida. Esse é um risco.

Outro risco é um conflito entre poderes. A crise institucional tem um enredo conhecido. Nós temos três poderes na República, no momento em que um poder tomar uma decisão soberana que é pertinente e outro poder não respeitar, está estabelecido um impasse. São três poderes, pode acontecer de muitas maneiras.

Dado o perfil do atual Executivo, a possibilidade de um impasse assim acontecer até o fim do mandato não é nula, acho que não é nem desprezível. Então precisa prestar muita atenção e tomar muito cuidado. À toa à toa nós podemos caminhar e já tivemos no passado muito perto disso.

BBC News Brasil — Por exemplo?

Eduardo Giannetti — Por exemplo, quando o Supremo julgou o início do processo em relação ao Aécio Neves, que já tinha sido absolvido no Congresso. Se o Supremo votasse pelo início do processo ele ia perder o mandato e a decisão do Supremo ia afrontar o que o Congresso tinha decidido. Eu me lembro perfeitamente do constrangimento da presidente do STF, que era a Carmen Lúcia, claramente votando contra a consciência dela para não esticar a corda e não correr o risco de um impasse constitucional. Ela votou pela não-abertura do processo contra o Aécio Neves; absolutamente transparente o constrangimento para não correr o risco de criar um impasse constitucional em um momento de fragilidade do país. E nós tivemos muito perto disso.

BBC News Brasil — A saída do Lula e essa repolarização aumentam esse risco?

Eduardo Giannetti — A resposta para a sua pergunta é sim.

BBC News Brasil — E a Lava-jato? Qual o saldo dela?

Eduardo Giannetti — Altamente positivo, apesar da decepção de todos nós que torcemos pela Lava-Jato de saber que, no afã de fazer justiça, houve um atropelo do devido processo legal. No afã de fazer justiça. Agora eu acho a Lava-Jato absolutamente um ponto de inflexão em um quadro de impunidade crônica dentro do qual o Brasil sempre viveu.

BBC News Brasil — Continua positivo?

Eduardo Giannetti — Altamente positivo. Não obstante o desapontamento com esse afã justiceiro que atropela em alguns momentos o devido decoro da legalidade.

BBC News Brasil — Como o senhor vê o futuro?

Eduardo Giannetti — Pelo menos uma vantagem existe em se ter uma certa idade. Eu já vi muita coisa. Já vi o país completamente desesperançado.

BBC News Brasil — Quando?

Eduardo Giannetti — Houve momentos do governo Sarney, para não falar na ditadura. Vamos pegar da redemocratização para cá. O confisco que o Collor fez foi uma coisa de uma violência. Eu não sou uma pessoa de certezas muito pronunciadas, mas tenho uma tranquilidade. O que o Brasil está vivendo é um capítulo sombrio, mas que vai terminar.

Nós entramos nisso por conta dessa polarização raivosa que se instaurou e que nos levou para uma interdição da possibilidade de diálogo construtivo. Olhando em retrospecto o que chama muita atenção para mim politicamente é o seguinte: PT e PSDB são dois agrupamentos surgidos da oposição à ditadura militar e com programas que não são tão diferentes assim. Têm muitas áreas de vizinhança e de proximidade. PT e PSDB disputaram seis eleições seguidas entre si. Jamais foram capazes de coordenar e cooperar em nome dos seus objetivos comuns.

Preferiram governar com o que há de mais sinistro da política brasileira do que conversar, ao invés de trabalharem juntos. Isso nos trouxe para o colo desse retrocesso. O ponto de virada foi o desastre económico da Dilma. Eu espero que tenha ficado o aprendizado de que se nós do campo democrático não soubermos trabalhar juntos, nós vamos favorecer os radicais da pior espécie.

BBC News Brasil — Mas vê alguém trabalhando nesse sentido?

Eduardo Giannetti — Eu espero que sim e acho que é o que precisa acontecer. Se nós nos fragmentarmos e nos dividirmos e ficarmos incapazes de mostrar que somos a maioria da sociedade, porque somos, vamos abrir o caminho para o flanco. Eu estudei muito na última eleição o que aconteceu na república de Weimar, na Alemanha, que abriu o caminho pré-Hitler. Hitler foi eleito. Por que? Porque os sociais-democratas e os comunistas passaram a ver um no outro o seu pior inimigo. Os comunistas chamavam os sociais-democratas de social facistas, e os social-democratas achavam que o comunismo ia levar para o bolchevismo. Quem aproveitou isso e quem cresceu com essa briga? O nazismo.

BBC News Brasil — E isso pode se reverter já nas próximas eleições?

Eduardo Giannetti — Eu não tenho bola de cristal para ver isso, mas eu acho que lideranças novas podem reencontrar o espaço do diálogo de quem tem uma visão compartilhada sobre democracia, sobre direitos humanos, sobre redução da desigualdade.

BBC News Brasil — O senhor tem conversado com alguém? Luciano Huck?

Eduardo Giannetti — Não. Mas eu acho que vão começar a surgir lideranças, isso é natural. Mas espero que tenhamos aprendido que se não houver cooperação, entendimento entre os que são contra o radicalismo, especialmente de direita, o radicalismo prevalece. Essa onda que elegeu Bolsonaro por muito pouco não elegeu Marina em 2014.

O desapontamento com o status quo da política brasileira esteve muito perto, mas muito perto, de eleger a Marina em 2014, que era uma saída democrática e construtiva. Pela violência da campanha, a Marina não teve a chance de sequer chegar ao segundo turno. Mas esteve muito perto por um momento depois da morte do Eduardo Campos. Essa mesma onda de raiva, desapontamento e rejeição com a política brasileira elegeu o Bolsonaro. Nós saímos da pior maneira possível.

Entrevista concedida a Ligia Guimarães
Da BBC News Brasil em São Paulo

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Toffoli reage ao radicalismo de Lula. "A Justiça não tolerará uma crise institucional".

O Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, rebateu ontem à noite, sem citar nomes, os discursos de Lula conclamando as esquerdas ao confronto contra os Poderes da República.

- “O Judiciário e a Justiça são feitos para a pacificação social. Se alguém quer se valer da Justiça para uma luta social, não vai conseguir. A Justiça não tolerará uma crise institucional e saberá agir a tempo e a hora”, afirmou.

Para Dias Toffoli, “radicalismo não leva a lugar nenhum. O que se espera é que as pessoas tenham serenidade e pensem no Brasil”. O presidente do Supremo declarou, ainda, que “a nação brasileira é devedora das Forças Armadas para a construção do Brasil e para a unidade nacional, assim como o Judiciário”. E completou: “O Judiciário saberá agir no momento certo”.

O texto de Tânia Monteiro, publicado hoje em O Estado de São Paulo, lembra que foi o voto de desempate do Presidente do STF que "permitiu a presos condenados, como Lula, aguardarem em liberdade até que todos os seus recursos sejam julgados pela Justiça, o que pode levar anos.

A decisão mudou entendimento anterior da Corte pelo qual era possível o cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instância.

Desde o julgamento do Supremo, na última semana, além de Lula foram soltos vários outros presos pela Operação Lava Jato. Entre eles, o ex-ministro José Dirceu.

Lula fez dois discursos após deixar a prisão nos quais criticou as instituições brasileiras. Num deles, disse que foi condenado pelo “lado podre do Estado brasileiro, o lado podre da Justiça, o lado podre do Ministério Público, o lado podre da Receita Federal, o lado podre da Polícia Federal, que trabalharam para tentar criminalizar o PT, criminalizar o Lula.”

José Dirceu, com que Lula se encontrou horas após os dois serem soltos na sexta-feira, também incitou os “esquerdistas” a saírem do imobilismo. “Estou de novo na trincheira da luta. Agora não é mais do Lula livre. Agora é para nós voltarmos e retomarmos o governo do Brasil. Nós somos petistas, de esquerda e socialistas”, convocou. Os discursos animaram a militância nas redes sociais.

As manifestações realizadas pelo PT e os demais partidos que apoiam Lula causaram enorme preocupação nas Forças Armadas, que temem um enfrentamento que fuja ao controle, provocando caos na ordem pública. O governo está acompanhando atentamente a todas as mobilizações previstas para evitar que se repitam no Brasil protestos radicais como acontecem em países vizinhos."

Desafeto de Lula, Villa é insuspeito. Fala Villa!

Marco Antonio Villa, Professor de História por 30 anos na Universidade de São Carlos - SP, conhece Lula desde quando ele usava bigode e se destacava como líder sindical em São Bernardo do Campo nas memoráveis greves do ABC.

Observador atento do cenário político brasileiro, tem dezenas de livros publicados e por suas opiniões em artigos na imprensa e comentários ao vivo em programas de rádio e da TV já foi processado e sempre absolvido várias vezes, inclusive por Lula e até Bolsonaro.

Eis aqui sua análise sobre os fatos mais recentes na República do Brasil:




domingo, 10 de novembro de 2019

O que seu cocô revela sobre sua classe social

Em estudo inédito, pesquisadores usaram dados sobre fezes para buscar indicadores socioeconômicos.

Um laboratório da Universidade de Queensland, na Austrália, está armazenando algumas amostras incomuns: as fezes de mais de um quinto da população do país.

As amostras, coletadas em estações de tratamento de esgoto em todo o país, congeladas e enviadas pelos Correios para pesquisadores da universidade, foram descritas como um tesouro de informações sobre os hábitos alimentares e de consumo de medicamentos de diferentes comunidades.

À frente da pesquisa estão Jake O'Brien e Phil Choi. Eles coletaram essas amostras durante o último censo nacional da Austrália, em 2016 e, no primeiro estudo do tipo, analisaram as fezes para medir diferentes hábitos alimentares e de estilo de vida.

Em linhas gerais, os pesquisadores descobriram que, quanto mais rica a comunidade, mais saudável é sua dieta. Nos estratos socioeconômicos mais altos, o consumo de fibras, cítricos e cafeína era maior. Nos mais baixos, medicamentos prescritos apresentaram uso significativo.

Pesquisadores coletaram amostras de estações de tratamento de esgoto em todo país.

O estudo tentou colocar em prática aquilo que os pesquisadores há algum tempo pressupõem: as fezes fornecem informações valiosas sobre o consumo de alimentos e medicamentos de uma comunidade.

Extrair informações sobre as comunidades examinando seus dejetos é chamado epidemiologia das águas residuais. A prática existe há cerca de duas décadas e é usada predominantemente para monitorar o uso de drogas ilícitas nas populações. Esse método tem a vantagem de fornecer informações mais objetivas sobre uma área mais específica.

Alguns estudos já testaram o uso de drogas legais, como a nicotina; outras equipes de pesquisa estão usando esse tipo de material na detecção precoce de surtos de doenças.

Mas o uso dos dejetos como indicador da alimentação tinha ficado, até agora, majoritariamente na teoria.

Choi diz que, quando perguntadas sobre coisas como uso de drogas ou alimentos consumidos, as pessoas às vezes relatam hábitos mais saudáveis ​​do que realmente têm.

"Você geralmente encontra em pesquisas que as pessoas relatam excessivamente o consumo de alimentos saudáveis ​​e um consumo baixo de itens como salgadinhos", diz Choi.

A análise de águas residuais pode ser útil principalmente de duas maneiras, diz O'Brien. A primeira consiste em identificar disparidades entre comunidades; e a segunda, em rastrear mudanças nessas comunidades ao longo do tempo.

"Se você tentar implementar algo que espera gerar uma mudança positiva, precisará medir o sucesso dessas intervenções", diz ele.

A correlação da cafeína

Encontrar exatamente o que poderia ser testado foi o desafio inicial para pesquisadores. Afinal, os dejetos contêm não apenas urina e fezes, mas frequentemente também resíduos de produtos de higiene e beleza, restos de comida e produtos industriais.

Assim, a equipe precisou encontrar biomarcadores específicos relacionados a alimentos que são apenas ou predominantemente produzidos pela excreção humana.

Cítricos são indicadores de uma dieta saudável, assim como fibras
O estudo utilizou dois biomarcadores associados ao consumo de fibras e um relacionado à ingestão de cítricos — itens da alimentação considerados característicos de uma dieta saudável.

Em todos estes indicadores, as comunidades com os melhores níveis socioeconômicos apresentavam forte correlação com o consumo. Em outras palavras, de um modo geral, as áreas mais ricas tinham dietas mais ricas em fibras e cítricos.

Também se constatou que a ingestão de cafeína é maior nos estratos superiores, especificamente em áreas onde o preço do aluguel é alto — o que já foi reforçado por outros estudos que mostraram que café expresso e moído são mais frequentemente consumidos por pessoas com no mínimo diploma de graduação.

Os pesquisadores apontam que, entre os australianos, os mais ricos têm mais motivações culturais e econômicas para consumir mais café.

Na outra ponta, as comunidades mais pobres apresentaram mais resíduos de medicamentos, em particular o tramadol (analgésico à base de opioides); atenolol (remédio para pressão arterial); e pregabalina (anticonvulsivo). No entanto, as duas últimas foram também associadas às populações mais velhas, que também podem tender a ter uma renda mais baixa.

Verificou-se que outros analgésicos, medicamentos e antidepressivos estão relacionados a menor nível socioeconômico, mas não na mesma dimensão.

Os pesquisadores esperam repetir a pesquisa no próximo censo, obtendo, dessa maneira, informações sobre se alguma mudança pode estar acontecendo e que outros métodos de pesquisa ainda podem ser descobertos ou aprimorados.

Por exemplo, neste estudo, o uso de antibióticos é distribuído de maneira bastante uniforme entre diferentes grupos socioeconômicos, indicando que o sistema de saúde subsidiado pelo governo está fazendo seu trabalho; caso essa distribuição comece a mudar em pesquisas futuras, isso poderá ser constatado em novas rodadas.

Cafeína se mostrou mais presente nas águas residuais dos australianos que vivem em bairros com aluguéis mais altos

Desigualdade refletida na saúde

O estudo confirma um fenômeno global conhecido como gradiente social da saúde, em que bons indicadores, como relacionados ao tabagismo e à obesidade, estão associados a melhores níveis socioeconômicos.

Embora os australianos acreditem que o país é igualitário, a desigualdade, conforme indicado pelo estudo das águas residuais, é um problema ainda não solucionado.

Um relatório de 2018 constatou que a Austrália apresentava níveis de desigualdade de renda acima da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), embora apareça como mais igualitária que o Reino Unido e os EUA.

Um australiano entre os 20% mais ricos tem cinco vezes mais renda do que alguém que vive no quintil inferior. E, de um modo geral, mais dinheiro significa uma maior capacidade de comprar alimentos perecíveis, como frutas e legumes; uma maior escolaridade indica maior domínio de informações sobre nutrição.

Mas o estudo encontrou uma exceção significativa nessa relação entre classe e dieta: áreas com uma alta proporção de domicílios que não falam inglês também apresentaram taxas relativamente altas de consumo de fibras e cítricos, apesar de terem indicadores socioeconômicos inferiores. Isso possivelmente reflete a forte presença de alimentos naturais na dieta tradicional de imigrantes.

Catherine Bennett, diretora de epidemiologia da Universidade Deakin, em Victoria, diz que o estudo de Queensland é interessante por aprimorar a epidemiologia das águas residuais. Os pesquisadores também deixaram claras suas limitações, avalia ela.

"Tudo o que foi dito é o que chamamos de estudo ecológico em epidemiologia. O termo quer dizer que não estamos usando dados individuais, mas coletivos", diz Bennett.

A pesquisadora lembra que esses estudos já foram usados, por exemplo, para verificar se houve redução no consumo da nicotina após a introdução de embalagens padronizadas de cigarro na Austrália.

"O que você não sabe é se todos os fumantes estão fumando menos ou se há menos fumantes na comunidade. Sempre precisamos ser um pouco cautelosos ao analisar esses estudos, porque trata-se de uma associação no sentido mais amplo, não é possível estabelecer relações rígidas de causalidade."

Os estudos sobre nicotina, assim como a pesquisa recente sobre dieta e medicamentos, são validados no conjunto, com outras pesquisas.

"É uma oportunidade realmente interessante, desde que não tentemos interpretar demais os dados", diz Bennett.

Após a validação dos dados, acrescenta, o método "é uma maneira útil de monitorar de perto o que está acontecendo nas camadas da população".

(Texto: Celina Ribeiro, da BBC News Brasil).