quinta-feira, 17 de abril de 2025

Por que nunca estive tão apavorado com o futuro dos EUA como agora?

Esse governo Trump 2 não passa de uma farsa cruel e os EUA estão se transformando em uma nação delinquente

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, participa de um evento na Casa Branca  Foto: Manuel Balce Ceneta/AP

Tanta loucura acontece no governo Trump todos os dias que algumas coisas absolutamente estranhas mas incrivelmente reveladoras se perdem no ruído. Um exemplo recente foi a cena de 8 de abril na Casa Branca, na qual, em meio à sua acirrada guerra comercial, nosso presidente decidiu que era o momento perfeito para assinar um decreto destinado a impulsionar mineração de carvão.

“Estamos trazendo de volta uma indústria que foi abandonada”, disse o presidente Donald Trump cercado por mineiros de carvão com capacetes, membros de uma força laboral que caiu de 70 mil trabalhadores para cerca de 40 mil na década recente, segundo noticiou a Reuters. “Vamos colocar os mineiros de volta ao trabalho.” Para completar, Trump acrescentou sobre esses mineiros: “Se lhes déssemos uma cobertura na Quinta Avenida e um outro tipo de emprego eles ficariam infelizes. Eles querem minerar carvão, é isso o que eles amam fazer”.

É louvável que o presidente homenageie homens e mulheres que trabalham com as mãos. Mas escolher elogiar mineiros de carvão ao mesmo tempo que tenta zerar a geração de empregos em tecnologias limpas — em 2023, a indústria de energia eólica dos EUA empregava aproximadamente 130 mil trabalhadores, e a indústria de energia solar, 280 mil — sugere que Trump está preso a uma ideologia de direita que não reconhece os empregos nas indústrias verdes como trabalhos “reais”. De que forma isso nos fortaleceria?

Esse governo Trump 2 não passa de uma farsa cruel. Trump concorreu a outro mandato não por saber minimamente como transformar os Estados Unidos para o século 21. Ele concorreu para ficar fora da cadeia e se vingar daqueles que, com evidências reais, tentaram responsabilizá-lo perante a lei. Duvido que ele já tenha passado cinco minutos estudando a força de trabalho do futuro.

Portanto Trump retornou à Casa Branca com a cabeça ainda repleta de ideias dos anos 70. De volta ao poder, ele lançou uma guerra comercial sem aliados nem nenhuma preparação séria — razão pela qual ele altera suas tarifas quase que diariamente — e sem compreender a medida em que a economia global é atualmente um ecossistema complexo no qual produtos são montados a partir de componentes fabricados em vários países. E então ele nomeia para travar essa guerra um secretário de Comércio que acredita que milhões de americanos estão mortos de vontade de substituir os trabalhadores chineses “que aparafusam pequenos parafusos para fabricar iPhones”.

Mas essa farsa está prestes a afetar todos os americanos. Ao atacar nossos aliados mais próximos — o Canadá, o México, o Japão, a Coreia do Sul e a União Europeia — e nossa maior rival, a China, ao mesmo tempo deixando claro que favorece a Rússia em vez da Ucrânia e prefere indústrias de energia que destroem o meio ambiente a indústrias voltadas para o futuro, e o planeta que se dane, Trump está provocando uma grave perda de confiança global nos EUA.

O mundo percebe agora os EUA de Trump exatamente na forma que o país está se tornando: uma nação delinquente, liderada por um ditador impulsivo e desconectado em relação ao estado de direito e a outros princípios e valores constitucionais americanos.

E vocês sabem o que nossos aliados democráticos fazem com Estados delinquentes? Liguemos alguns pontos.

Primeiro, eles deixam de comprar títulos do Tesouro como antes. Portanto, os EUA precisarão oferecer-lhes taxas de juros mais altas para que isso aconteça — o que afetará toda a nossa economia, do financiamento de carros até o financiamento imobiliário, passando pelo custo dos serviços da dívida nacional, em detrimento de tudo mais.

“Será que as decisões espasmódicas e os impostos aduaneiros do presidente Trump estão fazendo com que os investidores do mundo se afastem do dólar e dos títulos do Tesouro dos EUA?”, questionou um editorial do Wall Street Journal, no domingo, sob o título “Existe um novo prêmio de risco para os EUA?”. É cedo demais para dizer, mas não para questionar, já que os rendimentos dos títulos continuam subindo e o dólar continua se enfraquecendo — sinais clássicos de uma perda de confiança que não precisa ser muito grande para surtir um impacto significativo sobre toda a nossa economia.

Carros fabricados na China, incluindo Volvo e outras marcas, são vistos no porto de Nanquim, na província de Jiangsu, no leste da China, em 16 de abril de 2025, enquanto aguardam para serem carregados em navios para exportação. Foto: AFP/AFP

Instituições

Outra coisa: nossos aliados vêm deixando de acreditar em nossas instituições. O Financial Times noticiou na segunda-feira que a comissão que governa a União Europeia “está distribuindo telefones descartáveis e laptops básicos para alguns funcionários que viajam aos EUA para evitar o risco de espionagem, uma medida tradicionalmente reservada para viagens à China”. A UE deixou de acreditar no estado de direito nos EUA.

A terceira coisa que pessoas de outros países têm feito é dizer a si mesmas e aos seus filhos — e eu ouvi isso repetidamente na China poucas semanas atrás — que talvez não seja mais uma boa ideia estudar nos EUA. O motivo: acham que seus filhos e parentes poderão ser presos arbitrariamente e deportados para prisões salvadorenhas.

Isso é irreversível? Minha única certeza hoje é que, em algum lugar por aí, enquanto vocês leem este texto, existem indivíduos como o pai biológico de Steve Jobs, um sírio que veio para o nosso país na década de 50 cursar um doutorado na Universidade de Wisconsin, alguém que planejava estudar nos EUA, mas que agora pensa em ir para o Canadá ou para a Europa.

Congressista ergue um cartaz que pede a volta de Kilmar Abrego Garcia aos Estados Unidos após o governo Trump deportá-lo por engano para El Salvador 

Congressista ergue um cartaz que pede a volta de Kilmar Abrego Garcia aos Estados Unidos após o governo Trump deportá-lo por engano para El Salvador  Foto: Alex Wong/AFP

Se encolhemos tudo isso — nossa capacidade de atrair os imigrantes mais enérgicos e empreendedores do mundo, o que nos permitiu ser o centro mundial de inovação; nosso poder de atrair uma parcela desproporcional da poupança mundial, o que nos permitiu viver além de nossas possibilidades por décadas; e nossa reputação de defensores do estado de direito — com o tempo veremos EUA menos prósperos, menos respeitados e cada vez mais isolados.

Mas espera aí, vocês podem dizer, a China também não continua extraindo carvão? Sim, continua, mas com um plano de longo prazo para eliminá-lo gradualmente e usar robôs para fazer o trabalho perigoso e prejudicial à saúde dos mineradores.

Longo prazo

E eis a questão. Enquanto Trump faz seu “planejamento” — divagando sobre qualquer assunto que lhe pareça uma boa política num determinado momento — a China planeja a longo prazo.

Em 2015, um ano antes de Trump virar presidente, o então primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, revelou um plano de crescimento voltado para o futuro chamado “Made in China 2025″. O plano começou perguntando: qual será o motor de crescimento no século 21? Pequim fez então enormes investimentos nos componentes desse motor para que as empresas chinesas fossem capazes de dominá-lo no país e no exterior. Estamos falando de energia limpa, baterias, veículos elétricos e autônomos, robôs, novos materiais, máquinas-ferramentas, drones, computação quântica e inteligência artificial.

O Nature Index mais recente mostra que a China se tornou “líder global em produção de pesquisa em bancos de dados em química, ciências da terra e ambientais e ciências físicas — e é o segundo em ciências biológicas e ciências da saúde”.

Isso significa que a China nos deixará para trás? Não. Pequim está cometendo um erro enorme se pensa que o restante do mundo vai deixar a China suprimir indefinidamente sua demanda interna por bens e serviços para que seu governo possa continuar subsidiando indústrias exportadoras e tentar fabricar tudo para o mundo inteiro, deixando os outros países esvaziados e dependentes. Pequim precisa reequilibrar sua economia, e Trump está certo em pressioná-la a fazê-lo.

Mas a arrogância constante de Trump e sua imposição intermitente de tarifas não são uma estratégia — não quando se enfrenta a China no 10.º aniversário de sua política Made in China 2025. Se o secretário do Tesouro, Scott Bessent, realmente acredita no que declarou estupidamente, que Pequim está “jogando com um par de dois” apenas, então alguém por favor me avise quando for noite de pôquer na Casa Branca, porque eu gostaria de jogar. A China construiu um motor econômico que lhe dá opções.

A questão para Pequim — e para o restante do mundo — é: como a China usará todos os superávits que gerou? Investindo na construção de um Exército mais ameaçador? Em mais ferrovias de alta velocidade e rodovias de seis pistas para cidades que não precisam delas? Ou em mais consumo e serviços domésticos ao mesmo tempo que se oferece para construir a próxima geração de fábricas e cadeias de fornecimento chinesas nos EUA e na Europa, com estruturas de propriedade 50-50? Nós precisamos encorajar a China a fazer as escolhas certas. Mas pelo menos a China tem opções.

Comparem isso com as escolhas que Trump está fazendo. Trump está minando nosso sagrado estado de direito, afastando nossos aliados, enfraquecendo o valor do dólar e destruindo qualquer esperança de unidade nacional. Trump fez até os canadenses boicotarem Las Vegas porque eles não gostam de ouvir que logo nós seremos donos de seu país.

Então, me digam, quem está jogando com um par de dois?

Se não parar com seu comportamento delinquente, Trump destruirá tudo o que tornou os EUA fortes, respeitados e prósperos.

Nunca em minha vida eu temi tanto pelo futuro dos EUA.

Thomas Friedman, o  autor deste artigo, é colunista de assuntos internacionais do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. É autor de sete livros, entre eles 'De Beirute a Jerusalém', que venceu o Prêmio Nacional do Livro. Este artigo foi reproduzido na edição de hoje, 17.04.25, d'O Estado de S. Paulo com tradução de Guilherme Russo.

No meio do caminho de Trump, há a Justiça

Até a Suprema Corte, de maioria conservadora, contraria governo; sistema de freios e contrapesos é pilar das democracias

Vista de parte da fachada da Suprema Corte com a bandeira dos Estados Unidos, em Washington (EUA) - Kevin Mohatt/Reuters

Quem poderá conter Donald Trump? O presidente americano inicia seu segundo mandato com apetites autoritários redobrados. No plano externo, incitou uma guerra comercial global, com aumento ensandecido de tarifas, e recebeu dura resposta da China.

No interno, a reação está começando. Em sua cruzada contra as universidades de elite, por exemplo, Harvard já avisou que não aquiescerá às absurdas exigências do governo. Mesmo no Partido Republicano, parlamentares ligados a setores mais afetados pelas tarifas e bilionários que financiaram sua campanha eleitoral mostram descontentamento.


De todos os agentes e instituições que podem fazer resistência a Trump, o mais decisivo é o Judiciário. Trata-se, afinal, do Poder que, no sistema de freios e contrapesos das democracias liberais, está incumbido de revisar as decisões do Executivo e sobrestá-las caso violem as leis.

Várias medidas de Trump foram contestadas e, em alguns casos, juízes ordenaram suspensões. Mas, de modo temerário, o governo vem recorrendo a subterfúgios para adiá-las ou não implementá-las e até a ameaças abertas de descumprimento.

As alegações da Casa Branca por vezes beiram o surrealismo, como na situação do imigrante legalizado enviado erroneamente a uma prisão salvadorenha.

O governo, em desafio a uma liminar da Suprema Corte, se recusa a tentar repatriá-lo e insiste que está cumprindo a determinação, pois o imigrante, ora preso e sob risco de tortura, não será barrado em nenhum ponto de entrada do território americano caso se apresente a um deles.

Note-se que a mais alta corte do país tem maioria conservadora —de 6 dos 9 magistrados, sendo que 3 deles foram indicados por Trump em seu primeiro mandato. Tal composição, porém, não significa alinhamento automático a Washington.

O tribunal já concedeu decisões tanto favoráveis como contrárias à Casa Branca. O republicano até chegou a ser repreendido de forma inédita pelo presidente da Suprema Corte, por ter ameaçado promover o impeachment de um juiz de cuja decisão sobre deportação de imigrantes não gostara.

Há bons motivos para crer que a instância máxima da Justiça manterá certa independência, já que o projeto trumpista é autoritário. Se sua agenda obtiver sucesso, o Judiciário perderá poder para o Executivo. É incomum que detentores do poder abram mão dele espontaneamente.

Apesar de suas tentativas, não será tão fácil para Trump arruinar a democracia americana.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 17.04.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

Três vozes cristãs proféticas contra Trump

Mariann Budde, Francisco e Robert McElroy apontam o caminho para um cristianismo profético com conteúdo político libertador.

A bispa Mariann Edgar Budde e o presidente Donald Trump durante o culto na Catedral Nacional de Washington em 21 de janeiro, após a posse do republicano. Kevin Lamarque (REUTERS)

A reação dos governos europeus às políticas xenófobas, colonialistas e desfavoráveis ​​de Trump não foi exatamente caracterizada por oposição e resistência, com algumas exceções. O que predominou foi indiferença, medo, moderação nas críticas, falta de uma resposta unificada, falta de liderança e, em alguns casos, conformidade. A atitude europeia tem sido a de um avestruz, como afirmou María R. Sahuquillo em um de seus excelentes artigos para o EL PAÍS, ou a de um sonâmbulo, como reconheceu o pesquisador de Harvard Alberto Alemanno.

Alguns líderes cristãos enfrentaram Trump e reagiram criticamente, usando denúncias proféticas de tais políticas e defendendo os indivíduos e grupos mais vulneráveis. Vou me concentrar em três que se destacaram por suas críticas a Trump: Mariann Edgard Budde, bispo episcopal de Washington; Papa Francisco e o Cardeal Robert McElroy, que em breve tomará posse como o novo Arcebispo de Washington.

A bispa Mariann Budde rompeu com a tradição do sermão político que legitimava o novo presidente na posse e transformou a celebração religiosa em uma denúncia das políticas de Trump e uma proposta de caminho ético a ser seguido durante seu mandato, com uma linguagem moderada na forma, é verdade, mas radical no conteúdo. Enquanto Trump estava absorto em outros pensamentos, olhando para o chão e talvez alheio ao que estava sendo comemorado, o bispo adotou uma atitude verdadeiramente profética.

Após o próprio Trump admitir que foi "a mão providencial de um Deus amoroso" que o salvou do ataque que sofreu durante a campanha eleitoral, o bispo pediu a ele, "em nome de Deus", que demonstrasse compaixão por aqueles assustados com suas políticas anti-LGBTQ+. Entre eles, ele citou "gays, lésbicas e crianças transgêneros em famílias de diferentes convicções políticas: democratas, republicanos e independentes", justamente aqueles que agora estão sendo discriminados.

Mas não parou por aí. Diante das deportações em massa de imigrantes anunciadas por Trump durante sua campanha eleitoral, ele exigiu compaixão por eles, pois estão contribuindo para o bem-estar do povo americano. Ele lembrou que não pode considerar imigrantes indocumentados como criminosos, como o presidente republicano costuma fazer, já que eles pagam impostos, são bons vizinhos e membros fiéis de igrejas, sinagogas, mesquitas, gurdwaras ou templos.

O argumento final de Mariann Budde para a compaixão de Trump pelos estrangeiros foi: "Éramos todos estrangeiros em nossa própria terra" e precisamos de hospitalidade. O sermão desafiador e deslegitimador indignou Trump tanto que ele exigiu um pedido de desculpas. O bispo recusou tal pedido. Não era a primeira vez que ele o enfrentava. Ele já fez isso quando o presidente republicano posou, durante seu primeiro mandato, com sua filha Ivanka e segurando a Bíblia no alto, em frente à porta da Igreja de Saint John, em Washington. Diante de tal gesto de manipulação e profanação, Budde expressou publicamente sua indignação e horror.

O Papa Francisco também não se mostrou complacente com as políticas xenófobas e colonialistas de Trump, em uma carta endereçada ao episcopado católico americano. Usando uma linguagem claramente política e uma sólida base antropológica, teológica e bíblica, ele descreve as deportações em massa de imigrantes como um ataque à dignidade de muitos homens e mulheres, que Trump coloca "em um estado de especial vulnerabilidade e indefesa". Ele apela aos cidadãos para que expressem sua discordância com tais práticas, para que não cedam a narrativas que discriminam e causam sofrimento a imigrantes e refugiados, para que construam pontes e "evitem muros de ignomínia", como os que estão sendo construídos pelo presidente dos EUA.

Na carta, ele chega a questionar se os Estados Unidos são um estado governado pelo Estado de Direito, negando tratamento digno a pessoas empobrecidas e marginalizadas, construindo-o com base na força e não na igual dignidade de todos os seres humanos. Ele também convida os bispos a trabalharem para defender pessoas consideradas menos valiosas e menos humanas.

O Vaticano reagiu imediatamente contra a limpeza étnica de Gaza proposta por Trump com a colaboração de Netanyahu. E ele o fez com duas declarações contundentes: o povo de Gaza “deve permanecer em sua terra” e a limpeza étnica “não faz sentido”.

O terceiro líder cristão a entrar em conflito com Trump foi o cardeal americano Robert McElroy. Em uma linguagem ainda mais forte e desafiadora do que a do bispo e do Papa, ele chamou as políticas de deportação em massa de Trump de uma "guerra de medo e terror que não pode ser tolerada". Diante da miséria, do medo e do terror, é impossível permanecer em silêncio. O silêncio é um crime e, do ponto de vista cristão, um pecado. Por isso, ele pediu que uma voz se levantasse contra a miséria e o sofrimento que essas políticas estão desencadeando. O objetivo dos ataques indiscriminados é gerar medo para que as pessoas não vão à escola ou à igreja.

Juan José Tamayo, o autor deste artigo, é teólogo e professor emérito honorário da Universidade Carlos III de Madri. Seu último livro é Cristianismo Radical (Trotta). Publicado originalmente no diário global EL PAÍS, em 17.04.25

Presidência de Trump em plena cruzada contra a democracia

Desde a posse, republicano vem minando o Estado de direito nos EUA. De cortes de verbas à difamação pública, qualquer meio parece válido contra universidades, imprensa, juízes e outras entidades não alinhadas.

"Uma piada que ensina ódio e burrice", Universidade de Harvard é um dos alvos do governo trumpistaFoto: Steven Senne/AP/picture alliance

Faz pouco mais de três meses que Donald Trump voltou a ocupar a Casa Branca. Neste meio temo, não só os Estados Unidos estão internamente conturbados e desestabilizados, mas os fundamentos da própria democracia foram também abalados.

O Instituto Brookings, de Washington, constatou "fissuras perigosas nos pilares da democracia americana", e em diversos níveis. A seguir, alguns exemplos.

Cruzada contra as universidades

"Harvard é uma piada, ensina ódio e burrice, e não deve mais receber subvenções", postou Trump nesta quarta-feira (16/04) em sua plataforma Truth Social, na mais recente escalada da confrontação entre o governo e as universidades de elite.

O estopim foi a acusação de que Harvard e outras instituições de ensino privadas supostamente não estariam se opondo com o rigor necessário aos protestos pró-palestinos no contexto da guerra na Faixa de Gaza, colocando assim em perigo os estudantes judeus.

Na realidade, o alvo é a tendência política geral das universidades de elite, que o regime trumpista considera excessivamente de esquerda. Para que elas sigam sendo financiadas com verbas federais, seria necessário avaliar o posicionamento político de docentes e discentes, e disponibilizar para o governo os dados de admissão de todos os estudantes, exige a Casa Branca.

Porém o presidente da Harvard, Alan Garber, se opõe a tais exigências. Afirmando que a instituição não está disposta a desistir nem de sua independência, nem de seus direitos garantidos pela Constituição, ele vê a liberdade científica em perigo: "Nenhum governo – independente de qual partido esteja no poder – deveria prescrever o que as universidades particulares podem ensinar, quem matricular ou contratar, e a quais campos de estudo e pesquisa pode se dedicar."

Jogo duplo com a Justiça

Estado de direito e respeito às deliberações judiciais são os pilares das democracias ocidentais. Porém justamente eles têm estado cada vez mais na berlinda nos EUA. Por um lado, a administração Trump já ignorou diversos veredictos e realizou deportações contra as ordens dos tribunais.

Entre os casos mais notórios está o de Kilmar Armando Abrego-Garcia, erroneamente deportado para o Centro de Confinamento do Terrorismo (Cecot), de alta segurança, em El Salvador. O Supremo Tribunal urgiu Washington a cuidar para que o salvadorenho de 29 anos seja rapidamente devolvido aos EUA, mas até agora nada aconteceu, critica a juíza federal Paula Xinis.

Juízes como James Boasberg, que se opõem ao governo e bloqueiam as deportações planejadas, são difamados publicamente como "radicais de esquerda lunáticos". Trump ameaça com processos de demoção do cargo e flerta com a substituição desses juristas por outros mais coniventes.

Ao mesmo tempo, o republicano nova-iorquino instrumentaliza o Departamento de Justiça contra seus críticos. Já em suas primeiras semanas como presidente, ele mandou despedir ou transferir, como medida punitiva, diversos funcionários da pasta envolvidos em inquéritos contra ele.

Em fevereiro, por exemplo, ordenou a demissão de todos os procuradores estaduais ainda da época de Joe Biden, enquanto colocava seus próprios advogados em cargos governamentais altos. Um deles, Todd Wallace Blanche, é o atual procurador-geral adjunto dos EUA. À frente do Departamento de Justiça, está a republicana Pam Bondi, trumpista incondicional. Além disso, concedeu indulto presidencial a quase todos os 1.600 condenados pela invasão do Capitólio de 6 de janeiro de 2021.

Primeiras restrições à liberdade de imprensa

Há muito o jornalismo crítico incomoda Trump. "Elas são corruptas e ilegais", vociferou, num discurso no Departamento de Justiça em meados de março, contra as grandes emissoras como a CNN e MSBC, que teriam noticiado "97,6%" contra ele e representariam "o braço político do Partido Democrata".

Ainda durante a campanha eleitoral, ameaçou cassar a licença dos veículos malquistos, já tendo cortado inteiramente o financiamento das emissoras internacionais Voz da América e Radio Liberty, as quais estão prestes a fechar.

Foi ainda retirado o credenciamento da agência de notícias AP para a sala de imprensa da Casa Branco, por ter se recusado a referir-se ao Golfo do México como "Golfo da América", segundo Trump ordenara. Mais uma vez, um tribunal declarou a medida ilegal, e mais uma vez a deliberação judicial foi ignorada: os repórteres da AP continuam tendo ingresso vedado.

"Limpeza política" do aparato estatal

Quando, em seu discurso no Congresso, Trump anunciou o fim dos "tempos de burocratas não eleitos no poder", os democratas presentes riram com escárnio. Afinal, é justamente Elon Musk, consultor presidencial nunca legitimado democraticamente, que – à frente do assim chamado Departamento de Eficiência Governamental (Doge) –, desde janeiro se propõe a agilizar as repartições públicas do país e cortar gastos desnecessários – por tabela alinhando todo o aparato estatal aos desígnios trumpistas.

"Eles não vão contra as repartições e departamentos que fazem coisas de que eles gostam, mas sim contra as instituições públicas com que não estão de acordo", criticava, já em fevereiro, o republicano Douglas Holtz-Eakin, ex-diretor do Escritório de Orçamento do Congresso.

Houve demissões em massa nas agências da receita federal, meio ambiente e saúde, entre outras. Tachados de "desperdício esquerdista woke de impostos", programas de diversidade e inclusão foram eliminados; exigências ambientais, retiradas; gastos sociais e com saúde, drasticamente reduzidos. A agência para o desenvolvimento Usaid e outras foram duramente penalizadas – contrariando a concepção legal vigente de que tais medidas precisam primeiro passar pelo Congresso.

Além disso, o Doge está sob suspeita de espionar funcionários do governo usando inteligência artificial (IA). Em pelo menos uma agência, a comunicação interna teria sido monitorada – sob o pretexto de poder filtrar e despedir quem faça observações desleais a respeito de Trump. Para os críticos, trata-se até de uma "limpeza política" do aparato estatal.

Thomas Latschan, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle (A voz da Alemanha) em 17.04.25

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Quem defende a democracia?

Em 2022 e 2023 o Brasil se mostrou mais maduro e equipado que os Estados Unidos em 2020 e 2021 para lidar com as turbas

Da esquerda para a direita: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump; o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e o dono do X, Elon Musk — Foto: Fotos de Jim Watson/AFP, Brenno Carvalho/O Globo e Kevin Lamarque/Pool/AFP

Estados Unidos e Brasil lidam neste momento com um dilema comum: como responder a diferentes graus de ameaça à democracia que aconteceram nos últimos anos e, por lá, se intensificam a cada dia no novo mandato de Donald Trump?

Enquanto aqui uma corrente política tenta convencer a sociedade de que o Judiciário exagera e persegue ao punir com rigor aquilo que a sua Corte mais alta, o Supremo Tribunal Federal, decidiu por ampla maioria ter sido uma tentativa de golpe de Estado, nos Estados Unidos as diferentes instituições começam a dar sinais de que perceberam quanto subestimaram a capacidade de destruição de todo o arcabouço democrático erigido nos últimos séculos por parte de uma oligarquia disposta a fazê-lo.

Vale a pena olhar para o que se passa em ritmo acelerado na maior potência do mundo para analisar com a frieza e a responsabilidade devidas as atuais tentativas de minimizar episódios como o 8 de Janeiro e a trama golpista urdida ainda na vigência do governo de Jair Bolsonaro.

Muito da sem-cerimônia com que Trump nomeou pessoas movidas por interesses particulares — muitas das quais notoriamente avessas às premissas básicas das áreas que foram designadas para comandar — e passou a investir simultaneamente contra os vários pilares sobre os quais a história democrática americana foi assentada se deve ao fato de que ele já tinha tentado fazer isso antes e não foi punido. Não só isso: foi ungido de volta, como se a maioria do eleitorado não só respaldasse ações impensáveis como a invasão ao Capitólio e a tentativa de não reconhecer o resultado das eleições de 2020, como pedisse mais.

Trump entendeu assim e está oferecendo muito mais. Se isso, por si só, já foi espantoso tratando-se de um país que sempre cantou em prosa e verso a solidez de sua democracia, a facilidade com que o presidente eleito novamente conseguiu amedrontar o Congresso, atemorizar as universidades a ponto de fazê-las sucumbir a censura e pressão financeira e desmontar agências, coalizões e departamentos, inclusive ligados à soberania nacional, faz qualquer filme distópico parecer fichinha.

Levou quase quatro meses para que personagens como Bernie Sanders, Alexandria Ocasio-Cortez ou instituições como Harvard começassem a erguer a voz, dizer “não” ao arbítrio e arregaçar as mangas. E precisou que os ditames de Trump começassem a bater no bolso daqueles que o reconduziram à Casa Branca para que a população começasse a ir às ruas e a dizer que não aceitaria mais avanços autoritários.

E também nesse aspecto há paralelos a ser construídos com o Brasil. O STF e, mais específica e sistematicamente, o ministro Alexandre de Moraes foram aqueles que pararam Bolsonaro quando se tentava passar a boiada na legislação de proteção ambiental, negar vacina e tratamento a populações específicas na pandemia, colocar em xeque o sistema eleitoral consagrado havia décadas e até impedir eleitores de votar, numa última tentativa desesperada de influir na vontade popular.

Nada disso, nem a invasão à sede dos três Poderes, foi brincadeira. Punir os responsáveis por essa sucessão de atos e decisões não é perseguir donas de casa indefesas, mas proteger a democracia, um bem tão frágil que basta dar poder a um autocrata para que venha a ser rapidamente reprimido.

Em 2022 e 2023 o Brasil se mostrou mais maduro e equipado que os Estados Unidos em 2020 e 2021 para lidar com as turbas, as eleitas e as alistadas, que tentaram conspurcar a ordem constitucional. Mas os ventos de lá sopram aqui quando tributários do trumpismo enxergam em sua volta ao poder a deixa para tocar o terror da pressão para que os Poderes sucumbam e passem a relativizar as tentativas de golpe em vários atos que vivenciamos.

Que a reação tardia e insuficiente da sociedade americana seja também um sacode nos que estão aos poucos sendo levados na conversa mole de que tudo que vimos ao vivo e em cores não passou de delírio do Xandão.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é jornalista. Comenta para o  jornal O Globo os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. Publicado em 16.04.25

Falta luz e o centro no fim do túnel

Bolsonaro é réu, inelegível e doente, Lula beira os 80 anos, cansado e impopular; 2026 é grande incógnita

Anova cirurgia de Jair Bolsonaro, de 12 horas, joga luzes sobre a grande incógnita da eleição presidencial de 2026, quando os dois principais líderes políticos do País, Bolsonaro, pela extrema direita, e Luiz Inácio Lula da Silva, pela esquerda, dão sinais de que terão dificuldades para se candidatar e, portanto, para manter a sólida polarização brasileira.

Bolsonaro, 70 anos, tem sofrido efeitos colaterais bastante graves da facada que quase o matou durante a campanha de 2018, que ele venceu, e não se pode dizer que tenha exatamente uma saúde de ferro.

Mas o pior é que ele, além de inelegível, enfrenta um julgamento difícil e carregado de provas como “chefe da organização criminosa”, segundo a PGR, que planejou e tentou dar um golpe de Estado no País. Seu grande risco é estar atrás das grades na eleição.

Lula, 79 anos, curou-se de um câncer de garganta, mas, já no terceiro mandato, levou um tombo no banheiro e teve de fazer mais de um procedimento para estancar um sangramento intracraniano. Terá 80 anos na posse do futuro presidente e 84 no fim do próximo mandato presidencial. Além disso, Lula enfrenta popularidade preocupante, um Congresso hostil, uma oposição muito articulada e uma montanha de críticas, principalmente na mídia e inclusive entre aliados.

Bolsonaro é réu, inelegível e doente, Lula beira os 80 anos, cansado e impopular; 2026 é grande incógnita

A diferença é que Bolsonaro está rouco de tanto dizer, e tentar convencer, que será candidato, mas, ao contrário de Lula, sofre uma competição cada vez maior no próprio bolsonarismo.

O nome mais em evidência é o de Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, mas ele é seguido pela ex-primeira-dama Michelle, governadores como Ratinho Jr. e Ronaldo Caiado e os tais “outsiders” que usam as pesquisas e abusam das redes sociais.

O problema de Lula é inverso: a falta de um sucessor, como já lhe cobraram dois ícones latino-americanos, Pepe Mujica, da esquerda, e o cacique Raoni, líder indígena. É como se a esquerda nacional só tivesse uma alternativa, ou Lula ou Lula. De uma pobreza de dar dó – dó e um certo pânico, que permeia os debates de Brasília, mas é tratado sob constrangimento. Quem mais tem, ou teria coragem, de botar o dedo nessa ferida para Lula, como Mujica e Raoni?

Se Lula e Bolsonaro são incertos e não sabidos e a polarização está em risco, era de se esperar que o centro se articulasse para entrar de cabeça nesse vácuo, mas quem, e o que, sobrou do centro no Brasil? O País é dividido entre 30% da esquerda, 30% do bolsonarismo e 30% que não é de nenhum dos dois lados. Está num limbo, sem ver a luz no fim do túnel. Um ano e meio antes das eleições, 2026 é uma enorme incógnita. 

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.04.25

A farsa do Orçamento ‘municipalista’

Parlamentares destinaram meio bilhão de reais em emendas individuais para fora de suas bases, o que contraria a tese de que os políticos usam as emendas para atender quem os elegeu

O Estadão mostrou recentemente que, nos últimos quatro anos, deputados e senadores destinaram mais de R$ 550 milhões em emendas individuais para Estados e municípios com os quais não tiveram qualquer vínculo eleitoral no período. A título de exemplo, é como se um deputado com base em Petrolina (PE) indicasse uma emenda individual para, supostamente, custear a construção de uma unidade básica de saúde em Diadema (SP).

Ilegal não é, mas obviamente isso contraria a tese, sustentada ardorosamente pelos parlamentares quando se trata de defender as emendas, de que só eles conhecem os problemas da região onde se elegeram e, por isso, são capazes de destinar os recursos necessários para resolvê-los. Esse deveria ser o espírito do “orçamento municipalista” de que falava o deputado Arthur Lira (PP-AL), nos tempos em que presidia a Câmara, sempre que era questionado sobre o orçamento secreto. Agora se vê que a generosidade “municipalista” dos nobres deputados não conhece fronteiras municipais ou estaduais, abrindo uma avenida para a malversação de recursos públicos, sobretudo no contexto do fortalecimento do Congresso em relação ao Poder Executivo na esteira do orçamento secreto.

Supondo que haja verdade onde só há cinismo, a “municipalização” do Orçamento em nada elimina, muito ao contrário, o imperioso respeito aos princípios constitucionais da eficiência e da transparência nos gastos públicos – totalmente ausente, por óbvio, na manipulação do orçamento secreto. Não por outra razão, o Supremo Tribunal Federal (STF) tenta há mais de dois anos pôr fim ao esquema, exigindo a fixação de critérios objetivos que garantam a rastreabilidade das emendas e a avaliação dos resultados das políticas públicas em tese promovidas com esses recursos.

Quando deputados e senadores contradizem com a maior caradura a mesma lógica territorial que juram defender, impõem camadas extras de desfaçatez, contradição e imoralidade ao processo aparentemente irrefreável de apropriação das verbas discricionárias pelo Congresso sem uma nesga de racionalidade e, o que é ainda pior, ao abrigo de quaisquer controles republicanos.

Alguém poderá argumentar que meio bilhão de reais é quase nada diante da magnitude do Orçamento da União – quase R$ 6 trilhões em 2025, dos quais R$ 50,4 bilhões são destinados às emendas parlamentares. Mas isso não tem a menor importância. Não se trata de números, mas do espírito republicano – ou melhor, da falta deste – no trato dos recursos dos contribuintes.

Independentemente do valor, é um desafio ao bom senso compreender por que um grupo de parlamentares do Tocantins, por exemplo, destinou R$ 18,2 milhões para São Paulo, Estado com o qual Tocantins nem faz fronteira. Tudo é ainda mais suspeito quando se considera que esses valores provieram exclusivamente de emendas individuais, rubrica orçamentária que, supostamente, presta-se ao atendimento de necessidades locais, identificáveis pela relação direta que os parlamentares têm com suas bases eleitorais.

Como se não bastasse a completa subversão não apenas do Orçamento da União como também do próprio regime presidencialista, o repasse interestadual das emendas individuais – proibido pelo STF na modalidade “emenda Pix” em agosto de 2024 – ainda produz o que o economista Marcos Mendes chamou de “desertos orçamentários”, municípios “esquecidos” pelos parlamentares por falta de interesse político em investir no bem-estar de suas populações.

O País todo perde com essa fragmentação orçamentária agravada pela falta de transparência no manejo dos recursos públicos. Até seria possível conceber a destinação interestadual de emendas individuais caso estivéssemos maduros o bastante para formular políticas públicas voltadas ao desenvolvimento nacional de forma orgânica e estruturada. Mas o Brasil está longe desse ideal, o que permite que interesses políticos individuais, nem sempre republicanos, ditem a aplicação de verbas federais sem qualquer critério técnico ou escrutínio público. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.04.25

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Há 251 anos, Canadá disse ‘non, merci’

Em 1774, canadenses franceses não aceitaram proposta de integração com a emergente união americana

Reli recentemente uma carta que o Congresso americano do século 18 enviou aos canadenses, convidando-os a se juntar à emergente união americana. Além das ameaças veladas sobre o que aconteceria se os canadenses não aceitassem a oferta, bem como algumas críticas sobre seu status inferior, a carta contém alguns elementos comoventes sobre o que os americanos defendiam e esperavam alcançar. Uso o pretérito porque a atual liderança política dos Estados Unidos parece não apoiar esses ideais.

A carta foi escrita em 1774, quando canadenses e americanos eram colegas colonos britânicos (sim, alguns americanos estão de olho no Canadá há muito tempo). O documento foi enviado à Província de Quebec por delegados do Primeiro Congresso Continental, incluindo os Pais Fundadores George Washington, John Adams e John Jay. Na mensagem, os autores da carta descreveram em termos lustrosos o país que buscavam construir e os valores que serviriam como sua fundação.

Eles pensavam – erroneamente, conforme sucedeu – que os canadenses daquela época, predominantemente francófonos e católicos, não tinham outra opção a não ser perceber que era do seu melhor interesse se juntar a um grupo de protestantes de língua inglesa em sua luta contra o governo britânico (a Declaração de Independência ainda estava distante).

Vale a pena ler a carta hoje porque os delegados expuseram elementos que, segundo consideravam, tornavam seu sistema de governo muito melhor do que o existente no Canadá governado pelos britânicos. Eles também listaram direitos que os franco-canadenses teriam enquanto “homens livres ingleses”. Não está claro se eles tinham ouvidos moucos ou pensavam honestamente que os franco-canadenses gostariam de considerar a si mesmos ingleses.

O primeiro desses direitos era que os americanos deveriam ter participação em seu governo porque eles escolheriam seus próprios representantes, aprovariam suas próprias leis e não seriam governados por “éditos de homens” que não controlassem.

Os autores sustentavam fortes sentimentos sobre esse ponto porque o defenderam de várias maneiras diferentes, citando inclusive os pensadores iluministas Beccaria e Montesquieu, e também o que eles qualificaram como histórias de muitas nações. “Todas essas histórias demonstram a verdade da simples posição de que viver sob a vontade de um só homem, ou grupo de homens, produz miséria para todos os homens.”

Em seguida, o grande direito que os colonos sentiam que os franco-canadenses não possuíam era de julgamento por júri, que em suas mentes garantia que os acusados de crimes receberiam seu dia de justiça no tribunal. Então eles abordaram a “liberdade da pessoa” – explicando que esse direito era protegido por uma providência chamada habeas corpus, que imediatamente faria com que qualquer restrição ilegal a indivíduos fosse removida e reparada.

A liberdade de imprensa foi o último grande direito que os autores da carta pensaram que os franco-canadenses admirariam. Eles disseram que a imprensa livre era importante porque promovia a verdade, a ciência, amoralidade e asar tesem geral, mas também porque a comunicação rápida entre os comuns fazia com que“autoridades opressoras se acanhem ou intimidem com modos mais honrosos e justos de conduzir os assuntos”.

SEPARAÇÃO DOS PODERES. Os autores se espelharam em Montesquieu para sustentar o que pensavam ser um argumento importante sobre a separação dos poderes. O sistema canadense, no qual o governador fazia as leis e selecionava o conselho legislativo e também os juízes, prejudicava e insultava os canadenses, escreveram eles.

Ainda citando Montesquieu – que tinha morrido por volta de 20 anos antes –, os autores disseram que o filósofo francês sem dúvida teria dito aos canadenses para aproveitar a oportunidade de ser “conquistados pela liberdade”.

Conhecido como um dos ‘pais fundadores’, Benjamin Franklin nunca foi presidente, mas um respeitado diplomata, e ajudou a redigir a Constituição.

Ele também teria dito que era do interesse deles “ter o restante da América do Norte como seus amigos inalteráveis” em vez de “inimigos inveterados”.

Uma última parte da carta que vale a pena mencionar é a seção sobre religião. Ela foi redigida com o objetivo de acalmar qualquer medo que os católicos francófonos pudessem ter sobre se unir aos protestantes, em grande parte anglófonos, nas colônias americanas, dado que as guerras religiosas duraram séculos. Se os franco-canadenses se juntassem às colônias, afirmaram, o resultado seria similar ao dos cantões suíços, onde os fiéis católicos e protestantes “viv i a m n a ma i s a l t a c o n - cordância e paz”. O que poderia ter tido mais impacto se os delegados não tivessem aprovado também uma carta para os habitantes do Reino Unido na qual o catolicismo foi descrito como “uma religião que inundou sua ilha em sangue e disseminou impiedade, intolerância, perseguições, assassinatos e rebeliões por todas as partes do mundo”. O clero franco-canadense garantiu que a carta fosse amplamente distribuída a seu rebanho.

À parte as manifestações sobre a paz religiosa, os delegados pareciam sinceros em relação ao que consideravam as muitas atrações do sistema de governo que estavam construindo, que de fato serviu bem aos EUA por muitos anos.

Mas hoje o presidente Donald Trump, seu gabinete e seu partido estão desmantelando as fundações estabelecidas há 250 anos. Há muitas razões pelas quais uma esmagadora maioria dos canadenses diz a pesquisadores que não quer ser americana. Por que, afinal, eles se juntariam a um país liderado por políticos que estão pisoteando seus valores fundadores?

Recuo Presidente Donald Trump e seu gabinete estão desmantelando as fundações estabelecidas há 250 anos

Fora dos planos O que foi descrito como guerra de libertação para livrar canadenses da tirania britânica terminou como desastre.

IMPRENSA LIVRE? Trump ataca e menospreza os meios de comunicação americanos há anos. Quando classificou o fluxo de imigrantes para os EUA como uma “invasão”, ele abriu o caminho para desmantelar o direito de habeas corpus. Julgamento justo por júri? Condenado por 34 crimes, Trump chamou o veredicto de “vergonhoso”. A ruína da separação entre os Poderes é patente na falta de resistência no Congresso. E os canadenses assistem com horror enquanto “um só homem, ou um grupo de homens” – Trump e seus comparsas – abre seu caminho brutalmente pelas instituições e costumes federais.

Quando os canadenses franceses não responderam ao convite de 1774, o Congresso Continental autorizou uma invasão no ano seguinte. Cerca de 1,7 mil soldados do recém-formado Exército Continental atravessaram o Lago Champlain, tomando facilmente Montreal e TroisRivières, ao mesmo tempo que quase o mesmo contingente atravessou por terra a região que constitui hoje o norte do Maine. Os soldados se encontraram do lado de fora dos muros da Cidade de Quebec, o último bastião britânico no Canadá.

O que os americanos retrataram como uma guerra de libertação para livrar os canadenses da tirania britânica terminou com um desastre humilhante. Uma inteligência falha levou os americanos a acreditar que os franco-canadenses dariam boas-vindas à invasão.

Alguns deram. Mas a maioria ficou de braços cruzados e observou os soldados americanos serem incapazes de tomar a Cidade de Quebec, em dezembro, e posteriormente fugirem para seu país quando reforços britânicos chegaram de navio, em maio.

Nem mesmo a intervenção de Benjamin Franklin, que viajou para Montreal em abril de 1776 para interceder junto aos franco-canadenses, ajudou. Conforme Jean Chretien, que ocupou o cargo de primeiro-ministro do Canadá entre 1993 e 2003, disse a uma multidão em Ottawa, em 9 de março, Franklin ouviu um educado “Non, merci”.

Os canadenses não quiseram se tornar a 14.ª colônia em 1776 e – talvez por razões ainda melhores – não querem se tornar o 51.º Estado agora. 

Madelaine Drohan escreveu este artigo para o Washington Post, que o publicou originalmente. O Estado de S. Paulo o reproduziu em sua edição de hoje, 07.04.25, com tradução de Guilherme Russo. 

‘Vemos uma luta por poder de 2 populistas sem projeto’

Para cientista político, Bolívar Lamounier, o sistema político atual do País está ‘muitíssimo pior’ do que nos anos 1990


BOLÍVAR LAMOUNIER Cientista político (Alex Silva / Estadão)

Doutor em Ciência Política pela Universidade da Califórnia (EUA), Bolívar Lamounier fez parte da comissão de estudos que elaborou o anteprojeto da Constituição de 1988. De lá para cá, o texto constitucional recebeu mais de 130 emendas, e as engrenagens institucionais, avalia ele, foram desfiguradas, resultando em um sistema político “muitíssimo pior” do que o existente nos anos de 1990.

Para Lamounier, umadas razões para esse desmantelamento é o fato de a administração pública, em especial o Poder Judiciário, ter sido corroída pelo corporativismo. Questionado sobre a polarização que divide hoje o País entre apoiadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), ele diz que “o que vemos hoje é uma luta pelo poder entre dois ‘chefes’ populistas desprovidos de projeto para o País”.

A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão:

O Brasil sempre teve divisões políticas. O que torna a polarização atual diferente das anteriores? 

Tivemos dissensões de vários tipos. Elas ocorreram até sob o regime militar (1964-1985). Na Primeira República (18911930) a mais claramente ideológica foi a guerra civil ocorrida no Rio Grande do Sul em 1893-1895, contrapondo “maragatos” e “gaviões”. Em 1930, Getúlio Vargas aderiu a uma “revolução” à qual na verdade se opunha, ao perceber que seria um caminho curto para tomar o poder federal e instaurar um governo autoritário. 

A década de 1930 foi também o período em que surgiram duas organizações de caráter francamente totalitário, o comunismo de Carlos Prestes e o integralismo de Plínio Salgado. Um queria eliminar o outro e ambos o governo de Getúlio Vargas. 

A dissensão mais grave foi a dos anos 1950, na qual se fundiram três elementos: 1) o virulento rancor contra o ex-ditador Getúlio, personificado pelo jornalista Carlos Lacerda; 2) o surgimento de complicado amálgama geralmente designado como esquerdismo, formando um amplo arco contra o qual o lacerdismo não teria chances no terreno eleitoral, o que agravava ainda mais a atmosfera de ódio; 3) a divisão de quase todo o mundo, Brasil inclusive, pela Guerra Fria. 

Podemos agora saltar para a radicalização que vem lavrando no Brasil desde as eleições de 2018 e 2022. O que vemos hoje é uma luta pelo poder entre dois “chefes” populistas desprovidos de projeto para o País, colimando o poder pelo poder a fim de distribuir benesses a seus acólitos. A demonstração desta proposição é muito simples: Lula não liga a mínima para o partido que fundou, o PT. Este é que não se desgruda de Lula, porque sem a popularidade dele deixaria simplesmente de existir. 

Bolsonaro, sem um mínimo de adestramento político, mantém-se na tona mercê de ameaças golpistas. 

Em comum, o que eles têm é uma inegável capacidade de captar a “condutibilidade atmosférica” da sociedade para a corrupção que campeia por toda parte, mais ainda na máquina do Estado; o rancor continuamente realimentado pelas desigualdades sociais; e, não menos importante, a virulência do antagonismo que cultivaram um contra o outro ao longo das últimas duas ou três décadas.

De que forma a polarização afeta o funcionamento das instituições democráticas? 

O componente principal da atual polarização é o populismo, e, na América Latina, todo populismo é, por definição, hostil às instituições. O fim da polarização se dá no momento em que as lideranças mais importantes se põem de acordo para evitar conflitos fratricidas e encaminhar a luta política para o leito institucional, que não se resume a instituições formais – Constituições –, mas implica com igual importância o respeito pelo adversário eleitoral.

Há exemplos de países que superaram ciclos de polarização intensa sem rupturas institucionais? O Brasil pode seguir algum modelo? 

“Polarização intensa” é a antípoda de “instituição”. Onde existe a primeira não existe a segunda. Os exemplos que podemos invocar são melhores que “evitar rupturas”, pois consistiram em “construir instituições”: Chile e África do Sul, principalmente.

O que pode ser feito para reconstruir espaços de consenso e diálogo no País? 

No curto prazo, não vejo como isso possa ser feito, dada a forte presença de quatro graves impedimentos: 1) uma elite que detém metade da riqueza do País e não demonstra o menor interesse em compartir as responsabilidades da governabilidade; 2) uma classe média demasiado exígua e despolitizada, à qual falta ânimo até para conhecer seus próprios interesses. Contanto que tenha

“Com o PIB crescendo 2% ao ano e lideranças da estirpe de Lula e Bolsonaro, nós iremos primeiro – dentro de 15 ou 20 anos – para uma grande crise; antes disso, não vejo como visualizar uma tendência consistente de mudança estrutural”.

“O fim da polarização se dá no momento em que as lideranças mais importantes se põem de acordo para encaminhar a luta política para o leito institucional”, um emprego, ela apenas se preocupa em bater o ponto e correr para casa a tempo de assistir à novela; 3) a economia estagnada, aprisionada na “armadilha do baixo crescimento”; em tal circunstância, não há como instaurar um jogo de soma variável – aquele em que todos têm chances de ganhar –, somente jogos de soma zero – aqueles em que, se um ganha, outro perde –; 4) ao contrário de outros momentos em nosso passado histórico, atualmente não temos sequer indivíduos de alto nível intelectual, lúcidos e dispostos a compor um diagnóstico realista dos problemas a superar, e das respectivas alternativas, isso tanto no terreno econômico como no político e no cultural.

O sistema político atual é mais ou menos funcional do que nos anos 1990? 

Muitíssimo pior por quatro razões, pelo menos: 1) as engrenagens institucionais – Constituição, leis, estrutura de partidos etc – desmilinguiram, simplesmente; os três Poderes comportam-se ao contrário do que a Constituição prescreve – harmônicos e independentes entre si –; 2) a corrupção e o crime solaparam o pouco de ordem que tivemos oportunidade de manter após o fim do regime militar; 3) a administração pública e, em particular, o Judiciário estão corroídos até a medula pelo corporativismo, interesses extremamente estreitos, contra os quais os partidos políticos, que deveriam transcendê-los, são impotentes em relação a eles; esses interesses, como no caso dos supersalários, não são chamados pelo nome – corrupção – e sim de “penduricalhos”, porque os próprios interessados se encarregaram de insculpi-los nas leis que eles mesmos fazem; 4) a própria estrutura do Estado tornou-se inviável: sem uma reforma abrangente, com privatização e abertura da economia ao exterior, dificilmente retomaremos uma trajetória sustentável de crescimento.

O presidencialismo de coalizão já foi considerado um fator de estabilidade, mas hoje recebe críticas. Esse modelo ainda é viável ou precisa de uma reforma profunda? 

Num país que combina o sistema presidencial de governo com dezenas de partidos – o maior raramente consegue eleger 20% dos assentos na Câmara –, de duas, uma: tal sistema será “de coalizão”, não por mérito, mas por definição, ou será de minoria – o presidente e seus acólitos terão que comprar apoio, seja em moeda sonante ou dando em troca cargos nos ministérios e empresas estatais. E nada acontece, claro, porque não há como constituir uma força no Judiciário ou fora dele capaz de desfazer esse quadro.

Acredita que o Brasil manterá o atual modelo político nos próximos anos ou há tendência de uma mudança estrutural?

Com o PIB crescendo 2% ao ano e lideranças da estirpe de Lula e Bolsonaro, nós iremos primeiro – dentro de 15 ou 20 anos – para uma grande crise; antes disso, não vejo como visualizar uma tendência consistente de mudança estrutural.

A política brasileira pode superar o embate entre Lula e Bolsonaro ou essa disputa deve predominar? 

Teremos eleições presidenciais em 2026. Uma hipótese seria um milagre: num “estalo de Vieira”, os dois decidem gozar suas merecidas aposentadorias, de preferência no exterior. Noutra, eles insistem no enfrentamento.

Qual reforma seria mais urgente para fortalecer a democracia no Brasil? 

Limito-me a citar uma passagem do mestre Maurice Duverger, escrita anos antes de Donald Trump envenenar a atmosfera política dos Estados Unidos: “O sistema presidencial de governo só funciona nos Estados Unidos; noutros países ele degenera em presidencialismo, ou seja, em ditadura”. O que me cabe, a título de conclusão, é, pois, extrair a conclusão: um sistema parlamentarista – de verdade, não a contrafação francesa – e um sistema eleitoral distrital – puro ou misto, a ver. 

Publicada originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 07.04.24

quinta-feira, 20 de março de 2025

Cem anos dessa praga

‘Mein Kampf’ não é página virada. O Terceiro Reich foi projetado por Hitler para durar mil anos. Como doutrina, já durou cem. E vem mais por aí

Em julho de 1925, o livro Mein Kampf (Minha luta), de Adolf Hitler, foi lançado na Alemanha. No ano seguinte, 1926, chegou aos leitores um segundo volume, este mais dedicado ao tema da organização partidária. A partir daí, nas edições posteriores, os dois volumes foram reunidos num só e Mein Kampf fez sua carreira editorial dividido em duas partes: a primeira, com 12 capítulos, e a segunda, com 15. Nesse compêndio de horrores, o autor destila ódio, megalomania, ressentimento, antissemitismo, nacionalismo, xenofobia e apologia da violência para fixar o ideário nazista. Com êxito.

Faz um século – e não passou. A coisa nunca mais arredou pé. Em 30 de janeiro de 1933, Hitler foi nomeado chanceler pelo presidente Paul von Hindenburg. Ato contínuo, transformou seu país numa ditadura totalitária. Logo que chegou ao poder, foi saudado por passeatas noturnas em que jovens fardados carregavam tochas em formação militar. Eram as Fackelzug. No documentário O Fascismo de Todos os Dias, de 1965, dirigido pelo russo Mikhail Romm, podemos ver esses rios ígneos apavorantes.

O espetáculo piromaníaco não se acomodou nas tochas notívagas. Logo evoluiu para rituais macabros, dentro das universidades, em que livros amontoados no pátio ardiam em fogueiras sacrificiais. Os nazistas cremaram páginas de Tolstói, Maiakovski, Thomas Mann, Anatole France, Jack London e outros gênios. Mais adiante, não satisfeitos com incinerar papel, passaram a queimar pessoas. Holocausto.

Na abertura do trecho em que as chamas devoram a literatura, o cineasta soviético projeta na tela uma frase atribuída ao próprio Hitler: “Qualquer cabo pode ser um professor, mas não é qualquer professor que pode ser um cabo”. O totalitarismo alemão acreditava que havia mais virtudes num quepe de milico do que numa beca de docente. O pior é que, na atualidade, alguns ainda acreditam nisso. Há relatos de que, num país remoto, que não fala alemão, as autoridades tomaram para si a tarefa de implantar as assim chamadas “escolas cívico-militares”. Na visão desses governantes, o coturno se sai melhor do que o quadro negro na missão de educar as crianças. O eleitorado aplaude.

O nazismo original sumiu de Berlim em 1945, derrotado pelas tropas aliadas. Em 30 de abril daquele ano, Hitler se matou. Sua mulher, Eva Braun, foi junto. O ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, também cometeu suicídio ao lado da esposa, depois de assassinar os seis filhos com cianeto. O velho Estado maior veio abaixo, mas as teses hediondas do Mein Kampf seguem atormentando o mundo.

A palavra “propaganda” aparece 173 vezes nos 27 capítulos (quem primeiro me chamou a atenção para isso foi o professor Edgard Rebouças, da Universidade Federal do Espírito Santo). Os chefes do Terceiro Reich arrancaram a investigação da verdade do campo da Filosofia, do método científico, da reportagem jornalística e dos estudos conduzidos por historiadores. Tudo isso deixou de ser fonte confiável. A Justiça e seus peritos também perderam o posto de verificadores da realidade. O nazismo monopolizou essa função, como num monoteísmo profano – aliás, em seus diários, Goebbels anotou seu sonho de fazer do partido a grande religião do povo. Quase conseguiu. Interditando a Filosofia, encabrestando a ciência, dizimando a imprensa, subjugando a Justiça e esvaziando a espiritualidade de cada um, o império da suástica fez da propaganda o único critério da verdade.

Em que se deve acreditar? Ora, naquilo que a propaganda repete mil vezes. O Mein Kampf determina que ela deve “estabelecer o seu nível espiritual (cultural) de acordo com a capacidade de compreensão do mais ignorante dentre aqueles a quem ela pretende se dirigir”. Como se vê, a história de “nivelar por baixo” começou aí.

Hitler usou com malignidade inédita os meios de comunicação da indústria cultural. Manipulou até a morte as multidões sedentas de dominação. Hoje, podemos ver as mesmas técnicas no modo como a extrema direita instrumentaliza as plataformas sociais. As mídias digitais são o prolongamento da escola nazista: rompem com o registro dos fatos e promovem a substituição da política pelo fanatismo. O negacionismo contra as vacinas, contra o aquecimento global, contra as evidências históricas e contra a esfericidade do nosso planeta não é uma exceção, mas a regra.

Segundo o Führer, “a grande massa do povo (é) sempre propensa a extremos”. Antes de muitos pesquisadores, ele notou que o público esclarecido pode até apreciar o equilíbrio do centro, mas a turba enfurecida prefere abertamente a falta de modos. Seus seguidores, declarados ou não, continuam a operar exatamente assim. Vide a aliança de Donald Trump e Elon Musk. Vide o triângulo rosa, com o qual os nazistas estigmatizavam os homossexuais, que o presidente dos Estados Unidos usou agora numa postagem. Vide como ele ataca as universidades e deporta inocentes.

Não, o Mein Kampf não é página virada. O Terceiro Reich foi projetado por Adolf Hitler para durar mil anos. Como doutrina, já durou cem. E vem mais por aí.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista e Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.03.25

Projeto que libera R$ 4,6 bi em emendas e beneficia Alcolumbre é aprovado no Senado aceleradamente

Texto foi incluído na pauta de surpresa, sem sequer constar no sistema, e agora vai à sanção de Lula

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre - Pedro Ladeira - 11.fev.25/Folhapress

O Congresso Nacional aprovou nesta quarta-feira (19) um projeto, articulado pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), que destrava cerca de R$ 4,6 bilhões em emendas parlamentares das quais ele próprio é o principal beneficiado.

A tramitação toda do texto durou menos de dois meses e aconteceu de forma acelerada, com amplo apoio da base do governo Lula (PT).

A votação desta quarta aconteceu fora da previsão da pauta do dia, sem que o texto constasse no sistema do Senado e de forma acelerada. Agora ele vai à sanção da Presidência da República.

A proposta é uma das atuais investidas do Congresso para manter as emendas parlamentares, que são contestadas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por falta de transparência e critério para aplicação dos recursos.

Como mostrou a Folha, os parlamentares também aprovaram recentemente um outro texto, que deveria dar mais controle ao rito das emendas, mas na prática cria mecanismos para manter escondido o nome de quem faz a indicação da destinação da verba.

O projeto que revive emendas canceladas foi apresentado em 11 de fevereiro pelo líder do governo no Senado, Randolfe Rodrigues (PT-AP), que é do mesmo estado de Alcolumbre.

Ele foi aprovado no Senado oito dias depois. Quando chegou à Câmara dos Deputados, o líder do governo na Casa, José Guimarães (PT-CE) apresentou um pedido para que ele tramitasse em regime de urgência —indo direto ao plenário, sem passar por comissões.

O requerimento foi acatado, independente da promessa do atual presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), de não repetir a gestão de Arthur Lira (PP-AL), quando a tramitação urgente se tornou quase uma regra na Casa.

O texto ficou sob relatoria do deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), coopartidário de Alcolumbre e conterrâneo de Guimarães.

Forte fez algumas alterações no projeto, que foi aprovado na Câmara na última terça-feira (18).

Como sofreu mudanças, ele precisou passar novamente pelo Senado, onde surgiu na sessão plenária já desta quarta, de forma extrapauta —instrumento que permite ao presidente encaminhar textos que não estavam na previsão inicial do dia.

No momento em que foi anunciado, o projeto nem sequer constava no portal público do Senado, segundo consulta feita pela Folha.

Seu relator foi designado oralmente por Eduardo Braga (MDB-AM), que substituía Alcolumbre na condução da sessão naquele momento.

A votação demorou mais que o esperado porque, àquela altura, a presença no plenário era baixa e foi necessário que senadores pedissem aos seus colegas que comparecessem para que houvesse número mínimo para deliberação da matéria.

Após 20 minutos, o projeto foi aprovado. Votaram apenas 69 dos 81 senadores, 66 deles favoráveis à proposta.

O texto devolve ao Orçamento bilhões de restos a pagar que haviam sido cancelados.

Esses valores são investimentos previstos para um determinado ano, mas que acabaram não sendo pagos naquele exercício e, por isso, passam para o seguinte classificados como restos.

Pela lei atual, após dois anos, se essas quantias seguirem empacadas, eles são canceladas e ficam à disposição da União.

O projeto articulado por Alcolumbre, porém, impede o cancelamento dos restos de 2020, 2021 e 2022 e que haviam caído.

Um levantamento da Consultoria da Câmara revelado pelo UOL mostra que deste montante (R$ 4,6 bilhões), o estado de Alcolumbre, o Amapá, é o que mais tem a ganhar: R$ 515 milhões.

Desses, ao menos R$ 130 milhões eram do próprio presidente do Senado.

Dos R$ 4,6 bilhões, o projeto retoma R$ 2,2 bi de emendas de relator —mecanismo amplamente usado pelo ex-presidente da Câmara Arthur Lira e que foi derrubado pelo Supremo em 2022.

Outros R$ 2,4 bilhões são de emendas de comissão —modalidade que vem substituindo a de relator por também permitir manter anônimo o nome que indicou a verba.

É dentro desta modalidade que a resolução aprovada pelo Congresso recentemente cria a figura chamada de "emenda dos líderes", na qual os parlamentares conseguem se manter escondidos atrás da assinatura das lideranças partidárias.

João Gabriel, repórter, de Brasília - DF para a Folha de S. Paulo, originalmente, em 20.03.25.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Cláudio Lembo, o liberal que incomodou a ‘elite branca’

 Ex-governador de São Paulo surpreendeu seus pares ao criticar a classe dominante

Ex-governador de São Paulo, Claudio Lembo — Foto: Claudio Belli/Valo

Cláudio Lembo havia acabado de assumir o governo de São Paulo quando o PCC deixou o estado de joelhos. A onda de atentados matou mais de 50 agentes de segurança. Num revide sangrento, homens encapuzados executaram mais de 500 civis.

A explosão de violência fez as atenções se voltarem para o ex-vice de Geraldo Alckmin, que havia deixado o cargo para concorrer ao Planalto. Com longa trajetória em partidos de direita, Lembo surpreendeu ao criticar o “cinismo nacional” e cobrar a responsabilidade das elites.

“Temos uma burguesia muito má, uma minoria branca muito perversa”, disse, em entrevista à Folha de S.Paulo. “A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para poder sustentar a miséria social brasileira”, prosseguiu.

O novo governador afirmou que o Brasil ainda era um país dividido entre casa grande e senzala. “Quando os escravos foram libertados, quem recebeu indenização foi o senhor, e não os libertos, como aconteceu nos EUA. Então é um país cínico. É disso que nós temos que ter consciência”, advertiu.

As declarações deixaram em polvorosa seus colegas de PFL. Exasperado, o senador Antonio Carlos Magalhães disse que Lembo tinha “cara de burro”. O ofendido não se intimidou. “Isso é típico de senhor do engenho. Tudo o que eu disse sobre a burguesia branca ficou caracterizado na frase dele”, devolveu.

Lembo já tinha uma longa folha de serviços prestados ao conservadorismo. Havia passado pela Arena, sigla de sustentação da ditadura, e colaborado com governos de Jânio Quadros e Paulo Maluf.

Não simpatizava com as bandeiras da esquerda, mas nunca abriu mão de sua independência. Em 1979, quase foi expulso do partido por se encontrar com Leonel Brizola. Arquirrival dos militares, o líder trabalhista voltava do exílio para retomar a carreira política no Brasil.

A breve gestão de Lembo no Palácio dos Bandeirantes ficou marcada pelos massacres de maio de 2006. Nos anos seguintes, sua língua ferina continuaria a incomodar os aliados.

Quando João Doria reuniu artistas e socialites no movimento “Cansei”, de oposição ao governo Lula, Lembo disse que aquilo era coisa da “elite branca”. “Deve ter começado em Campos do Jordão”, debochou. Quando a garotada da periferia começou a promover “rolezinhos” nos shoppings paulistas, ele ironizou as senhoras que exigiam providências da PM. “Isso não é problema de polícia. Os jovens não estão fazendo nada de errado”, afirmou.

No fim de 2015, procurei o ex-governador para saber o que ele pensava dos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff. Mais uma vez, ele foi na contramão de sua turma.

“A elite branca está furiosa”, ironizou, referindo-se aos panelaços contra o governo petista. “A lei exige um crime de responsabilidade, o que não vejo. Ninguém diz que a presidente enriqueceu. Sua honra está preservada”, sentenciou.

Lembo estava filiado ao PSD de Gilberto Kassab, mas não exercia mais funções públicas. Autor de livros como “O testemunho de um liberal” (1979) e “A opção liberal” (1985), continuava a se descrever como um conservador.

Quando perguntei o que ele dizia a seus pares que buscavam derrubar o governo, ele desconversou: “Estou velho. Não querem mais saber de mim”.

O ex-governador ainda viveria mais uma década. Morreu na madrugada desta quarta-feira, aos 90 anos.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo online, em 19.03.25.

A extrema direita e a arte de distrair

 Novela da saída de Eduardo Bolsonaro do país divide atenção com projeto que impacta milhões de pessoas, mas terá efeito prático zero no destino judicial do patriarca do clã

Morador de Copacabana faz cartaz 'Sem Anistia' para ato com Bolsonaro — Foto: Alexandre Cassiano

Não se pode negar à extrema direita, aqui e alhures, o domínio da arte de plantar distrações no debate público e, com isso, mobilizar as atenções e as conversas. O Brasil, de novo, foi laboratório para esse tipo de experimento nesta terça-feira, quando um projeto complexo, que diz respeito, direta ou indiretamente, a milhões de contribuintes, dividiu espaço no noticiário, nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp com um factoide da família Bolsonaro: o filho Zero Três de Jair está de partida para mais uma temporada morando nos Estados Unidos, desta vez, aparentemente, não para fritar hambúrguer.

Provavelmente, a coincidência dos anúncios do projeto de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, que reuniu Lula, ministros e os comandantes das Casas do Congresso, e de que Eduardo Bolsonaro se licenciará indefinidamente do mandato de deputado federal para ficar nos Estados Unidos e, de lá, ficar atirando no Judiciário brasileiro não foi estrategicamente pensada.

Mas foi didática para ver quanto somos facilmente tragados para uma agenda que só interessa à família, cada vez mais pressionada pela iminência de que os atos golpistas praticados com comando e anuência do ex-presidente sejam julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

É como as diabruras diárias de Donald Trump. Muitas dificilmente sairão do gogó ou do papel, sofrerão recuos obrigatoriamente e não passam de provocação, mas geram reação de governos, corporações, mercado financeiro, imprensa americana, do resto do mundo e por aí afora, num efeito dominó perverso que desvia o foco daquilo que, no projeto de desmonte que ele empreende, realmente tem impacto institucional, legal e econômico.

Há muitas conjecturas a respeito da intenção da família com a deserção de Eduardo, da preparação de terreno para uma fuga do pai a um temor mais comezinho de ficar sem o passaporte, possibilidade que se dissipou já na própria terça-feira, quando o procurador-geral da República, Paulo Gonet, negou pedido do PT nesse sentido. O certo é o propósito do bolsonarismo de vitimizar Jair e companhia. Como as investidas têm surtido efeito decrescente, por vezes pífio, vide a manifestação esvaziada do último domingo, resolveram apelar para um showzinho com locação internacional.

O mais provável é que Eduardo produza uma série de vídeos em que, à distância, se sinta mais corajoso para adjetivar Alexandre de Moraes, algo que aqui, no comando da Comissão de Relações Exteriores, o deixaria sempre receoso de ser incluído nas investigações de que escapou de raspão, até agora. Promoverá encontros com lideranças mais estridentes da direita americana, usará bonés com dizeres para animar a torcida e tentará agitar alguma moção contra ministros do STF.

Mas é preciso tirar a espuma da distração estridente e perguntar: e daí? Para efeito de um eventual pedido de asilo de Jair ou de uma fuga cinematográfica, o alarde prévio do filho só atrapalha e deixa quem precisa ficar de olho mais alerta. Se a ideia é constranger ou afetar diretamente Moraes ou os demais ministros da mais alta Corte do Brasil, o deputado e seus aliados demonstram não conhecer nada de princípios elementares de direito internacional, como a autodeterminação das nações soberanas. Trocando em miúdos: a Constituição americana não tem validade em solo brasileiro, nem o Congresso ou a Suprema Corte dos Estados Unidos têm jurisdição sobre Brasília.

O julgamento de Bolsonaro e dos outros 33 denunciados por tentativa de golpe de Estado seguirá o cronograma bastante acelerado que já vem sendo ditado — não por acaso, ontem mesmo foi marcada a análise da denúncia de outro lote, numa demonstração de que o show pirotécnico da família terá efeito prático zero sobre o destino judicial do patriarca e dos demais. Muito barulho por nada.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 19.03.25

Por que não acredito em uma única palavra do que Trump e Putin dizem sobre a Ucrânia

Eu simplesmente tenho muitas perguntas sem resposta

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cumprimenta o presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante uma reunião bilateral em Osaka, Japão  (Foto: Susan Walsh/AP)

Desde que o presidente Trump retornou ao cargo e começou a tentar fazer jus à sua vanglória de acabar com a guerra na Ucrânia em poucos dias, graças ao seu relacionamento com o presidente russo Vladimir Putin, tenho tido a preocupação de que algo tenha se perdido na tradução do romance entre Vlad e Don.

Quando o intérprete traduz a Trump que Putin diz estar pronto para fazer qualquer coisa pela “paz” na Ucrânia, tenho quase certeza de que Putin realmente disse foi estar pronto para fazer qualquer coisa por um “pedaço” da Ucrânia.

Você conhece esses homófonos - eles podem realmente causar muitos problemas se você não estiver ouvindo com atenção. Ou se estiver ouvindo apenas o que quer ouvir.

O The New York Times informou que, em seu telefonema de duas horas e meia com Trump na terça-feira, Putin concordou em interromper os ataques à infraestrutura de energia ucraniana, de acordo com o Kremlin, mas Putin deixou claro não concordar com o cessar-fogo geral de 30 dias que os Estados Unidos e a Ucrânia haviam acordado e proposto à Rússia.

O Kremlin também disse que a “condição fundamental” de Putin para encerrar o conflito era uma “cessação completa” da assistência militar e de inteligência estrangeira a Kiev - em outras palavras, destituir a Ucrânia de qualquer capacidade de resistir a uma tomada total da Ucrânia pela Rússia. Mais uma prova, se alguém ainda precisava dela, de que Putin não está, como Trump tolamente acreditava, buscando a paz com a Ucrânia; ele está buscando a posse da Ucrânia.

Dito isso, perdoe-me, mas não confio em uma única palavra que Trump e Putin digam sobre suas conversas particulares sobre a Ucrânia - incluindo as palavras “e” e “o”, como disse a escritora Mary McCarthy sobre a veracidade de sua rival Lillian Hellman. Porque alguma coisa não está cheirando bem desde o início com toda essa negociação entre Trump e Putin sobre a Ucrânia.

Eu simplesmente tenho muitas perguntas sem resposta. Vou contar as respostas.

Para começar, o Secretário de Estado Henry Kissinger levou mais de um mês de intensa diplomacia de vaivém para produzir os acordos de retirada entre Israel e Egito e Israel e Síria que encerraram a guerra de 1973 - e todas essas partes queriam um acordo. Você está me dizendo que duas reuniões entre Steve Witkoff, amigo de Trump, e Putin em Moscou e alguns telefonemas entre Putin e Trump são suficientes para acabar com a invasão russa na Ucrânia em termos razoáveis para Kiev?

Trump não conseguiria vender um hotel tão rapidamente - a menos que o estivesse dando de presente.

Espere, espere - a menos que ele estivesse dando de presente. ...

Presente

Senhor, espero não ser isso que estamos vendo aqui. Mensagem para o presidente Trump e o vice-presidente JD Vance: Se vocês entregarem a Ucrânia a Putin, levarão para sempre a marca de Caim em suas testas como traidores de um valor fundamental que tem animado a política externa dos EUA há 250 anos - a defesa da liberdade contra a tirania.

Nossa nação nunca vendeu tão descaradamente um país que luta para ser livre, e nós e nossos aliados apoiamos há três anos. Se Trump e Vance fizerem isso, a marca de Caim nunca será apagada. Eles entrarão para a história como “Neville Trump” e “Benedict Vance”. Da mesma forma, o secretário de Estado Marco Rubio, o secretário de Defesa Pete Hegseth e o conselheiro de segurança nacional Michael Waltz.

Por que mais estou desconfiado? Porque Trump continua dizendo que tudo o que ele quer é acabar com “a matança” na Ucrânia. Eu concordo com isso. Mas a maneira mais fácil e rápida de acabar com a matança seria o lado que começou a matança, o lado cujo exército invadiu a Ucrânia por motivos totalmente inventados, sair da Ucrânia. Presto - a matança acaba.

Putin precisa contar com a ajuda de Trump somente se quiser algo mais do que o fim da matança. Entendo que a Ucrânia terá de ceder algo a Putin. A questão é quanto. Também entendo isso: a única maneira de Putin obter a fatia extragrande de terra e as restrições pós-guerra que deseja impor à Ucrânia - sem mais combates - é recrutando Trump para obtê-las para ele.

Por que mais estou desconfiado? Porque Trump deixou todos os nossos aliados europeus de lado quando negociou com Putin. Desculpe-me, mas nossos aliados europeus contribuíram com bilhões de dólares em equipamentos militares, ajuda econômica e assistência a refugiados para a Ucrânia - mais do que os Estados Unidos, sobre os quais Trump mente - e deixaram claro estar prontos para fazer ainda mais para impedir o domínio de Putin sobre a Ucrânia para vir atrás deles em seguida.

Então, por que Trump entraria em negociações com Putin e não levaria nossa melhor vantagem - nossos aliados - com ele? E por que ele visivelmente desligou e voltou a ligar a ajuda militar e de inteligência dos EUA à Ucrânia - depois de chamar vergonhosamente o presidente ucraniano Volodimir Zelenski de “ditador”?

Desculpe, mas isso também não me cheira bem. Kissinger e o Secretário de Estado James Baker eram negociadores particularmente eficazes porque eles sabiam como alavancar nossos aliados para ampliar o poder dos EUA. Trump, de forma tola, dá as costas de sua mão para nossos aliados, enquanto estende a mão aberta para Putin. É assim que se desiste da alavancagem.

Alavancar aliados - o maior trunfo que temos e que Putin não tem - “é a essência da estratégia inteligente”, disse-me Dennis Ross, conselheiro de longa data para o Oriente Médio dos presidentes dos EUA.

Influência

“A chave para uma boa política é saber como usar o poder de influência que você tem - como combinar seus meios com seus objetivos. A ironia é que Trump acredita em influência, mas não usou todos os meios de que dispõe” na Ucrânia, disse Ross, autor do oportuno e recém-publicado “Statecraft 2.0: What America Needs to Lead in a Multipolar World” (O que os Estados Unidos precisam para liderar em um mundo multipolar).

Também me soa errado Trump parecer não ter a menor ideia do motivo pelo qual Putin é tão gentil com ele. Como um analista de política externa russo em Moscou me disse recentemente: “Trump não entende que Putin está apenas manipulando-o para atingir o seu principal objetivo: diminuir a posição internacional dos EUA, destruir sua rede de alianças de segurança - principalmente na Europa - e desestabilizar os EUA internamente, tornando assim o mundo seguro para Putin e Xi”.

Trump se recusa a entender, acrescentou esse analista, que Putin e o presidente chinês Xi Jinping querem ver os Estados Unidos encurralados no hemisfério ocidental, em vez de se meterem com qualquer um deles na Europa ou na Ásia/Pacífico - e eles veem Trump como seu peão para conseguir isso.

Por fim, e resumindo praticamente tudo o que foi dito acima, parece-me que Trump nunca deixou claro quais concessões, sacrifícios e garantias ele está exigindo da Rússia para conseguir um acordo de paz na Ucrânia. E quem entra em uma negociação sem um resultado final muito claro e inabalável em termos dos principais interesses americanos?

Há maneiras sustentáveis de terminar uma guerra e mantê-la terminada e há maneiras insustentáveis. Tudo depende do resultado final - e se o nosso resultado final for fundamentalmente diferente do resultado final da Ucrânia e de nossos aliados, não acho que eles vão simplesmente se render ao bromance Trump-Putin.

Putin quer uma Ucrânia com um governo que seja basicamente igual ao de sua vizinha vassala, Belarus, e não uma Ucrânia independente como a vizinha Polônia - uma democracia de livre mercado ancorada na União Europeia.

Não tenho a menor dúvida de qual delas é do interesse da Ucrânia, dos Estados Unidos e de nossos aliados europeus. O que me atormenta é não saber qual o interesse pessoal de Donald Trump - e isso é tudo o que importa agora na Washington de Trump.

Até ficar claro que o resultado final de Trump deveria ser o resultado final dos Estados Unidos - nenhuma rendição formal do território ucraniano a Putin, mas simplesmente um cessar-fogo; nenhuma adesão da Ucrânia à Otan, mas adesão à União Europeia; e uma força internacional de manutenção da paz no local, apoiada pela inteligência e pelo apoio material dos EUA -, fico muito, muito cético em relação a cada palavra que Trump e Putin dizem sobre a Ucrânia. Incluindo “e” e “o”.

Thomas Friedman, o autor deste artigo, é colunista de assuntos internacionais do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. Autor de sete livros, entre eles 'De Beirute a Jerusalém', que venceu o Prêmio Nacional do Livro. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 19.03.25

Os novos cidadãos

O cidadão forjado no ativo e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado. Nem a tolerância é uma marca da comunicação digital atual.

No início deste ano, Mark Zuckerberg, (na foto acima), dono da Meta, anunciou que a empresa não submeterá mais ao sistema de checagem de fatos as postagens feitas no Instagram e no Facebook nos Estados Unidos. A decisão tem diferentes implicações e justifica todo o debate que provocou e ainda provocará.

É oportuna, porém, a observação feita a respeito do tema no editorial Zuckerberg lava as mãos: “A mediação do real nesse ambiente (das redes sociais) é simplesmente impossível, por mais formidável que seja a estrutura de checagem de fatos” (Estadão, 9/1, A3). A observação é oportuna porque recorda a dificuldade de distinguir verdade e mentira numa plataforma que é aberta a todos e que não supõe a participação de especialistas dedicados a fazer essa distinção (e, então, torná-la acessível a todos), como faz a imprensa profissional.

Por muito tempo, a imprensa atuou como curadora das informações e dos discursos que povoavam a esfera pública, medindo, avaliando e selecionando seu fluxo. Seu dever de buscar a verdade factual era, ou deveria ser, uma barreira à manipulação dos fatos pela política; a aplicação do seu cânone da imparcialidade podia mediar as paixões populares.

Mas quantos ainda toleram a imparcialidade (mais ainda, uma imparcialidade pronunciada “de cima para baixo”)? Nem a tolerância é uma marca da comunicação digital atual.

Talvez uma das razões disso seja o modo como geralmente se dá essa comunicação, não raro narcísica, tendenciosa, provocativa, divisiva, além de rápida, segmentada, imagética, emocional. Comunicação que nunca foi tão livre, nem tão manipulada; que ocorre normalmente à distância dos outros, às vezes até de si mesmo: “O mundo da internet trouxe a experiência da desencarnação, da perda do invólucro concreto em carne e ossos, num balanço entre um si mesmo imaginário e seu duplo” (Ponto de Fuga, Jorge Coli).

Essa comunicação, amparada e favorecida pelas tecnologias digitais, molda “como” e “o que” conhecemos. Moldaria, assim, nossa cultura atual; logo, nossa cultura política atual.

Nela, vínculos políticos frequentemente resultam de interações afetivas; o bom político é “espontâneo”, “autêntico”, especialmente quando o que ele diz que sente nós sentimos também (o que ele efetivamente faz torna-se secundário, então). A comunidade política, nesses termos, não deve mirar a civilidade (que estabelece uma distância entre nós), mas a personalidade (que nos aproxima do nosso líder ou grupo). Daí as adesões de corpo e alma a conhecidos personagens políticos da atualidade.

Nesse contexto, sobressai o papel do entretenimento. Ele sempre teve um lugar na política, bem antes dos influencers, dos vídeos do TikTok, dos memes, etc. Como afirma o professor Eugênio Bucci no artigo Sem jornalismo, mundo não tem democracia e, ironicamente, não tem liberalismo (Estadão, 4/1), “a disputa do poder sempre jogou com a dissimulação e com recursos cênicos”. Atualmente, no entanto, “não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política”.

O entretenimento, assim, mobiliza interpretações da realidade, induz e reforça convicções, celebra comportamentos com destreza inédita. E, com as tecnologias digitais, ganhou um impulso vigoroso. Como diz Bucci, relatos informativos confiáveis perderam espaço para atrações mais excitantes: “A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional”. Assim, hoje, é o entretenimento que “modula as narrativas, rege o debate público, que funciona como um reality show”. O entretenimento tem a capacidade de suspender a dúvida em nome da diversão ou da confirmação do próprio ponto de vista.

E é assim que muitas sociedades pelo mundo vêm se “repolitizando”, num processo em que a autoexpressão, a representação prevalece sobre a comunicação, em que há mais divisões e menos comunidade, mais certezas do que interrogações, muitas identidades e pouca fraternidade.

É verdade que “democracia é feita de cacofonia”, como dito no editorial citado anteriormente, e que a pluralidade de vozes presentes no debate público geralmente atua em favor de um regime democrático, notadamente numa democracia liberal (democracia, sem esse adjetivo, por si só, não garante o respeito a direitos).

Por outro lado, que cidadão emerge deste ambiente digital espetacularizado de hoje? Uma cultura de participação política está bem encaminhada sob a liderança das lives, dos vídeos curtos, dos memes, da lacração, do cancelamento, do grotesco? Que comunidades políticas, de discussão e ação popular, se formam num tal ambiente? Nele, quais são as chances de tomarmos parte “nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação” das políticas sociais, como estabelece o parágrafo único do artigo 193 da Constituição federal de 1988? O cidadão forjado no ativo e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado.

Marcelo de Azevedo Granato, o autor deste artigo, é Doutor em Direito pela USP e pela Università degli Studi di Torin. Integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da FADI e FACAMP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.03.25

segunda-feira, 17 de março de 2025

Caixa de Pandora das emendas tem de ser fechada

 

Avanço do Congresso sobre Orçamento, que completa 10 anos, compromete qualidade do gasto público e relação entre Poderes

Fachada do Congresso Nacional, em Brasília (DF) - Rubens Chaves/Folhapress

Completam-se nesta segunda-feira (17) dez anos da mudança constitucional que tornou impositiva a execução de emendas parlamentares individuais ao Orçamento —e abriu uma caixa de Pandora que hoje compromete a qualidade do gasto público e as relações entre os Poderes republicanos.

Saudada na época como um mecanismo democrático para fortalecer o Legislativo, a aprovação da regra foi consequência do enfraquecimento político da então presidente Dilma Rousseff (PT), que acabaria sofrendo um processo de impeachment.

Desde então, as emendas, instrumento pelo qual deputados e senadores direcionam recursos federais, cresceram exponencialmente em volume e influência, reduzindo a capacidade de alocação por parte do Executivo.

Em 2019, o Congresso Nacional determinou que as emendas de bancadas estaduais também seriam impositivas. Instituíram-se ainda as chamadas emendas individuais Pix, que reduziram drasticamente a transparência da execução orçamentária.

Elas permitiram aos congressistas direcionar dinheiro do contribuinte diretamente ao caixa de prefeituras e governos estaduais, sem ao menos indicar a finalidade do gasto. Por causa disso, como noticiou a Folha, é desconhecido o destino de 12% dos investimentos da União nos últimos dois anos, ou R$ 14,3 bilhões.

Outra alteração importante —e nefasta— nas normas foi a ampliação do montante destinado obrigatoriamente às emendas individuais, que passou de 1,2% para 2% da receita corrente líquida da administração federal.

O impacto das mudanças no decênio impressiona. De 2014 para este ano, os gastos determinados por parlamentares saltaram de R$ 11,1 bilhões para R$ 49,2 bilhões, em valores corrigidos.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assim como o de Jair Bolsonaro (PL), reúne parcas condições políticas de conter o apropriação pelo Congresso de vastos recursos do Orçamento. A reação tem cabido principalmente ao STF, que tenta ao menos impor protocolos de transparência na apresentação e na execução das emendas.

Deputados e senadores, no entanto, resistem. Em 2024, votaram uma lei complementar que, embora tenha trazido alguma melhora nos processos, esteve longe de atender às exigências da corte. Já na semana passada, aprovou-se projeto de resolução que também mantém lacunas, como a ausência de identificação individual dos autores de emendas de comissão.

Persistem, assim, anomalias quantitativas e qualitativas. Nas principais economias, não há registro de tamanha ingerência direta de legisladores nos recursos públicos —e ela se dá em mero benefício de redutos eleitorais, sem critérios de prioridade.

É urgente, pois, interromper, disciplinar e, tanto quanto possível, reverter o avanço do Congresso sobre um Orçamento público já amplamente deficitário.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 17.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

sexta-feira, 14 de março de 2025

A molecagem do Congresso com emendas

Resolução para regulamentar acordo sobre transparência embute truque para manter sigilo e deve suscitar nova sanção do STF

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, recebe cumprimentos do petista Randolfe Rodrigues (esq) e do bolsonarista José Medeiros (dir) — Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

A relação entre Poderes da República não deveria comportar molecagem, mas é difícil encontrar outro nome para classificar a resolução costurada na surdina e aprovada a toque de caixa pelo Congresso que tenta, pela terceira ou quarta vez, driblar as determinações do Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade de dar transparência e rastreabilidade às emendas orçamentárias.

O grau de apego e a insistência bizarra de deputados e senadores em manter algum grau de sigilo sobre a liberação de dinheiro público só escancara quanto esta se tornou, antes de tudo, uma maneira de políticos se perpetuarem em mandatos e expandirem seu poder sobre prefeitos, empresas e eleitorado, num ciclo perverso que eles não querem ver quebrado.

Basta lembrar que a tentativa de moralizar as emendas começou (já tarde) com a ministra Rosa Weber, lá atrás, em 2022. Desde então, houve seguidas idas e vindas para algo que não é um capricho do Supremo Tribunal Federal, mas apenas e tão somente o Judiciário cumprindo aquilo que manda a Constituição em relação ao Orçamento da União.

O último lance, com a aprovação de uma resolução que permite que apenas os líderes chancelem indicação das emendas de comissão, permitindo que parlamentares permaneçam incógnitos, tem um teor de afronta ainda maior que os anteriores, porque Hugo Motta e Davi Alcolumbre acabaram de assumir o comando da Câmara e do Senado, foram até o ministro Flávio Dino, se comprometeram com um acordo para, apenas poucas semanas depois, orquestrarem a tentativa de driblá-lo.

É óbvio que, diante da já esperada manifestação do PSOL, autor de uma das ações que questionam o trâmite das emendas, Dino voltará à carga, provavelmente sustando novamente o pagamento das emendas até que a nova diabrura dos senhores parlamentares seja desfeita.

Não adiantará de nada os deputados e senadores apontarem intervenção indevida do ministro, conluio com o governo ou o que quer que seja. O assunto já teve diversos rounds, todo mundo sabe o que está posto à mesa, e a resolução com a brecha marota para o sigilo foi urdida propositalmente nos últimos dias, diante da inação por parte do governo, que reconhece sua própria tibieza na relação com o Legislativo e deu a batalha por perdida. É o que explica a votação da proposta com apoio maciço de quase todos os partidos, inclusive do PT.

Uma segunda manobra que passou relativamente despercebida na votação da resolução prorrogou a atual composição da Comissão Mista de Orçamento até que seja votada a proposta orçamentária deste ano, que segue travada. Com isso, a cúpula do Parlamento mostra que a ideia é manter o Orçamento deste ano como refém até que seja encerrada a novela em torno das emendas — que, como se vê, terá mais um capítulo agora.

Caso a proposta não seja votada na semana que vem, estará alcançado o recorde de atraso na aprovação do Orçamento, um indicativo inquestionável da forma como a agenda de interesse do país está subordinada aos interesses dos congressistas e de quanto o negócio das emendas é, hoje, condição de vida e morte para eles, da esquerda à direita, com a exceção apenas dos nanicos PSOL e Novo, cada um numa ponta do espectro político.

Lula disse na campanha que acabaria com o orçamento secreto, mas rompeu a promessa já antes da posse, quando pactuou a votação da PEC da Transição e o apoio à reeleição de Arthur Lira. Há dúvida razoável quanto ao grau de afinação entre ele e Dino na tentativa de disciplinar aquilo de que deputados e senadores se recusam a abrir mão.

Mas fica nítida a falta de voz e de pulso do Executivo em exigir que a destinação de recursos públicos por parte do Legislativo seja moralizada. A ousadia do Congresso em dobrar a aposta mostra que o negócio é tão lucrativo que a briga compensa.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é comentarista de política n'O Globo. Publicado originalmente em 14.03.25